Interprofissionalidade e interdisciplinaridade em saúde: reflexões sobre resistências a partir de conceitos da Análise Institucional

Carla Aparecida Spagnol Regiane Prado Ribeiro Maralu Gonzaga de Freitas Araújo Wesley Vieira Andrade Richardson Warley Siqueira Luzia Cintia Ribeiro Santos Daniel Vannucci Dóbies Solange L’Abbate Sobre os autores

RESUMO

O objetivo deste estudo foi relatar a experiência dos alunos do mestrado profissional em gestão de serviços de saúde acerca da utilização de conceitos da Análise Institucional, para analisar as resistências ao trabalho interprofissional e interdisciplinar na saúde, localizando-as como um analisador do processo e das relações de trabalho. O estudo foi elaborado a partir da vivência e da análise dos diários institucionais, escritos pelos alunos e analisados com base no referencial teórico da Análise Institucional. Observou-se que a resistência ao trabalho interprofissional e interdisciplinar, principalmente por parte dos médicos, atravessa as organizações de saúde, as relações de trabalho e a assistência aos usuários. Entretanto, essa resistência também é exercida por outros profissionais e pelos usuários, o que limita a interdisciplinaridade e a integralidade da assistência à saúde. Todavia, se, por um lado, ainda, há certa predominância do modelo biomédico, por outro, também se observam resistências a esse modelo nas organizações de saúde, necessitando ampliar os espaços de análise coletiva capazes de enunciar o reducionismo desse paradigma. Conclui-se que analisar coletivamente essas resistências possibilita aos profissionais da saúde ampliar as condições de sair de seus lugares instituídos e perceber os movimentos instituintes nos serviços em que atuam.

PALAVRAS-CHAVE
Gestão em saúde; Prática profissional; Equipe de assistência ao paciente; Práticas interdisciplinares; Capacitação de recursos humanos em saúde.

Introdução

A interdisciplinaridade tem sido alvo de discussões no âmbito do desenvolvimento da ciência e das práticas em saúde, devido à intensa fragmentação do conhecimento e ao distanciamento entre as disciplinas, bem como aos interesses corporativistas que permeiam esse processo. Essa temática tem provocado inúmeros debates, principalmente nas produções acadêmicas sobre a assistência nos serviços de saúde11 Matos E, Pires DEP, Sousa GW. Relações de trabalho em equipes interdisciplinares: contribuições para novas formas de organização do trabalho em saúde. Rev Bras Enferm. 2010 [acesso em 2022 set 29]; 63(5):775-781. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/JZWySWCWx77HxMtMh6FR9Nk/?lang=pt.
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O século XIX foi marcado pela reestruturação das universidades decorrente do surgimento das disciplinas, incentivado pelo avanço da pesquisa científica e pelo desenvolvimento das especializações. Tal movimento se manteve e se consolidou ao longo do século XX, e foi nesse cenário de hegemonia do modelo cartesiano de ciência que surgiu o termo interdisciplinaridade, oposto ao saber fragmentado. No setor saúde, a interdisciplinaridade se propõe a integrar as diferentes disciplinas para melhor compreender e enfrentar os desafios cotidianos. Além disso, como posicionamento ético-político compartilhado, o trabalho interdisciplinar exige dos profissionais da saúde um diálogo permanente para definir as competências necessárias à resolução de problemas22 Scherer MDA, Pires D. Interdisciplinaridade: processo de conhecimento e ação. Tempus (Brasília). 2011 [acesso em 2022 set 29]; 5(1):69-84. Disponível em: https://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/919/929.
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Uma das estratégias a ser utilizada para enfrentar os complexos desafios do setor saúde - entre eles, a concretização da interdisciplinaridade - é o trabalho interprofissional, por meio da realização de uma prática colaborativa. Enquanto a interdisciplinaridade está relacionada às disciplinas, ciências ou áreas de conhecimento, a interprofissionalidade diz respeito à prática profissional, desenvolvida a partir de um trabalho em equipe e articula a diferentes campos de práticas, fortalecendo o foco nos usuários e suas necessidades na dinâmica da produção dos serviços de saúde33 Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, et al. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev. da Esc. de Enfermagem da USP. 2013 [acesso em 2022 set 29]; 47(4):977-983. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/JwHsjBzBgrs9BCLXr856tzD/?lang=pt.
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,44 Farias DN, Ribeiro KSQS, Anjos UU, et al. Interdisciplinaridade e interprofissionalidade na estratégia saúde da família. Trab. educ. saúde. 2018 [acesso em 2022 set 29]; 16(1):141-162. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/s8LvmxwJSDXWRNWsQt7JH3b/?lang=pt.
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Assim, para que os profissionais de saúde tenham uma visão ampliada do processo saúde-doença e desenvolvam a capacidade de trabalhar em equipe, potencializando a resolutividade da assistência prestada, torna-se necessário ter uma abordagem interprofissional e interdisciplinar nas questões relacionadas com a saúde44 Farias DN, Ribeiro KSQS, Anjos UU, et al. Interdisciplinaridade e interprofissionalidade na estratégia saúde da família. Trab. educ. saúde. 2018 [acesso em 2022 set 29]; 16(1):141-162. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/s8LvmxwJSDXWRNWsQt7JH3b/?lang=pt.
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No entanto, nota-se que, apesar dos avanços expressivos no setor saúde, em suas diversas vertentes, os profissionais ainda

