Perfil sociodemográfico e farmacoepidemiológico de crianças infectadas pelo HIV

Sociodemographic and pharmacoepidemiology profile of HIV infected children

Leticia Mara Marca Frederico Alves Dias Débora Bauer Schultz Doroteia Aparecida Höfelmann Yanna Dantas Rattmann Sobre os autores

RESUMO

A terapia antirretroviral interfere na replicação do vírus HIV, impede a progressão da infecção para a Aids e previne a mortalidade precoce das crianças infectadas. Esta pesquisa investigou o perfil sociodemográfico e os parâmetros relacionados com o tratamento antirretroviral das crianças HIV positivas residentes no estado do Paraná. Trata-se de um estudo observacional descritivo e analítico realizado com dados secundários do ano de 2020 referentes às crianças com até 12 anos de idade. Foram investigados: perfil, prevalência, medicamentos em uso, abandono da terapia, resistência e supressão viral. Foram identificadas 148 crianças, com uma prevalência igual a 8,1/100 mil no Paraná. Apesar de todas as crianças diagnosticadas com HIV terem iniciado o tratamento, 17,2% encontravam-se em abandono da terapia antirretroviral. Entre as crianças que permaneciam em tratamento, 9,8% não atingiram a supressão viral e suas cargas virais comumente ultrapassavam mil cópias virais/mL. Houve um predomínio de esquemas medicamentosos provavelmente prescritos após falhas terapêuticas. Os resultados indicam que o Paraná apresenta bons resultados quanto ao início rápido da terapia e à supressão viral das crianças. Entretanto, existe um número considerável de abandonos da terapia e de falhas terapêuticas, indicando a necessidade de reforçar a vinculação desta população aos serviços de saúde.

PALAVRAS-CHAVES
HIV; Terapia antirretroviral de alta atividade; Crianças; Carga viral; Farmacorresistência viral

ABSTRACT

Antiretroviral therapy interferes with the replication of the HIV virus, stops the progression of infection, and prevents early mortality in infected children. This research investigated the sociodemographic profile and parameters related to the antiretroviral treatment of HIV positive children living in the state of Paraná. This is a descriptive observational and analytical study, carried out with secondary data from the year 2020, referring to children up to 12 years of age. The profile, prevalence, medicines in use, treatment abandonment, viral resistance, and viral suppression were investigated. A total of 148 children were identified, with a prevalence equal to 8.1/100,000 in Paraná. All infants had begun their treatment, but 17,2% abandoned it. Among children who remained on treatment, 9.8% did not achieve viral suppression and their viral loads commonly exceeded 1000 viral copies/mL. There was a predominance of drug regimens probably prescribed after treatment failures. The results indicate that Paraná presents good results in terms of rapid initiation of therapy and viral suppression in children. However, there is a considerable number of abandonments of therapy and therapeutic failures, indicating the need to strengthen the link between this population and health services.

KEYWORDS
HIV; Antiretroviral therapy, highly active; Child; Viral load; Drug resistance, viral

Introdução

A principal forma de infecção pelo HIV em crianças é a transmissão vertical, a qual ocorre durante a gestação, o parto ou a amamentação11 Luzuriaga K, Mofensor LM. Challenges in the elimination of pediatric HIV-1 infection. N Engl J Med. 2016 [acesso em 2022 jan 25]; (374):761-770. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26933850/.
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. Por terem um sistema imunológico ainda em desenvolvimento, as crianças apresentam uma elevada taxa de replicação viral, com consequente depleção das células TCD4+, acúmulo de mutações virais de resistência e rápida evolução clínica para a Aids22 Shiferaw MB, Endalamaw D, Hussien M, et al. Viral suppression rate among children tested for HIV viral load at the Amhara Public Health Institute, Bahir Dar, Ethiopia. BMC Infect Dis. 2019 [acesso em 2022 jan 25]; 19(1):1-6. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31088496/.
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. Na ausência do tratamento antirretroviral, 50% das crianças falecem antes dos 2 anos de idade, sendo o pico da mortalidade entre 2 e 3 meses de vida33 UNAIDS. Knowledge is power: know your status, know your viral load. Genebra: UNAIDS; 2018.. Para conter a progressão da infecção pelo HIV e atingir a supressão viral, é necessário garantir o acesso aos antirretrovirais, alcançar uma adesão de, no mínimo, 95% à terapia44 Abreu JC, Vaz SN, Netto EM, et al. Virological suppression in children and adolescents is not influenced by genotyping, but depends on optimal adherence to antiretroviral therapy. Braz J InfectDis. 2017 [acesso em 2022 jan 25]; (21):219-225. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28253476/.
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e vincular as pessoas diagnosticadas aos serviços de saúde para o acompanhamento longitudinal da terapia55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018..

