Insegurança alimentar e nutricional e os comportamentos de risco e proteção para saúde em adolescentes durante a pandemia de covid-19

Crizian Saar Gomes Alanna Gomes da Silva Marilisa Berti de Azevedo Barros Célia Landmann Szwarcwald Deborah Carvalho Malta Sobre os autores

RESUMO

A pandemia de covid-19 reduziu o acesso aos alimentos e aumentou a insegurança alimentar. Objetivouse analisar a prevalência de Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN) em adolescentes brasileiros durante a pandemia de covid-19 segundo características sociodemográficas e examinar a associação entre IAN e comportamentos de risco e proteção em adolescentes brasileiros durante esse período. Estudo transversal com dados da ‘ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos’, realizada entre junho e outubro de 2020, utilizando-se um questionário autoaplicado por meio de celular ou computador. A população foi adolescentes de 12 a 17 anos, totalizando 9.470. Utilizou-se a Razão de Prevalência (RP) e Intervalo de Confiança de 95% (IC95%), por meio da regressão de Poisson com variância robusta. A prevalência de IAN (26,1%) foi mais elevada entre os adolescentes da raça/cor preta e parda e que estudam em escola pública. Os adolescentes que relataram IAN tiveram menor consumo de hortaliças e frutas, menor prática de atividade física e maior uso de cigarros e álcool. A IAN foi mais prevalente em adolescentes com piores condições socioeconômicas, e, adolescentes com IAN apresentaram maior frequência de comportamentos de risco para a saúde evidenciando a importância de políticas públicas intersetoriais para a redução de desigualdades.

PALAVRAS-CHAVES
Insegurança alimentar; Comportamentos de risco à saúde; Adolescente; Covid-19

Introdução

A Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN), entendida como a falta de acesso, regular e permanente, a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais11 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013. [acesso em 2022 set 19]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_alimentacao_nutricao.pdf.
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, constitui-se como um problema de saúde pública crítico e está condicionada, principalmente, a piores condições socioeconômicas22 Nascimento AL, Sousa ASL. Segurança alimentar e nutricional: pressupostos para uma nova cidadania? Cienc. Cult. 2010; 64(4):34-8.,33 Bezerra MS, Jacob MCM, Ferreira MAF, et al. Insegurança alimentar e nutricional no Brasil e sua correlação com indicadores de vulnerabilidade. Ciênc. saúde coletiva. 2020 [acesso em 2022 set 19]; 25(10):3833-3846. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232020001003833&tlng=pt.
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. Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares apontam que, no Brasil, em 2018, o percentual de domicílios com IAN foi de 36,7%44 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020. [acesso em 2022 set 19]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101749.pdf.
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, e em 2020, passou para 55,2% (116,8 milhões de brasileiros). Destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente, e 9% (19 milhões) vivenciaram IAN grave55 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Vigisan – Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil: insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil. [local desconhecido]: Rede Penssan; 2021. [acesso em 2022 set 19]. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf.
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.

