A saúde de mulheres lésbicas e bissexuais: experiências das profissionais de saúde no município de Belford Roxo/RJ

Sheila Cristina Corrêa da Silva Adriane Neves da Silva Mably Jane Trindade Tenenblat Ernane Alexandre Pereira Sobre os autores

RESUMO

O trabalho visa conhecer a percepção das profissionais de saúde no cuidado de mulheres lésbicas e bissexuais. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com 12 profissionais de diferentes áreas e unidades de saúde da cidade de Belford Roxo (RJ). Em relação aos resultados, destacam-se duas temáticas com seus respectivos núcleos de sentidos: 1) o atendimento prestado a mulheres lésbicas e bissexuais na unidade de saúde; 2) facilitadores e dificultadores do acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços. Apesar do reconhecimento de que a diversidade no cuidado à saúde da mulher faz parte do cotidiano das profissionais entrevistadas, as demandas e as especificidades de saúde de mulheres lésbicas e bissexuais ainda são pouco valorizadas nas práticas de cuidados, mantendo protocolos heteronormativos. O diálogo sobre a diversidade feminina, acerca do conhecimento e da materialização da Política LGBT é essencial para os profissionais e gestores, propiciando mudanças nesse cenário e minimizando as dificuldades de acesso. Por fim, é preciso discutir em que medida a política de saúde da população LGBTQIA+ vem sendo abordada nos currículos e está na agenda de compromissos da gestão municipal de modo a garantir os direitos dessa população nos serviços de saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Minorias sexuais e de gênero; Acessibilidade aos serviços de saúde; Saúde da mulher; Homossexualidade feminina

Introdução

Apesar de assegurado o direito à saúde, garantido na Constituição de 198811 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988., alguns grupos populacionais, quando procuram atendimento, encontram dificuldades de acesso aos serviços de saúde. Mulheres lésbicas e bissexuais vêm denunciando que suas demandas e especificidades são invisibilizadas pelos profissionais de saúde, sendo isso influenciado pela heterossexualidade compulsória, que contribui para o apagamento dessas mulheres - e quando conseguem acesso, são expostas a discriminação e preconceito.

Em relação às mulheres lésbicas e bissexuais, afiguram-se especificidades e singularidades, que são atravessadas pela questão de gênero, orientação sexual, identidade de gênero, podendo inclusive se fazer um recorte étnico-racial e de classe22 Araújo LM, Penna LHG. A relação entre sexo, identidades sexual e de gênero no campo da saúde da mulher. Rev. Enferm UERJ. 2014; 22(1):134-138.. Diante da existência desses marcadores sociais, a situação de invisibilidade dessas mulheres, promovida de forma consciente ou inconsciente, pode comprometer a experiência das mulheres lésbicas durante o atendimento por parte dos serviços de saúde33 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014., contribuindo para uma busca menor por consultas ginecológicas em relação às mulheres heterossexuais, acarretando a vulnerabilidade, o adoecimento e o agravamento do quadro de saúde ou até a morte.

Em que pesem os avanços e as conquistas, fruto da luta por garantias de direitos à saúde pelos movimentos feministas e lésbicos, as especificidades e as demandas de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais e outras (LGBTQIA+) ainda não têm apresentado o devido reconhecimento44 Silva AN. Políticas públicas de saúde voltadas as lésbicas: analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.. Desde a publicação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT)55 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: MS; 2013., um marco no reconhecimento das demandas desse grupo populacional, têm se intensificado as denúncias por violações de direitos e exclusão nos serviços de saúde66 Lionço T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde Soc. 2008; 17(2):11-21..

Material e métodos

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa. O método escolhido foi o de interpretação dos sentidos, para compreender os sentidos atribuídos pelas profissionais de saúde durante o atendimento às mulheres lésbicas e bissexuais77 Gomes R. Análise e intepretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95..

Os cenários de estudo foram unidades de saúde localizadas no município de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Participaram da pesquisa: 12 profissionais selecionadas por critério de gênero, de diferentes áreas e unidades de saúde, que aceitaram voluntariamente fazer parte da pesquisa. Foram excluídos profissionais do gênero masculino, as que estavam afastadas por férias, licença especial e por motivo de doença no período em que foram realizadas as entrevistas.

