Itinerários terapêuticos de pessoas hospitalizadas por covid-19 no SUS: um estudo quantiqualitativo no Distrito Federal

Therapeutic itineraries of people hospitalized for COVID-19 in the SUS: quantitative and qualitative study in the Federal District

Samira Virginia de França Ana Carolina Esteves da Silva Pereira Luciana Guerra Gallo Éverton Luís Pereira Sobre os autores

RESUMO

Os estudos sobre itinerários terapêuticos revelam modelos de cuidado e decisões tomadas pelas pessoas em situações de adoecimento e podem contribuir para o planejamento de políticas e serviços de saúde mais efetivos, especialmente em emergências como a pandemia de covid-19. O objetivo desta pesquisa foi descrever os itinerários terapêuticos de pacientes hospitalizados por covid-19 em um hospital público do Distrito Federal e explorar associações com determinantes sociais da saúde. Trata-se de um estudo de caso integrado, com triangulação de evidências quantitativas e qualitativas obtidas a partir da análise do banco de dados de um estudo observacional transversal com 233 adultos internados entre maio/2020 e dezembro/2021. A maioria homens, idosos, pretos ou pardos, com baixo nível de renda e escolaridade e múltiplas comorbidades, que procuraram atendimento na atenção especializada e conseguiram acesso rápido ao sistema de saúde. Os fatores que influenciaram a escolha do primeiro serviço foram: ocupação, região de moradia, classe econômica e escolaridade. Já os determinantes da facilidade de acesso foram: tipo de serviço buscado primeiro, gravidade do caso e contexto socioeconômico. Os resultados confirmam a influência de determinantes sociais nas experiências de adoecimento e podem subsidiar reflexões relacionadas à organização do acesso ao SUS em emergências sanitárias.

PALAVRAS-CHAVES
Itinerário terapêutico; Covid-19; Acessibilidade aos serviços de saúde; Determinantes sociais da saúde; Sistema Único de Saúde

ABSTRACT

Studies on therapeutic itineraries reveal models of care and decisions taken by people in situations of illness and can contribute to the planning of effective health policies and services, especially in emergencies such as the COVID-19 pandemic. The aim of this research was to describe the itineraries of patients hospitalized for COVID-19 in a public hospital in the Federal District and explore associations with social determinants of health. This is an integrated case study, with triangulation of quantitative and qualitative evidence obtained from the analysis of raw data from a cross-sectional observational study with 233 adults hospitalized between May/2020 and December/2021. The majority were men, elderly, black or brown, with low income and education levels and multiple comorbidities, who sought care in specialized care and obtained quick access to the health system. The factors that influenced the choice of the first service sought were: occupation, region of residence, economic class and education. The determinants of ease of access were: type of service first sought, severity of the case and socioeconomic context. The results confirm the influence of social determinants on illness experiences and can support reflections related to the organization of access to the SUS in health emergencies.

KEYWORDS
Therapeutic itinerary; COVID-19; Health services accessibility; Social determinants of health; Unified Health System

Introdução

Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou a covid-19 como uma pandemia11 Organização Pan-Americana da Saúde. Histórico da pandemia de COVID-19. Brasília, DF: Opas; 2022. [acesso em 2022 jul 5]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19.
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. Nos três anos seguintes, a população mundial viveu um período de grandes transformações geradas pelas consequências da disseminação global do vírus Sars-CoV-2. Com mais de 37,2 milhões de casos e quase 700 mil óbitos oficialmente confirmados, o Brasil se destacou negativamente e foi o país com o segundo maior número de mortes em todo o mundo, atrás apenas dos Estados Unidos22 Brasil. Ministério da Saúde. Covid-19 no Brasil – Casos e Óbitos. Brasília, DF; 2023. [acesso em 2023 jul 4]. Disponível em: https://infoms.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html.
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. A situação brasileira foi marcada pela ausência de estratégias articuladas entre governos federal, estaduais e municipais para gerenciar a emergência de maneira coordenada e eficiente33 Brandão CC, Mendonça AVM, Sousa MF. Governança federal na construção da política de enfrentamento à covid-19 na atenção primária à saúde brasileira. Ciênc. saúde coletiva. 2023 [acesso em 2023 maio 27]; 28(12):3643-3658. Disponível em: https://cienciae-saudecoletiva.com.br/artigos/governanca-federal-na-construcao-da-politica-de-enfrentamento-a-co-vid19-na-atencao-primaria-a-saude-brasileira/18696.
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O Sistema Único de Saúde (SUS) precisou lidar não apenas com a ameaça do vírus, mas com um negacionismo, que produziu efeitos desastrosos e revelou como o comportamento diante da saúde/doença é moldado por visões de mundo e posicionamentos político-partidários. Por trás das estatísticas, existem histórias a serem investigadas por quem reconhece a necessidade de interpretar as emergências como um fenômeno social, especialmente no contexto da diversidade e das desigualdades que caracterizam a população brasileira44 Toniol R, Grossi MP. Cientistas Sociais e o Coronavírus. São Paulo: Anpocs; Florianópolis: Tribo da Ilha; 2020. [acesso em 2022 jul 22]. Disponível em: http://anpocs.org/index.php/ciencias-sociais/destaques/2458-livro-cientistas-sociais-e-o-coronavirus-ebook-download-gratuito.
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As ciências sociais e humanas são fundamentais neste sentido, pois investigam repercussões dos determinantes sociais da saúde sobre as experiências de adoecimento. Os determinantes são fatores externos que influenciam a saúde das pessoas e são produzidos pelas condições econômicas, sociais e políticas do ambiente em que elas vivem, podendo ter mais força que os aspectos biológicos55 World Health Organization. Health topics – Social determinants of health. Geneva: WHO; 2023. [acesso em 2023 maio 13]. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/social-determinants-of-health#tab=tab_1.
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. Por isso, as políticas públicas devem garantir equidade na distribuição de recursos e no acesso à saúde para grupos e regiões com características e vulnerabilidades distintas66 Souza MN. O Programa Saúde da Família como estratégia de enfrentamento da Covid-19 na periferia de Curitiba. In: Toniol R, Grossi MP. Cientistas Sociais e o Coronavírus. São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha; 2020 [acesso em 2022 jul 22]. p. 454-459. Disponível em: http://anpocs.org/index.php/ciencias-sociais/destaques/2458-livro-cientistas-sociais-e-o-coronavirus-ebook-download-gratuito.
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De acordo com Andersen (1995), citado por Travassos & Martins77 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad. Saúde Pública. 2004 [acesso em 2023 maio 16]; 20(supl2):S190-S198. Disponível em: http://www.scielo.br/j/csp/a/PkyrsjDrZWwzzPVJJPbbXtQ/.
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, o acesso é entendido como o processo de entrada e continuidade do cuidado no sistema de saúde, que abrange, inclusive, as etapas iniciais de percepção da necessidade e de tomada de decisão para a procura desse sistema, constituindo um importante elemento para a organização da oferta e o funcionamento dos serviços. Considerando que os determinantes sociais podem limitar essa capacidade de acesso, profissionais e tomadores de decisão do SUS precisam entender como diferentes indivíduos e grupos sociais se comportam em situações de adoecimento. Os estudos sobre itinerários terapêuticos podem ser especialmente úteis, pois permitem identificar em que momento, onde e como ocorre a procura de cuidados.