A pandemia de covid-19 representa um desafio sanitário mundial que acarretou mudanças nos indicadores de saúde, piora nos padrões de saúde da população adulta e jovem66 Malta DC, Szwarcwald CL, Barros MBA, et al. A pandemia da COVID-19 e as mudanças no estilo de vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal, 2020. Epidemiol. Serv. Saúde. 2020 [acesso em 2023 jan 13]; 29(4):e2020407. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-96222020000400315&tlng=pt.
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,77 Malta DC, Gomes CS, Barros MBA, et al. The COVID-19 pandemic and changes in the lifestyles of Brazilian adolescents. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2023 jan 13]; 24:E210012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2021000100203&tlng=en.
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, além de ampliar a vulnerabilidade social e econômica. Esse cenário também contribuiu para a elevação nos preços dos alimentos, a diminuição da renda e o aumento do desemprego; e, por consequência, reduziu o acesso aos alimentos e aumentou a IAN e a fome88 Alpino TMA, Santos CRB, Barros DC, et al. COVID-19 e (in)segurança alimentar e nutricional: ações do Governo Federal brasileiro na pandemia frente aos desmontes orçamentários e institucionais. Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2023 jan 13]; 36(8):e00161320. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000805013&tlng=pt.
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,99 Santos LP, Schäfer AA, Meller FO, et al. Tendências e desigualdades na insegurança alimentar durante a pandemia de COVID-19: resultados de quatro inquéritos epidemiológicos seriados. Cad. Saúde Pública. 2021 [acesso em 2023 jan 13]; 37(5):e00268520. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2021000505003&tlng=pt.
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Estudos apontam que a IAN está associada a fatores de risco para saúde ao longo da vida, como o excesso de peso, dieta de baixa qualidade, uso de cigarros, bebidas alcóolicas e prática insuficiente de atividade física1010 Rocha NP, Milagres LC, Novaes JF, et al. Association between food and nutrition insecurity with cardiometabolic risk factors in childhood and adolescence: a systematic review. Rev. Paul. Pediatr. 2016 [acesso em 2023 jan 13]; 34(2):225-33. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S2359348216000075.
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,1111 Santana DD, Barros EG, Salles-Costa R, et al. Mudanças na prevalência de excesso de peso em adolescentes residentes em área de alta vulnerabilidade a insegurança alimentar. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2023 jan 13]; 26(12):6189-6198. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232021001206189&tlng=pt.
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,1212 Bergmans RS, Coughlin L, Wilson T, et al. Cross-sectional associations of food insecurity with smoking cigarettes and heavy alcohol use in a population-based sample of adults. Drug Alcohol Depend. 2019 [acesso em 2023 jan 13]; 205:107646. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0376871619304235.
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,1313 Gunter KB, Jackson J, Tomayko EJ, et al. Food insecurity and physical activity insecurity among rural Oregon families. Prev. Med. Rep. 2017 [acesso em 2023 jan 13]; 8:38-41. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S2211335517301183.
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No Brasil, até o momento, poucos estudos foram feitos sobre IAN e comportamentos de risco em adolescentes no cenário de pandemia. Ademais, é importante destacar que a maioria dos esforços de pesquisa e programas de IAN são direcionados a adultos e crianças, sendo os adolescentes com IAN um grupo negligenciado da população. No entanto, a adolescência é uma fase da vida definida pelo desenvolvimento físico, social e psicológico, quando as escolhas autônomas sobre o engajamento em comportamentos de saúde são formadas e, muitas vezes, continuam na idade adulta1414 Patton GC, Sawyer SM, Santelli JS, et al. Our future: a Lancet commission on adolescent health and wellbeing. Lancet. 2016 [acesso em 2023 jan 13]; 387(10036):2423-2478. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0140673616005791.
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. Por isso, entender essas relações em adolescentes em um contexto de aumento da vulnerabilidade e dos comportamentos de risco à saúde pode ajudar a orientar abordagens de prevenção e promoção que impactarão nos desfechos no presente e na idade adulta.

Nesse sentido, este estudo teve como objetivos: 1) analisar a prevalência de IAN em adolescentes brasileiros durante a pandemia de covid-19 segundo características sociodemográficas; 2) examinar a associação entre IAN e comportamentos de risco e proteção em adolescentes brasileiros durante a pandemia de covid-19.

Material e métodos

Delineamento do estudo

Estudo transversal com dados do inquérito de Saúde ‘ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos’.

Contexto

A ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos teve como objetivo analisar as mudanças ocorridas na vida dos adolescentes brasileiros no período de distanciamento social consequente à pandemia de covid-19 no Brasil.

A coleta de dados foi realizada no período de 27 de junho a 12 de outubro de 2020, utilizando-se um questionário de autopreenchimento por meio de celular ou computador com acesso à internet.

O método de amostragem utilizado foi a ‘bola de neve virtual’1515 Costa BRL. Bola de neve virtual: o uso das redes sociais virtuais no processo de coleta de dados de uma pesquisa científica. RIGS. 2018 [acesso em 2023 jan 13]; 7(1):15-37. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rigs/article/view/24649.
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, que iniciou pelo envio de convites da pesquisa a pais de adolescentes, que, após aceitarem a participação do(s) filho(s), convidaram outros pais pelas redes sociais, compondo a cadeia de recrutamento. Para iniciar a cadeia, os pesquisadores do estudo escolheram pesquisadores de diferentes estados do Brasil, com experiência prévia em estudos com adolescentes. Além disso, escolas públicas e privadas foram convidadas a participar por meio de um e-mail institucional da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). As escolas que decidiram participar da pesquisa enviaram os questionários eletrônicos aos seus alunos.