São formados separadamente, para no futuro trabalharem juntos, incoerência que traz importantes implicações para a qualidade da atenção oferecida no âmbito [do Sistema Único de Saúde (SUS)]. Há resistência para o rompimento do modelo atual de formação, que reverbera na legitimação do atual modelo de atenção à saúde pautado na forte divisão do trabalho55 Costa MV. A educação interprofissional no contexto brasileiro: algumas reflexões. Interface comun. saúde educ. 2016 [acesso em 2022 set 29]; 20(56):197-198. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/ccKCY4chZCtb8pj9vQw8hcy/?lang=pt.
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Um estudo desenvolvido com trabalhadores de equipes de saúde da família do município de João Pessoa, na Paraíba, evidenciou que, apesar de os profissionais sinalizarem uma perspectiva interdisciplinar no trabalho realizado, não o conduziam na perspectiva da interprofissionalidade44 Farias DN, Ribeiro KSQS, Anjos UU, et al. Interdisciplinaridade e interprofissionalidade na estratégia saúde da família. Trab. educ. saúde. 2018 [acesso em 2022 set 29]; 16(1):141-162. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/s8LvmxwJSDXWRNWsQt7JH3b/?lang=pt.
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O olhar voltado a uma situação de saúde, portanto, não deve se resumir a um único profissional, precisa envolver toda uma equipe para proporcionar uma abordagem interprofissional e interdisciplinar, para ofertar um cuidado integral aos usuários. Essa é uma das diretrizes encontradas na cogestão e na clínica ampliada estabelecida na Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde66 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS Brasil. Política Nacional de Humanização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília, DF: MS; 2010..

Para atuar nesse contexto que exige o desenvolvimento de competências provenientes de diversos campos disciplinares para a realização de um trabalho interprofissional, foi criado, em 2018, o Mestrado Profissional em Gestão de Serviços de Saúde ofertado em uma Universidade Pública do estado de Minas Gerais, cuja proposta curricular foi estruturada a partir do princípio da interdisciplinaridade. Assim, o referido curso tem a finalidade de promover um aprendizado teórico-metodológico que capacite os profissionais a atuarem no cotidiano de trabalho de modo colaborativo, crítico, fundamentado, inovador e integrando suas práticas ao estado da arte da pesquisa científica.

No Mestrado Profissional, as pesquisas sobre as práticas no setor da saúde são elaboradoras pelos interesses iniciais dos profissionais-estudantes. No entanto, ao longo do percurso na pós-graduação stricto sensu, tais interesses são confrontados com novas ferramentas, novos conceitos e novos referenciais metodológicos. A partir daí, esses profissionais elaboram hipóteses, reflexões e intervenções em suas práticas cotidianas77 Saint-Martin C, Pilotti A, Valentim S. La réflexivité chez le Doctorant-Praticien-Chercheur: une situation de Liminalité. ¿Interrogations? 2014 [acesso em 2022 set 29]; 19. Disponível em: https://revue-interrogations.org/La-reflexivite-chez-le-Doctorant.
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. Nesse sentido, no referido curso de pós-graduação, foi ofertada uma disciplina que aborda o referencial teórico-metodológico da Análise Institucional (AI), que está voltado à intervenção a grupos e organizações, proporcionando recursos àqueles que desejam pesquisar a sua prática profissional.

O fato de os alunos de um mestrado profissional pesquisarem sua própria prática cria uma complexidade que deve ser discutida e analisada, visto que envolve processos de decisão, relações de poder, o seu papel de pesquisador, entre outros fatores que necessitam ser analisados. Assim, na referida disciplina, solicitou-se aos alunos que elaborassem um diário institucional, a partir de situações vivenciadas em seu local de trabalho, tendo os conceitos da AI como base para suas análises.

