Interdisciplinaridade, interprofissionalidade e diversidade racial na formação antirracista do profissional de saúde: vozes e aprendizados

Ana Claudia Germani Maria Helena Favarato Isabel Leme Oliva Rafael Marques Geraldo Júlio César de Oliveira José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres Sobre os autores

RESUMO

Trata-se de relato crítico-reflexivo sobre a experiência de disciplina optativa voltada à formação de profissionais da saúde no combate ao racismo, oferecida aos estudantes de graduação da área de saúde na Universidade de São Paulo, durante a pandemia de Covid-19. A partir da descrição e da reflexão sobre as atividades de ensino e avaliação propostas, buscou-se reconhecer e apre(e)nder a contribuição da integração de saberes (interdisciplinaridade), de profissões (interprofissionalidade) e da diversidade racial no processo ensino-aprendizagem voltado ao combate ao racismo. São relatadas perspectivas de discentes, monitoras e docentes. A oferta da disciplina, com apoio de convidados, permitiu que o projeto abordasse o racismo e suas influências na saúde das pessoas negras e estimulou a produção cultural dos estudantes. A iniciativa mostrou-se uma possibilidade de introduzir mudanças na formação dos futuros profissionais de saúde em prol tanto da integralidade do cuidado quanto da colaboração interprofissional no combate ao racismo.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde; Racismo; Ensino; Educação interprofissional.

Introdução

A Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)11 Organização das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Genova: ONU; 2015. é uma agenda global que busca fomentar políticas públicas em diferentes frentes em prol de avanços para a humanidade e que está na chamada ‘década da ação’. Destacamos a interface entre o ODS 3 - Saúde e Bem-Estar e o ODS 10 - Redução de desigualdades, com o intuito de abordar a relação entre saúde, formação dos profissionais da saúde e questões raciais.

A produção acadêmica sobre o impacto das desigualdades raciais em desfechos da saúde da população negra é crescente, tendo como um de seus marcos a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância Correlata22 Comissão Europeia. Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa. In: Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa; 2001. 31 ago-set 31-8; Durban. Durban: Governo da África do Sul; 2001. p. 137. realizada em Durban. Ao longo dos últimos 21 anos, a necessidade da formação antirracista entre profissionais da saúde tem sido discutida internacionalmente33 Bush AA. Anti-Racism, Racism, Race, and the Other “R” Word: Using Critical Race Theory as a Tool to Disrupt the Status Quo in Health Professions Education. Acad Med. 2021; 96(11S):S6-S8. e, mais recentemente, atrelada à educação interprofissional44 Cahn PS. How interprofessional collaborative practice can help dismantle systemic racism. J Interprof Care. 2020; 34(4):431-434.. Em iniciativa para avançar em direção a uma ação interprofissional de saúde antirracista, são propostas ações como: a criação de um fórum para compartilhar histórias sobre aspectos racistas das diferentes profissões; e a oferta de oportunidades para educar os alunos sobre diversidade, equidade e inclusão55 Bishop KL, Abbruzzese LD, Adeniran RK, et al. Becoming an anti-racist interprofessional healthcare organization: Our journey. J. interprof. Educ. pract. 2022; (27):100509..

No contexto brasileiro, a necessidade de que a formação avance na direção da integralidade do cuidado aparece como uma das diretrizes e, também, entre os objetivos da Política Nacional da Saúde Integral da População Negra66 Brasil. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2004. [acesso em 2021 ago 30]. Disponível em: http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdf.
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; e, de forma incipiente, nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos da saúde, texto que acrescenta a educação e o trabalho interprofissional como recomendação. De forma similar, acontece em documento mais recente, a Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 201777 Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União. 8 Dez 2018..

No mesmo sentido, é importante também destacar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER)88 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 3. ed. - Brasília, DF: Editora do Ministério da Saúde; 2017. e produções específicas discutindo a importância do tema e a necessidade de experiências formativas entre profissionais da saúde99 Borret RH, Araujo DHS, Belford PS, et al. Reflexões para uma Prática em Saúde Antirracista. Rev. bras. educ. med. 2020; 44(supl1): e0148..