Na perspectiva da antropologia da saúde, o itinerário terapêutico é definido como o caminho percorrido por um indivíduo e sua rede de apoio na busca da recuperação, constituindo um elemento importante para o planejamento e a gestão dos sistemas de saúde88 C abral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, et al. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2011 [acesso em 2022 jun 2]; 16(11):4433-4442. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011001200016&lng=pt&tlng=pt.
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. As experiências vivenciadas nesse complexo fenômeno social ocorrem dentro e fora dos serviços formais de saúde e mobilizam práticas interdisciplinares que são influenciadas por fatores culturais, cognitivos e sociais99 Alves PCB, Souza IMA. Escolha e Avaliação de Tratamento para Problemas de Saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Experiência de Doença e Narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. [acesso em 2022 jun 2]. Disponível em: https://books.scielo.org/id/pz254/pdf/rabelo-9788575412664-06.pdf.
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, 1010 Gerhardt TE, Pinheiro R, Ruiz ENF, et al., organizadores. Itinerários Terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj – Abrasco; 2016. [acesso em 2022 jun 4]. Disponível em: https://www.lappis.org.br.
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Poucos estudos abordaram os itinerários terapêuticos da covid-19 no Brasil1111 Silva LF, Cursino EG, Brandão ES, et al. The path from suspicion to diagnosis of people with Covid-19. Rev. Gaúcha Enferm. 2021 [acesso em 2022 jun 7]; 42(esp):e20200282. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472021000200421&tlng=en.
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, 1212 Silva LF, Cursino EG, Brandão ES, et al. The therapeutic itinerary of health workers diagnosed with COVID-19. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2021 [acesso em 2022 jun 7]; 29:e3413. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692021000100315&tlng=en.
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, 1313 Paula HC, Daher DV, Koopmans FF, et al. Sem isolamento: etnografia de pessoas em situação de rua na pandemia de COVID-19. Rev. Bras. Enferm. 2020 [acesso em 2022 jul 16]; 73:e20200489. Disponível em: http://www.scielo.br/j/reben/a/KWMynKfjZFGHqFDvjPJQqTz/?lang=pt.
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, 1414 Ribeiro AA, Rossi LA. Pandemia covid-19 e motivações para procura pelo Sistema Único de Saúde em aldeias indígenas. Rev. Bras. Enferm. 2020 [acesso em 2022 jul 16]; 73:e20200312. Disponível em: http://www.scielo.br/j/reben/a/DMbdsPn9ZqG6HR7vx8hcz5C/?lang=pt.
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, 1515 Cualhete DN, Santos-Moura GH, Castro-Silva CR. Os itinerários terapêuticos de populações vulneráveis na Covid-19: uma revisão de escopo. Interface (Botucatu). 2022 [acesso em 2022 ago 26]; 26:e210700. Disponível em: http://www.scielo.br/j/icse/a/Tx7sGcYTmRbYG9tmfD3ysMK/?lang=pt.
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, sendo que a maioria descreve experiências de pessoas com sintomas leves. E os que avaliam a trajetória de pacientes hospitalizados focam nos aspectos biomédicos dos care pathways – terapias empregadas pelos profissionais de saúde -, sem abordar a busca de cuidados como fato social. Diante dessa lacuna, esta pesquisa teve como objetivo conhecer os itinerários terapêuticos de pessoas com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada pela covid-19 que foram internadas em um hospital público de alta complexidade no Distrito Federal (DF).

Com população de 3,1 milhões de habitantes1616 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE Cidades – Distrito Federal. [local desconhecido]: IBGE; 2021. [acesso em 2023 maio 10]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/df/panorama.
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, o DF possui uma Rede de Atenção à Saúde (RAS) estruturada em sete regiões de saúde (Central, Centro-Sul, Leste, Norte, Oeste, Sul, Sudoeste) e oferta serviços em dois níveis de atenção: primária – APS (tecnologias de menor densidade) e especializada – AES (tecnologias de média e alta complexidade)1717 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Plano Distrital de Saúde 2020-2023. Brasília, DF: SES-DF; 2019. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/plano-distrital-de-saude.
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. Em 2020, a APS contava com 172 Unidades Básicas de Saúde (UBS). Já a rede de atenção às urgências e emergências, que integra a AES, possuía 14 hospitais regionais e seis Unidades de Pronto Atendimento (UPA)1818 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Carta de Serviços ao Cidadão. Brasília, DF: SES-DF; 2022. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/imprima-sua-car-ta-de-servicos.
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Até 10 de março de 2023, o DF confirmou 898.465 casos e 11.845 óbitos por covid-19, com taxa de incidência acumulada de 26.114,2 casos para cada 100 mil habitantes, mortalidade de 354,3/100 mil habitantes e letalidade de 1,4%. Nos dois primeiros anos, quando a população ainda não estava vacinada, os maiores picos de hospitalizações pela doença foram registrados entre junho e setembro de 2020 e março e abril de 20211919 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Boletins Epidemiológicos da Subsecretaria de Vigilância Sanitária do DF – Divep/SVS. Brasília, DF: SES-DF; 2022. [acesso em 2023 maio 14]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/boletinsinformativos-divep-cieves.
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Os protocolos do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado de Saúde (SES-DF) para manejo da covid-19 orientavam que pacientes que buscassem atendimento com sintomas respiratórios agudos deveriam ser avaliados e encaminhados para unidades especializadas, dando prioridade aos idosos, pessoas com doenças crônicas ou outras comorbidades consideradas fatores de risco, e gestantes e puérperas2020 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de Manejo Clínico do Coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde (v9). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2022 dez 11]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/05/1095920/20200504-protocolomanejo-ver09.pdf.
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, 2121 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Nota Técnica 01/2020 SES/SAIS/COAPS – COVID-19 Versão 4 – 03/09/2020. Diretrizes de Apoio Clínico e Organizacional para a APS no enfrentamento à COVID-19. Brasília, DF: SES-DF; 2020. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/1264413/NOTA_TECNICA_COVID_APS_V4_atualiza_0209.pdf.
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Este artigo descreve as trajetórias que os participantes da pesquisa percorreram em busca de tratamento e explora possíveis associações entre características sociodemográficas e o acesso ao SUS.

