Ambiente alimentar em um território de vulnerabilidade social em Piraquara-PR

Food environment in a socially vulnerable territory in Piraquara-PR

Leticia Soares Amancio Luiza Buzatto Schemiko Anabelle Retondario Sobre os autores

RESUMO

O ambiente alimentar é um conceito fundamental para compreender como o contexto social influencia os comportamentos alimentares. Ele se refere ao conjunto de fatores físicos, econômicos e sociais que afetam o acesso e a disponibilidade de alimentos em uma determinada região. O objetivo deste estudo foi avaliar o ambiente alimentar em uma região de vulnerabilidade social no município de Piraquara, região metropolitana de Curitiba-PR. O ambiente alimentar foi mapeado a partir de busca ativa, virtual e no território, de todo e qualquer dos 122 estabelecimentos de venda de alimentos nas áreas de abrangência das unidades de saúde. Constatou-se a predominância de estabelecimentos de alimentos não saudáveis (62,2%), pequeno número de estabelecimentos que comercializam alimentos saudáveis (9,8%) e alta concentração de qualquer tipo de estabelecimento no entorno de duas das principais vias da região, deixando grandes áreas com maior dificuldade de acesso. Nesse contexto, destaca-se a importância da criação de equipamentos de Segurança Alimentar e Nutricional no município que promovam a garantia de acesso físico e econômico a uma alimentação adequada e saudável para as famílias, especialmente em áreas de vulnerabilidade socioeconômica.

PALAVRAS-CHAVE
Segurança alimentar; Ambiente; Vulnerabilidade social

ABSTRACT

The concept of the food environment plays a crucial role in comprehending how the social context influences eating behaviors. It encompasses a combination of physical, economic, and social factors that impact food access and availability within a specific region. This study aimed to assess the food environment in a socially vulnerable area within the municipality of Piraquara, located in the metropolitan region of Curitiba-PR. The food environment was charted through an active virtual search within the territories covered by health units, leading to the identification of 122 establishments. The analysis revealed a prevalence of unhealthy food vendors in the region (62.2%), a limited number of establishments offering healthy food options (9.8%), and a notable concentration of various types of establishments around two main roads, creating significant access challenges in other areas. In this context, the significance of establishing Food and Nutrition Security facilities in the municipality is underscored. Such initiatives aim to ensure both physical and economic access to suitable and nutritious food, particularly for families residing in socioeconomically vulnerable regions.

KEYWORDS
Food security; Environment; Social vulnerability

Introdução

A Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) é definida como a realização do direito de todos os indivíduos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente11 Brasil. Lei n°11.346 de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União. 15 Set 2006.. No entanto, o atual sistema neoliberal contribui para o aumento de desigualdades sociais, econômicas, de raça e gênero, podendo afetar a condição alimentar e nutricional das populações, expondo-as à Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN). A IAN é a violação da SAN e envolve a falta de acesso físico, econômico e social a uma alimentação adequada e saudável22 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: ABRANDH; 2013. [acesso em 2023 nov 23]. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/seguranca_alimentar/DHAA_SAN.pdf.
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Diversos fatores são responsáveis pelo aumento da condição de IAN, dentre eles, o Terceiro Regime Alimentar, que se caracteriza pela globalização dos sistemas alimentares, pelo aumento do consumo de alimentos ultraprocessados e por baixo consumo de alimentos in natura. Esse padrão alimentar tem contribuído para a má qualidade da alimentação e nutrição de populações de países em desenvolvimento. Nessas populações, coexistem problemas de desnutrição proteico-energética e de micronutrientes juntamente com o aumento da prevalência de sobrepeso, obesidade e outras Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT). Nesse sentido, a garantia da SAN não se refere somente à necessidade de redução da desnutrição, mas também à promoção da disponibilidade e do acesso a alimentos saudáveis, evitando todas as formas de deficiência de nutrientes e as DCNT33 Food and Agriculture Organization of the United Nations. The state of food security and nutrition in the world 2020. 2020. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://www.fao.org/3/ca9692en/online/ca9692en.html#chapter-1_3.
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. O ambiente alimentar é um conceito fundamental para compreender como o contexto social influencia os comportamentos alimentares. Ele se refere ao conjunto de fatores físicos, econômicos e sociais que afetam o acesso e a disponibilidade de alimentos em uma determinada região. Segundo Herforth e Ahmed44 Herforth A, Ahmed S. The food environment, its effects on dietary consumption, and potential for measurement within agriculture-nutrition interventions. Food Security. 2015; 7:505-20., o conjunto é definido como a disponibilidade, desejabilidade e conveniência de vários alimentos. Destaca-se aqui a ‘disponibilidade’ de alimentos saudáveis em um território, fator que influencia diretamente a escolha e o consumo desses alimentos pela população. Quando há uma maior oferta de alimentos in natura, há um ambiente que favorece uma dieta mais equilibrada e saudável. Por outro lado, se o ambiente alimentar disponibiliza alimentos ultraprocessados, ricos em açúcares, gordura e sódio, tais fatores podem contribuir para uma alimentação menos saudável e mais prejudicial à saúde.

