Da Lagoa do Boi Morto à Barragem da Toldinha: a água como elemento central para a construção de territórios sustentáveis e saudáveis no Médio Jequitinhonha

From Lagoa do Boi Morto to Barragem da Toldinha: Water as a central element for the construction of sustainable and healthy territories in the Middle Jequitinhonha

Flora Gonçalves Polyana Aparecida Valente Cleiton Rodrigues Mendes Sobre os autores

RESUMO

Esse artigo é fruto das reflexões e experiências provocadas a partir do projeto ‘Comunidades Quilombolas e Covid-19: desenvolvimento de tecnologias sociais para promoção de saúde no Médio Jequitinhonha, Minas Gerais’. Nesse sentido, discutiremos os processos da implementação das tecnologias sociais nas Comunidades Quilombolas Córrego do Rocha e Córrego do Narciso, bem como os resultados alcançados, sua importância na efetivação de políticas afirmativas e reparativas na população quilombola e, por fim, o início da consolidação de um território sustentável e saudável no âmbito das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha.

PALAVRAS-CHAVE
Quilombolas; Equidade; Agricultura sustentável; Saúde pública; Saúde ambiental; Educação em saúde.

ABSTRACT

This article is based on the reflections and experiences provoked from the project ‘Quilombola Communities and COVID-19: Development of social technologies for health promotion in the Médio Jequitinhonha, Minas Gerais’. In this sense, we will discuss the processes of implementation of social technologies in the Quilombola Communities Córrego do Rocha and Córrego do Narciso, as well as the results achieved, their importance in the implementation of affirmative and reparative policies in the quilombola population and, finally, on the beginning of the consolidation of a sustainable and healthy territory within the scope of the quilombola communities of Vale do Jequitinhonha.

KEYWORDS
Quilombola communities; Equity; Public health; Environmental health; Health education.

Introdução

Meu sonho é ver o que meus pais não viram, a água escorrendo da torneira de nossas pias… (Comadre Veia, 2022, Comunidade Quilombola Córrego do Narciso).

A fala da quilombola Mônica, também conhecida como Comadre Veia, sintetiza o sonho antigo de comunidades quilombolas localizadas no Vale Jequitinhonha em terem acesso à água em suas casas. Desse modo, tendo como alicerce a histórica privação hídrica imposta às comunidades rurais, sobretudo as quilombolas, o projeto intitulado ‘Comunidades quilombolas e Covid-19: desenvolvimento de tecnologias sociais para promoção de saúde no Médio Jequitinhonha, Minas Gerais’, teve como objetivo principal auxiliar na melhoria das condições de saúde e de qualidade de vida de duas comunidades quilombolas localizadas na região do Vale do Jequitinhonha no contexto da pandemia da covid-19. Tais melhorias foram pensadas, coletivamente, a partir da implementação de tecnologias sociais de baixo custo e do reaproveitamento de recursos hídricos, no intuito de garantir a sustentabilidade e a autonomia desses territórios durante e no pós-pandemia.

É importante ressaltar que, embora o enfoque da pesquisa se relacionasse diretamente com a covid-19, a água - ou melhor, a falta dela - mostrou-se como eixo norteador do trabalho, compreendida como uma política transversal. Percebe-se que falar sobre água nos quilombos do Vale do Jequitinhonha é falar, sobretudo, de outros aspectos da vida cotidiana das comunidades, tais como: gênero, saúde, soberania alimentar, violência doméstica, direitos humanos, autonomia e protagonismo dos quilombolas na luta pela garantia de direitos básicos.

Nesses territórios, a falta de acesso à água é um dos marcadores mais estruturantes, sendo a ausência de recursos hídricos o ponto inicial de suas pautas. Como se nota na citação que abre o artigo, as memórias (corporais, narrativas, subjetivas) sobre a escassez da água estão incrustadas nos discursos sobre suas vivências cotidianas, passadas de mães e pais para seus filhos a cada nova geração.

Dessa forma, a experiência de inserção da equipe e dos quilombolas na execução do projeto atualizou o que se entende por tecnologias sociais e territórios sustentáveis e saudáveis, fazendo com que a troca de saberes fosse, também, uma construção de vínculos e de fluxos comunicacionais além das melhorias implementadas. Afora a construção das tecnologias sociais em si, elaboraram-se, em conjunto com as comunidades, boletins informativos, notas técnicas, termos de compromisso com secretarias de saúde dos municípios, oficinas sobre a saúde das mulheres, entre outros.

Neste artigo, tentar-se-á abarcar a potencialidade desse encontro entre as Comunidades Quilombolas e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Vale ressaltar que essas experiências foram protagonizadas pelos quilombolas, sobretudo, pelas lideranças femininas, visando ao fortalecimento e à sustentabilidade dos seus territórios e à efetivação dos seus direitos enquanto comunidades remanescentes quilombolas que estão - ainda - à margem das políticas públicas de saúde, latifundiárias, culturais e histórico-sociais dada a força do racismo estrutural da sociedade. Por fim, o objetivo deste artigo é colaborar para a produção científica a partir da confluência de saberes quilombolas, problematizando, na medida em que se torna possível, o conceito de tecnologias sociais. Além disso, são trazidos os processos executivos da implementação das tecnologias, como fins de replicabilidade, apresentando alguns resultados observados após monitoramento destas.