Material e métodos

Esta pesquisa é um braço de um estudo observacional liderado por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), intitulado ‘Síndromes respiratórias graves no DF’. O projeto previa, entre outros objetivos, a investigação dos itinerários terapêuticos de pessoas internadas com diagnóstico confirmado de SRAG, que é a forma mais grave da covid-19.

A abordagem utilizada foi um estudo de caso integrado, com unidades múltiplas de análise e triangulação de evidências quantitativas e qualitativas2222 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman; 2015.. O ‘caso’ em questão é o itinerário terapêutico dos pacientes adultos com covid-19 internados no Hospital Universitário de Brasília, DF, entre maio de 2020 e dezembro de 2021, e foi estudado por meio de três etapas.

Na etapa 1, foi feita uma análise documental de protocolos oficiais de manejo da covid-19 no SUS, publicizados em 2020 e 2021, para verificar se os itinerários percorridos pelos participantes seriam condizentes com esses documentos. A busca ocorreu em dezembro de 2022, nos portais do Ministério da Saúde e SES-DF na internet e por meio de pesquisa livre no Google, utilizando palavras-chave como: “protocolo Covid-19 Ministério da Saúde”; “fluxograma atendimento Covid-19 SUS”; “protocolo Covid-19 SES-DF”.

A etapa 2 consistiu na análise quanti-qualitativa de informações coletadas de forma transversal pela equipe do estudo observacional, incluindo dados primários e secundários extraídos de relatórios de vigilância epidemiológica, prontuários e entrevistas telefônicas semiestruturadas realizadas com pacientes e/ou acompanhantes durante a internação ou até seis meses após a alta. Inicialmente, avaliou-se a completude do banco de dados brutos, para seleção da população e variáveis de interesse. Dos 515 participantes do estudo observacional, 233 tinham informações relacionadas à trajetória pelo sistema de saúde e foram incluídos na análise. Para a etapa de georreferenciamento, foram considerados somente os 219 que tinham endereço e moravam na Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride). A figura 1 detalha o processo de seleção dos participantes do estudo de caso.

Figura 1
Fluxograma de seleção dos participantes do estudo de caso

Após organização dos dados, as variáveis consideradas relevantes e completas para responder à questão de pesquisa foram descritas e analisadas por meio do software estatístico SAS (versão 9.4). A descrição do perfil dos participantes e dos itinerários terapêuticos foi feita a partir da análise da distribuição de frequência das principais informações clínicas, demográficas e de acesso ao sistema de saúde. Para variáveis contínuas, também foram calculadas a média, mediana, moda, mínimo e máximo.

Já a análise estatística consistiu no ajuste de dois modelos de regressão de Poisson com variância robusta, para identificar associações entre as características dos participantes (variáveis independentes) e o acesso aos serviços de saúde (variáveis dependentes). A escolha dessas variáveis e dos critérios para definição de cada uma delas baseou-se nos princípios de funcionamento da RAS do DF1717 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Plano Distrital de Saúde 2020-2023. Brasília, DF: SES-DF; 2019. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/plano-distrital-de-saude.
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, 1818 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Carta de Serviços ao Cidadão. Brasília, DF: SES-DF; 2022. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/imprima-sua-car-ta-de-servicos.
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e fluxos de acesso previstos nos protocolos de manejo da covid-192020 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de Manejo Clínico do Coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde (v9). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2022 dez 11]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/05/1095920/20200504-protocolomanejo-ver09.pdf.
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, 2121 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Nota Técnica 01/2020 SES/SAIS/COAPS – COVID-19 Versão 4 – 03/09/2020. Diretrizes de Apoio Clínico e Organizacional para a APS no enfrentamento à COVID-19. Brasília, DF: SES-DF; 2020. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/1264413/NOTA_TECNICA_COVID_APS_V4_atualiza_0209.pdf.
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, 2323 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de Manejo Clínico da Covid-19 na Atenção Especializada. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2022 dez 11]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manejo_clinico_covid-19_atencao_especializada.pdf.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, 2424 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Orientações para Referência de Urgências originadas da Atenção Primária à Saúde (APS) e a Regulação do Atendimento Pré-Hospitalar Secundário no âmbito do SAMU e das Regiões. Brasília, DF: SES-DF; 2020. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/1264413/SEI_GDF-42769596-Circular-COAPS-SAMU-1.pdf.
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No primeiro modelo de análise, ‘buscar atendimento na atenção especializada’ foi considerada variável dependente, a fim de identificar fatores associados à escolha do primeiro serviço de saúde procurado pelo paciente. As variáveis explicativas foram: sexo, idade, escolaridade, raça/cor, ocupação, região de saúde da residência, classe econômica, nível de renda domiciliar média da região administrativa onde mora, comorbidades prévias, quantidade de sintomas iniciais, e sintoma inicial ‘falta de ar’.

No segundo modelo, a variável dependente foi ‘seguir os fluxos de acesso estabelecidos’, caracterizada por dois critérios: conseguir atendimento no primeiro local procurado; e passar por até três serviços de saúde. As variáveis explicativas foram: sexo, idade, escolaridade, raça/cor, ocupação, região de saúde da residência, classe econômica, nível de renda domiciliar média da região administrativa onde mora, comorbidades prévias, quantidade de sintomas iniciais, sintoma inicial ‘falta de ar’, onde buscou o primeiro atendimento e primeiro serviço buscado próximo à residência. O pressuposto de que passar por até 3 serviços seria um indicativo de cumprimento dos fluxos foi baseado na moda do total de serviços buscados = 3; e na inferência de que o percurso mais longo para quem não teve dificuldade de acesso seria buscar o primeiro atendimento na atenção primária, ser direcionado a uma unidade da atenção secundária e, por fim, a um hospital terciário, totalizando três serviços.

Ambos os modelos foram analisados em duas fases: bivariada e múltipla, adotando-se como medidas de efeito a Razão de Prevalência (RP) e seus respectivos intervalos de 95% de confiança, por serem mais apropriadas para descrever a relação entre exposição e efeito em estudos transversais2525 Bonita R, Beaglehole R, Kjellstrom T. Epidemiologia básica. São Paulo: Santos; 2010. xi, 213 p.. Inicialmente, modelos de regressão de Poisson simples foram ajustados para cada variável explicativa. Aquelas com valor de p < 0,25 foram incluídas na análise de regressão de Poisson múltipla2626 Hosmer DW, Lemeshow S. Applied Logistic Regression. 1. ed. New York: Wiley; 1989.. Em seguida, foram ajustadas por um processo de retirada/inclusão de variáveis. Permaneceram no modelo ajustado apenas aquelas com p < 0,05, para as quais foram novamente calculadas as razões de prevalência e os respectivos intervalos de confiança. Também foi avaliada a multicolinearidade entre as variáveis independentes, considerando como limite um indicador de tolerância > 0,60.