No Brasil, o acesso aos medicamentos antirretrovirais é gratuito e garantido pela Lei nº 9.313 de 199666 Brasil. Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996. Dispõem sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV e doentes de AIDS. Diário Oficial da União. 14 Nov 1996.. Além disso, o País se tornou a primeira nação de renda média a disponibilizar os antirretrovirais sem custo a todas as pessoas infectadas pelo HIV77 Benzaken AS, Pereira GFM, Costa L, et al. Antiretroviral treatment, government policy and economy of HIV/AIDS in Brazil: is it time for HIV cure in the country?. AIDS Res Ther. 2019; 16(1):1-7. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31412889/.
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Nesse contexto, o ‘Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes (PCDT)’ do Ministério da Saúde55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018. preconiza o esquema inicial de antirretrovirais composto por três fármacos de diferentes classes terapêuticas: dois Inibidores de Transcriptase Reversa Análogos de Nucleosídeo (ITRN) e um que pode pertencer à classe dos Inibidores de Protease (IP), Inibidores de Integrase (INI) ou Inibidores de Transcriptase Reversa Não Análogos de Nucleosídeo (ITRNN)55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Todas essas classes farmacológicas são contempladas no elenco de medicamentos antirretrovirais do Sistema Único de Saúde55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018..

Apesar do acesso aos antirretrovirais, as crianças enfrentam diversos obstáculos para conter o progresso da doença. Dentre estes, destacam-se: peculiaridades da resposta imune na infância; necessidade de cuidadores; menor diversidade de fármacos antirretrovirais com segurança avaliada para essa população; poucas formulações desenvolvidas para uso na infância, com boa palatabilidade e tamanho de fácil deglutição; além da complexidade dos esquemas e especificidades de armazenamento de alguns antirretrovirais88 Schlatter AF, Deathe AR, Vreeman RC. The need for pediatric formulations to treat children with HIV. AIDS Res Treat. 2016. [acesso em 2022 jan 25]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27413548/.
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. Esses fatores dificultam o tratamento e contribuem para o abandono da terapia antirretroviral, resultando em morbidade e mortalidade precoces das crianças99 Abuogi LL, Smith C, McFarland EJ. Retention of HIV-infected children in the first 12 months of anti-retroviral therapy and predictors of attrition in resource limited settings: a systematic review. PloSOne. 2016 [acesso em 2022 jan 25]; 11(6):e0156506. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27280404/.
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Em 2015, foi proposta uma meta mundial para contribuir com o fim da epidemia da Aids, a meta 90-90-901010 UNAIDS. 90-90-90: uma meta ambiciosa de tratamento para contribuir para o fim da epidemia de AIDS. Genebra: UNAIDS; 2015.. Esta visa diagnosticar 90% das pessoas que vivem com HIV, tratar 90% das pessoas infectadas, e suprimir a Carga Viral (CV) de 90% das pessoas em uso da terapia antirretroviral33 UNAIDS. Knowledge is power: know your status, know your viral load. Genebra: UNAIDS; 2018.. Essa meta inclui também as crianças com HIV, porém existem esforços paralelos específicos para essa população, a exemplo do combate à infecção vertical, da intensificação da oferta de antirretrovirais, da aceitação e da retenção no tratamento, além do estímulo ao desenvolvimento de formulações de medicamentos mais eficazes e adequados à infância1111 Children affected by HIV need a holistic approach to care [editorial]. The Lancet HIV. 2018 [acesso em 2022 jan 25]; 5(12):e671. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30527321/.
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Em vista disso, esta pesquisa teve como propósito caracterizar o perfil sociodemográfico das crianças HIV positivas do estado do Paraná e obter informações sobre parâmetros relacionados com a terapia antirretroviral dessa população, supressão viral, resistência viral, abandono da terapia e medicamentos em uso.

Material e métodos

A população do estudo foi constituída por todas as crianças de zero a 12 anos de idade incompletos diagnosticadas com HIV no estado do Paraná. Essa escolha foi baseada no ‘Estatuto da Criança e do Adolescente’1212 Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 Jul 1990., que considera crianças os indivíduos com idade entre zero e 12 anos incompletos. A escolha dessa faixa etária para o estudo também foi motivada pela necessidade do uso de esquemas antirretrovirais específicos para crianças até os 12 anos. A partir dessa idade, conforme o PCDT do Ministério da Saúde, são prescritos os mesmos esquemas de medicamentos antirretrovirais disponíveis para os adultos1313 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos. Brasília, DF: MS; 2018..

Trata-se de um estudo observacional descritivo – e, em parte, analítico –, com informações referentes ao período de janeiro a dezembro de 2020, do estado do Paraná. Os dados secundários foram coletados a partir de relatórios provenientes de quatro sistemas informatizados de acompanhamento de pessoas vivendo com HIV/Aids: o Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (Siclom), o Sistema de Controle de Exames Laboratoriais (Siscel), o Sistema de Monitoramento Clínico das Pessoas vivendo com HIV/Aids (SIMC) e o Sistema de Controle de Exames e Genotipagem (Sisgeno). Esses sistemas são de acesso restrito, e a coleta ocorreu em parceria com o Centro de Medicamentos do Paraná (Cemepar) da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (Sesa-PR).