Sendo assim, o objetivo deste estudo foi o de avaliar o ambiente alimentar em uma região de vulnerabilidade social no município de Piraquara-PR e discutir o potencial de promoção da SAN.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa observacional e descritiva realizada no município de Piraquara, Paraná. Essa pesquisa é parte do projeto ‘Situação de insegurança alimentar em crianças, em municípios do Paraná’, coordenado pelo Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Paraná (DNUT-UFPR) e desenvolvido em parceria com o Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família da UFPR (PRMSF-UFPR).

Piraquara compõe a região metropolitana de Curitiba-PR. Sua população é estimada em 116.852 pessoas; igualitariamente urbana e rural; densidade demográfica de 519.61 habitantes/km2; Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,700; Índice de Gini de 0,4307; PIB per capita de R$12.141,28 e ocupa a 398ª posição dentre os 399 municípios do estado. Além disso, Piraquara pertence ao grupo g100, grupo de cidades brasileiras com características de alta vulnerabilidade socioeconômica, ocupando a 89a posição55 Piraquara. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde 2018-2021. 2017. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://piraquara.pr.gov.br/aprefeitura/secretariaseorgaos/saude/uploadAddress/PMS-2018-2021-Piraquara-compressed[12151].pdf.
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. Ao todo, Piraquara possui onze Unidades Básicas de Saúde (UBS) distribuídas em três regionais de saúde: quatro na regional Guarituba, quatro na regional Central e três na regional Contorno Leste.

Tendo em vista o objetivo do trabalho, foram selecionadas duas UBS na regional Guarituba, região que concentra a maior parte da população do município e apresenta maior vulnerabilidade socioeconômica55 Piraquara. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde 2018-2021. 2017. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://piraquara.pr.gov.br/aprefeitura/secretariaseorgaos/saude/uploadAddress/PMS-2018-2021-Piraquara-compressed[12151].pdf.
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. Adotou-se a amostragem por conveniência, incluindo duas UBS da regional Guarituba e campo de prática de nutricionistas residentes do PRMSF-UFPR.

O ambiente alimentar das duas UBS incluídas no estudo foi mapeado com auxílio do Google Maps (Google, 2020-2023), com posterior triangulação dos dados a partir de observação sistemática do território. Identificou-se todo e qualquer estabelecimento de venda de alimentos nas áreas de abrangência das UBS, pois se entende que a vizinhança é capaz de influenciar os hábitos das pessoas66 Roux AVD, Mair C. Neighborhoods and health. Annals New York Acad Scienc. 2010; 1186(1):125-45. Primeiramente, a área de abrangência das UBS foi delimitada no Google Maps (Google, 2020-2023) e, por meio da ferramenta Street view, todas as ruas foram analisadas com o objetivo de identificar estabelecimentos que comercializam alimentos. Após essa listagem inicial, as ruas foram percorridas in loco sistematicamente para confirmar a existência dos estabelecimentos identificados virtualmente e para identificação de outros possivelmente não listados inicialmente pela busca virtual77 Story M, Kaphingst KM, Robinson RB, et al. Creating Healthy Food and Eating Environments: Policy and Environmental Approaches. Annu Rev Public Health. 2008; 29:253-72.. Essa metodologia de observação in loco é potencialmente mais onerosa, tendo em vista o maior dispêndio de tempo, recursos humanos e recursos financeiros com transporte, mas tem sido citada na literatura como adequada para estudos locais e regionais e com maiores chances de identificação real dos estabelecimentos77 Story M, Kaphingst KM, Robinson RB, et al. Creating Healthy Food and Eating Environments: Policy and Environmental Approaches. Annu Rev Public Health. 2008; 29:253-72.,88 Kelly B, Flood VM, Yeatman H. Measuring local food environments: An overview of available methods and measures. Health & amp; Place. 2011; 17(6):1284-93.. Assim, obteve-se uma lista com os nomes de todos os estabelecimentos identificados no território das duas UBS.

