O trabalho das equipes de saúde bucal na pandemia da covid-19 segundo gestores de saúde

The work of oral health teams in the COVID-19 pandemic according to health managers

Juliane Fagundes Liliane Elze Falcão Lins Kusterer Marcela Beatriz Aguiar Moreira Adeilda Ananias de Lima Julie Eloy Kruschewsky Erica Lima Costa de Menezes Fernando Martins Carvalho Sobre os autores

RESUMO

Este estudo objetivou caracterizar o trabalho dos profissionais das equipes de saúde bucal da rede pública na pandemia da covid-19 do ponto de vista dos gestores. Trata-se de um estudo quantitativo-qualitativo, com 163 gestores municipais de saúde da Bahia, que responderam a um questionário virtual, de junho a outubro de 2020. Foi realizada análise descritiva dos dados quantitativos utilizando o Statistical Package for the Social Science, e Análise Temática das respostas subjetivas, com auxílio do IRaMuTeQ. Um escopo de atuação das equipes de saúde bucal, que atuam em todos os níveis de atenção à saúde, foi reconhecido como mais abrangente que o tradicional nesse período. A pandemia deu ênfase às fragilidades crônicas nas condições de trabalho dos cirurgiões-dentistas, técnicos e auxiliares de saúde bucal da rede pública, como a insuficiência de instrumentais odontológicos e de insumos, a precária manutenção dos equipamentos odontológicos, a fragilidade dos vínculos empregatícios e a estrutura física inadequada nas unidades de saúde, comprometendo a biossegurança. Assim, abre-se uma oportunidade para identificar e implementar mudanças necessárias não apenas no contexto de crise sanitária, mas também no período pós-pandemia.

PALAVRAS-CHAVES
Equipe de saúde bucal; Dentistas; Covid-19; Recursos humanos em odontologia; Saúde bucal

ABSTRACT

This study aimed to characterize the work of professionals from oral health teams in the public service, in the COVID-19 pandemic, from the point of view of managers. This is a cross-sectional, quantitative-qualitative study, with 163 municipal health managers in Bahia, who answered a virtual questionnaire, from June to October 2020. The descriptive analysis of the quantitative data was performed using the Statistical Package for the Social Science, and Thematic Analysis was applied to the subjective responses, using IRaMuTeQ. The scope of action of oral health teams, which operate at all levels of health care, was recognized as broader than the traditional in this period. The pandemic emphasized the chronic problems in the working conditions of dentists, technicians, and oral health assistants in the public service, such as the lack of dental instruments and supplies, the precarious maintenance of dental equipment, the fragility of employment relationships, and the inadequate physical structure in the health units, compromising biosecurity. Thus, there is an opportunity to identify and implement necessary changes not only in the context of a health crisis, but in the post-pandemic period.

KEYWORDS
Dental care team; Dentists; COVID-19; Dental staff; Oral health

Introdução

A atuação de Cirurgiões-Dentistas (CD), Auxiliares e Técnicos em Saúde Bucal (ASB e TSB) no Sistema Único de Saúde (SUS) está prevista na Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB)11 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Atenção Básica. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. e na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 22 Set 2017. [acesso em 2023 julho 7]. Disponível em: http://www.brasilsus.com.br/index.php/legislacoes/gabinete-do-ministro/16247-portaria-n-2-436-de-21-de-setembro-de-2017.
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. É esperada a presença das equipes de Saúde Bucal (eSB) tanto na Atenção Primária à Saúde (APS), incluindo a Estratégia Saúde da Família – ESF (equipes de modalidade I: CD e ASB ou TSB; e equipes na modalidade II: CD, TSB e ASB, ou outro TSB), quanto na Atenção Secundária e Terciária11 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Atenção Básica. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004.. Na região Nordeste, a Bahia atualmente representa o segundo estado com menor cobertura de Saúde Bucal (SB) no âmbito da APS33 SISAB: Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica. Versão 3.2.1.2. Brasília, DF: DATASUS; [data desconhecida]. [acesso em 2023 jul 7]. Disponível em: https://sisab.saude.gov.br/.
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Em 2023, a PNSB foi incluída na Lei Orgânica da Saúde, ratificando a obrigatoriedade e a garantia dos serviços de SB para todos. A atuação desses profissionais não se limita ao consultório odontológico, eles apresentam vastas atribuições à equipe multiprofissional, norteadas pelo Modelo de Vigilância em Saúde44 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 14.572, de 8 de maio de 2023. Institui a Política Nacional de Saúde Bucal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para incluir a saúde bucal no campo de atuação do SUS. Diário Oficial da União. 9 Maio 2023. [acesso em 2023 ago 7]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14572.htm.
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Para exercerem suas atividades, os trabalhadores das eSB necessitam de condições de trabalho adequadas. Estudos têm demonstrado falta de ações de educação permanente que qualifiquem os profissionais nos serviços, espaço físico inadequado para realização das atividades, demanda reprimida de usuários, fragilidade na articulação da rede, cenário desfavorável para o trabalho multiprofissional, longas jornadas de trabalho e vínculo empregatício precário55 Rocha ECA, Araújo MAD. Condições de trabalho das equipes de saúde bucal no Programa Saúde da Família: o caso do Distrito Sanitário Norte em Natal, RN. RAP. 2009; 43(2):481-517.,66 Gonçalves ER, Ramos FRS. O trabalho do cirurgião-dentista na estratégia de saúde da família: potenciais e limites na luta por um novo modelo de assistência. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):301-14.,77 Bleicher L. Precarização do trabalho do cirurgião-dentista na cidade de Salvador, Bahia. RBSP. 2012; 36(3):668-82..