Em razão de a amostragem por redes não ser probabilística, foram realizadas ponderações calculadas por procedimentos de pós-estratificação a fim de obter a mesma distribuição dos adolescentes por região de residência, sexo, faixas etárias (12-15 anos; 16-17 anos) e tipos de escola (pública/privada), utilizando dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar 2015 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Maiores detalhes sobre a metodologia da pesquisa podem ser encontrados no site oficial da ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos(https://convid.fiocruz.br/).

Participantes

A população-alvo do estudo foi constituída por adolescentes de 12 a 17 anos residentes no Brasil durante a pandemia de covid-19. Participaram da pesquisa 9.470 adolescentes.

Variáveis

A IAN, foi avaliada a partir da pergunta: “alguma vez, houve a preocupação de que a comida acabasse antes que seus pais tivessem dinheiro para comprar mais?”. As opções de respostas eram: sim; não, não sei/não quero informar, sendo não sei/não quero informar agrupadas em ‘não’. Considerou-se IAN quando o adolescente respondeu ‘sim’.

Foram considerados comportamentos de risco ou proteção durante a pandemia as seguintes variáveis:

  1. Consumo regular de hortaliças: consumo de hortaliças em cinco ou mais dias da semana;

  2. Consumo regular de frutas: consumo de frutas em cinco ou mais dias da semana;

  3. Consumo regular de feijão: consumo de feijão em cinco ou mais dias da semana;

  4. Consumo regular de embutidos: consumo de embutidos (presunto, salame, mortadela, salsicha, linguiça ou hambúrguer) em cinco ou mais dias da semana;

  5. Consumo regular de congelados: consumo de alimentos congelados (pizza congelada ou lasanha congelada ou outro prato pronto congelado) em cinco ou mais dias da semana;

  6. Consumo regular de salgadinhos ‘de pacote’: consumo de salgadinhos ‘de pacote’ em cinco ou mais dias da semana;

  7. Consumo regular de doces: consumo de doces (chocolates, biscoitos doces, pedaços de torta) em cinco ou mais dias da semana;

  8. Consumo regular de achocolatado: consumo de achocolato em cinco ou mais dias da semana;

  9. Consumo regular de refrigerantes: consumo de refrigerante em cinco ou mais dias da semana;

  10. Prática de atividade física no lazer suficiente: prática de exercício físico por pelo menos uma hora em cinco ou mais dias por semana, ou seja, 300 minutos por semana. Ex.: praticar esportes, jogar bola, andar de bicicleta, caminhar, correr, aula de educação física, ir para escola caminhando ou de bicicleta;

  11. Comportamento sedentário: hábito de ficar três ou mais horas por dia sentado(a) assistindo televisão jogando videogame, usando computador, celular, tablet ou fazendo outras atividades sentado(a);

  12. Uso de cigarros: uso de cigarros, independentemente da quantidade;

  13. Consumo de bebidas alcoólicas: consumo de bebidas alcóolicas, independentemente da quantidade.

As variáveis sociodemográficas analisadas foram:

  1. Sexo: feminino; masculino;

  2. Faixas etárias: 12 a 15 anos; 16 a 17 anos;

  3. Raça/cor da pele: branca; preta; parda; outras;

  4. Tipo de escola: pública; privada.

Análises dos dados

Para a descrição dos dados, utilizaram-se frequência relativa e Intervalo de Confiança de 95% (IC95%). Inicialmente, foi estimada a prevalência de IAN segundo as variáveis sociodemográficas e analisada a associação a partir da Razão de Prevalência (RP) e IC95%, obtido por meio da regressão de Poisson com variância robusta. Posteriormente, foi estimada a prevalência dos comportamentos de risco entre aqueles que têm e não têm IAN, e verificada a associação por meio da RP (IC95%) bruta e ajustada por sexo, faixa etária, tipo de escola e raça/cor. Todas as análises foram realizadas utilizando o procedimento ‘svy’ (considerando os pesos pós-estratificação) adequado para análises de dados obtidos por plano amostral complexo no software Stata 15.1. O nível de significância adotado foi de 5%.

Aspectos éticos

Para que o adolescente respondesse ao questionário, era necessário que um dos pais, ou algum adulto responsável, aceitasse o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, em seguida, o adolescente também precisava aceitar o TCLE. Todas as respostas eram anônimas e sem qualquer tipo de identificação dos participantes.

A ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa para Seres Humanos do Ministério da Saúde (número do Parecer: 4.100.515 – CAAE: 30598320.1.0000.5241).

Resultados

Foram avaliados 9.470 adolescentes. Destes, 50,2% eram do sexo feminino, 67,7% tinham entre 12 e 15 anos de idade, 46,6% eram da raça/cor parda, 85,9 % estudavam em escolas públicas e 26,1% relataram IAN (tabela 1).

Tabela 1.
Insegurança alimentar segundo características sociodemográficas. ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos, 2020

A prevalência de IAN foi mais elevada entre os adolescentes da raça/cor preta (38,3%; RP: 1,94; IC95%: 1,63 – 2,30) e parda (29,3%; RP: 1,49; IC95%: 1,30 – 1,69) e que estudam em escola pública (28,7%; RP: 2,73; IC95%:2,29 – 3,25). Não houve diferença segundo sexo e faixa etária (tabela 1).

A tabela 2 apresenta a associação entre IAN e comportamentos de riscos para a saúde em adolescentes brasileiros. Os adolescentes que relataram IAN tiveram menor consumo regular de hortaliças (RPaj: 0,83; IC95%: 0,73 – 0,94) e frutas (RPaj: 0,85; IC95%: 0,75 – 0,96), menor prática de atividade física no lazer (RPaj: 0,79; IC95%: 0,65 – 0,95) e maior uso de cigarros (RPaj: 2,12; IC95%: 1,49 – 3,02) e bebidas alcóolicas (RPaj: 1,19; IC95%:1,01 – 1,40).

Tabela 2.
Comportamentos de risco e proteção segundo presença de insegurança alimentar e nutricional. ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos, 2020

Discussão

Dos adolescentes avaliados neste estudo, 26,1% relataram IAN, sendo mais elevado entre aqueles de cor da pele preta e parda, estudantes de escolas públicas e moradores da região Sudeste. A IAN foi associada com um menor consumo de frutas e hortaliças, prática insuficiente de atividade física no lazer, tabagismo e consumo de bebidas alcóolicas.

A prevalência de IAN foi alta entre os adolescentes, sugerindo que uma parcela significativa dos adolescentes brasileiros não tem apresentado o direito à alimentação adequada garantido. Em 2014, a saída do Brasil do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) foi um marco mundialmente reconhecido no caminho à promoção do direito humano à alimentação adequada e saudável1616 Food and Agriculture Organization. The State of Food Insecurity in the World. Rome: FAO; 2014. [acesso em 2023 jan 12]. Disponível em: https://www.fao.org/3/i4030e/i4030e.pdf.
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. No entanto, com as medidas de austeridade, desmonte das políticas de combate à fome, em 2018, o Brasil voltou ao mapa da fome1717 Food and Agriculture Organization of the United Nations. The State of Food Security and Nutrition in the World (SOFI). Rome: FAO; 2021. [acesso em 2023 jan 12]. Disponível em: https://www.fao.org/3/cb4474en/cb4474en.pdf.
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. Além disso, a situação pode ter sido agravada pela pandemia de covid-19 em 20201818 The Lancet Global Health. Food insecurity will be the sting in the tail of COVID-19. Lancet Glob Health. 2020 [acesso em 2023 jan 12]; 8(6):e737. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S2214109X2030228X.
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. Relatório global sobre crises alimentares estimava que o número de pessoas vivendo em situação de IAN poderia dobrar em 2020 na comparação com 2019, por causa da crise econômica ocasionada pela pandemia de covid-191818 The Lancet Global Health. Food insecurity will be the sting in the tail of COVID-19. Lancet Glob Health. 2020 [acesso em 2023 jan 12]; 8(6):e737. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S2214109X2030228X.
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,1919 Food and Agriculture Organization of the United Nations. The State of Food Security and Nutrition in the World 2022. Repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: FAO; 2022. [acesso em 2022 set 19]. Disponível em: https://www.fao.org/documents/card/en/c/cc0639en.
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.