Classificou-se cada estabelecimento em categorias, conforme a metodologia proposta pelo estudo sobre mapeamento dos desertos alimentares no Brasil99 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social, Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Estudo técnico: Mapeamento dos desertos alimentares no Brasil. 2018. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/noticias/arquivos/files/Estudo_tecnico_mapeamento_desertos_alimentares.pdf.
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(quadro 1). De acordo com a Câmara Interministerial de SAN (Caisan)99 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social, Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Estudo técnico: Mapeamento dos desertos alimentares no Brasil. 2018. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/noticias/arquivos/files/Estudo_tecnico_mapeamento_desertos_alimentares.pdf.
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, os comércios de alimentos podem ser classificados em ‘estabelecimentos de aquisição de alimentos in natura’, ‘estabelecimentos mistos’ e ‘estabelecimentos de aquisição de ultraprocessados’. Dessa forma, essa classificação considera que estabelecimentos de alimentos in natura são aqueles nos quais a aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados representam mais de 50% da aquisição total, ou seja, nesses estabelecimentos há a predominância de alimentos saudáveis99 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social, Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Estudo técnico: Mapeamento dos desertos alimentares no Brasil. 2018. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/noticias/arquivos/files/Estudo_tecnico_mapeamento_desertos_alimentares.pdf.
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Quadro 1
Categorização dos estabelecimentos de venda de alimentos

Os estabelecimentos mistos são aqueles que oferecem simultaneamente alimentos de todos os grupos alimentares99 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social, Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Estudo técnico: Mapeamento dos desertos alimentares no Brasil. 2018. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/noticias/arquivos/files/Estudo_tecnico_mapeamento_desertos_alimentares.pdf.
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. Por fim, os estabelecimentos de aquisição de ultraprocessados são aqueles nos quais a aquisição de alimentos ultraprocessados representa mais de 50% da aquisição total, ou seja, nesses estabelecimentos há uma predominância de produtos não saudáveis99 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social, Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Estudo técnico: Mapeamento dos desertos alimentares no Brasil. 2018. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/noticias/arquivos/files/Estudo_tecnico_mapeamento_desertos_alimentares.pdf.
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(quadro 1). Essa classificação é baseada nas recomendações do ‘Guia alimentar para a população brasileira’, que tem como regra de ouro ‘Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados’1010 Brasil. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população Brasileira. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf.
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A metodologia utilizada não necessita de avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, porque não envolve dados obtidos diretamente com participantes ou seres humanos ou informações identificáveis1212 Bendati MMA, Zucolotto AM. Sequência didática para a discussão em ética em pesquisa com seres humanos: A Resolução CNS nº 510/2016 para as Ciências Humanas e Sociais. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Educapes; 2019. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/553824.
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. Os resultados foram apresentados em tabela de frequência por tipo de estabelecimento e mapa de distribuição geográfica com o objetivo de promover análise crítica e reflexões baseadas no contexto de saúde da localidade sob estudo.

Resultados e discussão

Identificaram-se 122 estabelecimentos de venda de alimentos nas áreas de abrangência das UBS avaliadas na região do Guarituba, Piraquara-PR. Após classificação dos estabelecimentos de acordo com a predominância dos itens comercializados, aqueles classificados como venda predominante de alimentos não saudáveis foram identificados em maior frequência (62,3%; n=76), seguidos dos estabelecimentos mistos (27,9%; n=34).

As lanchonetes, distribuidoras de bebidas e sorveterias, respectivamente, foram os estabelecimentos encontrados com prevalência na categoria de estabelecimentos não saudáveis. Os açougues apresentaram prevalência no território (n=3; 2,4%), seguido de frutarias (n=4; 3,3%), lojas de produtos naturais (n=5; 4,1%) e bares (n=6; 4,9%). Os resultados por classificação e tipo de estabelecimento estão apresentados na tabela 1.

Tabela 1
Distribuição dos estabelecimentos de venda de alimentos conforme classificação. Piraquara, 2023

O ambiente alimentar pode ser definido como a combinação de disponibilidade e acessibilidade aos alimentos. A disponibilidade está relacionada à oferta de alimentos para a aquisição e disponibilidade de estabelecimentos de venda de alimentos. A acessibilidade envolve a localização dos estabelecimentos e a facilidade de chegar ao local segundo a proximidade dos domicílios em relação aos comércios de alimentos. Também diz respeito ao preço do alimento e ao poder de compra dos indivíduos.