Na direção dessas proposições, e no difícil contexto de pandemia, com o acirramento das desigualdades e desgaste do processo ensino-aprendizagem, tornou-se um grande desafio o desenvolvimento de estratégias de ensino que possibilitem apre(e)nder as relações entre racismo e saúde e fortalecer o antirracismo na formação dos profissionais de saúde.

O uso intencional, acima, do contraste entre aprender e apreender parte de provocações feitas por Lea Anastasiou1010 Anastasiou LGC. Ensinar, aprender, apreender e processos de ensinagem. Anastasiou LGC, Alves LP, organizadores. Processos de ensinagem na universidade: pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. v. 7. Joiville: Univille; 2003. [acesso em 2022 nov 5]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3203177/mod_resource/content/2/Anastasiou%20e%20Alves.pdf.
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sobre o processo de ensinagem:

Existe também uma diferença entre aprender e apreender, embora, nos dois verbos exista a relação entre os sujeitos e o conhecimento, o apreender, do latim apprehendere, significa segurar, prender, pegar, assimilar mentalmente, entender, compreender, agarrar. Não se trata de um verbo passivo; para apreender é preciso agir, exercitar-se, informar-se, tomar para si, apropriar-se, entre outros fatores.

Diante desse desafio, este artigo tem como objetivo apresentar e discutir uma experiência de ensino-aprendizagem voltada para o favorecimento de atitudes antirracistas na formação de profissionais de saúde. A descrição da experiência aborda três aspectos: a integração de diferentes saberes, isto é, a interdisciplinaridade; a interação de estudantes de diferentes cursos, aprendendo com, sobre e entre si, buscando a qualidade do cuidado (a Educação Interprofissional - EIP); e a diversidade racial, refletindo sobre os alcances e desafios dessa proposta pedagógica.

Descrição do cenário

A Universidade de São Paulo (USP) oferece 16 cursos da saúde, distribuídos em três campi na cidade de São Paulo: Butantã, Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e Pinheiros (Quadrilátero Saúde-Direito). A Faculdade de Medicina da USP, na capital, inclui quatro cursos: fisioterapia, fonoaudiologia, medicina e terapia ocupacional, com atividades curriculares totalmente independentes e nos quais o racismo ainda é abordado de forma incipiente.

A disciplina foi proposta pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e aprovada pela Comissão de Graduação no 2o semestre de 2020, como disciplina optativa, com carga horária de 15 horas, distribuídas em cinco encontros. A participação foi aberta aos alunos de nove Unidades da Universidade: EACH (4 vagas), Escola de Educação Física e Esporte (1 vaga), Escola de Enfermagem (3 vagas), Faculdade de Ciências Farmacêuticas (2 vagas), Faculdade de Medicina (24 vagas), Faculdade de Medicina Veterinária (1 vaga), Faculdade de Odontologia (1 vaga), Faculdade de Saúde Pública (2 vagas), Instituto de Psicologia (2 vagas). Em razão da pandemia de Covid-19, optou-se pelo formato remoto para o seu primeiro oferecimento. A opção por ofertar a disciplina na perspectiva da EIP baseia-se nas vivências desenvolvidas pelos autores, assim como perante a compreensão de que as relações de poder e hierarquia discutidos na EIP repercutem na invisibilidade do racismo44 Cahn PS. How interprofessional collaborative practice can help dismantle systemic racism. J Interprof Care. 2020; 34(4):431-434..

Foram definidos como objetivos pedagógicos da disciplina: 1) conhecer e distinguir os conceitos de minoria, preconceito, discriminação e racismo; 2) identificar práticas cotidianas que envolvem preconceito e discriminação, como o racismo institucional e o racismo estrutural; 3) correlacionar a discriminação racial com o processo saúde-doença-cuidado; 4) discutir o papel da branquitude no combate ao racismo. Para o alcance desses objetivos, foram propostas as seguintes estratégias e técnicas pedagógicas: divisão dos estudantes em cinco pequenos grupos, distribuídos de forma intencional, priorizando o contato entre diferentes cursos da saúde; conversa inicial nos pequenos grupos para reflexão sobre leituras e proposição de perguntas a professores convidados; exposição, por professores convidados, de experiências - pessoais, institucionais, políticas - relacionadas com questões raciais, racistas e antirracistas em diferentes áreas e dimensões da atenção à saúde; leituras de textos canônicos e atuais sobre a temática, obrigatórias e complementares. O ambiente virtual de aprendizagem contou ainda com atividades voluntárias, a saber: um glossário e uma galeria de artes relacionados com o tema da disciplina, ambos construídos de forma coletiva, com participação discente.