Material e métodos

Metodologias qualitativas

Dadas a variedade e as especificidades das metodologias utilizadas nos encontros com a Comunidade Quilombola do Córrego do Rocha e a Comunidade Quilombola Córrego do Narciso, dividiram-se os métodos em duas frentes: a qualitativa e a técnica. A pesquisa e sua metodologia foram aprovadas pelo Comité de Ética em Pesquisa do Instituto René Rachou - IRR/Fiocruz Minas, Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE 43259121.3.0000.5091, número do parecer: 4.702.705, que previu um trabalho de caráter qualitativo e exploratório, construído de forma colaborativa com a comunidade. No que diz respeito aos métodos qualitativos em ambas as comunidades, desenvolvemos a pesquisa-ação. A opção pelo método de pesquisa-ação11 Tripp D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educ Pesqui. 2005;31(3):443-466. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022005000300009
https://doi.org/10.1590/S1517-9702200500...
justifica-se pelo caráter continuado, sistemático e empírico com objetivo de aprimoramento da prática, sendo premissas da pesquisa a participação, o papel da reflexão, a administração do conhecimento e a ética no processo. Por se tratar de uma pesquisa que tem caráter exploratório, ela foi construída de forma colaborativa com as comunidades, especialmente pautada na pesquisa-ação.

A pesquisa-ação parte do caráter participativo em: a) identificação do problema; b) planejamento de soluções; c) resolução de um ou mais problemas coletivos; d) monitoramento; e e) a avaliação de sua eficácia. Na prática do projeto, a pesquisa-ação esteve presente em todas as etapas da pesquisa, ou seja, no diálogo para identificação dos problemas enfrentados na pandemia, com destaque para a escassez hídrica, as possibilidades de resoluções, via tecnologias sociais, a execução compartilhada das tecnologias e a checagem da sua eficácia e benefícios para comunidade. Como elementos da pesquisa-ação, destaca-se a realização de protocolos de consultas a cada ação realizada, com o objetivo de informar previamente e obter a aprovação da comunidade nas ações a serem implementadas.

O uso e direito dos protocolos de consultas sobre os povos indígenas e tradicionais foram estabelecidos pela 169ª Convenção Internacional do Trabalho, em 1989, em Genebra, reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas formas de vida, identidades, línguas e religiões, bem como o direito destes em decidir como querem ser acionados pelas instituições públicas em suas variadas instâncias, instituições de pesquisa e outros. No Brasil, a incorporação de tal direito deu-se no contexto dos anos 2000 com ampla participação das associações civis e movimentos sociais; no caso quilombola, destaca-se a Coordenação Nacional de Quilombos (Conaq). Apesar da conquista e regulamentação desse direito, muitas comunidades ainda são violadas.

Seguindo os preceitos da pesquisa-ação e dos protocolos de consulta, a pesquisa dividiu-se nas seguintes etapas: 1) etapa diagnóstica: mapeamento, levantamento de dados e cartografia dos territórios quilombolas, assim como a realização do protocolo de consulta prévio, livre e esclarecido; 2) diálogo com gestão pública: estratégias possíveis de parcerias; 3) reuniões formativas, oficinas e festividades na comunidade: realização de oficinas pedagógicas e operacionais para elaboração de estratégia da implementação das tecnologias sociais e a realização de oficinas sobre mulheres, territórios, direitos humanos e festividades de encerramento do projeto.

Ainda no campo das pesquisas qualitativas, realizaram-se entrevistas de história oral com mulheres das comunidades. A história oral é um recurso moderno, inaugurado depois da Segunda Guerra Mundial, que passou a ser um mecanismo utilizado para validar algumas experiências que não estão registradas em documentos escritos ou, ainda, quando estão presentes em documentos escritos, porém, com um caráter mais subjetivo. Recentemente, especialmente com o florescimento das mídias sociais, vive-se outro momento, no qual os arquivos e registros orais fazem parte do acervo da mesma forma que os jornais, os manuscritos, os textos etc., e tem se mostrado como fonte privilegiada aos pesquisadores do tempo presente.

A história oral é uma narrativa na qual a entrevista, gravada ou filmada, tem fundamento de um registro de suporte material, que permite, quase sempre, que haja variações das possibilidades da documentação escrita22 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.. Como sugere Bosi33 Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1994., a história oral possui uma amplitude de vibração que falta à informação; no caso das comunidades quilombolas, a ausência de fontes históricas e registros textuais sobre as comunidades, bem como a prevalência da oralidade e dos saberes tradicionais em seus territórios. O registro oral permite acessar memórias e histórias perdidas no tempo, que são reconstruídas na fala das pessoas que vivem na comunidade, especialmente nas mulheres, que têm atuado como guardiãs das tradições e porta-vozes dos quilombos na perspectiva histórica e nas demandas atuais. A narrativa oral, nesse sentido, aponta o conjunto das experiências de vida de uma pessoa ou de um coletivo, revelando o seu protagonismo e sua agência narrativa, ou seja, sua potencialidade enquanto salvaguarda das memórias e registros históricos fundamentais para a compreensão histórica. Uma narrativa pessoal, profunda e íntima, permite descortinar mais que os fatos em si, mas impressões, visões de mundo, entre outros.