O diário institucional propicia momentos de reflexão sobre a própria prática, por meio da escrita das experiências individuais ou coletivas, pressupondo a não neutralidade do pesquisador nas investigações, o que permite revelar o não dito organizacional e contribuir para a análise de suas implicações88 Pezzato LM, L’Abbate S. O uso de diário como ferramenta de intervenção da análise institucional: potencializando reflexões no cotidiano da saúde bucal coletiva. Physis (Rio J). 2011 [acesso em 2022 set 29]; 21(4):1297-1314. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/cMmw8qyYBMKJBgJtrqv7CWh/?lang=pt.
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,99 L’Abbate S, Pezzato LM, Dóbies DV, et al. O diário institucional nas práticas profissionais em saúde. Mnemosine. 2019 [acesso em 2022 set 29]; 15(1):40-61. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/45972/30916.
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As reflexões, a partir dos registros nos diários, trouxeram à tona diversas questões relativas ao processo e às relações de trabalho desses profissionais. Dentre tais questões, destacam-se as resistências ao trabalho em equipe, principalmente por parte dos médicos, o que afeta sobremaneira a interdisciplinaridade nos serviços de saúde.

A resistência pode ser definida como uma força social em oposição a outra força denominada poder, em uma relação que tende a favorecer a segunda. Os usos e os significados dessa palavra têm duas vertentes principais: a primeira está relacionada com a luta contra a opressão, de caráter revolucionário; e a segunda é tradicionalista e tende à conservação daquilo que já existe1010 Monceau G. Le concept de résistance en éducation. Pratiques de Formation: Analyses. 1997; (33):47-57.. É com essa perspectiva que se problematizam as resistências como transversais à interdisciplinaridade e à interprofissionalidade na prática dos profissionais da saúde.

Sendo assim, essas resistências podem ser consideradas um analisador das práticas profissionais no setor saúde. Isso porque,

De forma geral o efeito do analisador é sempre o de revelar algo que permanecia escondido, de desorganizar o que estava, de certa forma organizado, de dar um sentido diferente aos fatos já conhecidos1111 L’Abbate S. O analisador dinheiro em um trabalho de grupo realizado num hospital universitário em Campinas, São Paulo: revelando e desvelando as contradições institucionais. In: Rodrigues HBC, Altoé S, organizadores. Saúde loucura 8: análise institucional. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 79-99.(82).

O objetivo deste artigo é relatar a experiência dos alunos do mestrado profissional em gestão de serviços de saúde, acerca da utilização de conceitos da AI, para analisar as resistências ao trabalho interprofissional e interdisciplinar na saúde, localizando-as como um analisador do processo e das relações de trabalho.

Material e métodos

Trata-se de relato de experiência elaborado a partir da vivência dos autores e da análise dos diários institucionais realizados na referida disciplina, a partir do diálogo desses autores com alguns conceitos do arcabouço teórico da AI.

O relato de experiência é um tipo de estudo que pertence ao domínio social e busca descrever uma vivência particular produzindo reflexões sobre determinados fenômenos, por meio de impressões e conjecturas dos autores1212 Lopes MVO. Editorial: sobre estudos de casos e relatos de experiências. Rev Rene. 2012 [acesso em 2022 set 29]; 13(4):723. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/rene/article/view/4019/3159.
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Em relação ao referencial teórico-metodológico da AI, este foi fundado na França, nos anos 1960-1970, para compreender determinada realidade social e organizacional, a partir dos discursos e práticas dos sujeitos. Entre os seus principais teóricos, estão Georges Lapassade e René Lourau, sendo que este último elaborou o conceito dialético de instituição1313 L’Abbate S. Análise institucional e intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação na saúde coletiva. Mnemosine. 2012 [acesso em 2022 set 29]; 8(1):194-219. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41580.
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A instituição foi definida como uma “norma universal [...], quer se trate do casamento ou da educação, quer da medicina, do trabalho assalariado, do lucro, do crédito”1414 Lourau R. Análise institucional. 3. ed. Petrópolis: Vozes; 2014.(15). Esse conceito se decompõe em três momentos: a) o instituído, ou seja, a forma como a instituição se apresenta; b) o instituinte, que compreende a negação dessa forma, a partir de situações particulares; e c) a institucionalização, o vir a ser, resultado da relação dialética entre os dois momentos anteriores1414 Lourau R. Análise institucional. 3. ed. Petrópolis: Vozes; 2014..

Para os analistas institucionais, toda instituição compreende normas construídas, reproduzidas ou negadas pelos sujeitos em um permanente processo sócio-histórico1515 Savoye A. Análise Institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas perspectivas. Mnemosine. 2007 [acesso em 2022 set 29]; 3(2):181-193. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41329.
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. Portanto, a instituição não é exterior aos sujeitos, pelo contrário, ela atravessa todas as suas práticas. Porém, como os sujeitos não são meros reservatórios, eles reagem de diferentes modos a esse atravessamento, que é associado ao conceito de implicação.