Glanz et al.1313 Glanz K, Sallis JF, Saelens BE, et al. Healthy Nutrition Environments: Concepts and Measures. Am J Health Promot. 2005; 19(5):330-3. relatam que o ambiente alimentar é fator determinante no comportamento alimentar dos indivíduos. Sendo assim, ambientes alimentares que oferecem variedade de alimentos saudáveis têm maior potencial para promover dietas saudáveis1313 Glanz K, Sallis JF, Saelens BE, et al. Healthy Nutrition Environments: Concepts and Measures. Am J Health Promot. 2005; 19(5):330-3.. No entanto, este estudo constatou a presença de maior número de estabelecimentos que comercializam alimentos ultraprocessados, o que pode resultar em maior aquisição e consumo desses alimentos pela população da região, demonstrando que as famílias do território estão expostas a um ambiente alimentar que não favorece práticas alimentares adequadas e saudáveis.

Segundo Grilo et al.1414 Grilo MF, Menezes C, Duran AC. Mapeamento de pântanos alimentares em Campinas, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(7):2717-28., regiões com elevado número de estabelecimentos de venda de alimentos não saudáveis são caracterizadas como ‘pântanos alimentares’. Outro termo utilizado para caracterizar os ambientes alimentares são os chamados ‘desertos alimentares’, considerados locais que apresentam baixa disponibilidade de estabelecimentos que comercializam alimentos saudáveis1414 Grilo MF, Menezes C, Duran AC. Mapeamento de pântanos alimentares em Campinas, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(7):2717-28.,1515 Mui Y, Jones-Smith JC, Thornton RLJ, et al. Relationships between Vacant Homes and Food Swamps: A Longitudinal Study of an Urban Food Environment. Int J Environ Res Public Health. 2017; 14(11):1426.. Assim, é possível constatar a presença simultânea desses dois ambientes na região avaliada de Piraquara: desertos alimentares, pela pequena quantidade de estabelecimentos que comercializam alimentos in natura e minimamente processados, e pântanos alimentares, pela grande quantidade de estabelecimentos que comercializam alimentos ultraprocessados.

Outra questão importante neste estudo foi constatar que a maior parte dos estabelecimentos existentes, independentemente da categoria de alimentos comercializados - saudáveis, mistos e não saudáveis - estava em aglomerados, ou seja, concentrados nas duas principais vias da região: 86,9% (n=106) deles localizados nessas vias ou, no máximo, a duas quadras de distância conforme figura 11616 QGIS: Sistema de Informação Geográfica livre e aberto. [Versão 3.36.2]. [Sem local]: 2023. [acesso em 2023 nov 3]. Disponível em: https://qgis.org/pt_BR/site/.
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Figura 1
Mapa estabelecimentos Piraquara

Tal realidade pode afetar o gasto das famílias com a alimentação, considerando que os moradores que não residem próximo a essas vias precisam realizar grandes deslocamentos para ter acesso aos estabelecimentos. Também se observou que todos os comércios de venda de alimentos saudáveis estão localizados nessas duas vias. Nesse contexto, o acesso a esse tipo de alimento é ainda mais dificultado, tendo em vista que alimentos in natura e minimamente processados possuem menor durabilidade e precisam ser adquiridos com maior frequência, acarretando maior número de deslocamentos.

Além da própria exposição exacerbada à venda de alimentos não saudáveis, a questão da praticidade e durabilidade dos alimentos ultraprocessados pode acabar propiciando o aumento na aquisição desses alimentos pelas famílias da região. Sendo assim, essa baixa disponibilidade e dificuldade de acesso aos estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis, tais como frutarias, hortifrutigranjeiros, açougues e lojas de produtos naturais, pode impactar negativamente na qualidade nutricional da alimentação das famílias no território.