No início da disciplina, os estudantes foram convidados a preencher o ‘Teste de Associação Implícita para raça’ (TAI), com devolutiva automática oferecida pelos desenvolvedores do teste (disponível em https://implicit.harvard.edu/implicit/brazil/). Esse é um dos instrumentos para mensurar o viés implícito decorrente de estereótipos e preconceitos, fora da percepção consciente, os quais levam a uma avaliação negativa de uma pessoa1111 Fitzgerald C, Hurst S. Implicit bias in healthcare professionals: a systematic review. BMC med ethics. 2017; 18(1):1-18.. Há relatos do uso produtivo do teste na formação de profissionais da saúde no combate ao racismo1212 Gonzalez CM, Noah YS, Correa N, et al. Qualitative analysis of medical student reflections on the implicit association test. Med educ. 2021; 55 (6):741-748.,1313 Siegelman JN, Woods C, Salhi B, et al. Health care disparities education using the implicit association test. Med educ. 2016; 50(11):1158-1159..

Contamos com apoio de cinco monitoras voluntárias com diferentes formações (assistente social, enfermeira, médica, médica veterinária e naturóloga). Recebemos cinco professores convidados externos, todos autodeclarados pretos, também com formações diversas (medicina, direito e ciências sociais), para conversar com os estudantes sobre formação dos profissionais da saúde e combate ao racismo em quatro cenários: atenção primária (com discussão sobre integralidade do cuidado e vulnerabilidades relacionadas ao racismo), prática clínica, políticas públicas e pesquisa científica.

O último encontro síncrono foi destinado à avaliação dos estudantes, baseada no photovoice, que foi originalmente desenvolvido como um recurso para possibilitar que os indivíduos representem e exponham suas vivências comunitárias por meio de fotografias, tendo como objetivos principais: 1) permitir que as pessoas façam registros das prioridades e necessidades da comunidade; 2) promover a geração de conhecimento e o diálogo crítico a respeito de suas realidades; e 3) acessar e sensibilizar gestores de políticas públicas, por meio da exposição das fotografias1414 Wang C, Burri, MA. Photovoice: Concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health educ behav.1997; 24(3):369-387.. A técnica consiste no convite a cada participante para produzir fotos relacionadas com a pergunta disparadora e, posteriormente, participar de uma rodada de diálogo coletivo sobre elas.

Na disciplina, os estudantes foram convidados a responder com, pelo menos, três fotos à seguinte pergunta: você tem ou já teve atitudes antirracistas? Recentemente, o photovoice foi apontado como forma potente de estimular o pensamento crítico1515 Sethi B. Using the eye of the camera to bare racism: A photovoice project. Aotearoa New Zealand Soc. Work. 2016; 28(4):17-28.. Em nosso caso, buscamos usá-lo como recurso tanto para apreciação do aproveitamento discente quanto para provocar reflexão e autoavaliação do processo ensino-aprendizagem.

Vozes, aprendizados e apreensões

Matricularam-se de maneira voluntária 30 estudantes, provenientes de sete Unidades da USP (Escola de Enfermagem, Faculdades de Medicina de São Paulo e de Ribeirão Preto, Faculdade de Saúde Pública, Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Odontologia e EACH) e de nove cursos (educação física e saúde, enfermagem, farmácia, fisioterapia, medicina, nutrição, odontologia, saúde pública e terapia ocupacional). Mesmo sem o levantamento individual sobre a autodeclaração de raça/cor, cabe pontuar que, pelas falas e experiências compartilhadas, elas eram sustentadas por uma diversidade racial. Ao final do período letivo, 15 estudantes responderam de forma anônima a um questionário de opinião sobre as atividades.