Dentro da história oral, existem algumas variações, destas, destacam-se a história oral de vida, a história oral temática, a tradição oral e a história oral testemunhal. A presente pesquisa apoiou-se na história oral testemunhal, alternativa para quem estuda as comunidades estruturadas pela tradição oral, sendo, portanto, muito utilizada em pesquisas que investigam comunidades indígenas e quilombolas. Segundo Meihy e Seawright44 Meihy JCSB, Seawright L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto; 2020., a memória construída pela fala não se atenta para exatidões informativas, diferindo-se das invalidades e usos de dados qualitativos. Os produtos das entrevistas são sempre subjetivos e correspondem a uma narrativa constituída pela memória individual e coletiva.

Por essa característica, ainda segundo os autores, a tradição oral é uma das mais complexas e raras manifestações da história oral. Além disso, ela trabalha com a ‘transcendência do tempo’ e, muitas vezes, anula os espaços físicos. Ela admite, ainda, a presença das crenças e demais valores de explicações não racionais, em que, infelizmente, a tradição oral é vista como algo menos aceito na/pela comunidade acadêmica. Isso revela um grave preconceito acadêmico, visto que a memória de expressão oral tem sido rebaixada como se fosse algo meramente folclórico, como coisa do ‘povo’ e pouco prezada como matéria de estudos. Este trabalho visou exatamente superar esses preconceitos e estabelecer diálogos entre o mundo acadêmico e as comunidades quilombolas, sem hierarquização dos saberes, construindo narrativas publicadas em capítulos de livros e artigos, assinados pelas mulheres quilombolas e pelos pesquisadores deste artigo, visando a superação das versões eurocêntricas e homogeneizadoras sobre as comunidades quilombolas.

Nos territórios quilombolas, as entrevistas a partir da história oral trouxeram um riquíssimo material analítico, em que o presente histórico é marcado pelo passado permeado pela ausência de políticas públicas, principalmente relacionadas com a falta d’água. Ainda assim, as narrativas não apontam apenas ausências. É crucial que se saiba que, mesmo envoltos em adversidades e vulnerabilidades aos quais estão expostos, os quilombolas, em suas histórias de vida, apontam para uma luta contínua por seus direitos territoriais, pautando invenções e bricolagens ancestrais para contrapor à falta de recursos hídricos que assola a região. Suas histórias são fruto do protagonismo quilombola na busca por um bem viver circunscrito nas suas relações com a terra, com as folhas, com o tempo e com a memória.

Por fim, os trabalhos de campo foram sucedidos da observação participante, no sentido de construir uma escuta qualificada para as demandas trazidas e agenciadas pelas comunidades. A observação participante proporcionou a sistematização dos materiais coletados a partir do cotidiano dos territórios, levando em consideração que as experiências de pesquisa são relatos parciais e que fazem parte de ‘um campo de poder dos posicionamentos discursivos’. A escolha da história oral, em conjunto com a observação participante, alargou os referenciais teóricos e construiu uma ciência coletiva, racializada, corporificada e localizada. Essa escolha, que parte também das discussões feministas de Haraway55 Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu [Internet]. 2009 [acesso em 2024 jan 20];(5):7-41. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=51046
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/...
, apostou que a objetividade só pode ser alcançada e corporificada a partir do saber localizado. Sabe-se que a objetividade, geralmente, trata de uma ciência sem subjetividades, sem contaminantes: descorporificada. No entanto, Haraway defende que a visão da objetividade que tanto se almeja precisa ser parcialmente compartilhada: e é isso que se produz, dialogicamente, com os territórios quilombolas.

Metodologias técnicas

Para cada comunidade, foram implementadas tecnologias sociais distintas, atentando-se para o desejo das comunidades, viabilidade técnica e estudo de impacto ambiental. No caso da Comunidade Quilombola do Córrego do Rocha, em Chapada do Norte, foi realizado o cercamento da nascente seguido de curva de nível, e na Comunidade Quilombola Córrego do Narciso, em Araçuaí, realizou-se a revitalização da Lagoa Boi Morto.

Optou-se pela descrição técnica ciente de que, embora exaustiva, ela é importante para os fins de replicabilidade em outros territórios. Vale destacar que a descrição, apesar de técnica, foi elaborada na confluência dos conhecimentos técnico-agrícolas com os saberes tradicionais praticados nos territórios pelos quilombolas, visando à diminuição dos impactos da escassez hídrica provocada historicamente nos territórios quilombolas do Vale Jequitinhonha. O intuito é de que, a partir da divulgação científica desses processos, possa-se democratizar o acesso não só às tecnologias em si, mas também aos procedimentos executivos que as estruturam. De toda forma, é importante ressaltar que tais tecnologias foram pensadas como forma de mitigar o acesso aos recursos hídricos da região, a fim de minimizar os impactos ambientais possíveis e maximizar seu uso pelas comunidades.