Segundo Herforth e Ahmed44 Herforth A, Ahmed S. The food environment, its effects on dietary consumption, and potential for measurement within agriculture-nutrition interventions. Food Security. 2015; 7:505-20., adquirir alimentos saudáveis é mais caro do que adquirir alimentos não saudáveis. Ademais, o aumento dos preços dos alimentos afeta de maneira severa os países em que os gastos com alimentação correspondem à maior parte do orçamento familiar. Um estudo realizado em Minas Gerais demonstrou que a distribuição de estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis e o consumo de frutas e verduras são maiores em áreas de maior renda1717 Pessoa MC, Mendes LL, Gomes CS, et al. Food environment and fruit and vegetable intake in a urban population: A multilevel analysis. BMC Public Health. 2015; 15:1012.. Regiões de menor renda costumam apresentar menor disponibilidade e variedade na venda de alimentos, acesso limitado aos alimentos saudáveis e maior exposição à venda de alimentos não saudáveis1818 Peres CMC, Costa BVL, Pessoa MC, et al. O ambiente alimentar comunitário e a presença de pântanos alimentares no entorno das escolas de uma metrópole brasileira. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(5):e00205120.,1919 Cunha CML, Canuto R, Rosa PBZ, et al. Associação entre padrões alimentares com fatores socioeconômicos e ambiente alimentar em uma cidade do Sul do Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(02):687-700.. Frente ao encontrado, destaca-se que a baixa disponibilidade e o preço elevado de alimentos saudáveis podem impedir a adoção de um comportamento alimentar saudável, principalmente em famílias de baixa renda1919 Cunha CML, Canuto R, Rosa PBZ, et al. Associação entre padrões alimentares com fatores socioeconômicos e ambiente alimentar em uma cidade do Sul do Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(02):687-700..

A partir de março de 2020, um dos fatores que vêm afetando o consumo de alimentos de toda a população foi a pandemia da covid-19. Esse período foi marcado no Brasil por aumento do desemprego, perda do poder de compra e desmonte de políticas públicas sociais. Durante a pandemia, houve um aumento expressivo do número de pessoas em IAN na população brasileira e muitas famílias apresentaram dificuldades para adquirir alimentos básicos. De acordo com o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da pandemia da Covid-19 (II Vigisan), cerca de 70% das famílias que estavam em IAN moderada ou grave deixaram de comprar carnes, 64% frutas, 63,3% vegetais e 40,3% feijão durante esse período2020 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. 2022. [acesso em 2023 set 29]. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf.
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Em novembro de 2022, o custo da cesta básica em Curitiba, por exemplo, foi de R$ 709,84, comprometendo, em média, 58,10% do salário mínimo para a aquisição de produtos alimentícios essenciais2121 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Custo da cesta Básica diminui em 12 capitais. Nota à imprensa. 2022. [acesso em 2023 out 28]. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2022/202209cestabasica.pdf.
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. Logo, qualquer aumento nos preços dos alimentos leva à IAN, seja de forma leve e moderada - em relação à qualidade da alimentação - ou grave - fome -, uma vez que trabalhadores com renda insuficiente, incluindo aqueles que percebem um salário mínimo, não possuem recursos financeiros para comprar alimentos saudáveis de qualidade.

Portanto, considera-se que a IAN é resultado de diversos fatores sociais e econômicos estruturantes. Dentre eles, podemos citar o Terceiro Regime Alimentar: um conceito que descreve a fase atual do sistema alimentar global, caracterizado pela predominância da produção industrializada de alimentos, pela concentração do poder econômico nas mãos de grandes empresas e pela influência do neoliberalismo na regulação dos mercados alimentares2222 Paula NF, Bezerra I, Paula NM. Saúde coletiva e agroecologia: necessárias conexões para materializar sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis. Saúde debate. 2022; 46(esp2):262-76.. Esse regime alimentar tem consequências negativas para a saúde e o meio ambiente, como a desnutrição e a obesidade, o uso excessivo de agrotóxicos e a perda de biodiversidade2323 Friedmnn H. From Colonialism to Green Capitalism: Social Movements and the Emergence of Food Regimes. New Directions in the Sociology of Global Development. Emerald Group Publis Limited. 2005; 11:227-64..