O Paraná, um dos três estados localizados na região Sul, tem 10,4 milhões de habitantes, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) igual a 0,749 e divide-se administrativamente em 22 Regionais de Saúde (RS)1414 Paraná. Secretaria de Estado da Saúde. Plano Estadual de Saúde Paraná 2016-2019. Curitiba: SESA; 2016.. Essas regionais são identificadas como: 1ª RS – Paranaguá; 2ª RS – Metropolitana de Curitiba; 3ª RS – Ponta Grossa; 4ª RS – Irati; 5ª RS – Guarapuava; 6ª RS – União da Vitória; 7ª RS – Pato Branco; 8ª RS – Francisco Beltrão; 9ª RS – Foz do Iguaçu; 10ª RS – Cascavel; 11ª RS – Campo Mourão; 12ª RS – Umuarama; 13ª RS – Cianorte; 14ª RS – Paranavaí; 15ª RS – Maringá; 16ª RS – Apucarana; 17ª RS – Londrina; 18ª RS – Cornélio Procópio; 19ª RS – Jacarezinho; 20ª RS – Toledo; 21ª RS – Telêmaco Borba; e 22ª RS – Ivaiporã. No Paraná, existem 39 Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM)1515 Paraná. Secretaria de Estado da Saúde. Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM). [2021]. [acesso em 2022 jan 25]. Disponível em: https://www.saude.pr.gov.br/Pagina/Elenco-Complementar-da-Assistencia-Farmaceutica.
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, que são locais de referência para a obtenção dos medicamentos antirretrovirais para todas as pessoas infectadas pelo HIV no estado1313 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos. Brasília, DF: MS; 2018.. Além da oferta de antirretrovirais, as UDM também dispensam medicamentos indicados para o tratamento de infecções oportunistas e efeitos colaterais manifestados com o uso de antirretrovirais, bem como produtos que visam prevenir as infecções sexualmente transmissíveis1616 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria conjunta nº 1, de 16 de janeiro de 2013. Altera na Tabela de Serviço Especializado no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES), o Serviço 106 - Serviço de Atenção a DST/HIV/Aids, e institui o Regulamento de Serviços de Atenção às DST/HIV/ Aids, que define suas modalidades, classificação, organização das estruturas e o funcionamento. Diário Oficial da União. 17 Jan 2013..

Dos relatórios provenientes dos sistemas acessados, foram coletados dados sociodemográficos (sexo, idade, cor da pele, regional de saúde), número de crianças com HIV que não haviam iniciado seu tratamento (GAP de tratamento), CV, ocorrência de abandono da terapia, resistência aos antirretrovirais e medicamentos antirretrovirais em uso.

A prevalência foi calculada por meio da divisão do número de crianças HIV positivas pelo número total de crianças residentes no local. Os números absolutos de crianças com até 12 anos foram adquiridos nos cadernos municipais do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes)1717 Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social. Cadernos Municipais. 2020. [acesso em 2022 jan 25]. Disponível em: http://www.ipardes.pr.gov.br/Pagina/Cadernos-municipais.
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. Os valores foram calculados para o estado do Paraná e, também, para suas 22 RS.

Para a obtenção da proporção do abandono da terapia antirretroviral, foram consideradas em abandono da terapia as crianças para as quais não havia registro de dispensação de medicamentos há mais de 100 dias nas UDM do estado. Para essas crianças, foram analisadas suas variáveis sociodemográficas, tempo de abandono de terapia antirretroviral e local da sua UDM de referência para obtenção desses medicamentos. As crianças declaradas em óbito no Siclom e no Siscel seriam removidas da contagem. Porém, não houve nenhum óbito declarado nesses sistemas para as crianças incluídas no estudo. Cabe salientar que esses sistemas não cruzam automaticamente as informações com o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Portanto, as UDM dependem das informações providas por outros serviços de saúde e pelos familiares das crianças. Dessa forma, existe risco de alguma criança contabilizada em abandono de terapia ter ido a óbito. Isso consiste em uma limitação deste estudo.

Também foram analisados dados referentes à supressão viral. Entende-se por supressão viral o valor de CV inferior ou igual a 50 cópias de RNA viral/mL de sangue, tal como proposto no PCDT do Ministério da Saúde55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Para as crianças que não alcançaram a supressão viral, foram investigadas suas características sociodemográficas e ocorrência de resistência aos antirretrovirais, com identificação das classes terapêuticas.