A IAN foi maior nos adolescentes de raça/ cor preta e parda e nos estudantes de escola pública. Ao considerar raça/cor preta e parda e escola pública como proxy de pior condição socioeconômica e maior vulnerabilidade, esses achados evidenciam a desigualdade no acesso à alimentação. A literatura evidencia piores condições de saúde e de trabalho, menores salários, menor renda, maiores probabilidades de pobreza e menor acesso aos serviços de saúde em função da raça ou cor da pele, especialmente entre os indivíduos da raça/cor preta e parda2020 Malta DC, Moura L, Bernal RTI. Differentials in risk factors for chronic non-communicable diseases from the race/color standpoint. Ciênc. saúde coletiva. 2015; 20(3):713-725.,2121 Silva SO, Santos SMC, Gama CM, et al. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade. Cad. Saúde Pública. 2022; 38(7):e00255621.,2222 Cabral U. Pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso a emprego, educação, segurança e saneamento. Agência IBGE de Notícias. 2022 nov 11. [acesso em 2023 jan 12]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467-pessoas-pretas-e-pardas-continuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-e-saneamento.
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/ag...
,2323 Saraiva A. Trabalho, renda e moradia: desigualdades entre brancos e pretos ou pardos persistem no país. Agência IBGE de Notícias. 2020 nov 12. [acesso em 2023 jan 12]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/29433-trabalho-renda-e-moradia-desigualdades-entre-brancos-e-pretos-ou-pardos-persistem-no-pais. 2020.
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. Dados nacionais, considerando o contexto da pandemia, evidenciaram que os domicílios chefiados por pretos e pardos sofreram mais com a falta de alimentos, com a fome e com a insegurança alimentar moderada ou grave2424 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. II Vigisan – Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Vol. 1. São Paulo: Rede Penssan; 2022..

No que se refere a maior prevalência de IAN em adolescentes de escolas públicas, isso também está relacionado com as condições socioeconômicas. No Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar assegura a oferta de uma alimentação adequada e saudável, garantindo a segurança alimentar e nutricional, em conjunto com ações de educação em saúde aos estudantes da rede pública de ensino2525 Brasil. Ministério da Educação. Programa Nacional de Alimentação Escolar. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2024.. Contudo, durante a pandemia, houve a interrupção das atividades educacionais em decorrência da emergência sanitária do País. Nessa conjuntura, como a alimentação ofertada nas escolas, muitas vezes, é a única refeição completa a que os alunos podem ter acesso, o isolamento social limitou o acesso aos alimentos e, consequentemente, aumentou a insegurança alimentar e a fome2626 Frutuoso MFP, Viana CVA. Quem inventou a fome são os que comem: da invisibilidade à enunciação – uma discussão necessária em tempos de pandemia. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200256.. Assim, os adolescentes mantiveram-se em casa e foram expostos ao maior risco de insegurança alimentar.

Os resultados do presente estudo mostram que os comportamentos de risco para saúde durante a pandemia foram mais prevalentes em adolescentes que relataram IAN. As associações significativas entre adolescentes com relato de IAN e menor consumo de frutas e hortaliças podem ser explicadas pela impossibilidade financeira de compra, visto que esses são alimentos caros2727 Claro RM, Monteiro CA. Renda familiar, preço de alimentos e aquisição domiciliar de frutas e hortaliças no Brasil. Rev. Saúde Pública. 2010 [acesso em 2023 jan 12]; 44(6):1014-1020. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034=89102010000600005-&lng=pt&tlngpt.
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. As frutas e as hortaliças são fatores protetores para as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) por conterem nutrientes fundamentais para a saúde, como vitaminas, minerais e fibras. No entanto, o seu consumo é fortemente influenciado por fatores econômicos, como a renda familiar e o preço dos alimentos2727 Claro RM, Monteiro CA. Renda familiar, preço de alimentos e aquisição domiciliar de frutas e hortaliças no Brasil. Rev. Saúde Pública. 2010 [acesso em 2023 jan 12]; 44(6):1014-1020. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034=89102010000600005-&lng=pt&tlngpt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
. No Brasil, no período pré-pandemia, já se observava a redução do consumo desses alimentos em decorrência da crise econômica e da implementação de políticas de austeridade2828 Silva AG, Teixeira RA, Prates EJS, et al. Monitoramento e projeções das metas de fatores de risco e proteção para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis nas capitais brasileiras. Ciênc. saúde coletiva. 202; 26(4):1193-1206., e durante a pandemia, houve redução da alimentação saudável em adultos e adolescentes brasileiros66 Malta DC, Szwarcwald CL, Barros MBA, et al. A pandemia da COVID-19 e as mudanças no estilo de vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal, 2020. Epidemiol. Serv. Saúde. 2020 [acesso em 2023 jan 13]; 29(4):e2020407. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-96222020000400315&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
,77 Malta DC, Gomes CS, Barros MBA, et al. The COVID-19 pandemic and changes in the lifestyles of Brazilian adolescents. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2023 jan 13]; 24:E210012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2021000100203&tlng=en.
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Um estudo realizado com a população adulta dos Estados Unidos da América durante a pandemia também revelou que indivíduos com insegurança alimentar consumiam frutas e vegetais menos vezes por dia e que eles eram mais propensos a perceberem o custo como uma barreira para comer frutas e vegetais2929 Litton MM, Beavers AW. The Relationship between Food Security Status and Fruit and Vegetable Intake during the COVID-19 Pandemic. Nutrients. 2021 [acesso em 2023 jan 12]; 13(3):712. Disponível em: https://www.mdpi.com/2072-6643/13/3/712.
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. Esses resultados destacam a necessidade de uma assistência alimentar adequada e de estabelecer um conjunto de políticas macroeconômicas para superação da IAN, que promova melhores condições de renda, redução nos preços dos alimentos e da pobreza.