Como abertura da disciplina e aquecimento para a interação entre os alunos, foram construídos quadros interativos para cada grupo, com apoio da ferramenta Google Jamboard. Nesse material, cada aluno e cada monitor inseriram uma foto e fizeram uma breve descrição pessoal, apontando seu curso de graduação e seus motivadores para cursar a disciplina. A produção ficou disponível ao longo da disciplina, para consultas e complementos.

Nas aulas, os convidados exibiram conteúdos sobre a questão racial em suas especificidades, conforme as quatro áreas acima descritas. Na primeira aula, uma médica com formação em psicanálise trouxe o olhar da subjetividade e da construção da identidade racial, prejudicada frente ao mito da democracia racial. Apresentou como eixo norteador de sua fala a integralidade do cuidado ligado à equidade e o modelo de vulnerabilidade na análise do processo saúde-doença-cuidado. Na aula sobre prática clínica, outro médico mostrou dados epidemiológicos expondo as diferenças negativas nos desfechos de saúde das pessoas negras, como resultado do racismo interpessoal, institucional e estrutural. O cientista social trouxe sua trajetória e os movimentos que sustentaram a proposição da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e a importância da coleta do quesito cor de pele, para análise de dados de forma desagregada. Por fim, uma docente com formação em direito abordou novas epistemologias para subsidiar pesquisas sobre a saúde da população negra.

No processo ensino-aprendizagem, as trocas nos pequenos grupos permitiram que discentes e monitores identificassem similaridades entre algumas profissões, como, por exemplo, a ausência da compreensão das dimensões do racismo no momento do encontro clínico, no momento de aprendizagem de anatomia e na representatividade dos manequins usados para o desenvolvimento de habilidades clínicas. Foram reconhecidas também particularidades entre as profissões, como as perguntas dirigidas para as políticas públicas feitas pelo estudante do curso de saúde pública. Outrossim, a interação entre estudantes de diferentes cursos foi citada como aspecto positivo da disciplina no questionário respondido pelos estudantes. Ademais, o desenvolvimento de competências colaborativas entre os estudantes foi observado pelos coordenadores e monitores44 Cahn PS. How interprofessional collaborative practice can help dismantle systemic racism. J Interprof Care. 2020; 34(4):431-434..

Ao longo das aulas, houve diálogo e reflexão sobre a integralidade do cuidado, reconhecendo o desafio das inequidades em saúde. Entende-se que tal conteúdo faz parte dos valores e aspectos éticos propostos na categorização internacional das competências colaborativas da EIP. Em relação aos papéis e às responsabilidades profissionais, as aulas e a realização do TAI fomentaram a reflexão crítica sobre a identidade racial de cada estudante e seu impacto nas relações e comunicação com pacientes e outros membros da equipe44 Cahn PS. How interprofessional collaborative practice can help dismantle systemic racism. J Interprof Care. 2020; 34(4):431-434..

Quanto aos objetivos de aprendizagem propostos na disciplina, mais de dois terços dos respondentes avaliaram que três deles foram totalmente atingidos: conhecer e distinguir os conceitos de minoria, preconceito, discriminação e racismo; identificar práticas cotidianas que envolvem preconceito e discriminação, o racismo institucional e o racismo estrutural; correlacionar a discriminação racial com o processo saúde-doença-cuidado. O debate sobre o papel da branquitude no combate ao racismo foi totalmente atingido para 9 (60%) dos respondentes.

A avaliação individual dos estudantes participantes mostrou alto grau de satisfação para cada uma das aulas. O TAI, as discussões em pequenos grupos e o apoio das monitoras foram as estratégias de ensino-aprendizagem avaliadas com melhor aproveitamento.

Os alunos consideraram o ambiente de ensino-aprendizagem coerente com a preocupação em desenvolver competências, com apoio à participação nas aulas síncronas e nas atividades propostas. Avaliaram, ainda, que o acesso à internet foi satisfatório e que o(s) local(is) de onde acompanharam as aulas não prejudicaram o aprendizado.