CERCAMENTO DA NASCENTE/BARRAGEM DA TOLDINHA - COMUNIDADE QUILOMBOLA DO CÓRREGO DO ROCHA

Devido ao relevo irregular do Quilombo Córrego do Rocha e a existência de cisternas de contenção das águas da chuva, em quase todas as casas do território, abastecidas por poços artesianos implementados pela prefeitura recentemente, a comunidade optou por uma tecnologia de longo prazo: a recuperação da nascente da Toldinha, também conhecida como barragem da Toldinha. A nascente fica localizada abaixo da rodovia que liga os municípios de Chapada do Norte a Berilo, e as fortes enxurradas são responsáveis, também, por provocar o assoreamento da nascente.

A primeira etapa de desenvolvimento da tecnologia foi a análise do terreno pelo técnico agrícola da equipe, para avaliação de possíveis impactos ambientais. Posteriormente, foi realizado o cercamento da nascente, uma área equivalente a aproximadamente 3 mil metros quadrados, com o apoio do mutirão realizado em conjunto com a comunidade (figura 1). A área cercada contempla uma parcela maior que a nascente, visando impedir o acesso de animais e o desmatamento dentro da área e fortalecer a recuperação da nascente. As etapas do cercamento foram feitas com mão de obra da comunidade a partir do recebimento de diárias de trabalho.

Figura 1
Mutirão do cercamento

Houve também intervenções com horas-máquina visando à ampliação de uma barraginha que fica logo acima da nascente que é a principal fonte de recarga. Além disso, foram construídas três bacias de contenção, com o objetivo de manutenção e recarga do lençol freático da região.

As chamadas barraginhas, muito comuns nessa região, são pequenas bacias escavadas dentro de um território, no intuito de captar as águas da chuva e armazená-las nos tempos de estiagem. Por serem conhecidas por esse termo na região, optou-se por usá-lo também. Tal técnica, aprimorada pelas populações tradicionais, foi apropriada pela Empresa Brasileira de Tecnologia Agropecuária (Embrapa), que oferece parcerias para replicá-las, auxiliando na mitigação da erosão e na infiltração de água nos lençóis freáticos. Esse assunto será retomado abaixo.

A partir das tecnologias sociais implementadas - o cercamento, a construção da barraginha e as bacias de contenção -, pretende-se que as chuvas proporcionem o acúmulo das suas águas e permitam que seu volume seja infiltrado no solo. A previsão é atingir, no prazo de um ano, um volume de água de aproximadamente 1,2 milhão de litros disponibilizado diretamente para a nascente e para o lençol freático da comunidade.

As bacias de contenção funcionam como um sistema de drenagem bastante eficaz, como explicaram vários quilombolas e o técnico agrícola responsável. Elas são importantes não apenas para abastecer os lençóis freáticos, mas também para impermeabilização e drenagem de materiais. A bacia é uma pequena escavação que tem como objetivo principal reter materiais sólidos carregados pela erosão laminar do solo, bem como promover a infiltração de água no solo.

Na figura 2, podem-se visualizar a implementação da bacia de contenção e a bacia ampliada.

Figuras 2
Bacia de contenção à esquerda e bacia ampliada à direita

Outra ação foi a medição da vazão de água da nascente, realizada em meados do mês de junho (2022), em que se conseguiu aferir que, nessa data do ano, ela estava minando cerca de 45 litros por hora (figura 3). Tal medida faz parte do monitoramento e da mensuração ao longo do tempo pela equipe e pela comunidade.

Figura 3
Aferição de vazão de água

CONSTRUÇÃO DA LAGOA BOI MORTO - COMUNIDADE QUILOMBOLA CÓRREGO DO NARCISO

A Comunidade Quilombola Córrego do Narciso elegeu a implementação e a revitalização de uma barragem conhecida como Lagoa do Boi Morto. Como dito, o projeto baseou-se em reuniões, diálogos e assembleias deliberativas realizados em conjunto com a comunidade durante os dois anos de execução do trabalho.

O território contribuiu para as informações e visitas técnicas nas áreas possíveis de implementação do projeto, baseado em tecnologias já desenvolvidas pela comunidade. Tais tecnologias foram aperfeiçoadas por meio de máquinas e materiais que garantem mais eficiência e durabilidade para a estrutura de reserva de água da chuva. Para a comunidade, diante dos limites a que estão expostos para acesso a recursos hídricos, especialmente nos períodos de seca, a lagoa garante usos diversos da água durante todo ano. Além disso, o espaço da lagoa compõe no quilombo uma área de lazer e de preservação das histórias e memória do lugar. Nesse sentido, com a consultoria de um técnico agrícola e de uma arquiteta, a lagoa foi planejada e construída em uma área alagadiça próxima à escola da comunidade, de forma arredondada, com diâmetro aproximado de 50 metros.