A implicação representa as relações libidinais, organizacionais e ideológicas que os indivíduos estabelecem entre si e com as instituições1414 Lourau R. Análise institucional. 3. ed. Petrópolis: Vozes; 2014.. Ressalta-se que sempre se está implicado com as instituições, por isso o importante é analisar tais implicações, o que permite desnaturalizar e desindividualizar as relações cotidianas1616 Nascimento ML, Scheinvar E. Formation professionnelle et outils de l´analyse institutionnelle em formation de psychologues. In: Monceau G, organizador. L’analyse institutionnelle des pratiques: une socioclinique des tourments institutionnels au Brésil et en France. Paris: L’Harmattan; 2012. p. 71-81..

Nesse sentido, os autores deste artigo buscaram analisar suas implicações, a partir de situações que emergiram espontânea e contingencialmente na prática profissional relatadas nos seus diários institucionais. Assim, trata-se de um estudo que foi desenvolvido no contexto do ensino em que se buscou um aprofundamento teórico de situações da prática profissional, o que dispensou a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. No entanto, não serão revelados dados que possam identificar os participantes, sendo garantidos o sigilo e o anonimato das organizações e dos profissionais envolvidos no processo de trabalho1717 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União. 24 Maio 2016..

Entre os autores deste artigo, cinco estavam matriculados na referida disciplina, sendo quatro enfermeiros e uma fisioterapeuta, que atuavam em serviços públicos e filantrópicos de saúde, como hospitais universitários e ambulatório de reabilitação. Um deles, entretanto, atuava na gerência distrital de saúde em um município de Minas Gerais. A coordenadora da disciplina também participou como autora deste estudo.

A disciplina foi ministrada no período de 8 de outubro a 10 de dezembro de 2018, com carga horária de 45 horas. As estratégias metodológicas adotadas foram: a) exposições dialogadas; b) palestras; c) videoconferências e outras atividades realizadas na modalidade a distância; e d) elaboração do diário institucional. Assim, constituiu-se um fórum de discussão (atividade assíncrona de educação a distância) para possibilitar o compartilhamento dos diários elaborados, proporcionando discussões e análises coletivas. A partir dessa experiência, os alunos conseguiram identificar em seus diários que, apesar de atuarem em diferentes serviços de saúde, as resistências ao trabalho interprofissional e interdisciplinar, principalmente a resistência médica, eram um tema comum em suas análises.

Inicialmente, realizou-se uma leitura crítica dos diários institucionais, destacando alguns trechos que permitiram analisar e exemplificar as resistências como transversais às relações de trabalho e à assistência aos usuários. Além disso, para realizar uma discussão mais aprofundada sobre a resistência como analisador da interprofissionalidade e da interdisciplinaridade em saúde, foram convidados para integrar o grupo mais uma docente e um aluno de doutorado de outra universidade, por já terem realizado estudos sobre esse conceito na área da saúde mental, o que fortaleceu a produção coletiva e interdisciplinar deste artigo.

As resistências ao trabalho interprofissional e interdisciplinar como analisador das práticas profissionais em saúde

No setor saúde, embora exista uma diversidade de profissionais, há hegemonia do modelo biomédico no processo de trabalho e na assistência ao usuário, conferindo centralidade aos médicos nas práticas adotadas. Assim, o saber médico se traduz em poder, ocupando o topo da hierarquia dos serviços e orientando a divisão social do trabalho em saúde1818 Villa EA, Aranha AVS, Silva LLT, et al. As relações de poder no trabalho da Estratégia Saúde da Família. Saúde debate. 2015 [acesso em 2022 set 29]; 39(107):1044-1052. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/vgrbvJsBZVZSzznkgqXtTZg/?lang=pt.
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Nota-se que, nos diversos serviços de saúde, devido a essa centralidade do poder médico, os demais trabalhadores têm a sua autonomia profissional limitada, o que pode ser observado na descrição da fisioterapeuta, na qual os usuários perguntavam se a sua conduta seguia a prescrição médica, mesmo ela esclarecendo que cada profissional da saúde tem suas próprias competências nas ações interdisciplinares e no trabalho interprofissional. De modo geral, os usuários não aceitam tal esclarecimento, deixando o profissional insatisfeito, devido ao descrédito em suas condutas e decisões, conforme demonstra o trecho do diário 01:

Volto a conversar com a mãe da minha paciente com a Síndrome do Cromossomo 18 em Anel. Ela se recusa a reduzir as sessões [de terapias] semanais da menina. Só as faz se houver concordância da pediatra. Ligamos para a pediatra, a médica foi simpática, mas não concordou comigo. Acha também que a criança deve continuar com quatro sessões de fisioterapia semanal mesmo que ela não ganhe peso. Posicionei-me muito respeitosamente diante da pediatra e disse que quem poderia saber isso era o fisioterapeuta, e não o médico. A contragosto, ela aceitou e me perguntou quantas vezes eu achava que ela deveria fazer. Eu disse duas vezes, uma de fonoaudiologia e uma de musicoterapia, já que estas duas têm menos gasto energético. Com muito custo, a médica aceitou. Pedi que ela falasse com a mãe da criança, pois era a única forma de ela aceitar. Fiquei de certo modo chateada, pois uma decisão que deveria ser do profissional de fisioterapia só teve aceitação quando o profissional médico deu seu aval. Pensei, isso pode ser um analisador dentro de uma análise institucional. É impressionante como a instituição Medicina atravessa a integração com a Fisioterapia. Decidi conversar com outros colegas de outros setores dentro do serviço sobre isso. (Diário Institucional 01).