Embora tais estudos evidenciem precarização do trabalho e esgotamento dos CD, sob sua perspectiva, poucos abordaram sobre os demais profissionais das eSB e a opinião dos gestores diante dessa temática. A pandemia da covid-19 exigiu mudanças na forma de ofertar cuidado em SB e contribuiu para direcionar o olhar dos gestores da saúde para as condições de trabalho de CD, TSB e ASB no amplo campo de atuação do SUS. Nesse recorte histórico, destaca-se a importância do trabalho das eSB pautado na integralidade e na extrapolação da atuação no consultório odontológico, atribuições anteriormente pouco reconhecidas88 Leme PAT, Bastos RA, Turato ER, et al. A clínica do dentista na Estratégia Saúde da Família: entre a inovação e o conservadorismo. Physis. 2019; 29(1):e290111..

Este estudo objetivou caracterizar o trabalho dos profissionais das eSB da rede pública do estado da Bahia, no contexto da covid-19, segundo o ponto de vista dos gestores de saúde.

Metodologia

Realizou-se um estudo quantiqualitativo com 163 gestores de saúde vinculados ao serviço público de SB (um de cada município) no universo dos 417 municípios da Bahia. O critério de inclusão na pesquisa foi ocupar o cargo de gestor municipal responsável pelos serviços públicos de SB, independentemente do tempo de experiência. Foram contactados preferencialmente os Coordenadores de Saúde Bucal (incluindo todos os níveis de atenção); na ausência desse cargo no município, outros Coordenadores de Saúde e Secretários Municipais de Saúde foram contactados. Foram excluídos gestores que não manifestaram interesse em participar do estudo ou que não conseguiram ser contatados por telefone ou e-mail.

Diante da pandemia, os gestores responderam a um questionário virtual, enviado por e-mail disponibilizado pela Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), de junho a outubro de 2020. Houve empenho no contato por telefone e reenvio do questionário por e-mail para os não respondentes.

Os dados foram coletados em um questionário semiestruturado composto por questões objetivas e discursivas relativas ao período dos primeiros meses da pandemia da covid-19. Posteriormente, esses dados foram disponibilizados pela Área Técnica de Saúde Bucal da Sesab, em parceria com o Telessaúde-Bahia, programa de qualificação e suporte aos profissionais da APS com Teleconsultorias, Teleducação e Telediagnóstico. Esses dados secundários foram complementados com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM, porte populacional dos municípios) e da plataforma e-Gestor da Atenção Básica (cobertura de SB na APS e na ESF).

Na abordagem quantitativa, realizou-se um estudo transversal, de caráter descritivo e exploratório, utilizando variáveis relacionadas a: a) caracterização dos gestores (sexo, categoria profissional, cargo); b) caracterização dos municípios (Núcleo Regional de Saúde – NRS, porte populacional, IDHM, cobertura pela SB); c) organização dos serviços odontológicos em todos os pontos da rede de atenção à SB nos primeiros meses da pandemia (serviços de SB ofertados no município, suspensão dos atendimentos odontológicos eletivos, manutenção dos procedimentos de urgência/emergência); d) conhecimento dos gestores sobre documentos institucionais/governamentais relacionados com o enfrentamento da pandemia da covid-19; elaboração de protocolos para retomada dos atendimentos odontológicos eletivos e ações coletivas; e e) condições de trabalho dos profissionais das eSB: alocação em ações de enfrentamento da covid-19; capacitação sobre covid-19; jornada de trabalho; vínculo empregatício; testagem para covid-19; oferta de cuidado à saúde mental; afastamento laboral por contaminação, saúde mental, ou condição de risco; disponibilidade de Equipamentos de Proteção Individual (EPI); estrutura física dos consultórios odontológicos; e presença de equipamentos para reduzir a contaminação nos consultórios odontológicos.

Ademais, questões discursivas possibilitaram uma abordagem qualitativa. Foram feitas questões abertas dentro de um questionário estruturado considerando: fatores essenciais para o retorno dos atendimentos odontológicos eletivos, serviços odontológicos ofertados e ações das eSB, estratégias para realização das atividades de educação em saúde e desafios enfrentados relativos aos oito primeiros meses da pandemia da covid-19.

Foi utilizado o Statistical Package for the Social Science (versão 25) para análise descritiva dos dados quantitativos, calculando medidas de frequência absoluta e relativa, pois trabalhou-se com variáveis categóricas. Para análise textual das respostas discursivas, foi realizada a técnica de Análise Temática, identificando núcleos de sentido das palavras99 Bardin L. Análise de Conteúdo. 70. ed. Lisboa: LDA; 2011.,1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento-pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec; 2020.. O software IRaMuTeQ – Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires – (versão 4.1.3) contribuiu para essa categorização dos discursos dos participantes, a partir da análise lexical do corpus textual e Classificação Hierárquica Descendente (CHD)1111 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software de análise textual IRAMUTEQ. Porto Alegre: Universidade Federal de Santa Catarina; 2013..

Os dados foram coletados e disponibilizados pela Área Técnica de SB da Sesab, em parceria com o Telessaúde-Bahia, a partir do Projeto de Pesquisa ‘Telessaúde no estado da Bahia durante e após a pandemia da COVID-19: qualificação do cuidado sob os olhares da gestão, trabalhadores e usuários do SUS’. Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, sob parecer número 5.244.784 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) número 55626722.0.0000.5577. Os gestores municipais tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) digital e o assinaram remotamente.

Resultados e discussão

Dos 417 gestores responsáveis pelos serviços de SB da rede pública na Bahia (um de cada município), no ano de 2020, 163 participaram do estudo. Ainda que a taxa de respondentes represente 39,1% do universo populacional esperado, esse quantitativo pode ser considerado satisfatório diante do contexto atípico de pandemia.

Quanto às características dos gestores, 75,5% eram do gênero feminino, 78,9% eram graduados em odontologia, os demais tinham formação em educação física, farmácia, enfermagem (graduação e técnico) e assistência social; 72% eram coordenadores municipais de SB; e 9,9%, além de assumirem esse cargo, atuavam como CD na assistência da rede pública.