Por ser considerado um local estratégico, devido à sua localização geográfica dentro da comunidade, na entrada do quilombo, pela qualidade de material e potencialidade de armazenamento de água, foi dado início ao processo de drenagem da água ali presente, para, assim, permitir o acesso do maquinário. A drenagem foi realizada por um morador da comunidade que aproveitou a água para encher os tanques escavados de sua propriedade e irrigar uma pequena produção de milho. Esta tem sido uma dimensão importante das tecnologias sociais dentro dos quilombos: a sua capacidade produtiva e de geração de renda.

Depois da drenagem do local, deu-se início à limpeza da área, a fim de retirar todo o material que pudesse gerar contaminação e/ou atrapalhasse o processo de construção. A limpeza foi realizada com uma pá carregadeira e dois caminhões caçamba, como é possível visualizar na figura 4.

Figura 4
Limpeza e início da perfuração da área da barragem

Após a limpeza, foram realizados a demarcação e o balizamento da barragem dentro do parque; e para facilitar a visualização dos operadores, foi demarcada uma área circular com raio de 25 metros. Além disso, foi utilizada uma escavadeira hidráulica giratória para fazer a remoção de todo o material.

Para a conclusão da construção, foram necessários 21 dias de trabalho contínuo e ininterruptos. Foram utilizadas 124 horas de escavadeira hidráulica - destas, 74 via projeto e 50 via Prefeitura Municipal de Araçuaí. Ao final, as medidas da barragem seguiram as seguintes dimensões: Diâmetro (D) = 50 m; Raio (r) = 25 m; Perímetro (P) = 157 m22 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.; Profundidade (p) = 2 m; Área (A) = π r22 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007. = 3,14 x (25 m)22 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007. = 1.962,50 m22 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.; Volume (V) = A x p = 1.962,50 m22 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007. x m = 3.925 m33 Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1994..

Com tais dimensões, objetiva-se que a Lagoa do Boi Morto possa armazenar aproximadamente 3.925 litros (figura 5). Para a proteção das mudas que foram plantadas, bem como o pisoteio do solo e contaminação da água, foi realizado o cercamento de uma área de 5 mil metros quadrados no entorno da barragem, utilizando arame liso e madeira tratada.

Figura 5
A Lagoinha do Boi Morto depois de dois meses de chuva

Para a execução das obras, como já mencionado, teve-se a parceria da Secretaria de Obras da Prefeitura Municipal de Araçuaí, que cedeu horas-máquina além das que haviam sido contratadas pelo projeto. A parceria com as gestões públicas são ferramentas importantes para construir, coletivamente, obras de ação conjunta com os territórios e comunidades quilombolas, auxiliando no seu protagonismo e nas suas pautas com o poder público.

A aproximação com a gestão pública municipal deu-se de forma complexa. Reuniões burocráticas, processos morosos e o pouco conhecimento sobre a realidade da comunidade foram questões importantes e que impactaram a execução. Ao mesmo tempo, a parceria com a Secretaria de Obras (e de Saúde, já em outro contexto) possibilitou uma vivência prolongada dentro do território, além da compreensão dos fluxos específicos do quilombo pelo município. Com base nesse ponto de vista, acredita-se que o poder público teve a oportunidade de alargar seu arcabouço legal, técnico e orçamentário a partir da parceria ao mesmo tempo que a comunidade conheceu os dirigentes e secretários municipais. No entanto, observa-se a necessidade do aprofundamento do diálogo entre a gestão pública e a comunidade, para soluções estruturais, que permita que a água chegue efetivamente aos quilombos.

É importante salientar que, durante os processos de discussão sobre a construção da lagoa e do cercamento da nascente da Toldinha, participou-se de um trabalho que visa ao fortalecimento, à salvaguarda e ao protagonismo quilombola, traduzidos no Termo de Cessão de Uso Coletivo. Em conjunto com a assessoria jurídica especializada em direitos das comunidades tradicionais por parte dos pesquisadores, elaborou-se um documento que resguarda o direito coletivo aos usos das tecnologias sociais por toda a comunidade. Esse documento foi registrado em cartório e teve como objetivo destinar o local conhecido como Lagoa do Boi Morto para o usufruto de todos os moradores da Comunidade Quilombola Córrego do Narciso; e o cercamento da nascente da Toldinha, para o usufruto de todos os moradores da Comunidade Quilombola do Córrego do Rocha.

Resultados e discussão

O Vale Jequitinhonha e as comunidades quilombolas

Conhecido de forma equivocada como ‘Vale da pobreza’, o Médio Jequitinhonha pode ser considerado uma das regiões mais impactadas pelo projeto político de expansão da chamada Revolução Verde, iniciada na década de 1970, que promoveu impactos socioambientais ainda em curso. Estimuladas pelo governo do estado por meio de benefícios fiscais, muitas empresas produtoras de eucalipto se instalaram na região de forma agressiva, resultando na expulsão de milhares de camponeses de suas terras tradicionalmente ocupadas, no impacto à bacia hidrográfica da região - sobretudo pelo plantio nas chapadas e áreas de recarga - e na exposição de conflitos territoriais, até então nunca vivenciados na região; tudo isso com o aval do estado de Minas Gerais e seus municípios.