Na etapa 3, as informações das etapas anteriores permitiram mapear os caminhos realizados pelos pacientes desde o início dos sintomas até a hospitalização. O sistema de informação geográfica QGIS (versão 3.20.2) foi utilizado para georreferenciamento dos endereços, análise espacial e elaboração de mapas com os locais de residência dos participantes e as unidades de saúde por onde cada um passou. Para tratamento das informações extraídas do banco de dados e cálculo estimado da distância percorrida, utilizou-se o software Microsoft Excel® (versão 2016).

A triangulação das evidências quantitativas e qualitativas das três etapas do estudo de caso foi adotada como estratégia geral de análise, permitindo a vinculação dos resultados às proposições teóricas que foram previamente levantadas em uma revisão integrativa da literatura sobre itinerários terapêuticos e covid-19.

O projeto ‘Síndromes respiratórias graves no DF’ foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Faculdade de Medicina da UnB (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – CAAE: 33555320.1.0000.5558; número do parecer: 4.112.214), em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

Descrição do perfil dos participantes

A tabela 1 apresenta a distribuição de frequência absoluta e percentual das variáveis relacionadas ao perfil demográfico e de saúde dos 233 participantes incluídos neste estudo de caso como unidades integradas de análise. A maioria era do sexo masculino (60,52%) e tinha mais de 60 anos de idade (53,64%). Aproximadamente 68% eram pessoas pretas ou pardas, 29% brancas e menos de 3% indígenas ou amarelas.

Tabela 1
Descrição do perfil demográfico e de saúde dos participantes (n = 233)

Quase metade tinha nível de escolaridade baixo – sem alfabetização (15,89%) ou ensino fundamental incompleto (32,24%). Quanto à ocupação, metade era composta de aposentados/pensionistas/beneficiários. A renda dos participantes variava de 0 a 80 mil reais mensais (média = R$ 2.154,00), sendo que 12,61% não tinham nenhuma renda, 39,64% recebiam até 1 salário-mínimo, 25,68% até 2 salários, 14,41% até 4 salários e 7,66% tinham renda superior a 4 salários por mês. Apenas 9,96% receberam auxílio financeiro do Governo na pandemia.

Havia moradores das sete regiões de saúde do DF (86,15%), além de outros municípios da Ride, Amazonas, Bahia, Goiás e Minas Gerais (13,85%). A maior parte morava em regiões com renda domiciliar baixa ou média-baixa (61,04%), o que coincide com a classificação econômica: mais de 75% dos participantes pertenciam às classes C1 (24,56%), C2 (30,26%) ou DE (22,37%).

Quase todos os pacientes apresentavam pelo menos uma comorbidade prévia (93,57%) e 28,57% passaram por hospitalização no ano anterior, mostrando que se tratava de um grupo com maior risco clínico-epidemiológico. Somente 5,15% possuíam plano de saúde privado. Perguntados sobre onde buscam assistência médica quando adoecem, os locais mais apontados foram UBS (34,20%) e hospitais públicos (33,33%), seguidos de UPA (22,08%). Quando a pergunta dizia respeito ao local mais buscado em situações de emergência, hospitais passaram para 59,05%, UPA 28,02% e UBS 5,6%.

Descrição dos itinerários terapêuticos

A tabela 2 descreve a distribuição de frequência absoluta e percentual das características relacionadas ao processo de adoecimento e acesso aos serviços de saúde, desde os sintomas iniciais até o desfecho da hospitalização por SRAG. Considerando que, no momento da coleta, muitos pacientes ainda estavam internados ou haviam falecido, 74,14% das entrevistas foram respondidas por acompanhantes.

Tabela 2
Descrição do itinerário terapêutico dos participantes, a partir das características do processo de adoecimento e acesso ao sistema de saúde (n = 233)

A maioria dos participantes foi hospitalizada durante a segunda onda, entre dezembro de 2020 e junho de 2021 (48,07%), ou na primeira onda, entre maio e agosto de 2020 (25,75%), seguindo o observado no cenário nacional2727 Brasil. Ministério da Saúde. Painel Coronavírus Brasil. Brasília, DF: Datasus; 2022. [acesso em 2022 jun 5]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/.
https://covid.saude.gov.br/...
. Aproximadamente 17% disseram ter usado medicamentos sem comprovação de eficácia (hidroxicloroquina, ivermectina e outros) para prevenir a covid-19. Após serem infectados, 44,7% dos pacientes tiveram de 3 a 4 sintomas, e 48,07% sentiram falta de ar. A maioria não usou medicamentos que já tinha em casa (74,76%) e buscou atendimento em até cinco dias após o aparecimento dos primeiros sintomas (66,66%).

Quanto ao acesso à RAS, os pontos mais buscados para primeiro atendimento foram os hospitais públicos (42,86%), seguidos pelas UPAs (25,54%), UBS (22,51%) e clínicas/consultórios (4,76%) ou hospitais particulares (4,33%). Categorizando-os pelo nível de atenção, 77,49% procuraram o primeiro atendimento na atenção especializada. Em 63,88% dos casos, o serviço ficava próximo à residência do paciente, o que foi apontado como principal motivo de escolha (42,67%).

Grande parte conseguiu atendimento no primeiro serviço procurado (67,53%) e foi hospitalizada no mesmo dia ou em até 24 horas (54,38%). A atenção especializada foi a principal porta de entrada do sistema, principalmente os hospitais públicos (60,61%). A maioria dos participantes (69,26%) passou por, no máximo, três serviços de saúde, somando-se os locais buscados e acessados. Estima-se que a distância total percorrida desde a residência, passando por esses serviços até o hospital estudado, variou de 5,29 a 3.440 km, com média de 163,28 km e mediana de 44,31 km – havia pacientes transferidos de Manaus-AM durante o colapso do sistema de saúde amazonense. A distância foi inferior a 50 km em 62,34% dos casos, e o carro particular foi o meio mais utilizado nesses trajetos (63,04%).

Com relação ao desfecho da hospitalização, 65,65% tiveram alta hospitalar, 27,83% faleceram e 6,52% foram transferidos. A duração do itinerário terapêutico, desde o início dos sintomas até esse desfecho, variou de 2 a 130 dias, com média de 31,25 e mediana de 24 dias.

De modo geral, a maioria dos participantes buscou o primeiro atendimento na atenção especializada e conseguiu acesso rápido ao sistema de saúde, conforme preconizado nos protocolos2020 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de Manejo Clínico do Coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde (v9). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2022 dez 11]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/05/1095920/20200504-protocolomanejo-ver09.pdf.
https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/...
, 2121 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Nota Técnica 01/2020 SES/SAIS/COAPS – COVID-19 Versão 4 – 03/09/2020. Diretrizes de Apoio Clínico e Organizacional para a APS no enfrentamento à COVID-19. Brasília, DF: SES-DF; 2020. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/1264413/NOTA_TECNICA_COVID_APS_V4_atualiza_0209.pdf.
https://www.saude.df.gov.br/documents/37...
, 2323 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de Manejo Clínico da Covid-19 na Atenção Especializada. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2022 dez 11]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manejo_clinico_covid-19_atencao_especializada.pdf.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, 2424 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Orientações para Referência de Urgências originadas da Atenção Primária à Saúde (APS) e a Regulação do Atendimento Pré-Hospitalar Secundário no âmbito do SAMU e das Regiões. Brasília, DF: SES-DF; 2020. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/1264413/SEI_GDF-42769596-Circular-COAPS-SAMU-1.pdf.
https://www.saude.df.gov.br/documents/37...
.