A produção dos dados foi realizada por meio da técnica de entrevistas narrativas88 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 109-132., utilizando um roteiro semiestruturado, feita a entrevista no local de atuação das participantes, no período de maio de 2022. Houve também um questionário sociodemográfico e informações sobre processo de formação e tempo de atuação. As narrativas das profissionais de saúde foram gravadas e posteriormente transcritas.

Os passos para a interpretação das narrativas foram: a) leitura compreensiva do material; b) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos materiais; c) busca de sentidos relacionados com as falas e as ações dos sujeitos da pesquisa; e d) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos88 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 109-132..

A pesquisa seguiu as recomendações e diretrizes éticas e legais necessárias à boa prática de pesquisa, de acordo com as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/20161 do Conselho Nacional de Saúde; sendo aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz - Ensp/Fiocruz (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE 57021522.1.0000.5240, número do parecer: 5.434.546). Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; e para manter o anonimato dos participantes, designou-se, a cada uma delas, um código: de S1 até S12. É importante ressaltar que a pesquisa não contou com recursos financeiros de patrocinadores para a sua realização, ou seja, foi realizada com recursos próprios.

Para análise dos dados, foi utilizado o referencial teórico de Pierre Bourdieu: habitus, campos e violência simbólica99 Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.,1010 Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998., visto que esses conceitos são fundamentais para compreender como, no campo, perpetuam-se as desigualdades e como essas profissionais constroem seus cuidados, já que essas são responsáveis, no campo, em legitimar as necessidades de saúde da população.

Resultados e discussões

No conjunto de dados analisados, afiguram-se três categorias de análise: 1) conhecendo as profissionais de saúde do município de Belford Roxo; o atendimento prestado a mulheres lésbicas e bissexuais na unidade de saúde; e facilitadores e dificultadores do acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços.

Conhecendo as profissionais de saúde do município de Belford Roxo

Quanto as 12 profissionais de saúde entrevistadas, observa-se que, em relação ao gênero, há predomínio de mulheres cis (100%). Sobre a sexualidade, a maioria delas definiu-se como heterossexual, ou seja, 66,7%. Em relação à religião, a predominante era a católica (33,3%). Essas mulheres estavam situadas na faixa etária de 50 a 56 anos (41,7%).

As participantes possuem experiência no cuidado à saúde, visto que possuem mais de sete anos de atuação. Quanto à capacitação profissional, a maioria das participantes tinha alguma especialização lato sensu, porém, com predomínio da especialização em saúde mental (33,3%), seguida de especialização em violência (16,6%). Uma participante relatou especialização latu sensu em psicologia social, e outra, em nutrição clínica.

O Atendimento prestado a mulheres lésbicas e bissexuais na unidade de saúde

Podem-se destacar duas concepções nessa categoria: abordagem durante o atendimento a mulheres lésbicas e bissexuais; e demandas apresentadas pelas mulheres. Quando as profissionais foram questionadas como esses atendimentos ocorrem, as respostas foram similares entre as entrevistadas no que se refere ao fato de que não necessariamente a busca por atendimento está relacionada com as questões de saúde, o que pode ser observado nas narrativas:

[...] questões de conflitos familiares. A procura foi por conta de conflito familiares e no decorrer do atendimento, elas verbalizaram a orientação sexual. (S1).

[...] é difícil identificar. Não lembro de ter atendido. Somente um homem trans e com uso de nome social. (S5).

Nesse sentido, a decisão de procurar os serviços de saúde está relacionada com outros problemas, tais como: conflitos familiares e desconhecimento sobre terem atendido essa população. Outro fato que aparece na fala de uma das entrevistadas refere-se ao simbolismo do feminino:

[...] acho que houve uma identificação simbolicamente do feminino. (S1).

[...] o fato de ser uma mulher lésbica acho que me ajuda. (S9).

Existe a necessidade de refinar a abordagem da questão do acesso a cuidados ginecológicos entre mulheres lésbicas e bissexuais, levando em conta a diversidade dessas mulheres, de suas experiências e as diferentes representações que têm sobre o próprio corpo, o risco de adoecimento e o papel da busca por cuidados ginecológicos, de modo a produzir ações mais efetivas no sentido de reduzir as dificuldades ao acesso1111 Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(supl2):s291-s300..