Os esquemas terapêuticos em uso pelas crianças foram identificados e distribuídos em dois grupos principais: a) esquemas iniciais ou b) esquemas ajustados (em decorrência de necessidades específicas das crianças, ou após falha terapêutica). Essa divisão foi elaborada com base no proposto pelo PCDT55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Os esquemas que apresentavam exclusivamente a combinação de medicamentos proposta pelo protocolo como início de tratamento (tanto preferenciais quanto alternativos) foram enquadrados em esquemas iniciais. Esses esquemas são as combinações constituídas pelos seguintes fármacos: zidovudina (AZT) + lamivudina (3TC) + lopinavir com reforço de ritonavir (LPV/r); AZT + 3TC + nevirapina (NVP); abacavir (ABC) + 3TC + LVP/r; ABC + 3TC + raltegravir (RAL); tenofovir (TDF) + 3TC + efavirenz (EFZ), AZT + 3TC + EFZ. Os esquemas de início de tratamento variam de acordo com a idade da criança55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Em uma avaliação simplificada, as combinações de fármacos que diferiram destas, considerando aqui também a duploterapia e a monoterapia, foram categorizadas como esquemas ajustados.

No PCDT, os esquemas recomendados para as crianças variam conforme a idade. Nesta avaliação, as relações entre idade e esquema foram desconsideradas, uma vez que o esquema prescrito pode apresentar resultados favoráveis após anos de uso contínuo, não havendo a necessidade de alterá-lo exclusivamente em função da idade55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018..

O processamento dos dados ocorreu com o auxílio do software Excel® 2016. Foram utilizadas ferramentas da estatística descritiva, como frequências absolutas, relativas, médias, valores mínimo e máximo.

As comparações foram realizadas pelo software Stata® versão 14. Realizou-se uma regressão logística para investigar a relação entre as variáveis de sexo, faixa etária e cor de pele com o abandono de terapia antirretroviral e CV superior a 50 cópias de RNA viral/mL de sangue. Foram calculados o Odds Ratio (OR), o valor de p e o Intervalo de Confiança de 95% para cada uma das variáveis.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Paraná (parecer nº 2.620.673) e do Hospital do Trabalhador da Sesa-PR (parecer nº 2.674.606) sob o número CAAE: 82936318.3.3001.5225.

Resultados

Em 2020, foram identificadas 148 crianças com até 12 anos de idade no estado do Paraná. Prevaleceram as crianças do sexo feminino (58,8%), na razão de 1,4 menina para cada menino, e faixa etária entre 5 e 8 anos (média 6,7 anos e desvio-padrão igual a 3,2) (tabela 1).

Tabela 1
Características sociodemográficas das crianças menores de 12 anos vivendo com HIV no estado do Paraná no ano de 2020

Todas as crianças diagnosticadas com HIV já haviam iniciado o tratamento antirretroviral. Entretanto, entre as 148 crianças, 26 encontravam-se em abandono da terapia antirretroviral (17,6%). Entre estas, predominavam as brancas (65,4%), com 5 a 8 anos (média 6,8 anos e desvio-padrão igual a 3,1), com idade mínima de 2 e máxima de 11 anos, igualmente distribuídas entre os sexos (50%) (tabela 2).

Tabela 2
Características sociodemográficas, tempo sem uso de antirretrovirais e localização das Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM) de referência para as crianças menores de 12 anos que se encontravam em situação de abandono da terapia

Ao investigar a proporção de crianças em abandono da terapia em relação ao total de crianças HIV positivas no Paraná, observa-se uma maior proporção do sexo masculino (21,3%) quando comparado ao sexo feminino (14,9%), além do predomínio das crianças com pele não branca (25%) (tabela 2). A maioria dessas crianças (73,1%) residiam em cidades sem UDM e tinham seus antirretrovirais dispensados em outros municípios.

Identificou-se um maior risco de abandono da terapia antirretroviral pelas crianças do sexo masculino (OR = 1,54), com idades entre 5 e 8 anos (OR = 1,21) e não brancas (OR = 1,82). Apesar disso, nenhuma das variáveis apresentou significância estatística (tabela 2).

O tempo decorrido desde o abandono da terapia antirretroviral variou de 100 a 2.770 dias. Predominaram as crianças com até um ano de abandono de terapia (média de 253,7 dias, com desvio-padrão igual a 80), correspondendo a 38,5% da amostra (tabela 2).

No estado do Paraná, 90,2% de todas as crianças em tratamento antirretroviral alcançaram a supressão viral. Entre as que não atingiram, predominaram crianças com idades entre 5 e 8 anos (média de 7 anos e desvio-padrão de 2,9), do sexo feminino (58,3%). Todavia, quando considerada a população total do estudo, o sexo masculino apresentou um leve predomínio (tabela 3). Os fatores de risco identificados para não atingir a supressão viral foram ser do sexo masculino (OR = 1,02), ter idade entre 5 e 8 anos (OR = 1,55) e cor não branca (OR = 1,59), mas nenhum apresentou significância estatística.

Tabela 3
Características sociodemográficas e parâmetros laboratoriais das crianças menores de 12 anos de idade que não alcançaram a supressão viral no estado do Paraná no ano de 2020

Entre as crianças que não alcançaram a supressão viral, 50% tinham CV superior a mil cópias de RNA viral/mL de sangue, todas apresentaram vírus com mutações e 58,3% exibiram vírus resistentes a até três classes farmacológicas de antirretrovirais (tabela 3). As classes que mostraram o maior número de crianças com vírus resistentes foram a ITRN e a ITRNN (tabela 3).