Os adolescentes que reportaram IAN apresentaram menores práticas de atividade física e maior comportamento sedentário. A associação entre IAN e inatividade física também foi encontrada em outros estudos1313 Gunter KB, Jackson J, Tomayko EJ, et al. Food insecurity and physical activity insecurity among rural Oregon families. Prev. Med. Rep. 2017 [acesso em 2023 jan 13]; 8:38-41. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S2211335517301183.
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,3030 Fram MS, Ritchie LD, Rosen N, et al. Child experience of food insecurity is associated with child diet and physical activity. J. Nutr. 2015 [acesso em 2023 jan 12]; 145(3):499-504. Disponível em: https://academic.oup.com/jn/article/145/3/499/4743692.
https://academic.oup.com/jn/article/145/...
. Contudo, essa relação ainda é pouco evidenciada na literatura, o que necessitaria de mais pesquisas que expliquem os mecanismos fisiológicos e psicológicos que podem estar envolvidos nessa associação. Uma possível explicação para esse achado é devido à alta densidade energética que a atividade física demanda, e os indivíduos com IAN, pela escassez de alimentos e nutrientes, sentem-se indispostos para praticar atividade física3030 Fram MS, Ritchie LD, Rosen N, et al. Child experience of food insecurity is associated with child diet and physical activity. J. Nutr. 2015 [acesso em 2023 jan 12]; 145(3):499-504. Disponível em: https://academic.oup.com/jn/article/145/3/499/4743692.
https://academic.oup.com/jn/article/145/...
,3131 To QG, Frongillo EA, Gallegos D, et al. Household food insecurity is associated with less physical activity among children and adults in the U.S. population. J. Nutr. 2014 [acesso em 2023 jan 12]; 144(11):1797-1802. Disponível em: https://academic.oup.com/jn/article/144/11/1797/4615281.
https://academic.oup.com/jn/article/144/...
. Estudos também apontam que a atividade física entre adolescentes se associa com maior escolaridade dos pais, maior renda e melhores condições socioeconômicas3232 Hallal PC, Knuth AG, Cruz DKA, et al. Prática de atividade física em adolescentes brasileiros. Ciênc. saúde coletiva. 2010; 15(supl2):3035-3042.. Ademais, ao considerar o cenário de pandemia, a maior parte dos adolescentes se manteve em isolamento social sem a realização de atividades físicas e sem interação com os amigos77 Malta DC, Gomes CS, Barros MBA, et al. The COVID-19 pandemic and changes in the lifestyles of Brazilian adolescents. Rev. Bras. Epidemiol. 2021 [acesso em 2023 jan 13]; 24:E210012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2021000100203&tlng=en.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
.