A galeria de artes incluiu sugestões dos cinco professores convidados, de três monitoras e de três estudantes. Foram sugeridos filmes, livros, músicas e um quadro. A intenção de oferecer o recurso como complemento das atividades síncronas fundamenta-se na premissa de que ações antirracistas voltadas à equidade em saúde precisam aumentar a capacidade individual e coletiva para olhar criticamente o mundo e sonhar outras formas possíveis1616 Griffith DM, Semlow AR. Art, anti-racism and health equity: “Don’t ask me why, ask me how!”. Ethn.dis. 2020; 30(3):373.. Acredita-se que, ao mesclar o setor das artes e da cultura com a disciplina, ampliamos a perspectiva de formas de percepção e enfrentamento do racismo, expressando em diferentes linguagens a importância da escuta de narrativas sobre e pela população negra1717 Burch SR. Perspectives on Racism: Reflections on Our Collective Moral Responsibility When Leveraging Arts and Culture for Health Promotion. Health Promot Pract. 2021; 22 (supl1):12S-16S..

No questionário proposto no último encontro, um dos alunos fez o seguinte balanço sobre os avanços da disciplina para a formação dos futuros profissionais da saúde:

As aulas terem pessoas de referência na área, e, sobretudo, pessoas negras, o que é escasso na docência. Acredito que isso seja algo relevante, ainda mais que praticamente todos tinham mestrado/doutorado, mas acabaram trilhando caminhos não acadêmicos.

E apontou como limitação:

Não teve referências claras e objetivas nas falas, e não teve avaliação sobre ferramentas e conhecimentos para o combate ao racismo. Por mais que as pessoas [alunos da disciplina] tenham sido atingidas pela temática, sendo o objetivo principal da disciplina, penso que ainda não conseguiriam combater o racismo de fato nos espaços em que ocupam. (estudante da disciplina).

Fazendo ecoar outras vozes, ilustramos, na figura 1, exemplos de produções coletivas, criadas a partir dos photovoices individuais, usados como avaliação do estudante na disciplina. (divulgação de textos e imagens autorizadas pelos/as autores/as).

Figura 1
Exemplos de produções coletivas, criadas a partir de photovoices individuais, usados como avaliação do estudante na disciplina

A fala de uma das monitoras da disciplina reafirma aspectos relacionados com a interdisciplinaridade e a interprofissionalidade da atividade:

Foi uma oportunidade de trazer para a academia pessoas que utilizam a formação acadêmica para transformação da realidade. Ficamos todos conhecendo os diversos caminhos que aquelas pessoas (incríveis) percorreram. Isso também é um ganho muito grande para o estudante da área da saúde, pois amplia a visão da atuação profissional para além dos campos de atenção que vivenciam em sua formação, compreendendo cenários de vida real com muitos atores distintos. Concordo também que se poderia instrumentalizar os participantes para atuarem na mudança de sua própria realidade para além da reflexão. (monitora da disciplina).

Diante da diversidade da composição docente e discente da experiência, é importante explicitar o conceito de EIP. Segundo a Organização Municipal da Saúde, ela, “ocorre quando duas ou mais profissões aprendem sobre as outras, com as outras e entre si para a efetiva colaboração e melhora dos resultados na saúde”1818 Organização Mundial da Saúde. Marco para Ação em Educação Interprofissional e Prática Colaborativa. Geneva: OMS; 2010.(13). Apesar da carga horária pequena, a convivência nos pequenos grupos, envolvendo estudantes e monitoras, bem como os espaços de interação com os convidados, mostrou particularidades e similaridades entre as diferentes formações em prol do cuidado integral voltado à saúde da população negra.

A narrativa de um dos professores convidados destaca aspectos relativos ao caráter optativo da experiência:

É de extrema importância a discussão deste tema na formação dos profissionais de saúde, apesar do assunto não fazer parte da grade curricular da maior parte dos cursos. Ter a oportunidade de ser convidado pela disciplina é um grande privilégio. Sendo um médico negro compreendo a escassez e a importância de modelos nos quais os alunos possam reconhecer a negritude. A discussão foi de grande valia e aprendizado para mim também. Possivelmente por ser uma disciplina optativa, alguns alunos chegavam nas discussões já com alto grau de conhecimento do assunto, ansiosos por respostas que não faziam parte do objetivo da atividade, ou que ainda estão em construção. Colocar esse tema como parte obrigatória dos cursos e balizar os objetivos de aprendizado com a expectativa dos alunos, acredito que serão os próximos desafios. (professor convidado do curso).