A prevalência de crianças com HIV no estado do Paraná correspondeu a 8,1/100 mil. As regionais que apresentaram as maiores taxas foram: Toledo (13,7), Cascavel (12,2), Umuarama (11,8) e Paranaguá (11,3), enquanto as regionais de Paranavaí e Cornélio Procópio exibiram os menores valores, de 2,3 e 2,7 a cada 100 mil crianças. A regional de Cianorte foi a única que não apresentou nenhuma criança com HIV (tabela 4).

Tabela 4
Prevalência de crianças menores de 12 anos que vivem com HIV nas Regionais de Saúde do estado do Paraná no ano de 2020, e Regionais de Saúde com as maiores prevalências de crianças em abandono da terapia antirretroviral e com carga viral não suprimida

A RS Metropolitana apresentou a maior proporção de crianças em abandono da terapia antirretroviral do Paraná, porém, a maior prevalência foi identificada na regional de Ivaiporã. As regionais Metropolitana e Cascavel apresentaram as maiores proporções de crianças com CV não suprimida, e as maiores prevalências ocorreram nas regionais de Cascavel e Umuarama (tabela 4).

Foram identificados 14 fármacos combinados em 35 diferentes esquemas em uso pelas crianças com HIV do Paraná no ano de 2020. Somente seis esquemas, 17,1% do total, eram de primeira linha, prescritos em início de tratamento. A razão entre os esquemas iniciais e os esquemas após falha foi de 1:2,4. Entre os esquemas após falha, prevaleceram aqueles compostos por três fármacos antirretrovirais, em diversas combinações de classes farmacológicas; entretanto, também foram identificados esquemas com mais de três fármacos antirretrovirais, esquemas com duploterapia (tratamento com dois fármacos) e monoterapia (tratamento com um único fármaco). Além disso, foram contabilizados os números de dispensações de cada esquema para as crianças no período considerado (figura 1).

Figura 1
Representação dos esquemas de tratamento antirretroviral dispensados ao longo do ano de 2020 para as crianças menores de 12 anos que vivem com HIV no estado do Paraná

Discussão

Neste estudo, houve um predomínio de crianças com HIV do sexo feminino. Porém, esse dado pode estar associado, ao menos em parte, à maior mortalidade, por causas diversas, dos indivíduos do sexo masculino entre zero e 14 anos no estado do Paraná e no Brasil1818 Brasil. Ministério da Saúde. Home DATASUS. 2021. [acesso em 2022 jan 25]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/.
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No País, houve um predomínio de casos de HIV em menores de 5 anos no período de 2007 a 2020, na faixa etária de zero a 14 anos1919 Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico de HIV e Aids. 2020; (esp).. Esse dado se mostra diferente do identificado nesta pesquisa no Paraná, uma vez que a população de zero a 4 anos de idade se mostrou a menos prevalente. Isso pode estar associado à existência dos programas Rede Mãe Curitibana Vale a Vida2020 Burger M, Pchebilski LT, Sumikawa ES, et al. O impacto do programa mãe curitibana sobre a transmissão vertical do HIV no município de Curitiba entre 2000 e 2009. DST j. bras. Doenças sex. transm. 2011 [acesso em 2022 jan 25]; 76-83. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil611889.
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e Rede Mãe Paranaense, criados em 1999 e 2012 respectivamente2121 Paraná. Secretaria de Estado da Saúde. Rede mãe paranaense: manual para a gestão de caso na rede mãe paranaense. Curitiba: Secretaria do Estado da Saúde do Paraná; 2017.. Ambos os programas evidenciam melhorar o atendimento de pré-natal e puerpério. Neles, são previstos os testes para o diagnóstico de HIV nas gestantes e o encaminhamento para o início imediato do tratamento profilático, o qual reduz as chances de transmissão vertical do vírus2020 Burger M, Pchebilski LT, Sumikawa ES, et al. O impacto do programa mãe curitibana sobre a transmissão vertical do HIV no município de Curitiba entre 2000 e 2009. DST j. bras. Doenças sex. transm. 2011 [acesso em 2022 jan 25]; 76-83. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil611889.
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso...
,2121 Paraná. Secretaria de Estado da Saúde. Rede mãe paranaense: manual para a gestão de caso na rede mãe paranaense. Curitiba: Secretaria do Estado da Saúde do Paraná; 2017.
.