Análise de associações

A tabela 3 apresenta os resultados da análise de associações entre o perfil dos participantes e os dois eventos que caracterizaram o acesso ao sistema de saúde.

Tabela 3
Razões de prevalência brutas e ajustadas, conforme modelo de regressão de Poisson com variância robusta e seus respectivos intervalos de 95% de confiança, para os dois eventos que caracterizaram o processo de acesso aos serviços de saúde

No primeiro modelo, ‘buscar o primeiro atendimento na atenção especializada’ foi considerado como variável dependente. Inicialmente, na análise bivariada, as variáveis idade, escolaridade, ocupação, região de saúde da residência, classe econômica e nível de renda domiciliar média da região administrativa onde mora apresentaram um p valor < 0,25 e foram incluídas no modelo multivariado. Após ajuste do modelo de regressão de Poisson com variância robusta múltiplo, escolaridade, ocupação, região de saúde da residência e classe econômica apresentaram uma associação significativa (p < 0,05) com o evento.

Os resultados mostram que pacientes sem escolaridade ou com ensino fundamental foram os que mais buscaram o primeiro atendimento na atenção especializada, com prevalência 16% maior que aqueles com ensino médio ou superior (p = 0,0490). Quanto à ocupação, ser aposentado/pensionista ou trabalhador formal aumentou a probabilidade de buscar a atenção especializada em 48% (p = 0,0052) e 40% (p = 0,0478), respectivamente, quando comparado com pacientes desempregados. Trabalhadores autônomos e donas de casa não apresentaram diferenças significativas em relação aos desempregados (p = 0,2321).

Os moradores das regiões de saúde Norte e Sul do DF foram os que menos buscaram a atenção especializada para primeiro atendimento. Em seguida, vieram os das regiões Central, Centro-Sul e Sudoeste, com uma prevalência 51% maior (p = 0,0152; p = 0,0121), Leste (52%, p = 0,0162), de fora do DF (58%, p = 0,0069) e os da região Oeste, que tiveram 67% maior probabilidade de buscar a atenção especializada que os da Norte (p = 0,0019).

Os participantes pertencentes à classe A foram os que mais buscaram a atenção especializada, com uma prevalência 40% maior que os da classe C1/C2 (p = 0,00052). Pacientes das classes B1/B2 e DE não tiveram diferenças significativas em relação aos da classe C1/C2 (p = 0,6849; p = 0,6428). Embora não tenha permanecido no modelo multivariado, a análise do nível de renda domiciliar média da região de residência também indica que moradores de áreas com renda baixa foram os que mais buscaram atendimento na atenção primária, enquanto os de regiões com renda alta tiveram maior probabilidade de buscar a atenção especializada (38%, p = 0,0116).

A segunda parte da tabela mostra a análise de fatores associados ao evento ‘seguir os fluxos de acesso estabelecidos’, caracterizado por ‘ser atendido no primeiro serviço buscado’ e ‘passar por no máximo três serviços’.

Inicialmente, na análise bivariada, as variáveis escolaridade, região de saúde da residência, classe econômica, nível de renda domiciliar média da região administrativa onde mora, quantidade de sintomas iniciais, sintoma inicial ‘falta de ar’, onde buscou o primeiro atendimento e primeiro serviço procurado próximo à residência apresentaram um p valor < 0,25 e foram incluídas no modelo multivariado. Após o ajuste do modelo de regressão de Poisson com variância robusta múltiplo, nível de renda da região onde mora, quantidade de sintomas iniciais e onde buscou o primeiro atendimento apresentaram uma associação significativa (p < 0,05) com a facilidade de acesso ao sistema de saúde.

Os participantes que demoraram mais para conseguir atendimento e passaram por um número maior de serviços foram os que moram em regiões administrativas com nível de renda domiciliar média-alta. Já os participantes de fora do DF tiveram uma facilidade de acesso 65% maior (p = 0,0950), seguidos pelos moradores das regiões de renda baixa (90% maior, p = 0,0149), baixa-média (92% maior, p = 0,0130) e alta (139% maior, p = 0,0020).

Pessoas que apresentavam mais sintomas quando procuraram atendimento (> 4) tiveram 36% maior facilidade de acesso que aquelas com menos sintomas (p = 0,02225), assim como as que buscaram o primeiro atendimento na atenção especializada, em comparação com as que buscaram a APS (135% maior, p = 0,0007).

Os pacientes com falta de ar, em geral, foram atendidos no primeiro local buscado e rapidamente internados, mas, justamente por isso, passaram por menos serviços de saúde. Isso pode justificar o surgimento de um viés de confusão, onde os pacientes sem esse sintoma parecem ter tido maior facilidade de acesso.

O indicador de tolerância para multicolinearidade variou de 0,78 a 0,99 para o primeiro evento analisado e de 0,96 a 0,99 para o segundo, indicando que não existe multico-linearidade entre as variáveis independentes.

Georreferenciamento do percurso dos pacientes

A figura 2 apresenta a distribuição geográfica da residência dos pacientes, por região administrativa ou município, e a localização e o tipo dos serviços de saúde por onde eles passaram, desde o primeiro local procurado até o hospital estudado. O tamanho do círculo indica a quantidade de participantes em cada ponto do mapa, e a cor indica o tipo de serviço – UBS, UPA, hospital público ou clínica/hospital particular. Cabe lembrar que nessa etapa foram excluídos participantes que não tinham informação de endereço ou moravam fora da Ride.