A feminilização da odontologia reflete no perfil dos coordenadores de SB1212 Silva Sobrinho AR, Carvalho ILD, Coelho Júnior LGMT, et al. Perfil dos Coordenadores de Saúde Bucal no Brasil: revisão de literatura. Arch. Health Investig. 2020; 9(5):479-84.,1313 Rodrigues QF, Dias VO, Barbosa MC, et al. Public oral health services: impacts caused by the COVID-19 pandemic. Braz. Oral Res. 2022; 36:e032.. Nem todos os municípios apresentam esse cargo, cujas atribuições são: consolidar serviços odontológicos e sua articulação em rede; coordenar recursos humanos de SB com atenção às suas condições e processo de trabalho na assistência, garantindo humanização para trabalhadores e usuários1212 Silva Sobrinho AR, Carvalho ILD, Coelho Júnior LGMT, et al. Perfil dos Coordenadores de Saúde Bucal no Brasil: revisão de literatura. Arch. Health Investig. 2020; 9(5):479-84.. Há expectativa de que gestores de SB com formação em saúde, especificamente em odontologia, apresentem melhor capacidade técnica e sensibilidade diante das necessidades das eSB e da SB populacional. Todavia, é necessário preparo para o exercício desse cargo, com o desenvolvimento de competências envolvendo gestão participativa, planejamento estratégico em saúde, educação permanente e formação cidadã abrangente aos aspectos de relevância social1212 Silva Sobrinho AR, Carvalho ILD, Coelho Júnior LGMT, et al. Perfil dos Coordenadores de Saúde Bucal no Brasil: revisão de literatura. Arch. Health Investig. 2020; 9(5):479-84.,1414 Bizerril DO, Lima Júnior FCM, Saraiva MM, et al. Coordenadores de saúde bucal: percepção sobre gestão e competências no Sistema Único de Saúde. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9273..

Dos 163 municípios com gestores participantes da pesquisa, aproximadamente 86% eram de pequeno porte (número de habitantes < 50 mil)1515 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de informações básicas municipais. [Rio de Janeiro]: IBGE; 2017. [acesso em 2023 jul 7]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/10586-pesquisa-de-informacoes-basicas-municipais.html?=&t=downloads.
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, e 57,1% apresentavam baixo IDHM (≥ 0,5 e < 0,6)1616 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Índice de Desenvolvimento Humano Municipal Brasileiro. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Brasília, DF: PNUD, IPEA, FJP; 2013.. Municípios de pequeno porte geralmente apresentam dificuldades na gestão do SUS, devido a menor capacidade técnica e administrativa dos gestores municipais para cumprir suas atribuições diante da descentralização, além do poder limitado de decisão nos espaços de governança e menor arrecadação fiscal1717 Pinafo E, Nunes EFPA, Carvalho BG, et al. Problemas e estratégias de gestão do SUS: a vulnerabilidade dos municípios de pequeno porte. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(5):1619-28.. Mesmo que o IDHM não seja um indicador específico para avaliar os esforços dos municípios em transformar o orçamento público em melhores condições de vida à população (longevidade/saúde, educação e renda), ele reflete o resultado do processo1818 Bohn L, Ervilha GT, Dalberto CR. A eficiência pública municipal como dimensão do desenvolvimento. PPP. 2020; (56):11-39..

A Bahia apresenta nove NRS, cujo maior percentual de gestores participantes foi do NRS Sudoeste (20,9%), seguido do Sul (20,2%). De acordo com os respondentes, as eSB estiveram presentes em 98,2% dos municípios na APS; e em 65,6% deles, no período da pesquisa, toda a população estava coberta pelos serviços de SB nesse nível de atenção à saúde33 SISAB: Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica. Versão 3.2.1.2. Brasília, DF: DATASUS; [data desconhecida]. [acesso em 2023 jul 7]. Disponível em: https://sisab.saude.gov.br/.
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. Entretanto, o percentual de municípios com eSB na atenção especializada (19% apresentavam pelo menos um CEO tipo I) e hospitalar (6,1%) era muito inferior. Os NRS Sudoeste e Sul ocupam o segundo (73,33%) e o quinto lugar (60,36%), respectivamente, de maior cobertura populacional pela SB na ESF do estado1919 Bahia. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Cobertura populacional estimada pelas Equipes de Atenção Básica. Caderno de Avaliação e Monitoramento da Atenção Básica – CAMAB. Salvador: Sesab; 2020. [acesso em 2023 jul 3]. Disponível em: https://www.saude.ba.gov.br/atencao-a-saude/dab/camab/.
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. Os últimos dados do Ministério da Saúde (MS) apontam cobertura nacional pela SB na APS de 56,61%, e de 71,35% na Bahia33 SISAB: Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica. Versão 3.2.1.2. Brasília, DF: DATASUS; [data desconhecida]. [acesso em 2023 jul 7]. Disponível em: https://sisab.saude.gov.br/.
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. Houve expansão da rede assistencial de SB ao longo dos anos na APS; diferentemente, a atenção secundária e a atenção terciária não acompanharam esse movimento crescente66 Gonçalves ER, Ramos FRS. O trabalho do cirurgião-dentista na estratégia de saúde da família: potenciais e limites na luta por um novo modelo de assistência. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):301-14.,2020 Narvai PC. Avanços e desafios da Política Nacional de Saúde Bucal no Brasil. Tempus. 2011; 5(3):21-34.,2121 Mattos GCM, Ferreira EF, Leite ICG, et al. A inclusão da equipe de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: entraves, avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(2):373-82..

Os resultados da análise qualitativa complementam os da análise quantitativa. Dos 119 segmentos de texto (principal unidade de análise do corpus textual, composta em média por três linhas, dimensionadas pelo software em função do tamanho do corpus), 93 (78,15%) foram aproveitados. Considera-se um bom aproveitamento quando o índice é ≥ 75%1111 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software de análise textual IRAMUTEQ. Porto Alegre: Universidade Federal de Santa Catarina; 2013..