As crianças infectadas pelo HIV que sabem sobre seu diagnóstico apresentam uma melhor continuidade no tratamento. Entretanto, muitos pais omitem essa informação por receio da discriminação e a revelam tardiamente, frequentemente após os 10 anos de idade2222 Sanjeeva GN, Pavithra HB, Chaitanya S, et al. Parental concerns on disclosure of HIV status to children living with HIV: children’s perspective. AIDS care. 2016 [acesso em 2022 jan 25]; 28(11):1416-1422. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27237302/.
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. Essa prática dificulta a colaboração da criança e de outras pessoas do seu convívio e delega aos seus responsáveis diretos a exclusividade do cuidado. Quando em condições desfavoráveis, essas crianças se tornam mais suscetíveis à má adesão e ao abandono da terapia antirretroviral. O abandono de assistência pelo responsável apresenta um risco de 1,6 a 3,3 vezes maior em menores de 1 ano de idade99 Abuogi LL, Smith C, McFarland EJ. Retention of HIV-infected children in the first 12 months of anti-retroviral therapy and predictors of attrition in resource limited settings: a systematic review. PloSOne. 2016 [acesso em 2022 jan 25]; 11(6):e0156506. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27280404/.
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A faixa etária de 5 a 8 anos foi a mais prevalente entre os indivíduos em abandono de terapia. Isso pode estar associado ao fato de essas crianças já estarem em idade escolar e poderem apresentar incompatibilidades de horários com os seus cuidadores. Esses responsáveis comumente têm medo de delegar a administração dos medicamentos aos profissionais das escolas, com receio de que as crianças sofram com o preconceito. Essa é a principal razão alegada para a não adesão à terapia antirretroviral pelas crianças em idade escolar2323 Ssanyu JN, Nakafeero M, Nuwaha F. Multi-measure assessment of adherence to antiretroviral therapy among children under five years living with HIV in Jinja, Uganda. BMC publichealth. 2020 [acesso em 2022 jan 25]; 20(1):1-10. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32867724/.
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. Neste estudo, não foram identificadas no Siclom nem no Siscel crianças em abandono de tratamento em razão de óbito. Entretanto, existe algum risco devido à atualização tardia dessa informação. Não há cruzamento das informações de abandono da terapia com as declarações de óbito do SIM. Isso consiste em uma limitação operacional dos sistemas e, também, deste artigo. Nesse contexto, medidas para a superação desse problema que ocorre em âmbito nacional tornam-se necessárias, as quais podem ser viabilizadas pelo cruzamento com as declarações de óbitos no SIM. O conhecimento dos casos reais de abandono da terapia antirretroviral é essencial para o resgate dessas crianças às UDM para a continuidade do tratamento. Frequentemente, ocorre por busca ativa, a qual demanda recursos humanos já escassos nessas unidades2323 Ssanyu JN, Nakafeero M, Nuwaha F. Multi-measure assessment of adherence to antiretroviral therapy among children under five years living with HIV in Jinja, Uganda. BMC publichealth. 2020 [acesso em 2022 jan 25]; 20(1):1-10. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32867724/.
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.

A maior parte da população do Paraná se autodeclara branca2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010: característica da população e dos domicílios. Rio de Janeiro: IBGE; 2011., o que poderia explicar a prevalência desse grupo no estudo. Entretanto, quando se analisam o abandono da terapia e a ausência de supressão viral, percebe-se uma maior proporção de indivíduos não brancos. No Brasil, a taxa de pobreza é maior entre pretos e pardos do que entre os brancos, o que pode ser um fator de grande empecilho para o acesso aos serviços de saúde por parte desses indivíduos2525 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2019.. Isso porque tanto o abandono da terapia quanto a ausência de supressão viral podem estar associados a dificuldades de retenção de determinados grupos aos serviços de saúde e a condições socioeconômicas desfavoráveis que dificultam o deslocamento e a permanência nos serviços especializados2626 Graeff SVB, Pícolli RP, Arantes R, et al. Aspectos epidemiológicos da infecção pelo HIV e da aids entre povos indígenas. Rev Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 3]; (53). Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/kGr67vx9TXFhhJLRPhNDsHz/?lang=pt.
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,2727 Ricci G, Netto EM, Luz E, et al. Adherence to antiretroviral therapy of Brazilian HIV-infected children and their caregivers. BrazJ Infect Dis. 2016 [acesso em 2022 jan 3]; 20(5):429-436. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27471126/.
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.

No Paraná, todas as crianças diagnosticadas com HIV iniciaram rapidamente o tratamento antirretroviral. Isso demonstra que o estado tem cumprido a orientação do Ministério da Saúde de iniciar a terapia antirretroviral logo após o diagnóstico positivo para infecção pelo HIV55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Isso é de fundamental importância, uma vez que o início precoce proporciona maior expectativa de vida2828 Shabangu P, Beke A, Manda S, et al. Predictors of survival among HIV-positive children on ART in Swaziland. Afr J AIDS Res. 2017 [acesso em 2022 jan 3]; 16(4):335-343. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29132283/.
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. Esse resultado se mostra ainda mais promissor quando comparado a dados gerais da população geral com HIV no Brasil em 2019, onde 78% das pessoas com HIV haviam iniciado seu tratamento2929 UNAIDS. Seizing the moment: Tackling entrenched inequalities to end epidemics. Global AIDS update. Genebra: UNAIDS; 2020.. Isto indica um GAP de tratamento de 22% na população geral com HIV, superior aos 10% preconizados pela Unaids33 UNAIDS. Knowledge is power: know your status, know your viral load. Genebra: UNAIDS; 2018. e ao GAP de 0% identificado neste estudo com as crianças do estado.