Por outro lado, acreditam que a visibilidade existente nas mulheres lésbicas masculinizadas facilitaria o atendimento. O habitus heteronormativo presente nas práticas de saúde leva as profissionais a realizarem seus cuidados voltados à heterossexualidade, o que pode contribuir para a naturalização da heterossexualidade e o não reconhecimento de vivências sexuais e de gênero plurais1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360..

Outro ponto importante foi o não reconhecimento das demandas reais das mulheres lésbicas e bissexuais. Quando as profissionais foram questionadas sobre seu conhecimento sobre as principais demandas apresentadas e a não vinculação com os serviços e as equipes, as respostas foram preocupantes:

[...] as demandas de saúde encontrada na equipe são na saúde emocional e na busca dos atendimentos no cuidado da saúde da mulher. (S4).

[...] as demandas são muito poucas e somente quando os colegas têm dúvidas eles me acionam. (S10).

[...] elas não voltam por causa dos preconceitos. Principalmente nas portas das unidades... [acolhida e recepção]. As perguntas na entrada dos atendimentos, dependendo de como são feitas, as pessoas se recolhem e não se sentem acolhidas. Ou pior, se sentem constrangidas. (S2).

A percepção das entrevistadas aponta que as experiências vivenciadas pelas mulheres lésbicas e bissexuais durante o atendimento nos serviços de saúde contribuem para que elas não retornem. Considerando essa realidade, faz-se necessário manter um olhar atento às inclusões, às exclusões, às possibilidades e aos limites que colocam no processo cotidiano de trazer dado sujeito político, com suas demandas, para o espaço público. Tal olhar possibilita tomar os sujeitos enunciados pelo movimento como sempre abertos à inclusão, acolhendo novas e diferentes demandas, questionando arranjos hierárquicos1111 Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(supl2):s291-s300..

Quanto à organização dos serviços, para atender às demandas das mulheres lésbicas e bissexuais, as narrativas mostraram que há ausência de acolhimento que permita a escuta de suas vivências. Além disso, os protocolos de atendimentos mantêm formato para atendimento a mulheres heterossexuais, o que mostra nas narrativas:

Falta inclusão... (S1).

Não vejo nenhuma ação. (S3).

Não estão organizadas. (S4).

Não tem ações… (S6).

Nenhum trabalho e nenhuma ação. (S7).

Não tem nenhuma organização para esse atendimento. (S8).

Corroborando as narrativas, outros estudos apontam que um dos desafios nos atendimentos enfrentados por mulheres lésbicas e bissexuais no acesso aos serviços de saúde está no atendimento humanizado, com um olhar para as especificidades das pacientes lésbicas e bissexuais, o que requer dos profissionais preparo e qualificação para o reconhecimento das necessidades dessa população. Isso implica a ressignificação das habilidades e competências durante o processo de formação dos profissionais de saúde, para o reconhecimento das reais demandas da população que está sob seus cuidados, promovendo um espaço de acolhimento, criação de vínculo, que respeite às singularidades e desconstrua qualquer forma de violência institucionalizada1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360..

Além disso, a não inclusão da PNSI-LGBT na formação dos profissionais, a utilização de protocolos e as intervenções a partir de um olhar heteronormativo vêm dificultando a construção de vínculos e o cuidado, produzindo um atendimento fragmentado, que contribui para exclusão e violência simbólica, dificultando o acesso e a permanência dessas mulheres nos serviços de saúde1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360.,1313 Santana ADS, Lima MS, Moura JWS, et al. Dificuldades no acesso aos serviços de saúde por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Rev. enferm UFPE. 2020; 13:e243211..

A invisibilização das demandas e das especificidades de mulheres lésbicas e bissexuais no atendimento à saúde está atrelada ao habitus99 Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.,1010 Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998. heteronormativo, presente nas práticas de saúde e no processo de formação dos profissionais de saúde, que direcionam seu cuidado voltado para mulheres heterossexuais1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360.. Essa naturalização vem contribuindo para violência simbólica e fragmentação do cuidado integral.