A análise temática ou de conteúdo, com o auxílio do IRaMuTeQ, revelou seis classes (figura 1). A associação entre esses núcleos de sentido, analisada a partir da CHD, destaca a classe 2, referente às estratégias de atuação das eSB durante a pandemia da covid-19 e sua hierarquia diante das demais classes, mas especificamente sobre a seis. A classe 6 explicita alterações no fluxo da rede de atenção à SB e encontra-se diretamente superior à classe 1, que evidencia recomendações quanto ao funcionamento dos serviços odontológicos. Hierarquicamente inferior e intimamente associada à classe 1, está a cinco, demonstrando dificuldades para o cumprimento dessas recomendações, como a falta de suporte de gestores municipais e de outras instâncias. Ao final, a classe 5 foi subdividida nas classes 4 e 3, caracterizadas, respectivamente, pelas condições de trabalho que inviabilizavam a realização de procedimentos/atendimentos eletivos, e as condições de trabalho necessárias para possível retorno deles, justificando e corroborando as medidas restritivas para a odontologia no período. As seis classes variaram de 14% a 21,5%, contribuindo de maneira aproximadamente uniforme (figura 1).

Figura 1.
Dendrograma da Classificação Hierárquica Descendente do corpus textual da opinião de gestores sobre o trabalho das equipes de saúde bucal durante a pandemia da covid-19, Bahia, 2020

A classe com maior representação no corpus textual foi a 2 (21,5%). Nela, identifica-se amplo campo de atuação das eSB, extrapolando o consultório odontológico. Nesse quesito, foram destacados o suporte desses profissionais às equipes de saúde da família e a oferta de atividades de educação em saúde para a população, por intermédio de meios digitais, como redes sociais, videoconferências e panfletos. Ademais, evidenciaram-se a vivência da educação permanente pelos trabalhadores e a realização de ações de vigilância em saúde, como monitoramento dos casos da covid-19 por call center, apoio em barreiras sanitárias, em visitas domiciliares, nas campanhas de vacinação, na organização dos serviços em feiras livres e no cuidado às gestantes (figura 1).

Elementos relacionados com o trabalho multiprofissional e integrado ficaram mais evidentes na análise qualitativa. Analogamente, a análise quantitativa possibilitou dimensionar que 88,2% dos gestores reconheceram a participação das eSB nas ações de enfrentamento da covid-19. O trabalho em barreiras sanitárias (71,2%), o apoio à gestão dos serviços de saúde (62,6%) e os monitoramentos, as notificações e as ações contribuintes com a vigilância epidemiológica (59,5%) tiveram destaque (tabela 1).

Tabela 1.
Atuação das eSB e condições de trabalho durante a pandemia da covid-19 segundo a opinião de 163 gestores das eSB, Bahia, 2020

A PNSB11 Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Atenção Básica. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. e a PNAB22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 22 Set 2017. [acesso em 2023 julho 7]. Disponível em: http://www.brasilsus.com.br/index.php/legislacoes/gabinete-do-ministro/16247-portaria-n-2-436-de-21-de-setembro-de-2017.
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já preconizavam atuação dos CD, TSB e ASB com demais profissionais de saúde, desempenhando trabalho interdisciplinar no cuidado individual (interconsultas, discussão de caso clínico, visitas domiciliares) e nas atividades coletivas. Além dos atendimentos clínicos, atribuições como territorialização, análise da situação de saúde e planejamento estratégico possibilitam alcançar um cuidado mais integral e comprometido com a vigilância em saúde2222 Carletto AF, Santos FF. A atuação do dentista de família na pandemia do Covid-19: o cenário do Rio de Janeiro. Physis. 2020; 30(3):e300310..

Ao longo dos anos, todavia, as eSB vivenciaram limitações na reorganização da prática odontológica: falta de apoio da coordenação das unidades de saúde e da Secretaria Municipal de Saúde; hegemonia do modelo de atenção à saúde biologicista e curativista; demanda clínica reprimida; dificuldade de inserção nas equipes multiprofissionais e no exercício de atividades não convencionais aos CD, TSB e ASB. Ademais, os próprios trabalhadores das eSB não se reconhecem nesses espaços com atuação abrangente, pois, na odontologia, historicamente, o trabalho isolado ou em dupla predomina; e a formação de recursos humanos comprometidos com o processo de trabalho no SUS ainda é incipiente nas instituições de ensino66 Gonçalves ER, Ramos FRS. O trabalho do cirurgião-dentista na estratégia de saúde da família: potenciais e limites na luta por um novo modelo de assistência. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):301-14.,88 Leme PAT, Bastos RA, Turato ER, et al. A clínica do dentista na Estratégia Saúde da Família: entre a inovação e o conservadorismo. Physis. 2019; 29(1):e290111.,2121 Mattos GCM, Ferreira EF, Leite ICG, et al. A inclusão da equipe de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: entraves, avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(2):373-82..

Na pandemia da covid-19, os gestores referiram ampliação das possibilidades de atuação das eSB; embora houvesse redução e limitação da prática no consultório odontológico, os CD, TSB e ASB eram indispensáveis no combate à covid-19. Isso fica evidente em notas técnicas e estudos que confirmam a convocação e participação das eSB nas barreiras sanitárias, fast-track, acolhimento, e ações de educação em saúde, visando à orientação dos usuários e à prevenção da covid-191313 Rodrigues QF, Dias VO, Barbosa MC, et al. Public oral health services: impacts caused by the COVID-19 pandemic. Braz. Oral Res. 2022; 36:e032.,2323 Brasil. Ministério da Saúde, Coordenação Geral de Saúde Bucal. Nota técnica nº 9/2020 CGSB/DESF/ SAPS/MS. Esclarecimentos sobre o atendimento odontológico, considerando o cenário emergencial em saúde pública decorrente do novo Coronavírus. Brasília, DF: MS; 2020.. Contudo, há reflexões sobre um subaproveitamento dos CD no combate à covid-19, pois seu respaldo técnico justificaria uma atuação mais abrangente e ativa2222 Carletto AF, Santos FF. A atuação do dentista de família na pandemia do Covid-19: o cenário do Rio de Janeiro. Physis. 2020; 30(3):e300310..