Ao contrário de um estereótipo ainda vigente sobre a região, ela apresentava no passado um grande potencial ambiental, sendo cortada por grandes rios, como o Araçuaí e o Jequitinhonha, e córregos, além de uma diversidade de espécies do cerrado e da caatinga, sendo área de transição. Não seria uma coincidência o fato de ser uma das regiões com a maior concentração de comunidades remanescentes de quilombos do estado, sendo uma característica predominante a busca por áreas em que sua produção socioeconômica pudesse ser garantida, sendo o fator ambiental uma característica associada às comunidades quilombolas. Somado a esses fatores, vale ressaltar que a região nunca foi alvo de políticas públicas dirigidas para o desenvolvimento econômico regional e local, o que ainda a coloca nos menores Índices de Desenvolvimento Econômico (IDH) do estado de Minas Gerais.

Em resposta ao processo de vulnerabilização, parte significativa da economia local ainda se baseia no trabalho sazonal, marcado, sobretudo, pela saída de homens para o corte de cana-de-açúcar (recentemente extinto pela mecanização), para a colheita de café e demais trabalhos temporários em outros estados. É comum o trabalho de três a seis meses ser a fonte de renda das famílias para todo o ano - o que, somado à restrição do acesso à água e ao consequente enfraquecimento da produção oriunda da agricultura familiar, tem motivado a migração de inúmeras famílias quilombolas para outras regiões, abandonando em definitivo suas comunidades. Portanto, a resistência desses grupos e a valorização que as comunidades têm de suas trajetórias de luta são os fatores que ainda as motivam a permanecer na região, mesmo com tantos enfrentamentos e vulnerabilidades sociais, o que não pode ser esquecido.

Tecnologia social e os territórios sustentáveis e saudáveis: problematizações conceituais

Desde o início dos anos 2000, floresceu uma literatura profícua sobre as tecnologias sociais no Brasil, em conjunto com políticas públicas, iniciativas privadas e da sociedade civil, fomento de ações e possíveis soluções para os problemas socioeconômicos do País e, por consequência, produção de territórios mais saudáveis e sustentáveis. Todavia, o que é uma Tecnologia Social? Não seriam todas as tecnologias de caráter social ou eminentemente sociais?

Para Dagnino66 Dagnino R. Tecnologia social: contribuições conceituais e metodológicas. Florianópolis: Eduepb e Insular; 2014., as tecnologias sociais são ferramentas sempre adaptáveis, não discriminatórias, possíveis de serem implementadas por empreendimentos autogestionários e voltados à economia solidária. Tal interpretação, elaborada em contraposição do que o autor chama de ‘tecnologia convencional’, argumenta que somente uma tecnologia dita social pode ser autossustentável, criativa e viável.

O conceito de tecnologia social também é articulado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI)77 Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação (BR). Tecnologia Social [Internet]. [Brasília, DF]: MCT; [data desconhecida] [acesso em 2024 jan 20]. Disponível em: https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/ciencia/politica_nacional/_social/Tecnologia_Social.html#:~:text=Tecnologia%20Social%20%C3%A9%20entendida%20como,Debate%20%2D%20Tecnologia%20Social%20no%20Brasil
https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencm...
, que entende tal conceito como uma proposta inovadora de conhecimento de premissa coletivista, que deve englobar, necessariamente, as quatro dimensões a seguir:

  1. as tecnologias sociais têm que partir de problemas sociais e introduzir novas resoluções às comunidades às quais se propõem;

  2. precisam adotar metodologias participativas e serem replicáveis;

  3. devem dialogar com os saberes científicos e os saberes territoriais, a fim de sua apropriação pelas comunidades;

  4. devem ser relevantes e sustentáveis, levando em consideração a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Apropriando-se dessa discussão, o termo tecnologia social abrangeu uma série de iniciativas de cunho agroecológico, com a finalidade de uma produção mais flexível, autogestionada, geração de renda e capacitação tecnológica. Um desses casos são as discussões presentes em Gallo e Nascimento88 Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty, RJ: Fiocruz; 2019., que, a partir das experiências dos territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina, defenderam a importância do uso das tecnologias sociais de forma engajada, levando em consideração a promoção da saúde em comunidades tradicionais. Com a incubadora de tecnologias sociais, o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (OTTS), em conjunto com o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT), pautou o entendimento do conceito de ‘tecnologias sociais’ como uma agenda mais ampla, composta da articulação de diferentes atores e governança ambiental. Segundo os autores88 Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty, RJ: Fiocruz; 2019.(145):

Tal incubadora promove territórios sustentáveis e saudáveis a partir da identificação, articulação e avaliação das agendas sociais territorializadas; do desenvolvimento de tecnologias baseadas em uma ecologia de saberes efetiva; e do uso de metodologias participativas, de parâmetros e indicadores de caracterização, análise, monitoramento e avaliação de experiências de territórios saudáveis, os quais são validados multicentricamente.