Figura 2
Distribuição geográfica dos endereços de residência dos participantes (n = 219) e dos serviços de saúde por onde passaram

Discussão

Diferentemente do que costuma ser evidenciado em pesquisas sobre itinerários terapêuticos no SUS88 C abral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, et al. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2011 [acesso em 2022 jun 2]; 16(11):4433-4442. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011001200016&lng=pt&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 1010 Gerhardt TE, Pinheiro R, Ruiz ENF, et al., organizadores. Itinerários Terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj – Abrasco; 2016. [acesso em 2022 jun 4]. Disponível em: https://www.lappis.org.br.
https://www.lappis.org.br...
, 1111 Silva LF, Cursino EG, Brandão ES, et al. The path from suspicion to diagnosis of people with Covid-19. Rev. Gaúcha Enferm. 2021 [acesso em 2022 jun 7]; 42(esp):e20200282. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472021000200421&tlng=en.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 3030 Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. O Itinerário Terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saúde debate. 2019 [acesso em 2022 jun 2]; 43(esp7):204-221. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042019001200204&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 3131 Lima BC, Silva LF, Góes FGB, et al. O itinerário terapêutico de famílias de crianças com câncer: dificuldades encontradas neste percurso. Rev. Gaúcha Enferm. 2018 [acesso em 2022 jun 7]; 39:e20180004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472018000100455&lng=pt&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 3232 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Ciênc. saúde coletiva. 2016 [acesso em 2022 jun 7]; 21(1):179-189. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000100179&lng=pt&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 3333 Bosaipo DS, Lamy ZC, Oliveira PS, et al. Itinerário terapêutico de crianças com microcefalia pelo vírus Zika. Ciênc. saúde coletiva. 2021 [acesso em 2022 jun 7]; 26(6):2271-2280. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232021000602271&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, neste estudo de caso, a maioria dos participantes seguiu os fluxos formais, teve acesso rápido e não precisou peregrinar pelos serviços de saúde para conseguir atendimento. Os principais determinantes dessa facilidade de acesso foram: gravidade dos casos, caracterizada por idade, perfil clínico-epidemiológico e quantidade de sintomas iniciais; tipo de serviço buscado para primeiro atendimento; e contexto socioeconômico, representado pelo nível de renda domiciliar média da região de residência.

A instituição estudada recebia, principalmente, pacientes graves. Isso pode justificar a homogeneidade das características clínico-epidemiológicas, embora, de modo geral, o perfil não seja distinto do observado em outros estudos, em que sexo masculino, idade acima de 60 anos, raça/cor preta ou parda, baixa escolaridade e múltiplas comorbidades aparecem como principais fatores de risco para hospitalização e óbito por covid-192929 Prado PR, Gimenes FRE, Lima MVM, et al. Fatores de risco para óbito por COVID-19 no Acre, 2020: coorte retrospectiva. Epidemiol. Serv. Saúde (Online). 2021 [acesso em 2023 mar 27]; 30(3):e2020676. Disponível em: http://www.scielo.br/j/ress/a/5t7R7sxN5wdLYYVvkJkLBxf/?lang=pt.
http://www.scielo.br/j/ress/a/5t7R7sxN5w...
, 3434 Silva VR, Pacheco ES, Cardoso OO, et al. Tendência temporal das taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19 e sua relação com indicadores socio-econômicos no Piauí: estudo ecológico, 2020-2021. Epidemiol. Serv. Saúde. 2022 [acesso em 2023 mar 27]; 31(2):e20211150. Disponível em: http://www.scielo.br/j/ress/a/6zpZTM6xjkJ3YMbZgDXtDTH/?lang=pt.
http://www.scielo.br/j/ress/a/6zpZTM6xjk...
, 3535 Mascarello KC, Vieira ACBC, Souza ASS, et al. Hospitalização e morte por COVID-19 e sua relação com determinantes sociais da saúde e morbidades no Espírito Santo: um estudo transversal. Epidemiol. Serv. Saúde. 2021 [acesso em 2023 mar 27]; 30(3):e2020919. Disponível em: http://www.scielo.br/j/ress/a/vwnZ8DMcbGxJghC5CbTnZ8b/?lang=pt.
http://www.scielo.br/j/ress/a/vwnZ8DMcbG...
. A duração do itinerário também foi semelhante à de uma coorte brasileira que investigou fatores associados ao óbito por covid-19, segundo a qual o tempo médio entre os sintomas e o desfecho foi de 33,6 dias2929 Prado PR, Gimenes FRE, Lima MVM, et al. Fatores de risco para óbito por COVID-19 no Acre, 2020: coorte retrospectiva. Epidemiol. Serv. Saúde (Online). 2021 [acesso em 2023 mar 27]; 30(3):e2020676. Disponível em: http://www.scielo.br/j/ress/a/5t7R7sxN5wdLYYVvkJkLBxf/?lang=pt.
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.

O fato de a maioria dos participantes ter buscado o primeiro atendimento na atenção especializada entre o terceiro e o quinto dia após surgirem os sintomas e ter relatado que não se automedicou também é indício da capacidade de perceber a gravidade da situação e tomar decisões alinhadas aos protocolos. Alguns fatores podem explicar essa diferença em relação aos estudos que mostram que os itinerários terapêuticos geralmente não coincidem com os fluxos estabelecidos88 C abral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, et al. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2011 [acesso em 2022 jun 2]; 16(11):4433-4442. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011001200016&lng=pt&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
. Primeiramente, a circulação diária de informações na imprensa, redes e mídias sociais intensificou (ou reduziu, dependendo do posicionamento) a visibilidade da covid-19. Isso pode ter deixado o setor profissional e a população, especialmente grupos de risco, mais atentos às orientações de acesso. Em segundo lugar, quase 75% das entrevistas foram respondidas pelos acompanhantes, geralmente familiares mais jovens e com maior nível de escolaridade. Ao afirmarem que costumam procurar assistência na atenção primária quando adoecem e na atenção especializada em situações de emergência, eles demonstraram certo conhecimento sobre a lógica de funcionamento do sistema, que pode ser distinto do que os próprios pacientes teriam. Além disso, há que se considerar que essa narrativa pode ter sido influenciada pelas interpretações e pelos aprendizados da experiência vivida, após constatarem, por exemplo, que buscar uma UBS tornou o acesso mais demorado.

O sistema de saúde também parece ter cumprido os protocolos, garantindo maior acesso aos públicos considerados prioritários – pessoas com fatores de risco e casos graves2020 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de Manejo Clínico do Coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde (v9). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2022 dez 11]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/05/1095920/20200504-protocolomanejo-ver09.pdf.
https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/...
, 2121 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Nota Técnica 01/2020 SES/SAIS/COAPS – COVID-19 Versão 4 – 03/09/2020. Diretrizes de Apoio Clínico e Organizacional para a APS no enfrentamento à COVID-19. Brasília, DF: SES-DF; 2020. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/1264413/NOTA_TECNICA_COVID_APS_V4_atualiza_0209.pdf.
https://www.saude.df.gov.br/documents/37...
, 2323 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo de Manejo Clínico da Covid-19 na Atenção Especializada. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2022 dez 11]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manejo_clinico_covid-19_atencao_especializada.pdf.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, 2424 Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Orientações para Referência de Urgências originadas da Atenção Primária à Saúde (APS) e a Regulação do Atendimento Pré-Hospitalar Secundário no âmbito do SAMU e das Regiões. Brasília, DF: SES-DF; 2020. [acesso em 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/1264413/SEI_GDF-42769596-Circular-COAPS-SAMU-1.pdf.
https://www.saude.df.gov.br/documents/37...
. Mas é importante avaliar porque quem buscou a atenção primária demorou mais para conseguir atendimento. Por uma questão histórica e estrutural, o SUS ainda é mais preparado para lidar com eventos agudos de saúde, que exigem respostas episódicas e reativas no nível hospitalar, do que com condições crônicas não agudizadas, em que são necessárias ações contínuas, proativas e integradas3636 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2. ed. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011. [acesso em 2023 maio 13]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/redes_de_atencao_saude.pdf.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
. Essa lógica hospitalocêntrica torna o acesso melhor e mais rápido em situações de urgência/emergência, especialmente para quem busca a atenção especializada.