Retornando ao dendrograma (figura 1), a classe 6 (14%) evidenciou alterações no fluxo da rede de atenção à SB, enfatizando a suspensão dos exames radiográficos intraorais no setor público, devido à exposição dos profissionais e usuários e à escassez de recursos materiais. Entretanto, as eSB avaliavam a necessidade imediata da radiografia intraoral, e em situações urgentes, era realizada seguindo os protocolos de biossegurança, com utilização de todos os EPI. Caso contrário, ou quando o município não ofertava esse serviço, havia encaminhamento dos usuários para a rede privada.

Na pandemia da covid-19, os serviços públicos evitavam fazer radiografias intraorais, adequando-se às medidas preventivas2424 Pacheco EC, Soares RC, Santos VM, et al. Adequação dos serviços odontológicos do Paraná no enfrentamento da Covid-19: um estudo transversal. Saúde debate. 2022; 46(135):1045-62.. Contudo, esses exames já eram limitados no SUS anteriormente devido à ausência/mau funcionamento dos equipamentos radiográficos, gerando encaminhamento para a rede privada e dificuldades para profissionais e usuários2525 Chisini LA, Martin ASS, Silva JVJBF, et al. Cobertura radiográfica odontológica pelo Sistema Único de Saúde na região Sul do Brasil em 2016: estudo ecológico. Epidemiol. Serv. Saúde. 2019; 28(1):e2018090..

A classe 6 está intimamente relacionada com as classes 1 e 5, que representam 16,1% e 15,1% do corpus respectivamente. A classe 1 demonstrou orientações quanto ao funcionamento dos serviços públicos de SB, embasadas em notas técnicas e decretos, entre eles, os municipais. Foram recomendadas a manutenção dos atendimentos de urgência e emergência odontológicos, principalmente na APS, e a suspensão dos atendimentos odontológicos eletivos devido à pandemia da covid-19 (figura 1).

Na análise quantitativa, mensurou-se que apenas 1,8% dos gestores relataram a não suspensão dos serviços de SB eletivos no município em que atuavam. Isso porque quase todos tiveram conhecimento dos documentos institucionais/governamentais relacionados com o enfrentamento da pandemia da covid-19 (98,8%) e das normativas que recomendaram a suspensão dos atendimentos odontológicos eletivos nos serviços públicos de atenção à SB nesse período (97,5%). Dentre esses documentos, destacam-se notas técnicas emitidas pelo MS (81,6%), recomendações dos conselhos de odontologia federal (79,1%) e regional (77,9%) e notas técnicas da Sesab (77,3%). Entre os gestores, 55% afirmaram haver publicação de normativa municipal que regulamentava o funcionamento dos serviços públicos de SB na pandemia da covid-19 e 73% participaram da elaboração de novos protocolos/fluxos de encaminhamentos aos serviços de SB. Isso reflete protagonismo dos municípios quanto à emissão de notas técnicas próprias e à produção de orientações como forma de cuidado aos profissionais e usuários. A disponibilização desses documentos para as eSB pela gestão municipal aconteceu em 91,4% dos casos (tabela 2).

Tabela 2.
Conhecimento e atuação dos 163 gestores municipais responsáveis pela Saúde Bucal na pandemia da covid-19, Bahia, 2020

Diante da alta probabilidade de contaminação cruzada das eSB e usuários durante os procedimentos odontológicos, devido à emissão de aerossóis e contato direto com a saliva, foi recomendada suspensão dos atendimentos eletivos no Brasil e em outros países, como Áustria, Alemanha e Suíça, na pandemia da covid-192626 Wiesmüller V, Bruckmoser E, Kapferer-Seebacher I, et al. Dentists’ working conditions during the first COVID-19 Pandemic lockdown: an online survey. Healthcare (Basel). 2021; 9(3):364.. Os documentos oficiais brasileiros que recomendaram essa suspensão e permanência da atenção às urgências/emergências foram emitidos pelas autarquias representantes da odontologia e pelos órgãos de saúde federativos2323 Brasil. Ministério da Saúde, Coordenação Geral de Saúde Bucal. Nota técnica nº 9/2020 CGSB/DESF/ SAPS/MS. Esclarecimentos sobre o atendimento odontológico, considerando o cenário emergencial em saúde pública decorrente do novo Coronavírus. Brasília, DF: MS; 2020..

Entretanto, na classe 5 do dendrograma (figura 1), emergiram conteúdos sobre falta de suporte aos trabalhadores na assistência e aos próprios gestores municipais de SB, tanto por atores sociais da mesma gestão municipal como de outras instâncias. Ainda que essas normativas restritivas existissem, houve questionamentos e inquietação quanto à atuação das eSB, demonstrando falta de conscientização de parte da gestão diante das dificuldades enfrentadas nos serviços públicos de SB.

Nos excertos a seguir, provenientes das respostas às questões qualitativas, foram identificadas essas sugestões:

Precisamos de apoio para nossos gestores municipais, nem todos entendem o porquê a odontologia não poder voltar normalmente.

Deveria ter maior suporte de informações para os coordenadores de Saúde Bucal e disponibilidade de equipamentos de proteção individual para exercício das atividades.

Cobrança aos secretários de saúde para maior apoio às Equipes de Saúde Bucal através das coordenações, melhorias, equipamentos de proteção individual.

É preciso dar o suporte necessário às Prefeituras para que elas tenham condições de manter o serviço de Saúde Bucal nos municípios, principalmente, os de pequeno porte.