Facilitadores e dificultadores do acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços

Ao serem questionadas a respeito das facilidades ao conduzirem os atendimentos de lésbicas e mulheres bissexuais nos serviços de saúde, observou-se que a existência de profissionais lésbicas e bissexuais na equipe é um facilitador nas experiências de atendimento:

[...] acho que o fato do feminino. Talvez, o fato delas carregarem ainda em si essa questão do feminino. Acho que houve uma identificação simbolicamente do feminino. (S1).

[...] o fato de ser uma mulher lésbica acho que me ajuda. (S9).

[...] acreditamos que qualquer unidade de saúde tem que ter uma visão holística, onde possamos ver um todo por igual. Uma vez que, um olhar amplo no atendimento pode facilitar o acolhimento do paciente. E, incluo ainda, que temos mulheres lésbicas e/ou bissexual em nossa equipe, o que nos capacita todos os dias. (S12).

Ainda sobre os facilitadores de acessos e atendimentos, ao serem questionadas sobre quais facilidades elas acreditam ser necessárias para conduzirem esses atendimentos, as profissionais afirmaram que:

[...] acho que seria de grande valia que esses profissionais fossem capacitados para isso dentro das unidades. Para que eles pudessem a abrir o espaço para escuta, muito mais do que o tratamento. Porque eu acho que a escuta é secundária e abrir grupos de escutas para saber o que essas mulheres trazem de demandas, de experiências, de sofrimentos, em questões familiares, de relacionamento. Acho que falta escuta! (S1).

Não ter preconceito. (S9).

[...] a rede poderia facilitar o acesso das demandas das profissionais da ponta. (S11).

Observou-se, contudo, que os facilitadores dependem exclusivamente do olhar de cada profissional. Além disso, para o cuidado integral de mulheres lésbicas e bissexuais, é preciso o estabelecimento de vínculo, reconhecimento e respeito à singularidade, desconstruindo todas as formas de violência, estigma e discriminação44 Silva AN. Políticas públicas de saúde voltadas as lésbicas: analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.,1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360.. Isso influencia na construção de espaços que possam acolher essas mulheres e profissionais de saúde que, por um lado, não conheceram as reais necessidades e, por outro, ao serem afetados pelo preconceito e discriminação, contribuam para o cuidado fragmentado.

O respeito ao direito à saúde esteve presente nas narrativas das entrevistadas, sendo visto como um dificultador no cuidado às mulheres lésbicas e bissexuais. Todavia, há uma dificuldade por questões religiosas e posturas conservadoras:

[...] é mostrar por outro que trabalha com você, que aquela pessoa tem direitos e que ela precisa ser respeitada. Mas o que me deixa angustiada é o profissional querer doutrinar essa pessoa [religiosidade]. (S2).

[...] senti dificuldade quando ela me perguntou se o profissional que eu estava encaminhando seria uma pessoa sensível. (S10).

Há uma preocupação com a necessidade de mudança no olhar das profissionais com posturas conservadoras. Corroborando um documento do Ministério da Saúde, os conservadores acham que esse não é um problema a ser debatido no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo esse debate visto como uma pauta não realizada nos serviços, exceto nos serviços especializados de atendimento a Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/aids33 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014..

Outro aspecto relevante nas entrevistas diz respeito ao constrangimento das mulheres lésbicas e bissexuais ao revelar ou não sua orientação sexual, por terem vivenciado experiências negativas durante o atendimento, quando pressionadas a revelar sua orientação sexual1212 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360..

[...] ouvir o sofrimento e não ter pra onde direcionar no momento. (S7).

[...] perceber o constrangimento da paciente. (S9).

Cabe destacar que as consultas devem ser permeadas da construção de vínculo, levando essas mulheres à livre revelação da sua orientação sexual, quando elas têm o direito de revelar ou não aos profissionais. Isso implica, durante o cuidado, considerar as diversas possibilidades de prevenção e condutas existentes para cada uma das práticas sexuais informadas1414 Milanez LS, Nabero APP, Silva AN, et al. Saúde de lésbicas: experiências do cuidado das enfermeiras da atenção básica. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(10):3891-3900..