Essa sobreposição das ações do médico também ocorre nas práticas da enfermagem obstétrica, visto que ainda prevalece na sociedade uma cultura centrada no profissional médico, principalmente, na assistência ao parto e ao nascimento. Tais ações ainda, permanecem instituídas mesmo após a Resolução do Cofen nº 516/2016, que normatiza a atuação e a responsabilidade do enfermeiro, enfermeiro obstetra e obstetriz na assistência às gestantes, parturientes, puérperas e recém-nascidos1919 Conselho Federal de Enfermagem. Resolução nº 516, de 23 de junho de 2016. Normatiza a atuação e a responsabilidade do Enfermeiro, Enfermeiro Obstetra e Obstetriz na assistência às gestantes, parturientes, puérperas e recém-nascidos nos Serviços de Obstetrícia, Centros de Parto Normal e/ou Casas de Parto e outros locais onde ocorra essa assistência; estabelece critérios para registro de títulos de Enfermeiro Obstetra e Obstetriz no âmbito do Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 27 Jun 2016..

O trecho do diário institucional destacado abaixo evidencia não só uma sobreposição das ações médicas às ações de enfermagem, mas também uma disputa de poder pela centralidade da assistência. Além disso, mostra que há uma relação de dominação dentro da própria medicina, principalmente no hospital universitário, em que os professores/preceptores, muitas vezes, têm condutas autoritárias com os residentes médicos, demarcando também uma hierarquia institucional.

Assumi os cuidados da parturiente juntamente com a equipe médica e de enfermagem do bloco obstétrico. Ela estava sentindo muita dor devido às contrações uterinas do trabalho de parto, estava gritando muito e pouco ouvia as recomendações da equipe para o alívio da dor. Foi indicada analgesia pela equipe médica. Próximo ao nascimento, os batimentos cardíacos fetais estavam desacelerando, porém fisiologicamente pela apresentação fetal no canal de parto. A residente médica e o acadêmico de medicina começaram a estimular o períneo da parturiente para antecipar o parto. Nesse momento, eu, como enfermeira obstetra, disse que não havia necessidade daquela intervenção, visto que o polo cefálico fetal estava sendo comprimido pelo canal de parto. Então, eles retiraram as mãos. Os batimentos fetais estavam mantendo-se entre 100-110 bpm. Entretanto, a obstetra pediu para a médica residente passar uma sonda vesical de alívio para ‘facilitar o parto’, e novamente começaram a estimular o períneo. Após o procedimento, a obstetra orientou a realização de uma episiotomia. Solicitei que a residente médica não fizesse, mas ela fez. Fiquei com uma vontade imensa de chorar e saí da sala muito triste. Após o parto, a residente me chamou para conversar e disse que se viu em uma situação muito difícil, pois não havia muito diálogo e discussão de condutas com a preceptora médica que estava no plantão. Disse, ainda, que respeita muito o conhecimento de cada um, que todos têm algo a ensinar, porém, que, dependendo do preceptor médico, tudo fica mais difícil. Eu disse a ela que não é fácil, porém, que é necessário discutir as condutas, pois [isso] envolve todo um processo de formação e que os residentes precisam buscar esse caminho. Diante disso, consigo analisar o quanto o profissional enfermeiro obstétrico se sente oprimido nas situações e relações profissionais, principalmente com alguns preceptores médicos da obstetrícia. Portanto, podemos considerar a resistência médica à atuação da enfermagem obstétrica [um] analisador [...]. (Diário Institucional 02).

As profissões da área da saúde podem ser consideradas instituições, pois reúnem legislações e normas regulamentadoras da prática profissional e da defesa das suas especificidades. Decerto, isso é necessário para definir o campo de atuação de cada uma delas, mas, ao mesmo tempo, pode desencadear defesas corporativistas e contribuir para a formação de certas resistências ao trabalho interprofissional e à interdisciplinaridade. Assim, ao considerar a interprofissionalidade e a interdisciplinaridade como analisador, isso pode revelar aos profissionais da saúde que eles devem ficar atentos para não cair em armadilhas, como o corporativismo, que pode reforçar as fronteiras entre as disciplinas e as práticas profissionais.