Essas evidências refletem predominância de ações da gestão municipal, principalmente na APS. Apesar das vantagens na autonomia dos municípios, a municipalização, associada ao apagamento dos demais entes federativos, limita as possibilidades de atuação, especialmente quando são municípios com menor capacidade técnica, administrativa e financeira, geralmente os de pequeno porte populacional1717 Pinafo E, Nunes EFPA, Carvalho BG, et al. Problemas e estratégias de gestão do SUS: a vulnerabilidade dos municípios de pequeno porte. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(5):1619-28., em um contexto complexo como o da pandemia da covid-19. Isso demonstra maior necessidade de articulação entre os múltiplos atores sociais da gestão federal, estadual, regional e municipal2727 Tasca R, Carrera MBM, Malik AM, et al. Gerenciando o SUS no nível municipal ante a COVID-19: uma análise preliminar. Saude debate. 2022; 46(1):15-32.,2828 Aleluia IRS, Vilasbôas ALQ, Pereira GE, et al. Gestão estadual da atenção primária à saúde em resposta à COVID-19 na Bahia, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2023; 28(5):1341-53.. Embora o estado da Bahia tenha fortalecido parcerias e apoio institucional às coordenações municipais de APS, isso não foi suficiente diante da complexidade da mudança requerida2828 Aleluia IRS, Vilasbôas ALQ, Pereira GE, et al. Gestão estadual da atenção primária à saúde em resposta à COVID-19 na Bahia, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2023; 28(5):1341-53.. Ademais, no âmbito nacional, a falta de orientações claras, as indecisões e a postergação de medidas preventivas geraram insegurança nas equipes de saúde e fragilidade no planejamento de resposta do SUS municipal à pandemia da covid-192727 Tasca R, Carrera MBM, Malik AM, et al. Gerenciando o SUS no nível municipal ante a COVID-19: uma análise preliminar. Saude debate. 2022; 46(1):15-32..

As eleições municipais de 2020 também contribuíram para flexibilização diante das recomendações institucionais/governamentais e tensionamento do retorno dos atendimentos odontológicos eletivos no SUS, mesmo sem respaldo técnico no momento2222 Carletto AF, Santos FF. A atuação do dentista de família na pandemia do Covid-19: o cenário do Rio de Janeiro. Physis. 2020; 30(3):e300310..

Na classe 4 do dendrograma (15,1%) (figura 1), constatam-se más condições de trabalho das eSB: insuficiência de instrumentais odontológicos e de insumos, escassez de EPI e precária manutenção dos equipamentos odontológicos. Essa classe tem forte relação lexical com a 3 (18,2%), que enfatiza a necessidade de condições de trabalho que minimizem o risco de exposição das eSB, para possível retorno dos agendamentos eletivos. Destacam-se intervalos mais longos entre os atendimentos, manutenção do distanciamento social, diminuição dos casos da covid-19, garantia dos EPI para os trabalhadores e rigor no seguimento dos protocolos de biossegurança. Em 2022, um estudo com 1.105 profissionais de SB (CD, TSB e ASB) do Paraná constatou que o distanciamento social na sala de espera foi respeitado mais na rede particular que no SUS, pois houve grande procura pelos serviços públicos, associado ao pouco tempo para alterações estruturais e organizacionais2424 Pacheco EC, Soares RC, Santos VM, et al. Adequação dos serviços odontológicos do Paraná no enfrentamento da Covid-19: um estudo transversal. Saúde debate. 2022; 46(135):1045-62..

Complementarmente, a análise quantitativa neste estudo evidenciou que 66,7% dos gestores sugeriram um retorno seguro dos atendimentos eletivos não imediatamente, mas em até três meses, considerando cada realidade local quanto à capacitação dos profissionais, disponibilidade de instrumentais, de materiais odontológicos e de EPI. A insuficiência de EPI foi o principal desafio enfrentado pela gestão municipal (44,8%) (tabela 2). Durante a pandemia da covid-19, a gestão de insumos foi uma dificuldade também em outros estados brasileiros e no mundo2626 Wiesmüller V, Bruckmoser E, Kapferer-Seebacher I, et al. Dentists’ working conditions during the first COVID-19 Pandemic lockdown: an online survey. Healthcare (Basel). 2021; 9(3):364.,2929 Danigno JF, Echeverria MS, Tillmann TFF, et al. Fatores associados à redução de atendimentos odontológicos na Atenção Primária à Saúde no Brasil, com o surgimento da COVID-19: estudo transversal, 2020. Epidemiol. Serv. Saúde. 2022; 31(1):e2021663.. Isso devido ao rápido pico de casos, aumento na demanda mundial por EPI, inviabilidade de sua aquisição diante do grande aumento de preços e maior burocracia para compras na rede pública, exceto quando o município apresentava serviços coordenados pelas Organizações Sociais de Saúde, havendo certo favorecimento e maior agilidade para aquisição de insumos2727 Tasca R, Carrera MBM, Malik AM, et al. Gerenciando o SUS no nível municipal ante a COVID-19: uma análise preliminar. Saude debate. 2022; 46(1):15-32..

A máscara N95/PFF2 (74,8%) e o avental descartável e impermeável (69,9%) estiveram entre os EPI menos citados pelos gestores como disponíveis constantemente e suficientemente para realização do trabalho em SB com segurança (tabela 1). Essa perspectiva corrobora a dos CD brasileiros no mesmo período, pois, para 23% dos CD, os EPI obrigatórios preconizados pelos novos protocolos de biossegurança (máscara N95/PFF2, avental descartável e protetor facial) não foram disponibilizados suficientemente2929 Danigno JF, Echeverria MS, Tillmann TFF, et al. Fatores associados à redução de atendimentos odontológicos na Atenção Primária à Saúde no Brasil, com o surgimento da COVID-19: estudo transversal, 2020. Epidemiol. Serv. Saúde. 2022; 31(1):e2021663.. Todavia, a insuficiência de EPI utilizados na prática odontológica de rotina é uma condição de trabalho precária enfrentada pelas eSB anteriormente à pandemia da covid-193030 Manfredini MA, Narvai PC. A pandemia no Brasil. In: Sousa Nétto OB, Chaves SCL, Colussi CF, et al. Diálogos Bucaleiros: reflexões em tempos pandêmicos. São Paulo: Pimenta Cultural; 2021. p. 284-90..

Na análise quantitativa, constata-se que apenas 12,3% dos gestores ratificaram a presença de equipamentos para reduzir a contaminação nos consultórios odontológicos (sugadores de alta potência com bomba a vácuo, em perfeito funcionamento, diques de borracha para isolamento absoluto) e 38% (7,3% + 30,7%) identificaram estrutura física inadequada quanto à ventilação em consultórios odontológicos no município (tabela 1). Entretanto, somente 19% dos coordenadores destacaram tais dificuldades estruturais das unidades de saúde, consultórios ou equipos odontológicos como um desafio para a gestão (tabela 2).