Para os professores responsáveis pela disciplina, o processo ensino-aprendizagem foi extremamente potente, considerando tratar-se de uma disciplina optativa, oferecida em meio à pandemia, no modelo remoto. Na percepção de um deles, o formato em pequenos grupos com alunos de diferentes cursos da saúde permitiu a construção de uma comunidade de aprendizado, permeada por entusiasmo e reflexão. Percurso este ilustrado de forma sensível, na discussão das produções decorrentes do photovoice. A exposição, o diálogo e a síntese sobre as situações racistas e antirracistas vivenciadas e fotografadas pelos estudantes corroboram a experiência interprofissional envolvendo estudantes da saúde na qual o photovoice facilitou a compreensão e o diálogo sobre as inequidades no cotidiano1919 Gutierrez CS, Wolff B. Using photovoice with undergraduate interprofessional health sciences students to facilitate understanding of and dialogue about health disparities within communities. Pedag. Health Promot. 2017; 3(1):42-49..

Ficaram evidentes também a necessidade e o desafio de incrementar a discussão conceitual e teórica dentro da carga horária disponível, bem como avançar no diálogo para a inserção de tal temática no currículo nuclear, obrigatório.

Outro ponto ressaltado na avaliação por parte dos docentes foi a potência do photovoice como promotor de uma hermenêutica do racismo e do antirracismo:

Com as vozes das fotos em mim, percebi como o racismo e o antirracismo estão ligados. Ao buscar flagrar o seu racismo, você já se coloca em uma perspectiva antirracista, uma tomada de consciência. E isso é muito importante, uma vez que vivemos em uma atmosfera racista que muitas vezes não percebemos. Ao registrarmos o antirracismo, percebemos focos do racismo que estamos priorizando, o que também abre muitas perspectivas para a reflexão e a ação. (coordenador da disciplina).

A disciplina optativa, aberta a diferentes Unidades da USP, foi estruturada levando em conta recursos importantes, tanto para a integralidade da atenção à saúde2020 Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc. 2009; (18):11-23. quanto para a prática interprofissional2121 Peduzzi M, Silva JA, Leonello VM. A formação dos profissionais de saúde para a integralidade do cuidado e prática interprofissional. In: Mota A, Marinho AG, Schraiber LB, organizadores. Educação, medicina e saúde: tendências historiográficas e dimensões interdisciplinares. Santo André: UFABC; 2018. p. 141-172. [acesso em 2022 nov 5]. Disponível em: https://www.fm.usp.br/museu/conteudo/museu_162_miolo_medicina_v10_divulg.pdf.
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, a saber: o compromisso ético-político da formação em saúde; o estímulo ao ensino integrado entre diferentes áreas da saúde valorizado nas discussões em pequenos grupos; e a inclusão de aspectos intersubjetivos dos estudantes. Nesse último aspecto, é importante reforçar as estratégias pedagógicas participativas, a recomendação para o preenchimento do TAI e a avaliação do estudante por photovoice.

O relato apresentado ilustra uma unidade dialética processual, na qual o papel condutor dos professores e monitoras, bem como as atividades dos estudantes, aconteceu de forma recíproca, com a imersão no tema da disciplina. Valorizamos a apreensão, no sentido de enredar, em que convidamos os estudantes participantes a identificar e reunir os nós necessários para tecer novas práticas antirracistas1010 Anastasiou LGC. Ensinar, aprender, apreender e processos de ensinagem. Anastasiou LGC, Alves LP, organizadores. Processos de ensinagem na universidade: pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. v. 7. Joiville: Univille; 2003. [acesso em 2022 nov 5]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3203177/mod_resource/content/2/Anastasiou%20e%20Alves.pdf.
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.