Assim, os atores deste Regime Alimentar atuam sob a lógica neoliberal caracterizada pelo alto consumo de alimentos ultraprocessados e baixo consumo de alimentos in natura e minimamente processados, culminando num cenário onde desnutrição, obesidade e DCNT coexistem2424 Swinburn BA, Sacks G, Hall KD, et al. The global obesity pandemic: shaped by global drivers and local environments. Lancet. 2011; 378(9793):804-14.,2525 Guerra LDS, Bezerra ACD, Carnut L. Da fome à palatabilidade estéril: ‘espessando’ ou ‘diluindo’ o Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil? Saúde debate. 2020; 44(127):1231-45.. Esse padrão de alimentação denominado ‘dieta neoliberal’ e suas consequências para a saúde afetam com mais intensidade as pessoas economicamente vulneráveis2626 Otero G, Pechlaner P, Gürcan EC. The Neoliberal Diet: Fattening Profit and People. The Routledge Handbook of Poverty in the United States. [Sem local]: Routledge; 2015.,2727 Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019. [acesso em 2023 nov 13]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/vigitel/vigitel-brasil-2018.pdf/view.
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. Isso é evidente no Brasil, onde as pessoas com baixa escolaridade apresentam os maiores índices de DCNT relacionados à má alimentação, como diabetes e hipertensão2727 Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019. [acesso em 2023 nov 13]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/vigitel/vigitel-brasil-2018.pdf/view.
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. Do mesmo modo, estudos concluem que a população negra apresenta maiores prevalências dessas DCNT e de seus fatores de risco do que a população branca2828 Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2018 População Negra: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2019. [acesso em 2024 jan 18]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/vigitel_brasil_2018_populacao_negra.pdf.
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A dieta neoliberal produz um padrão de consumo desigual, prejudicial à saúde da população. Esse padrão pode ser observado na região onde este estudo foi realizado. Por meio de experiências práticas vividas pelas autoras em atendimentos nutricionais, bem como por pesquisas realizadas anteriormente no território, é possível constatar tanto o elevado grau de IAN dessa população, caracterizado principalmente pela baixa qualidade da alimentação, como a epidemia de sobrepeso, obesidade e DCNT, associada à baixa renda, baixa escolaridade e questões de gênero e raça.

Amancio e Retondario2929 Amancio LS, Retondario A. Insegurança alimentar e nutricional em crianças menores de cinco anos em vulnerabilidade social. [monografia]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2022. avaliaram uma amostra de 156 crianças menores de cinco anos de idade, beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) na região do Guarituba, em Piraquara. As autoras identificaram uma prevalência de 73,7% de famílias em situação de IAN, sendo 51,3% em IAN do tipo leve. Esse nível de insegurança alimentar reflete a preocupação ou incerteza das famílias quanto ao acesso aos alimentos, além da redução na qualidade da alimentação. O estudo concluiu pelo elevado consumo de alimentos ultraprocessados (64,1%), baixa diversidade alimentar (13,8%) e alta prevalência de crianças com IMC ou idade acima da eutrofia (36,3%). Além disso, o estudo identificou associação entre o índice estatura por idade com IAN, indicando prejuízos no crescimento e desenvolvimento de crianças que estavam em situação de insegurança alimentar.

Em outro estudo realizado, também, na região do Guarituba, em Piraquara, utilizou-se abordagem qualitativa para se compreenderem as relações entre os determinantes sócio-políticos, econômicos e ambientais e a IAN de mulheres chefes de domicílio. Observou-se que 13 das 15 mulheres avaliadas apresentaram algum grau de IAN. Os resultados revelaram que a baixa renda associada ao preço dos alimentos, à dificuldade de acesso a alimentos in natura no território, à violência psicológica, emocional e patrimonial, à pandemia de covid-19 e às ações do governo federal entre 2016 e 2022 foram barreiras para a garantia da segurança alimentar das mulheres analisadas3030 Schemiko LB, Lang RM, Retondario A, et al. Insegurança alimentar e nutricional de mulheres chefes de domicílio e o contexto socioeconômico, político e ambiental em que estão inseridas. [monografia]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2022..

É relevante destacar que o contexto alimentar que se forma em uma determinada região pode ser moldado tanto por fatores ‘micro’ - tais como aspectos individuais, sociais e físicos em nível local - como por fatores ‘macro’. Os elementos ‘micro’ englobam considerações individuais: fatores biológicos, demográficos, estilo de vida e valores; sociais: incluindo relações interpessoais com familiares, amigos e pares; e do ambiente físico: que engloba os locais onde as pessoas fazem suas refeições ou adquirem alimentos, como suas casas, restaurantes e supermercados, entre outros3131 Paul CJ, Paul JE, Anderson RS. The local food environment and food security: the health behavior role of social capital. Int J Environ Res Public Health. 2019; 16(24):5045..

Por outro lado, os aspectos ‘macro’ são influenciados por fatores como estratégias de marketing de alimentos, normas sociais, sistemas de produção e distribuição, políticas agrícolas e sistemas de preços. Esses elementos exercem uma influência indireta no comportamento individual, desempenhando um papel significativo nas escolhas pessoais de consumo alimentar77 Story M, Kaphingst KM, Robinson RB, et al. Creating Healthy Food and Eating Environments: Policy and Environmental Approaches. Annu Rev Public Health. 2008; 29:253-72.,3131 Paul CJ, Paul JE, Anderson RS. The local food environment and food security: the health behavior role of social capital. Int J Environ Res Public Health. 2019; 16(24):5045., escolhas essas que são individuais, mas que aos indivíduos não cabe escolher livremente. Essas escolhas devem ser selecionadas apenas dentre as possibilidades regidas ou disponibilizadas pelo sistema, conforme a renda, raça e cor, gênero, posicionamento social e geográfico, dentre outras características em que as pessoas são enquadradas, pois nem tudo está ao alcance de todas as pessoas77 Story M, Kaphingst KM, Robinson RB, et al. Creating Healthy Food and Eating Environments: Policy and Environmental Approaches. Annu Rev Public Health. 2008; 29:253-72. (figura 2).