A falta de espaço de acolhimento para mulheres lésbicas e bissexuais é uma realidade enfrentada diariamente por elas, aparecendo como dificultador trazido nos relatos das profissionais:

[...] falta de espaço na unidade para que pudéssemos fazer este atendimento, espaço físico e profissional, partindo da gestão para que o profissional, possa criar esses trabalhos. (S1).

[...] talvez por eu ser mulher, eu não tenha nenhuma dificuldade. Acredito que a maior dificuldade está nessas mulheres não se sentirem confortáveis em ser atendidas por homens. (S5).

As profissionais demonstraram incômodo pela inexistência de espaços para atender mulheres lésbicas e bissexuais. Tal sentimento pode ser compreendido pela ausência desse diálogo nos espaços de formação e pelo entendimento de que o SUS é universal, equânime e integral. No entanto, a falta de visibilidade e representatividade dessas mulheres contribui para a perpetuação do estigma, da discriminação e da violência simbólica99 Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.,1010 Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998. que elas enfrentam. Assim, é fundamental que mulheres lésbicas e bissexuais aproximem as suas vivências dos profissionais de saúde33 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014..

Conclusões

Apesar do reconhecimento de que a diversidade no cuidado à saúde da mulher faz parte do cotidiano das profissionais, as demandas e as especificidades de saúde de mulheres lésbicas e bissexuais ainda são pouco valorizadas nas práticas de cuidados, mantendo protocolos heteronormativos, desvalorizando, assim, suas trajetórias e práticas sexuais.

No município de Belford Roxo, as unidades de saúde, em relação a estruturas, não estão preparadas para acolher as demandas dessas mulheres, ou seja, que tenham programas que abranjam as questões de gênero e orientação sexual. Embora as entrevistadas tenham demonstrado empatia a esse grupo social, sabe-se que não é suficiente para melhorar, de maneira geral, a qualidade do atendimento, pois são ações pontuais, não estruturais. Nesse sentido, existe a necessidade de refletir sobre o processo de cuidado a partir da perspectiva do gênero e da sexualidade. Além disso, traz a ênfase para a necessidade de uma formação profissional e educação permanente que contemple a integralidade do cuidado à saúde, o que implica o diálogo sobre políticas públicas LGBTQIA+ e a abordagem e o reconhecimento das demandas e especificidades dessa população. Isso possibilita maior acolhimento e pertencimento no momento que essa população procura unidades de saúde para atendimento, caminho para desconstruir a perpetuação do habitus heteronormativo nas práticas de cuidados e da violência simbólica.

Por fim, o diálogo sobre a diversidade feminina, acerca do conhecimento e da materialização da PNSI-LGBT é essencial para os profissionais e gestores, de modo a promover mudanças nesse cenário, minimizando as dificuldades de acesso de mulheres lésbicas e bissexuais aos serviços de saúde, nos quais suas experiências sejam valorizadas. Além disso, trazer ênfase ao conhecimento sobre em que medida a política de saúde da população LGBTQIA+ vem sendo abordada nos currículos e está na agenda de compromissos da gestão municipal, a fim de garantir os direitos dessa população nos serviços de saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
  • 2
    Araújo LM, Penna LHG. A relação entre sexo, identidades sexual e de gênero no campo da saúde da mulher. Rev. Enferm UERJ. 2014; 22(1):134-138.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília, DF: MS; 2014.
  • 4
    Silva AN. Políticas públicas de saúde voltadas as lésbicas: analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: MS; 2013.
  • 6
    Lionço T. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde Soc. 2008; 17(2):11-21.
  • 7
    Gomes R. Análise e intepretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95.
  • 8
    Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 109-132.
  • 9
    Bourdieu P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1992.
  • 10
    Bourdieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998.
  • 11
    Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(supl2):s291-s300.
  • 12
    Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl3):5351-5360.
  • 13
    Santana ADS, Lima MS, Moura JWS, et al. Dificuldades no acesso aos serviços de saúde por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Rev. enferm UFPE. 2020; 13:e243211.
  • 14
    Milanez LS, Nabero APP, Silva AN, et al. Saúde de lésbicas: experiências do cuidado das enfermeiras da atenção básica. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(10):3891-3900.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2023
  • Aceito
    15 Dez 2023
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