Por outro lado, a capacidade de resposta do SUS foi afetada pelo negacionismo do (des)governo Jair Bolsonaro33 Brandão CC, Mendonça AVM, Sousa MF. Governança federal na construção da política de enfrentamento à covid-19 na atenção primária à saúde brasileira. Ciênc. saúde coletiva. 2023 [acesso em 2023 maio 27]; 28(12):3643-3658. Disponível em: https://cienciae-saudecoletiva.com.br/artigos/governanca-federal-na-construcao-da-politica-de-enfrentamento-a-co-vid19-na-atencao-primaria-a-saude-brasileira/18696.
https://cienciae-saudecoletiva.com.br/ar...
, 3737 Rocha R, Atun R, Massuda A, et al. Effect of socioeconomic inequalities and vulnerabilities on health-system preparedness and response to COVID-19 in Brazil: a comprehensive analysis. Lancet Glob. Health. 2021 [acesso em 2023 abr 1]; 9(6):e782-92. Disponível em: http://www.thelancet.com/article/S2214109X21000814/fulltext.
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e pelas discrepâncias de natureza político-institucional (características do arranjo federativo) e histórico-estrutural (desigualdades socioespaciais) que existem entre as unidades federativas, entre áreas urbanas e rurais, centro e periferia3838 Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2023 abr 1]; 36(7):e00185220. Disponível em: http://www.scielo.br/j/csp/a/HSHqX3v5bnW5pqqLpHrzg8m/.
http://www.scielo.br/j/csp/a/HSHqX3v5bnW...
. Um estudo revelou que a disponibilidade de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) foi consideravelmente maior nos centros das grandes cidades66 Souza MN. O Programa Saúde da Família como estratégia de enfrentamento da Covid-19 na periferia de Curitiba. In: Toniol R, Grossi MP. Cientistas Sociais e o Coronavírus. São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha; 2020 [acesso em 2022 jul 22]. p. 454-459. Disponível em: http://anpocs.org/index.php/ciencias-sociais/destaques/2458-livro-cientistas-sociais-e-o-coronavirus-ebook-download-gratuito.
http://anpocs.org/index.php/ciencias-soc...
. Outro concluiu que as desigualdades socioeconômicas e de acesso aos serviços de saúde tiveram maior associação com os casos e óbitos por covid-19 do que com fatores biológicos: os estados do Norte/Nordeste, onde há menor desenvolvimento socioeconômico e capacidade hospitalar, apresentaram as piores taxas de mortalidade, mesmo tendo menor prevalência de fatores de risco clínico. Esse mesmo estudo apontou que o DF teve a maior proporção de leitos de UTI por habitantes e a menor taxa de mortalidade do País3737 Rocha R, Atun R, Massuda A, et al. Effect of socioeconomic inequalities and vulnerabilities on health-system preparedness and response to COVID-19 in Brazil: a comprehensive analysis. Lancet Glob. Health. 2021 [acesso em 2023 abr 1]; 9(6):e782-92. Disponível em: http://www.thelancet.com/article/S2214109X21000814/fulltext.
http://www.thelancet.com/article/S221410...
. Como visto na figura 2, os vazios assistenciais do DF são menos expressivos do que nas demais Unidades Federativas (UF), especialmente naquelas com menor densidade demográfica.

O contexto socioeconómico é um dos principais determinantes das decisões e experiências vivenciadas na busca de cuidados3939 Alamilla SG, Cano MA. COVID-19 and Adverse Social Determinants of Health. Behav. Med. 2022 [acesso em 2023 abr 1]; 48(2):67-71. Disponível em: https://doi.org/10.1080/08964289.2022.2027859.
https://doi.org/10.1080/08964289.2022.20...
. Apesar de ter o maior índice de Desenvolvimento Humano e renda domiciliar per capita entre todas as UF4040 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Fundação João Pinheiro. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. [local desconhecido]: Ipea; 2021. [acesso em 2023 maio 16]. Disponível em: http://www.atksbrasil.org.br/ranking.
http://www.atksbrasil.org.br/ranking...
, o DF tem o terceiro maior percentual de pessoas pobres, revelando desigualdades que se manifestam em problemas de mobilidade, habitação, trabalho, renda e acesso a serviços, inclusive de saúde4141 Distrito Federal. Conselho de Desenvolvimento Econômico, Sustentável e Estratégico do Distrito Federal. Panorama do desenvolvimento do DF – 2022. Brasília, DF: Codese/DF; 2022. [acesso em 2023 mar 27]. Disponível em: http://codesedf.org.br/codese_df_livro_diagnostico_df_2022.pdf.
http://codesedf.org.br/codese_df_livro_d...
. Isso é importante para entender a associação entre a região de residência dos participantes e o tipo de serviço procurado primeiro.

A decisão de qual local buscar depende de diversos fatores, incluindo as percepções sobre as características, finalidade e disponibilidade dos serviços77 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad. Saúde Pública. 2004 [acesso em 2023 maio 16]; 20(supl2):S190-S198. Disponível em: http://www.scielo.br/j/csp/a/PkyrsjDrZWwzzPVJJPbbXtQ/.
http://www.scielo.br/j/csp/a/PkyrsjDrZWw...
. Neste sentido, as inequidades de oferta existentes entre as regiões de saúde podem ter sido determinantes. A Região de Saúde Oeste, onde UPA e hospitais foram mais procurados, possui maior disponibilidade de serviços especializados. Já a Região de Saúde Norte, onde a APS foi mais procurada, concentra os piores indicadores socioeconómicos do DF e baixa oferta de AES4141 Distrito Federal. Conselho de Desenvolvimento Econômico, Sustentável e Estratégico do Distrito Federal. Panorama do desenvolvimento do DF – 2022. Brasília, DF: Codese/DF; 2022. [acesso em 2023 mar 27]. Disponível em: http://codesedf.org.br/codese_df_livro_diagnostico_df_2022.pdf.
http://codesedf.org.br/codese_df_livro_d...
. Da mesma forma, o fato de os participantes que tiveram maior dificuldade de acesso serem os que moravam em regiões com renda média-alta e que buscaram primeiro a rede privada pode estar relacionado às percepções que eles têm do SUS e, ainda, às crenças político-ideológicas negacionistas comuns em grupos com maior poder económico.