Entende-se, dessa forma, que a tecnologia social parte do princípio do fortalecimento territorial a partir da construção coletiva entre comunidade e equipe técnica. Essa visão sistêmica, embora importante para a discussão, acaba ofuscando a produção de tecnologias que existem à revelia dos manuais que chegam ‘de fora para dentro’ nos territórios. O que se quer dizer é que, há muitos séculos, existem tecnologias sociais nos quilombos e que, longe de categorizações, são experiências ancestrais de resistência diante das adversidades das suas lutas por reconhecimento.

O trabalho com as comunidades quilombolas permitiu observar que, muitas vezes, as tecnologias sociais têm sido construídas de forma hierarquizada e controlada pelas instituições que as coordenam sem o protagonismo da comunidade. Compreende-se que as tecnologias sociais são um conceito posterior à prática territorial e que, diante dos limites e desafios da vida cotidiana e com suas as experiências tradicionais herdadas pelos seus familiares e pelo conhecimento dos territórios, as comunidades produzem tecnologias sociais, mas sem nome e sem conceito.

Davi Kopenawa99 Kopenawa D, Bruce A. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2019. traduz esse desconforto quando pondera que os brancos só prestam atenção aos seus papéis sociais e, por isso, só estudam a produção de seu próprio conhecimento, ignorando o pensamento de outras gentes e outros lugares1010 Limulja H. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami. São Paulo: Ubu Editora; 2022.. A proposta deste trabalho, ao tensionar o conceito de ‘tecnologias sociais’, alinha-se a esse mesmo pensamento: talvez o conceito pareça original, mas só em caso de se negar a olhar o que é produzido dentro dos territórios tradicionais há muitos séculos. A produção de tecnologias nos territórios é anterior às discussões acadêmicas, elas existem e coexistem em um ambiente de luta e resistência nas ausências de políticas públicas voltadas a essa população em situação de vulnerabilidade.

Em ambas as comunidades, a dificuldade ao acesso de recursos hídricos apresenta-se como maior dificuldade cotidiana. A literatura e a gestão pública insistem na máxima da escassez de água na região para justificar a ausência de água tratada e saneamento nas comunidades. No entanto, entende-se que essa ‘escassez’ é provocada por projetos necropolíticos que aumentam a vulnerabilidade e dificuldade de acesso à água.

Nesse sentido, entender o impacto dos projetos necropolíticos é compreender a própria necropolítica, conceito cunhado por Achille Mbembe1111 Mbembe A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições; 2018., que agrega todos os instrumentos de poder como forma de controlar e monitorar as populações. Contudo, como mostra Mbembe, não são todas as populações, o exercício de poder é dirigido fortemente pelo recorte racial. O racismo de Estado é cotidiano, intrínseco na sua política que dita quem pode viver e quem pode morrer. Entende-se que o racismo presente nas comunidades quilombolas participa, de forma ampla e estrutural, de necropolíticas, como o próprio racismo ambiental, resultando na falta de acesso a recursos hídricos.

A Comunidade Córrego do Narciso, por exemplo, está localizada a 5 km da represa de Calhauzinho e a 3 km de um bananal com sistema de irrigação abundante. Pode-se, então, perguntar por que essa água não chega à comunidade? Além da má distribuição dos recursos hídricos, existem também o racismo estrutural, ambiental e a falta de interesse de que essa água possa abastecer a comunidade quilombola que reclama da falta de água há mais de 30 anos.

Diante da negligência do Estado, porém, a comunidade cria alternativas para lidar com a falta d’água: o cooperativismo entre eles, o racionamento de água pelas mulheres, a compreensão das dinâmicas temporais etc., são modelos alternativos de maximização e coletivização dos recursos hídricos disponíveis. Um exemplo importante é a construção das cacimbas.

Como se pôde acompanhar nesses anos de execução do projeto, as cacimbas são tecnologias criadas e recriadas nos territórios cotidianamente, principalmente em determinados períodos do ano. As cacimbas, também conhecidas como olhos d’água, são escavações superficiais perto de rios, córregos e riachos que garantem alguma fonte de água na época da estiagem. É uma forma de aproveitamento das águas subterrâneas sem causar impactos ambientais consideráveis, além de ser uma técnica muito comum no Semiárido. Quem explicou melhor sobre as cacimbas foi Seu Tião, quilombola do Córrego do Rocha. Também não faltou expertise sobre a construção e a manutenção das cacimbas no Quilombo Córrego do Narciso, que veio quando se fez a análise de impacto ambiental das tecnologias, em 2022.