Apesar de todas as crianças com HIV do estudo terem iniciado o tratamento, 17,6% encontravam-se em abandono da terapia antirretroviral no Paraná. Esse dado demonstra a dificuldade de vinculação e retenção das crianças e dos seus cuidadores aos serviços de saúde. Observa-se, portanto, a necessidade de implementar novas ações como a busca ativa dessas crianças, além de proporcionar o conhecimento dos riscos aos seus responsáveis. O número relativamente baixo de crianças por regional de saúde torna essa busca possível, o que permitiria identificar os motivos da não retirada dos medicamentos e os meios para contorná-los. Outra possibilidade para facilitar o acesso à terapia seria prover UDM mais próximas do local de residência ou, na impossibilidade, descentralizar a dispensação em serviços de saúde mais próximos dessa população, como nas Unidades Básicas de Saúde3030 Brasil. Ministério da Saúde. 5 passos para a implementação do Manejo da Infecção pelo HIV na atenção básica. Brasília, DF: MS; 2017..

O estudo revelou que 73,1% das crianças em abandono de terapia antirretroviral residem em cidades sem UDM e que seus responsáveis precisam se deslocar para obter os medicamentos. Esse dado pode estar associado fortemente ao abandono de terapia, uma vez que há um custo envolvido nesse deslocamento que pode comprometer a ida do familiar à UDM, especialmente os mais vulneráveis2727 Ricci G, Netto EM, Luz E, et al. Adherence to antiretroviral therapy of Brazilian HIV-infected children and their caregivers. BrazJ Infect Dis. 2016 [acesso em 2022 jan 3]; 20(5):429-436. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27471126/.
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Outros fatores que comprometem a adesão ao tratamento das crianças são a palatabilidade dos antirretrovirais, o tamanho dos comprimidos, a complexidade dos tratamentos e as necessidades de armazenamento de alguns medicamentos constantemente sobrefrigeração88 Schlatter AF, Deathe AR, Vreeman RC. The need for pediatric formulations to treat children with HIV. AIDS Res Treat. 2016. [acesso em 2022 jan 25]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27413548/.
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. Além desses fatores, interferem ainda algumas características dos responsáveis pelas crianças, como sentimento de culpa, restrições impostas por problemas de saúde dos pais biológicos, indisponibilidade de alimentos em casa, cujo consumo é recomendado antes da administração dos medicamentos para prevenir o desconforto gástrico. A educação dos responsáveis pelas crianças é outro importante fator2727 Ricci G, Netto EM, Luz E, et al. Adherence to antiretroviral therapy of Brazilian HIV-infected children and their caregivers. BrazJ Infect Dis. 2016 [acesso em 2022 jan 3]; 20(5):429-436. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27471126/.
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. Dessa forma, as ações de educação em saúde, bem como as iniciativas voltadas às necessidades básicas das famílias em vulnerabilidade, trariam avanços no tratamento e no acompanhamento de crianças infectadas pelo HIV.

O acesso aos medicamentos não significa necessariamente adesão ao tratamento2323 Ssanyu JN, Nakafeero M, Nuwaha F. Multi-measure assessment of adherence to antiretroviral therapy among children under five years living with HIV in Jinja, Uganda. BMC publichealth. 2020 [acesso em 2022 jan 25]; 20(1):1-10. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32867724/.
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. Isso explica, ao menos em parte, o porquê de algumas crianças não alcançarem a supressão viral. Mais uma vez, torna-se necessário investir em ações voltadas à educação dos responsáveis e das crianças HIV positivas. Essas ações poderiam evidenciar a necessidade do uso contínuo dos antirretrovirais e os desfechos indesejáveis decorrentes da má adesão e abandono da terapia. A frequência de uso não foi investigada no presente estudo, entretanto, quando não há retirada dos medicamentos na UDM, considera-se que não há uso dos antirretrovirais, uma vez que esses medicamentos são disponibilizados aos usuários exclusivamente nesses locais. Interrupções no tratamento provocam aumento do número de cópias virais e redução de células TCD4+, culminando em episódios frequentes de morbidade e mortalidade precoce3131 Rakhmanina N, Lam KS, Hern J, et al. Interruptions of antiretroviral therapy in children and adolescents with HIV infection in clinical practice: a retrospective cohort study in the USA. J Int AIDS Soc. 2016 [acesso em 2022 jan 3]; 19(1):20936. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27797320/.
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Alcançar a supressão viral proporciona uma melhor resposta imune e reduz as chances de o vírus ser transmitido para outras pessoas22 Shiferaw MB, Endalamaw D, Hussien M, et al. Viral suppression rate among children tested for HIV viral load at the Amhara Public Health Institute, Bahir Dar, Ethiopia. BMC Infect Dis. 2019 [acesso em 2022 jan 25]; 19(1):1-6. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31088496/.
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. No Paraná, 90,2% das crianças em tratamento antirretroviral conseguiram atingir a supressão viral. Essa proporção é considerada adequada pela Unaids, conforme a meta 90-90-9033 UNAIDS. Knowledge is power: know your status, know your viral load. Genebra: UNAIDS; 2018..