Os resultados também mostraram maior hábito de fumar e uso de bebidas alcóolicas em adolescentes que reportaram IAN. O fumo e o consumo de bebidas alcoólicas são fatores de riscos para a saúde, incluindo as DCNT3333 Malta DC, Morais Neto OL, Silva Junior JB. Apresentação do plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2011 a 2022. Epidemiol. Serv. Saúde. 2011; 20(4):425-438.. Um período de crise, seja econômica ou sanitária, pode predispor ao aumento desses hábitos devido às influências do tabaco e do álcool no estado de ânimo do indivíduo, ocasionando a sensação de alívio do estresse, da angústia e da tristeza3434 Petrelli F, Grappasonni I, Peroni A, et al. Survey about the potential effects of economic downturn on alcohol consumption, smoking and quality of life in a sample of Central Italy population. Acta Biomed. 2018; 89(1):93-98.,3535 Goeij MCM, Suhrcke M, Toffolutti V, et al. How economic crises affect alcohol consumption and alcohol-related health problems: A realist systematic review. Soc. Sci. Med. 2015 [acesso em 2023 jan 12]; 131:131-146. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0277953615001082.
https://linkinghub.elsevier.com/retrieve...
. Como determinante social da saúde, a IAN tem uma relação complexa com outros fatores sociais e econômicos nos níveis individual e coletivo que influenciam o comportamento de saúde, incluindo o uso de substâncias3636 Adler NE, Glymour MM, Fielding J. Addressing Social Determinants of Health and Health Inequalities. JAMA. 2016 [acesso em 2023 jan 12]; 316(16):1641. Disponível em: http://jama.jamanetwork.com/article.aspx?doi=10.1001/jama.2016.14058.
http://jama.jamanetwork.com/article.aspx...
. Além disso, estudos evidenciam que os indivíduos com IAN priorizam a compra de alimentos não nutritivos, como álcool e tabaco, o que pode ser explicado pela falta de recursos para planejar, priorizar e viver a própria vida3737 Kim-Mozeleski JE, Pandey R. The Intersection of Food Insecurity and Tobacco Use: A Scoping Review. Health Promot. Pract. 2020 [acesso em 2023 jan 12]; 21(1_suppl):124S-138S. Disponível em: http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1524839919874054.
http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/...
,3838 Bjerregaard P, Olesen I, Larsen CVL. Association of food insecurity with dietary patterns and expenditure on food, alcohol and tobacco amongst indigenous Inuit in Greenland: results from a population health survey. BMC Public Health. 2021 [acesso em 2023 jan 12]; 21(1):1094. Disponível em: https:// bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889021-11123-x.
https:// bmcpublichealth.biomedcentral.c...
. Os resultados também reforçam a importância das ações de promoção da saúde direcionadas à adoção ou manutenção de comportamentos saudáveis, bem como as estratégias para a prevenção do uso do tabaco e álcool e a promoção da cessação do fumo e do alcoolismo.

É importante destacar algumas limitações deste estudo. Primeiro, o uso de um questionário virtual pode não atingir todos os estratos populacionais, visto que nem todos têm acesso à internet, levando à sub ou superestimação da proporção dos indicadores; no entanto, essa limitação foi minimizada em razão do uso da ponderações pós-estratificação. Segundo, a pesquisa verificou apenas a frequência de consumo dos alimentos na dieta dos adolescentes, e não a quantidade. Terceiro, a IAN foi avaliada por apenas uma questão, e esta não foi especificamente para o período da pandemia, dessa forma, novos estudos utilizando escalas validadas são importantes e necessários.

A ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos foi uma das primeiras pesquisas a avaliar em todo o País temas como alimentação, atividade física, tabaco, álcool, saúde mental e distanciamento social na pandemia, possibilitando analisar determinantes da IAN nesse grupo etário em momento tão singular no Brasil e no mundo.

Conclusões

A IAN esteve presente em 26,1% dos adolescentes brasileiros e foi mais prevalente em adolescentes de piores condições socioeconômicas. Os adolescentes com IAN apresentaram maior frequência de comportamentos de risco para a saúde, como menor consumo de frutas e hortaliças, prática insuficiente de atividade física no lazer, tabagismo e consumo de bebidas alcóolicas.

Esses resultados indicam a importância de uma assistência adequada, com a integração de políticas públicas intersetoriais para a redução de desigualdades socioeconômicas que se agravaram ainda mais com a pandemia de covid-19 e o fortalecimento das medidas de proteção e de promoção da saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de Pós-Doutorado Júnior de Alanna Gomes da Silva e de produtividade de Deborah Carvalho Malta.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2023
  • Aceito
    22 Mar 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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