Desafiar e mudar o modo como pensamos e fazemos os processos ensino-aprendizagem é essencial para avançarmos no diálogo e na construção de uma comunidade pedagógica, em que fronteiras erguidas, entre outras diferenças, pelas questões raciais possam ser cruzadas2222 hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2013.. Buscamos cultivar o diálogo a partir da consideração e reconsideração dos diversos posicionamentos de todos os participantes2323 hooks B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Editora Elefante; 2020..

A primeira oferta da disciplina mostrou ser capaz de sensibilizar os participantes nas três dimensões do racismo: interno, entendido como sentimentos e condutas; interpessoal, ações e omissões interpessoais; e institucional, material e de acesso ao poder2424 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc. 2016; (25):535-549.. A experiência de desenvolver estratégias pedagógicas que promovam a inserção do tema no âmbito curricular representa também um compromisso de replicabilidade, expansão e sustentabilidade da iniciativa na instituição, na perspectiva da formação dos futuros profissionais de saúde.

Espera-se que as reflexões e ações aqui compartilhadas cultivem avanços na inclusão da questão do racismo e da saúde da população negra nos processos de formação, como previsto na PNSIPN, articulada às agendas voltadas à saúde da população negra no Sistema Único de Saúde, necessidade intensificada nesse contexto2525 Santos MPA, Nery JS, Goes EF, et al. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Est Av. 2020; (34):225-244.. A Agenda 2030 adota como lema o ‘não deixar ninguém para trás’. Apoiamos o exercício proposto por pesquisadores brasileiros de reimaginar os ODS dentro da realidade latino-americana, pensando e avançando em direção também do ODS 18 - Igualdade racial, com a “erradicação de todas as formas de discriminação racial contra todos os homens e mulheres, meninos e meninas em toda parte”2626 Cabral R, Gehre T. Guia 2030: Integrando ODS, Educação, Sociedade. São Paulo: Unesp; 2020.(164).

Considerações finais

Esta experiência foi a primeira da instituição com foco na formação antirracista aberta ao encontro de estudantes e educadores de diferentes cursos da saúde. Foram propostas diferentes estratégias pedagógicas para promover a aproximação dos participantes ao tema do racismo e suas influências na saúde das pessoas negras. Além disso, foram criadas oportunidades de reflexão, discussão em pequenos grupos e contato com profissionais e estudantes que atuam em diferentes áreas de atenção em saúde, bem como produção cultural pelos estudantes. A diversidade racial de professores e estudantes foi ponto importante para identificação de semelhanças e diferenças profissionais nas práticas antirracistas. A iniciativa mostrou-se uma possibilidade de mudanças na educação em saúde em prol tanto da integralidade do cuidado quanto da colaboração interprofissional no combate ao racismo.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Organização das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Genova: ONU; 2015.
  • 2
    Comissão Europeia. Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa. In: Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa; 2001. 31 ago-set 31-8; Durban. Durban: Governo da África do Sul; 2001. p. 137.
  • 3
    Bush AA. Anti-Racism, Racism, Race, and the Other “R” Word: Using Critical Race Theory as a Tool to Disrupt the Status Quo in Health Professions Education. Acad Med. 2021; 96(11S):S6-S8.
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    Cahn PS. How interprofessional collaborative practice can help dismantle systemic racism. J Interprof Care. 2020; 34(4):431-434.
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    Bishop KL, Abbruzzese LD, Adeniran RK, et al. Becoming an anti-racist interprofessional healthcare organization: Our journey. J. interprof. Educ. pract. 2022; (27):100509.
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    » http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdf
  • 7
    Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União. 8 Dez 2018.
  • 8
    Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 3. ed. - Brasília, DF: Editora do Ministério da Saúde; 2017.
  • 9
    Borret RH, Araujo DHS, Belford PS, et al. Reflexões para uma Prática em Saúde Antirracista. Rev. bras. educ. med. 2020; 44(supl1): e0148.
  • 10
    Anastasiou LGC. Ensinar, aprender, apreender e processos de ensinagem. Anastasiou LGC, Alves LP, organizadores. Processos de ensinagem na universidade: pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. v. 7. Joiville: Univille; 2003. [acesso em 2022 nov 5]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3203177/mod_resource/content/2/Anastasiou%20e%20Alves.pdf
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  • 13
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2021
  • Aceito
    11 Ago 2022
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