A insuficiência de instrumentais odontológicos e de insumos; a precária manutenção dos equipamentos odontológicos; a falta de recursos humanos e consequente sobrecarga no trabalho; a estrutura física inadequada das unidades de saúde, comprometendo a biossegurança, são problemas relacionados com as condições de trabalho das eSB não apenas durante a pandemia da covid-19, são prévios e crônicos na odontologia da rede pública, mas enfatizados nesse período66 Gonçalves ER, Ramos FRS. O trabalho do cirurgião-dentista na estratégia de saúde da família: potenciais e limites na luta por um novo modelo de assistência. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):301-14.,3131 Reis WG, Scherer MDA, Carcereri DL. O trabalho do Cirurgião-Dentista na Atenção Primária à Saúde: entre o prescrito e o real. Saúde debate. 2015; 39(104):56-64.,3232 Oliveira MT, Farias MR, Vasconcelos MIO, et al. Os desafios e as potencialidades da saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma análise dos processos de trabalho. Physis. 2022; 32(1):e320106.. Mesmo que a austeridade fiscal e o subfinanciamento do SUS sejam fatores que interferem diretamente nessas condições2222 Carletto AF, Santos FF. A atuação do dentista de família na pandemia do Covid-19: o cenário do Rio de Janeiro. Physis. 2020; 30(3):e300310., a aproximação da gestão e escuta qualificada dos profissionais de saúde quanto às dificuldades no trabalho, o conhecimento dos gestores sobre tramitações dos recursos e a capacidade de gestão compartilhada podem minimizar os desafios e proporcionar melhores condição de trabalho1414 Bizerril DO, Lima Júnior FCM, Saraiva MM, et al. Coordenadores de saúde bucal: percepção sobre gestão e competências no Sistema Único de Saúde. Rev. Bras. Promoç. Saúde. 2019; 32:9273.,3131 Reis WG, Scherer MDA, Carcereri DL. O trabalho do Cirurgião-Dentista na Atenção Primária à Saúde: entre o prescrito e o real. Saúde debate. 2015; 39(104):56-64..

Ainda sobre condições de trabalho, 70,4% dos gestores relataram que os trabalhadores das eSB estavam sendo monitorados quanto à contaminação pelo vírus Sars-CoV-2, com testagens para covid-19; 63,3% confirmaram que houve acolhimento, apoio e acompanhamento psicológico dos profissionais das eSB; e 31,2% relataram cuidados a partir das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (Pics) para esses trabalhadores (tabela 1). Pereira et al.3333 Pereira EC, Rocha MP, Fogaça LZ, et al. Saúde do trabalhador, práticas integrativas e complementares na atenção básica e pandemia da COVID-19. Rev. Esc. Enferm. USP. 2022; 56:e20210362. também identificaram oferta de Pics aos profissionais de saúde para minimizar os efeitos negativos à saúde mental nessa pandemia. Em outro estudo, 66% dos CD brasileiros realizaram testagem para Sars-CoV-22929 Danigno JF, Echeverria MS, Tillmann TFF, et al. Fatores associados à redução de atendimentos odontológicos na Atenção Primária à Saúde no Brasil, com o surgimento da COVID-19: estudo transversal, 2020. Epidemiol. Serv. Saúde. 2022; 31(1):e2021663.. Entretanto, a mesma categoria profissional, na Bahia, aponta fragilidade de monitoramento das suas condições físicas e emocionais3434 Silva BF, Matos PES, Mendes HJ, et al. Atuação do cirurgião-dentista da atenção primária à saúde durante a pandemia da covid-19. Rev. Ciênc. Plural. 2023; 9(1):30251..

O afastamento laboral de profissionais das eSB por apresentarem condições de risco para a covid-19 (idade ≥ 60 anos, doenças crônicas, gestação de alto risco etc.) foi relatado por 46,6% dos gestores. Outros motivos de afastamento desses profissionais foram: contaminação pela covid-19 (17,2%) e aspectos relacionados com a saúde mental (5,6%) (tabela 1). Pacheco et al.2424 Pacheco EC, Soares RC, Santos VM, et al. Adequação dos serviços odontológicos do Paraná no enfrentamento da Covid-19: um estudo transversal. Saúde debate. 2022; 46(135):1045-62. identificaram que 9,9% dos profissionais das eSB se afastaram/ foram afastados por covid-19/suspeita, e 57,6%, por outros motivos.

Embora um baixo percentual de gestores tenha identificado afastamento laboral por questões de saúde mental em profissionais das eSB, sintomas de depressão, ansiedade, medo e sobrecarga de trabalho estiveram presentes no cotidiano de trabalhadores de saúde no Brasil diante da exaustão e precarização das condições de trabalho na pandemia da covid-19. Ademais, relatos de falta de empatia e suporte organizacional por parte da gestão demonstram que é preciso um olhar cuidadoso diante ante as demandas e requerem fomento de políticas públicas e organizacionais de apoio3535 Ribeiro BC, Giongo CR, Pezez KV. “Não somos máquinas!”: Saúde Mental de Trabalhadores de Saúde no contexto da pandemia por Covid-19. Polít. Soc. 2021; (48):78-100.. Em estudo com CD no Brasil, a prevalência de ansiedade foi de 27,5%, sendo significativamente maior entre os dentistas que apresentaram medo de contaminação com a covid-193636 Lima AIC, Carvalho FM, Santana Silva MV, et al. Anxiety among Brazilian dentists during the COVID-19 Pandemic: a cross-sectional study. Open Dent. J. 2022; 16:e187421062201310..