Figura 2
Fatores que influenciam o ambiente alimentar

Pode-se afirmar, portanto, que os fatores macro e micro estão interligados: as pautas políticas que o governo de determinado país, estado ou município defende, como por exemplo, políticas de melhoria de trabalho, renda, educação, gênero, raça e saúde, medidas de reforma agrária, assistência social e de SAN determinam as práticas alimentares em nível macro e micro, influenciando na produção sustentável de alimentos, formas de abastecimento alimentar tais como produção e transporte de alimentos, produção ou redução das iniquidades sociais, nível socioeconômico das famílias e indivíduos, localidade dos indivíduos e comunidades, práticas alimentares, ou cultura alimentar e ambiente alimentar77 Story M, Kaphingst KM, Robinson RB, et al. Creating Healthy Food and Eating Environments: Policy and Environmental Approaches. Annu Rev Public Health. 2008; 29:253-72.,3232 Paula NF. Os ambientes alimentares no âmbito do regime alimentar neoliberal: estudo de caso em Curitiba/Brasil. [tese]. Universidade Federal do Paraná. 2021.. A fome é uma questão política, a alma da fome é política, as decisões políticas - acordos e alianças - perpetuam a fome, mantêm as pessoas passando fome. Ela pode ser atenuada ou agravada em determinado grau, mas sempre perpetuada3333 De Souza H, Rodrigues C. Ética e cidadania. 1. ed. São Paulo: Editora Moderno, 2007.,3434 Castro J. Geografia da fome: O dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares, 1980..

No entanto, durante a análise do território em questão em nível local, observou-se que as políticas públicas e programas para o enfrentamento dos fatores levantados acima estavam escassos e, alguns deles, extintos. Durante os governos de 2016 a 2022, o país sofreu uma série de desmontes de políticas públicas sociais, as quais impactaram diretamente a alimentação e nutrição das famílias brasileiras2626 Otero G, Pechlaner P, Gürcan EC. The Neoliberal Diet: Fattening Profit and People. The Routledge Handbook of Poverty in the United States. [Sem local]: Routledge; 2015.. De acordo com os trabalhos realizados e observações de campo, explicitou-se que as políticas e programas federais, estaduais e municipais de SAN que resistiram aos governos de 2016 a 2022 - Programa Bolsa Família, Programa Auxílio Brasil, Programa Leite das Crianças e distribuição de cestas básicas - foram determinantes para que a população do município de Piraquara não sofresse ainda mais com a privação total de alimento, com a fome.

Porém, mesmo com a existência desses programas e políticas, ressalta-se que poucos foram os estabelecimentos comerciais de vendas de produtos in natura identificados no território e que não há equipamentos públicos de SAN no município, como sacolão ou armazéns da família e restaurantes ou mercados populares, sendo uma barreira a ser enfrentada na garantia da SAN dessa população2929 Amancio LS, Retondario A. Insegurança alimentar e nutricional em crianças menores de cinco anos em vulnerabilidade social. [monografia]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2022.,3030 Schemiko LB, Lang RM, Retondario A, et al. Insegurança alimentar e nutricional de mulheres chefes de domicílio e o contexto socioeconômico, político e ambiental em que estão inseridas. [monografia]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2022.. Conforme mencionado por Swinburn et al.3535 Swinburn BA, Sacks G, Hall KD, et al. The global obesity pandemic: shaped by global drivers and local environments. Lancet. 2011; 378(9793):804-14., políticas públicas que objetivam modificar os ambientes alimentares têm um impacto mais amplo em comparação com programas de educação e promoção da saúde. Isso ocorre porque essas políticas afetam toda a população, são sustentáveis, têm uma abordagem sistêmica e são capazes de promover mudanças comportamentais significativas. Outra questão relevante é a intervenção em ambientes alimentares por meio de ações estatais, regulamentações, políticas públicas, programas e equipamentos, que moldam a composição dos ambientes e afetam o acesso a diferentes tipos de alimentos e estabelecimentos.