De modo geral, os resultados confirmam a proposição teórica deste estudo de caso, de que as pessoas possuem comportamentos e pensamentos distintos diante da doença, e isso não está relacionado apenas a fatores biológicos, mas, também, socioculturais4242 Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2010 [acesso em 2022 jul 13]; 18(3):459-466. Disponível em: http://www.scielo.br/j/rlae/a/5RwbrHQkrZ4X7KxNrhwvjTB/?lang=pt.
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, como educação, classe social, estrutura familiar, identidade cultural, crenças, entre outros. Portanto, a abordagem de questões relacionadas à saúde precisa levar em conta os contextos em que elas ocorrem, sendo capaz de superar posturas hegemónicas e etnocêntricas características da abordagem biomédica e considerar a influência da cultura e sociedade sobre a forma como as experiências de adoecimento são vivenciadas4343 Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Ciênc. saúde coletiva. 2014; 19(4):1019-1029. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.22302013.
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. A saúde coletiva e a antropologia da saúde fornecem conhecimentos importantes para essa compreensão44 Toniol R, Grossi MP. Cientistas Sociais e o Coronavírus. São Paulo: Anpocs; Florianópolis: Tribo da Ilha; 2020. [acesso em 2022 jul 22]. Disponível em: http://anpocs.org/index.php/ciencias-sociais/destaques/2458-livro-cientistas-sociais-e-o-coronavirus-ebook-download-gratuito.
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, podendo contribuir para que as pesquisas, políticas e ações em saúde, incluindo as práticas profissionais, sejam mais humanizadas, interdisciplinares e efetivas.

Grande parte das pesquisas empíricas que investigaram aspectos sociodemográficos de internações por covid-19 no contexto brasileiro3434 Silva VR, Pacheco ES, Cardoso OO, et al. Tendência temporal das taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19 e sua relação com indicadores socio-econômicos no Piauí: estudo ecológico, 2020-2021. Epidemiol. Serv. Saúde. 2022 [acesso em 2023 mar 27]; 31(2):e20211150. Disponível em: http://www.scielo.br/j/ress/a/6zpZTM6xjkJ3YMbZgDXtDTH/?lang=pt.
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,3535 Mascarello KC, Vieira ACBC, Souza ASS, et al. Hospitalização e morte por COVID-19 e sua relação com determinantes sociais da saúde e morbidades no Espírito Santo: um estudo transversal. Epidemiol. Serv. Saúde. 2021 [acesso em 2023 mar 27]; 30(3):e2020919. Disponível em: http://www.scielo.br/j/ress/a/vwnZ8DMcbGxJghC5CbTnZ8b/?lang=pt.
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,3737 Rocha R, Atun R, Massuda A, et al. Effect of socioeconomic inequalities and vulnerabilities on health-system preparedness and response to COVID-19 in Brazil: a comprehensive analysis. Lancet Glob. Health. 2021 [acesso em 2023 abr 1]; 9(6):e782-92. Disponível em: http://www.thelancet.com/article/S2214109X21000814/fulltext.
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,4444 Baqui P, Bica I, Marra V, et al. Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Glob. Health. 2020 [acesso em 2023 abr 3]; 8(8):e1018-e1026. Disponível em: http://www.thelancet.com/article/S2214109X20302850/fulltext.
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focou nos desfechos clínicos e/ou utilizou somente dados secundários. Este é o primeiro estudo a analisar dados primários e secundários para descrever os itinerários terapêuticos de pessoas hospitalizadas por covid-19 no SUS e explorar os determinantes sociais desse processo a partir de uma abordagem quanti-qualitativa.

A principal limitação deste estudo é que os dados se restringiam aos caminhos e decisões dos participantes no setor profissional de saúde. Isso dificultou a investigação de aspectos culturais e de outras formas de cuidado que não sejam as práticas biomédicas99 Alves PCB, Souza IMA. Escolha e Avaliação de Tratamento para Problemas de Saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Experiência de Doença e Narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. [acesso em 2022 jun 2]. Disponível em: https://books.scielo.org/id/pz254/pdf/rabelo-9788575412664-06.pdf.
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, 1010 Gerhardt TE, Pinheiro R, Ruiz ENF, et al., organizadores. Itinerários Terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj – Abrasco; 2016. [acesso em 2022 jun 4]. Disponível em: https://www.lappis.org.br.
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. Além disso, informações relevantes para compreensão dos itinerários e do acesso estavam incompletas ou inconsistentes e não puderam ser incluídas na análise, como local e data exatos dos atendimentos. Os dados também não permitiram identificar quando a transição entre os serviços ocorreu por iniciativa do paciente (em busca de atendimento) ou por transferência, limitando o cálculo das distâncias e mapeamento dos percursos.

Por fim, na análise documental, observou-se um ‘apagão’ de informações no portal do Ministério da Saúde, entre 2020 e 2021. Os protocolos utilizados no estudo foram retirados de sites de terceiros, revelando como o posicionamento político-ideológico do Governo Jair Bolsonaro afetou, inclusive, a transparência e efetividade da comunicação e a gestão de riscos na pandemia.

Conclusões

Este estudo analisou itinerários terapêuticos de pessoas internadas com covid-19 grave em um hospital público do Distrito Federal, concluindo que o acesso da população estudada à RAS seguiu os protocolos oficiais e foi influenciado por características sociodemográficas.

Os resultados podem não ser estatisticamente generalizáveis, principalmente por causa dos efeitos da diversidade cultural e de inequidades regionais sobre o acesso aos cuidados em saúde. Por outro lado, eles permitem concluir que as políticas de enfrentamento da covid-19 e outras epidemias precisam considerar não apenas riscos biológicos, mas, também, as desigualdades e vulnerabilidades que afetam as pessoas de formas distintas. Entendendo que os itinerários terapêuticos têm a capacidade de revelar necessidades individuais, sociais e institucionais, estudos como este podem ajudar gestores e profissionais do SUS no desafio de planejar e gerir serviços de saúde que respondam efetivamente às demandas da população.

Ainda que a OMS tenha declarado, em maio de 2023, o fim da pandemia de covid-19, suas consequências seguirão influenciando os modos de viver, relacionar-se, sentir e interpretar o mundo. Diante disso, é essencial que novas pesquisas busquem aprofundar a compreensão dos itinerários terapêuticos em situações de emergência sanitária, analisando os aspectos culturais e todas as formas de cuidado envolvidas no processo de saúde/adoecimento individual e coletivo.

  • Suporte financeiro: este trabalho foi apoiado pelo Ministério da Educação (MEC) – Projeto ‘Ações integradas de pesquisa e serviço para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Distrito Federal’, da Universidade de Brasília (ÜnB), processo SEI nº 23106.036212/2020-02

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2023
  • Aceito
    29 Abr 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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