A resistência ao trabalho interprofissional e à interdisciplinaridade, como analisador, pode revelar, ainda, que essa também parte dos usuários, visto que há uma expectativa, principalmente, em relação à solicitação de exames e à prescrição de medicamentos, a serem realizadas pelo médico, tal como se observa no trecho do primeiro diário. Nesse caso, a resistência à interprofissionalidade e à interdisciplinaridade não deve ser atribuída exclusivamente ao médico, uma vez que se deve considerar a vivência do usuário em uma cultura, em que, historicamente, a medicina se consolidou como uma profissão central no setor saúde. Essa construção sócio-histórica reforça a visão da superioridade médica e faz com que os usuários também apresentem certa resistência aos cuidados e às orientações dos outros profissionais da saúde.

O método clínico baseado no modelo biomédico teve início no século XIX e alcançou sua hegemonia no século XX, introduzindo novos saberes nas ciências da saúde. Em ‘O nascimento da medicina social’, Foucault2020 Foucault M. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do poder. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra; 2018. p. 143-70. considera que esse modelo ultrapassa as fronteiras do setor saúde, ocasionando o fenômeno da medicalização da sociedade.

Destaca-se que

a não participação do paciente na abordagem do seu problema ou na definição do plano terapêutico enfatiza a posição do médico em um lugar de saber superior e autoritário2121 Barbosa MS, Ribeiro MM. O método clínico centrado na pessoa na formação médica como ferramenta de promoção de saúde. Rev Assoc Méd Minas Gerais. 2016 [acesso em 2022 set 29]; 26(8):216-22. Disponível em: http://rmmg.org/artigo/detalhes/2152.
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Tal fato configurou a assistência em saúde baseada no diagnóstico de doenças, reduzindo-a a procedimentos decorrentes de tal diagnóstico, ignorando a integralidade da assistência à saúde

Por essa perspectiva, a resistência médica estaria mais alinhada à vertente conservadora do conceito de resistência1010 Monceau G. Le concept de résistance en éducation. Pratiques de Formation: Analyses. 1997; (33):47-57.. Portanto, constitui-se como uma força de preservação da hegemonia médica, contrária às forças de transversalidade tensionadas pela proposição de trabalho em equipe e interdisciplinaridade instituídos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais das 14 profissões da saúde, pelas diretrizes do SUS e pela PNH66 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS Brasil. Política Nacional de Humanização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília, DF: MS; 2010.,2222 Costa DAS, Silva RF, Lima VV, et al. Diretrizes curriculares nacionais das profissões da saúde 2001-2004: análise à luz das teorias de desenvolvimento curricular. Interface comun. saúde educ. 2018 [acesso em 2022 set 29]; 22(67):1183-1195. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/GZsw79s7SZGBXZ3QNBhNppn/?lang=pt.
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Entretanto, o importante é realizar a análise ‘pelas’ resistências e não ‘das’ resistências1010 Monceau G. Le concept de résistance en éducation. Pratiques de Formation: Analyses. 1997; (33):47-57.. Na análise realizada desse modo, verifica-se que, apesar da forte resistência exercida pelos médicos ao trabalho interprofissional e interdisciplinar na saúde, ela não é uma exclusividade deles, pois profissionais de outras áreas da saúde e até os usuários dos serviços também podem fortalecer tal resistência.

No movimento de institucionalização das práticas interprofissionais e interdisciplinares em saúde, o conceito dialético de instituição permite considerar que o modelo biomédico ainda é algo instituído na sociedade, visto que atravessa as demais profissões do setor saúde o tempo todo; tal como pode-se observar neste trecho de diário:

Como enfermeiro do trabalho, tenho me perguntado: qual é realmente o papel desse profissional inserido nas práticas de saúde do trabalhador no serviço público de saúde? Esse profissional, por ser um cargo novo no cenário da saúde hospitalar, fica muito à mercê do modelo biomédico, onde todas as ações que desenvolvemos, não definem uma conduta, mas sim servem apenas para ser um instrumento para que o médico avalie e determine o que será realizado. São inúmeras [as] atividades que os enfermeiros do trabalho desenvolvem nas suas práticas diárias, mas tenho me questionado quanto à falta de abertura e as dificuldades de ser inserido como protagonista nas ações de saúde do trabalhador. Eu, como enfermeiro do trabalho, realizei e fiz apontamentos e criei várias práticas e condutas a serem desenvolvidas para a rede, mas me sinto implicado e questiono por que temos que o tempo todo demonstrar e não sermos reconhecidos pela experiência e formação acadêmica e científica. Creio que o processo de gestão em relação à equipe multiprofissional na rede necessita ser reavaliado e possibilitar um olhar mais holístico e abertura de novos olhares para as demais profissões ‘não médicas’. (Diário Institucional 03).

No modelo biomédico, há uma tendência de utilizar o termo ‘profissionais não médicos’, que denota uma desvalorização dos demais saberes e limita as possibilidades da interdisciplinaridade, ao reforçar uma hierarquia predeterminada do saber médico, o que prejudica o trabalho interprofissional e, consequentemente, a integralidade do cuidado ao usuário.