Os ambientes alimentares são imersos na dinâmica do sistema alimentar neoliberal e refletem as tendências do sistema político e econômico em vigência, produzindo ambientes obesogênicos. Esses ambientes reforçam o poder das corporações e aprofundam as desigualdades e iniquidades em saúde e nutrição. Diante desse padrão alimentar desigual, é importante planejar intervenções públicas focadas na promoção e concretização da equidade social e econômica. Para promover ambientes alimentares mais equitativos, é preciso implantar medidas de controle democrático na regulamentação e distribuição de recursos públicos. Isso é especialmente importante para garantir a disponibilidade de alimentos saudáveis3232 Paula NF. Os ambientes alimentares no âmbito do regime alimentar neoliberal: estudo de caso em Curitiba/Brasil. [tese]. Universidade Federal do Paraná. 2021..

O presente estudo possui algumas limitações que precisam ser destacadas, como a limitação territorial da pesquisa a duas UBS do município, o que se justifica pelo método de observação sistemática in loco77 Story M, Kaphingst KM, Robinson RB, et al. Creating Healthy Food and Eating Environments: Policy and Environmental Approaches. Annu Rev Public Health. 2008; 29:253-72., tornando-o mais oneroso do ponto de vista de recursos humanos, financeiros e de tempo88 Kelly B, Flood VM, Yeatman H. Measuring local food environments: An overview of available methods and measures. Health & amp; Place. 2011; 17(6):1284-93.. No entanto, as Unidades foram selecionadas na área de maior vulnerabilidade social do município, o que se procurou deixar claro no título e nos objetivos do trabalho. Outro ponto que merece ser trazido à luz é a ausência de dados sobre raça ou cor da população da área estudada.

A população negra, por um processo histórico de escravização e marginalização, tem acesso dificultado à educação formal, é submetida de maneira desigual a trabalhos precários, com menor renda, segregação em favelas e comunidades urbanas, o que coloca essas pessoas em situação vulnerável para a IAN3636 Ribeiro A, Gonçalvez E. bell hooks. Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. Cadernos de Linguagem e Sociedade. 2022; 23(2):329-32.,3737 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Suplemento II: Insegurança Alimentar e Desigualdades de raça/cor da pele e gênero. 2023. [acesso em 2024 jan 18]. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2023/06/OLHERacaEGenero-Diag-v7-R05-26-06-2023.pdf.
https://olheparaafome.com.br/wp-content/...
. Neste estudo, tendo em vista a metodologia de observação do ambiente em vez da coleta de dados com as pessoas que residem nesses territórios, não houve dados disponíveis sobre raça ou cor da população especificamente na região das UBS. Dados disponíveis dizem respeito ao município como um todo3838 Nascimento GP. A racialização do espaço urbano da cidade de Curitiba - PR. Geog Ens Pesq. 2021; 25:1-32., onde consta que, em 2022, 57,3% da população era branca e 6,7% era negra. Tendo em vista o processo de periferização da população negra e pobre3939 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Panorama: Censo demográfico 2022. [acesso em 2023 nov 13]. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/.
https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/...
e que o território em estudo se localiza em uma área de maior vulnerabilidade social do município, acredita-se que haja uma predominância de pessoas negras nessa localidade.

Como pontos fortes, pode-se ressaltar em primeiro lugar a escolha do método científico, que triangula informações obtidas por meio de ferramentas virtuais com a observação sistemática in loco, permitindo melhor expressão da realidade no período da coleta. Ainda, a representação gráfica dos estabelecimentos permite uma melhor visualização do espaço e da distribuição dos estabelecimentos no território.

Considerações finais

Observou-se um ambiente alimentar com predominância de estabelecimentos de alimentos não saudáveis, pequeno número de estabelecimentos que comercializam alimentos saudáveis e alta concentração de qualquer tipo de estabelecimento no entorno de duas principais vias da região, deixando grandes áreas com dificuldade de acesso ainda maior. Conhecer o ambiente alimentar no qual os indivíduos estão expostos é importante para o planejamento de ações em saúde e políticas públicas que atuam na garantia da SAN e do Direito Humano à Alimentação Adequada da população. É fundamental a criação de equipamentos de SAN no município que promovam o acesso físico e econômico a uma alimentação adequada e saudável, de qualidade, especialmente próximo às áreas onde se encontram famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

  • Suporte financeiro: Brasil. Ministério da Educação. Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    06 Fev 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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