Quanto à jornada de trabalho dos profissionais das eSB na pandemia da covid-19, 51,5% dos gestores não reconheceram alteração, mas 52,8% informaram que a atuação nos serviços de saúde aconteceu mediante rodízio (tabela 1). Pacheco et al.2424 Pacheco EC, Soares RC, Santos VM, et al. Adequação dos serviços odontológicos do Paraná no enfrentamento da Covid-19: um estudo transversal. Saúde debate. 2022; 46(135):1045-62. identificaram que a redução da carga de trabalho e rodízio entre os CD, TSB e ASB no SUS foi menor (27,2%) que no setor privado (56%), pois esses profissionais realizaram atividades externas ao consultório odontológico.

Os tipos de vínculo empregatício desses profissionais mais citados pelos gestores foram: contrato por tempo determinado, sob Regime de Trabalho Temporário (49,7%), seguido de contrato por tempo determinado sob Regime Especial de Direito Administrativo (42,3%) (tabela 1). Nas respostas às questões subjetivas, percebe-se que um dos fatores estressores para as eSB foi a fragilidade do vínculo empregatício:

A pandemia vem causando danos fisiológicos e psicológicos [...]. Principalmente para os servidores contratados [...]. Então todo esse cenário gera um estresse muito grande, no sentido de incertezas na continuação dos contratos.

Garantir que o trabalhador da Saúde Bucal não seja dispensado (contratos frágeis).

Assim, a precarização no trabalho das eSB, a partir do predomínio de contratos instáveis e temporários, gera insegurança e insatisfação66 Gonçalves ER, Ramos FRS. O trabalho do cirurgião-dentista na estratégia de saúde da família: potenciais e limites na luta por um novo modelo de assistência. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):301-14.,3737 Oliveira RS, Morais HMM, Goes PSA, et al. Relações contratuais e perfil dos cirurgiões-dentistas em centros de especialidades odontológicas de baixo e alto desempenho no Brasil. Saúde Soc. 2015; 24(3):792-802.. Em um estudo prévio à pandemia da covid-19, 50,6% dos gestores de saúde e CD relataram como contratações mais comuns indicação política, terceirização, cooperativas, contrato temporário ou prestação de serviços, corroborando o presente estudo3838 Lourenço EC, Silva ACB, Meneghin MC, et al. A inserção de equipes de saúde bucal no Programa Saúde da Família no Estado de Minas Gerais. Ciênc. saúde coletiva. 2009; 14(supl1):1367-77.. Há evidências também de informalidade na contratação de ASB2121 Mattos GCM, Ferreira EF, Leite ICG, et al. A inclusão da equipe de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: entraves, avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(2):373-82..

Mais de 70% dos gestores relataram haver qualificações para as eSB tanto em nível nacional (72,3%) quanto por iniciativa municipal (71,1%) (tabela 1). Estudo anterior à pandemia evidenciou que 48,1% dos CD da ESF não participavam das capacitações municipais, e os ASB/TSB sequer foram mencionados3838 Lourenço EC, Silva ACB, Meneghin MC, et al. A inserção de equipes de saúde bucal no Programa Saúde da Família no Estado de Minas Gerais. Ciênc. saúde coletiva. 2009; 14(supl1):1367-77.. Isso ratifica o sentimento de exclusão das eSB ao tratar dos desafios para atuação integral na ESF3232 Oliveira MT, Farias MR, Vasconcelos MIO, et al. Os desafios e as potencialidades da saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma análise dos processos de trabalho. Physis. 2022; 32(1):e320106.,3939 Peruzzo HM, Bega AG, Lopes APAT, et al. Os desafios de se trabalhar em equipe na Estratégia Saúde da Família. Esc. Anna Nery. 2028; 22(4):e20170372.. Infere-se que, na crise sanitária, com a visão ampliada quanto ao escopo de trabalho das eSB, pôde-se incluí-las em qualificações multiprofissionais4040 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 639, de 31 de março de 2020. Dispõe sobre a Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo - Profissionais da Saúde”, voltada à capacitação e ao cadastramento de profissionais da área de saúde, para o enfrentamento à pandemia do coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União. 2 Abr 2020. [acesso em 2023 ago 3]. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-639-de-31-de-marco-de-2020-250847738#:~:text=%C3%93rg%C3%A3o%3A%20Minist%C3%A9rio%20da%20Sa%C3%BAde%2FGabinete%20do%20Ministro%20PORTARIA%20N%C2%BA,para%20o%20enfrentamento%20%C3%A0%20pandemia%20do%20coronav%C3%ADrus%20%28COVID-19%29
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
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Entre as limitações deste, estudo está a existência de pontos de observação diferentes: variáveis com unidade de análise individual (gestor) e agregada (NRS por exemplo), devendo sempre considerar a heterogeneidade na realidade dos municípios. Outra limitação do estudo é que os dados podem ser otimistas porque foram coletados de gestores. Ademais, o questionário foi elaborado diante da necessidade no período, primeira onda da pandemia da covid-19, pela Equipe de Gestão de SB da Bahia; e houve questões com dados faltantes. Ademais, a própria crise sanitária limitou a participação dos gestores no estudo.

Conclusões

O presente estudo demonstrou como gestores descreveram e avaliaram o trabalho das eSB, intensamente expostas ao vírus Sars-CoV-2, e de que forma conseguiram prestar apoio a esses trabalhadores. Um escopo de atuação mais abrangente de CD, TSB e ASB, previsto no SUS, mas normalmente distante da prática, foi vivenciado pelas eSB durante a pandemia da covid-19; e atribuições desenvolvidas fora do consultório odontológico à equipe multiprofissional foram mais reconhecidas pela gestão.

A pandemia da covid-19 evidenciou fragilidades crônicas nas condições de trabalho das eSB, e houve uma tendência dos gestores em relatar esses antigos problemas. Assim, abre-se uma oportunidade para discutir e priorizar mudanças. Os resultados deste estudo podem contribuir para a gestão desenvolver um olhar mais cuidadoso para as reais necessidades dos trabalhadores na assistência, sensibilizando-a quanto à elaboração e à operacionalização de políticas públicas que qualifiquem as condições de trabalho das eSB não apenas no contexto de crise sanitária, mas também no seu fazer cotidiano pós-pandemia.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2023
  • Aceito
    22 Mar 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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