Assim, um primeiro efeito da resistência à interprofissionalidade e à interdisciplinaridade em saúde é um movimento de sustentação da hierarquia nas relações de trabalho, que tende a submeter os diversos saberes ao saber médico, de modo que os demais profissionais da saúde permaneçam na posição de meros ‘assistentes’. Contudo, essas relações verticalizadas também são observadas a partir de uma hierarquia institucional dentro da própria medicina, entre os professores/preceptores e os médicos residentes, que supostamente estão em uma posição inferior. Um segundo efeito produzido por essa resistência é a perda da centralidade do usuário nos cuidados à saúde, na medida em que, tanto no processo de legitimação social dos médicos quanto na disputa de autoridade entre os diferentes profissionais, muitas vezes, perde-se de vista as demandas e as necessidades dos usuários. Ademais, um terceiro efeito é que, pela imposição dos médicos e pelo menosprezo dos saberes e das práticas dos outros profissionais da saúde, os usuários podem ser submetidos a procedimentos desnecessários, provocando algum tipo de dano à sua saúde.

No entanto, a resistência pode estar associada a outras forças, inclusive a favor da interdisciplinaridade. Isso foi observado em um estudo que analisou a sustentabilidade de um trabalho interdisciplinar em rede, pois houve uma resistência da maioria dos profissionais, que contestou a priorização das consultas médicas, em detrimento de intervenções coletivas realizadas na área da saúde mental. Nesse caso, a força da centralidade da medicina no cuidado foi confrontada, inclusive com a participação de alguns médicos, quando a equipe multiprofissional, a partir da análise de suas implicações, produziu movimentos instituintes para construir práticas com a participação dos diversos profissionais, sem estabelecer uma hierarquia de saberes, potencializando o trabalho interdisciplinar2323 Dóbies DV, L’Abbate S. A resistência como analisador da saúde mental em Campinas. Saúde debate. 2016 [acesso em 2022 set 29]; 40(110):120-33. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xwv3CMRkvfNvMFPBfmRFKQG/?lang=pt.
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Nessa perspectiva, os profissionais do setor saúde devem analisar constantemente suas implicações nos diversos contextos em que estão inseridos, incluindo a análise de instituições, como a saúde e a educação ao considerar a formação acadêmica; a divisão social do trabalho; as políticas públicas em saúde, entre outras. Essa é uma forma de possibilitar um reposicionamento profissional capaz de proporcionar estratégias para lidar de forma ampliada com os desafios do cotidiano e, sobretudo, das relações interpessoais. Logo, analisar as implicações viabiliza a construção de um olhar crítico e reflexivo sobre a prática profissional e a busca de um novo saber-ser enquanto profissional implicado que analisa sua atuação em uma equipe de saúde multiprofissional e interdisciplinar.

Assim, enfatiza-se a necessidade da análise coletiva da implicação, evitando os equívocos da responsabilização ou, pior ainda, da culpabilização individual2424 Monceau G. Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Fractal Rev Psicol. 2008 [acesso em 2022 set 29]; 20(1):19-26. Disponível em: https://www.scielo.br/j/fractal/a/nLW73FGMTwHxPgvnNsC73hP/?lang=pt.
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. Quando a implicação é analisada coletivamente, os profissionais da saúde reúnem mais elementos para refletir sobre as formas de construir o trabalho interprofissional e a interdisciplinaridade, em um contexto no qual o modelo biomédico ainda é predominante. Isso favorece a emergência de analisadores que, à primeira vista, parecem acontecimentos banais e naturalizados, mas que, em determinado contexto, adquirem significados reveladores de aspectos que não podem ser mais ignorados, o que permite aprofundar a análise em curso.

Analisar coletivamente a resistência ao trabalho interprofissional e interdisciplinar, em especial, a resistência médica, possibilita que os profissionais da saúde saiam de seus lugares instituídos e percebam os movimentos instituintes que ocorrem nos serviços em que atuam. Certamente, isso viabiliza novos olhares e um reposicionamento ético dos profissionais e dos gestores, o que pode contribuir para a integração dos saberes e práticas profissionais, para a prestação de uma assistência integral e humanizada.

Nessa perspectiva, um exemplo instituinte na formação dos profissionais de saúde, que busca fortalecer o trabalho interprofissional e a interdisciplinaridade, é o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde/Interprofissionalidade), que tem por objetivo promover a integração ensino-serviço-comunidade, com foco no desenvolvimento do SUS, a partir dos elementos teórico-metodológicos da Educação Interprofissional (EIP)66 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS Brasil. Política Nacional de Humanização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília, DF: MS; 2010.,2525 Magnago C, França T, Belisário SA, et al. PET-Saúde/GraduaSUS na visão de atores do serviço e do ensino: contribuições, limites e sugestões. Saúde debate. 2019 [acesso em 2022 set 29]; 43(1):24-39. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ZnKPGMnksJcVQmJ79Wt38ny/?lang=pt.
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. Ressalta-se que essa estratégia inovadora não foi desenvolvida nos locais de trabalho analisados neste estudo, o que restringe ainda mais as possibilidades de consolidar a educação interprofissional e uma perspectiva interdisciplinar para as ações de saúde.