A ocorrência de mutações e a resistência viral aos medicamentos antirretrovirais interferem no sucesso da terapia, que é comumente mensurado pela supressão viral. Os vírus transmitidos verticalmente para as crianças carregam consigo as mutações de resistência viral ocorridas ainda no organismo da mãe3232 Aulicino PC, Zapiola I, Kademian S, et al. Pre-treatment drug resistance and HIV-1 subtypes in infants from Argentina with and without exposure to antiretroviral drugs for prevention of mother-to-child transmission. J Antimicrob Chemothe. 2019 [acesso em 2022 jan 3]; 74(3):722-730. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30517632/.
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. Por essa razão, indica-se o teste de genotipagem para guiar a escolha dos fármacos antirretrovirais mais efetivos para reduzir a CV nas crianças55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Nesse contexto, monitorar a CV de indivíduos pediátricos com HIV é essencial para detectar falhas terapêuticas e propor a troca rápida por esquemas antirretrovirais mais eficazes, capazes de suprimir a CV de forma sustentada3333 Boerma RS, Boender TS, Bussink AP, et al. Suboptimal viral suppression rates among HIV-infected children in low-and middle-income countries: a meta-analysis. Clin Infect Dis. 2016 [acesso em 2022 jan 3]; 63(12):1645-1654. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27660236/.
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.

No atual estudo, considerando exclusivamente os esquemas previstos no PCDT, observou-se uma grande prevalência de esquemas que não são os indicados para o início de tratamento. Em uma abordagem bruta, desconsiderando pequenas variações como a duploterapia, estes poderiam ser considerados como esquemas antirretrovirais prescritos após falha terapêutica. As falhas costumam ser muito frequentes em crianças. Muitos dos esquemas observados são considerados inadequados pelo PCDT, como a monoterapia e a duploterapia, pois apresentam potência insuficiente contra a replicação viral e baixa barreira genética contra resistência1313 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos. Brasília, DF: MS; 2018.. Entretanto, muitas vezes, estes se tornam os recursos possíveis em função da ausência de resposta a outros fármacos. As principais causas da falha terapêutica costumam ser uso de esquemas antirretrovirais inadequados, não guiados por genotipagem, bem como a baixa adesão ao tratamento, que possibilita mutações e resistência viral, além da infecção por vírus multirresistentes transmitidos verticalmente55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018..

Diante do exposto, o presente estudo contribui com conhecimento sobre o perfil sociodemográfico e os parâmetros clínicos e farmacológicos das crianças em tratamento antirretroviral no estado do Paraná. Os resultados obtidos podem fornecer subsídios para o planejamento e o aprimoramento de ações voltadas ao acesso e à vinculação dessas crianças e dos seus responsáveis aos serviços de saúde especializados em HIV/ Aids em todas as regiões do Paraná. Essas ações podem colaborar para maior adesão e efetividade do tratamento e, consequentemente, para a redução de doenças oportunistas e da mortalidade precoce decorrente da Aids. Este estudo ainda evidenciou o maior risco de abandono da terapia antirretroviral, além da maior dificuldade em suprimir a CV das crianças não brancas, expondo a provável influência das desigualdades sociais sobre os riscos de adoecimento e morte precoces desse estrato da população.

Conclusões

O estado do Paraná apresentou resultados promissores no cuidado de crianças infectadas pelo HIV. Todas aquelas diagnosticadas com HIV haviam iniciado a terapia antirretroviral. Entre as que estavam em tratamento, 90,2% conseguiram alcançar a supressão viral. Entretanto, há um número considerável de crianças em abandono do tratamento no estado. Além disso, observou-se que, proporcionalmente, as crianças não brancas apresentaram maior tendência de abandonar o tratamento e de não alcançar a supressão da CV. Esses dados apontam para a necessidade de implementar estratégias que fortaleçam a adesão à terapia antirretroviral e a retenção das crianças e dos seus responsáveis nos serviços de saúde especializados em HIV/Aids. Tais estratégias devem considerar ainda a forte influência dos determinantes sociais no controle e no desfecho do HIV/Aids em crianças.

Agradecimentos

Agradecemos ao Cemepar e à Sesa-PR pelo fornecimento dos dados para a realização desta pesquisa, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelas bolsas de mestrado e de iniciação científica das estudantes envolvidas na condução do estudo.

  • Suporte financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Código de financiamento 001

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2022
  • Aceito
    30 Ago 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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