A residência multiprofissional pode ser considerada outro instituinte na formação em saúde, visto que, nesse contexto, a

Interprofissionalidade se mostra como estratégia relevante para a formação profissional e melhora da qualidade da assistência, a partir do planejamento compartilhado do cuidado, do usuário como centro do cuidado, do aprendizado sobre as demais profissões e da troca de saberes com o outro2626 Araújo HPA, Santos LC, Domingos TS, et al. Multiprofessional family health residency as a setting for education and interprofessional practices. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2021 [acesso em 2022 set 29] (29):e3450. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/XQJs46fmqM6kHvTPGghsHJc/?lang=en.
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Pode-se considerar que o programa de residência multiprofissional ainda está se institucionalizando nos hospitais universitários, o que torna necessário realizar estudos e investigações específicas que possam identificar benefícios, potencialidades e fragilidades acerca dessa estratégia de formação para o trabalho interprofissional e, consequentemente, interdisciplinar.

Na gestão dos serviços de saúde, temos outros exemplos de movimentos instituintes, como a cogestão e a clínica ampliada. Essas são estratégias que favorecem a democracia institucional e a construção de protocolos e diretrizes clínicas interdisciplinares, o que pode ser observado na elaboração do projeto terapêutico singular adotado na Estratégia Saúde da Família (ESF)2727 Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Júnior N, et al. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014 [acesso em 2022 set 29]; 18(1):983-995. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/DTWSYxgyjHpg9tJfGD5yVkk/?lang=pt.
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. Essas são práticas que ainda são pouco observadas, principalmente no contexto hospitalar, a exemplo dos locais de trabalho analisados neste estudo.

Apesar de nem todos os locais de trabalho analisados desenvolverem as estratégias instituintes exemplificadas neste estudo, pode-se dizer, a partir da literatura consultada, que tais estratégias fortalecem a relevância do movimento coletivo de institucionalização do trabalho interprofissional e interdisciplinar para enfrentar os problemas elucidados pelos analisadores, tendo em vista o processo de transformação das práticas profissionais em saúde.

Considerações finais

Os alunos do Mestrado Profissional em Gestão de Serviços de Saúde refletiram sobre a temática resistência ao trabalho interprofissional e interdisciplinar, por meio das discussões em sala de aula e dos relatos registrados no diário institucional, analisados a partir de conceitos do referencial teórico-metodológico da AI, culminando com a elaboração coletiva deste artigo, que contou, inclusive, com a expertise de profissionais de outra universidade.

Pode-se dizer que a escrita do diário institucional configurou-se um desafio para os alunos, mas eles reconheceram que essa ferramenta se mostrou um instrumento de trabalho potente com ‘benefícios terapêuticos’, ao proporcionar recursos para autoanálise, análise das práticas e das implicações profissionais, a partir de fatos marcantes do cotidiano, tais como: sofrimento no trabalho; relações de poder no ambiente laboral; condutas e posturas profissionais dos membros das equipes, entre outros.

Nesse sentido, esse coletivo analisou as práticas profissionais em saúde de modo mais crítico, e os alunos puderam compartilhar, ainda, suas reflexões com os colegas de trabalho, o que poderá resultar em um cuidado mais integrador e interdisciplinar, a partir de um trabalho interprofissional em seus locais de atuação. Além disso, as competências adquiridas nesse processo podem torná-los mais preparados para enfrentar os constantes desafios que surgem no cotidiano dos serviços de saúde.

As vivencias e as reflexões mostraram que, se, por um lado, as práticas em saúde e a atuação dos profissionais no cenário atual, ainda, trazem marcas de certa predominância do modelo biomédico, por outro, também se observam resistências a esse modelo nas organizações de saúde, o que evidencia a necessidade de ampliar os espaços de análise coletiva capazes de enunciar o reducionismo deste paradigma.

Para concluir, destaca-se que a potencialidade das relações interprofissionais no trabalho em saúde e a análise das implicações dos profissionais nos serviços de saúde apontam possibilidades reais de transformação da qualidade da assistência à saúde. Ou seja, mostra-se necessário criar propostas inovadoras capazes de associar as relações interpessoais e o trabalho interprofissional para produzir um modelo colaborativo de cuidado integral e interdisciplinar à saúde no âmbito do SUS.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2021
  • Aceito
    20 Jun 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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