Nas comunidades quilombolas, principalmente no Quilombo Córrego do Narciso, as cacimbas são tecnologias utilizadas há várias gerações. Em uma das visitas técnicas, foi mostrado como cuidar das cacimbas e como elas podem se desfazer durante a época das chuvas. É importante não confundir as cacimbas com as barraginhas de contenção da água da chuva, tecnologia também muito utilizada. As barraginhas são construções que possuem paredes de terra, argila ou até de alvenaria, para impedir o fluxo normal e permitir o acúmulo de água.

As barraginhas, embora também sejam tecnologias anteriores à presença do poder público nos territórios, foram aprimoradas a partir de manuais como os da Embrapa, mencionados no texto, maquinário especializado e equipamentos eficazes na contenção das águas ali armazenadas. Os manuais da Embrapa sobre as barraginhas são, em sua maioria, públicos. As parcerias também são facilitadas para associações e centros comunitários. Tais tecnologias são comuns nos territórios, algumas resultantes de projetos agrícolas formativos e verbas municipais, outras, escavadas pelos próprios quilombolas.

No entanto, é importante notar que, embora as barraginhas sejam uma moeda política poderosa no Semiárido mineiro, quase sempre elas são desprovidas de manutenção e monitoramento. Não existe interesse em replicá-las e conservá-las mesmo que já implementadas, ou quaisquer outras tecnologias sociais que se observaram nas comunidades (cisternas de contenção da água de chuva, cisternas do tipo terreirão etc.). Muitas vezes, as instituições que trabalham com as comunidades constroem as tecnologias e depois vão embora. Não é incomum que os problemas comecem a aparecer depois de um certo tempo, assim como a necessidade de reparos. Nesse sentido, falta a apropriação das tecnologias pelas comunidades e a capacitação dos moradores para serem replicadores e auxiliares das obras executadas em seus territórios. É importante pensar em estratégias de autossuficiência e manutenções feitas pela própria comunidade, qualificando a mão de obra presente nos quilombos e produzindo, além de um território mais sustentável, a geração de renda para a própria comunidade.

Como forma de enfrentar essa realidade tão cotidiana, a implementação das tecnologias sociais pelo projeto nos Quilombos Córrego do Rocha e Córrego do Narciso sempre priorizou a apropriação quilombola como parte de seu resultado. Assembleias, reuniões, protocolo de consulta e protagonismo quilombola na escolha das tecnologias, além da utilização da mão de obra do próprio território, garantiram não apenas o monitoramento técnico entre eles, mas também a efetividade da troca de saberes entre equipe e comunidades.

Ainda que preliminarmente, a partir do monitoramento e do engajamento realizado entre equipe Fiocruz e quilombos, perceberam-se pontos favoráveis que devem ser levados em consideração. A partir da implementação das tecnologias em ambas as comunidades, os benefícios diretos observados foram: maior acesso aos recursos hídricos primários (nascente e lagoa), para fins de dessedentação de animais e plantações; geração de renda em longo prazo, com o plantio de hortaliças para venda e turismo de base comunitária; fortalecimento, ainda que incipiente, das associações e do protagonismo quilombola a partir da gestão dos espaços coletivos onde se encontram as tecnologias; em longo prazo, a constituição de espaços de lazer e de pesca; maior qualidade de vida e bem viver na saúde desses territórios não apenas no presente, mas também para as gerações futuras; criação do vínculo institucional entre Fiocruz, gestão municipal e comunidade; além do vínculo afetivo entre equipe e comunidades.

Tais processos também trazem desafios, e analisá-los criticamente é um passo importante para compreender a dinâmica das interações coletivas intra comunidades. Afinal, antes da inserção da Fiocruz nesses territórios, já existia uma história de luta, de conflitos, de compadrio e de alianças. Dessa forma, a temporalidade de execução desse tipo de projeto obriga a uma escuta qualificada da temporalidade quilombola, descompassada, quase sempre, com os prazos institucionais. Como exemplo, podem-se citar as diversas assembleias que não foram deliberativas, por questões particulares de cada comunidade. Considera-se que a escassez de água e seus efeitos colaterais, o desemprego, o comprometimento da saúde e do lazer fragilizam a organização da comunidade e da unidade da agenda coletiva, gerando situações polêmicas, tais como quem tem direito ou não à renda, ao plantio, às cestas básicas etc. São circunstâncias que enfraquecem as presenças nas reuniões, que acabam abarcando, como pauta, todos os assuntos pendentes naquele território, sem necessariamente a definição de ações e a fragmentação do coletivo.

Tecnologias sociais e as interlocuções de gênero

A presença e a atuação das mulheres nos quilombos foram historicamente negligenciadas, e só mais recentemente estudos têm mostrado como a presença feminina foi fundamental para a manutenção dos quilombos, salientando sua representação demográfica, o papel desempenhado na manutenção da família, a importância econômica na produção artesanal dos utensílios e na agricultura1212 Gomes FS. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma; 2015.. Além disso, elas eram responsáveis pelo cultivo de sementes crioulas, proteção religiosa, pelo cuidado com as atividades da casa e da grande família quilombola, marcadamente pelas relações de comadrio das mulheres, gerando uma rede potente de auxílio mútuo1313 Machado JCN. Poder, Organização Política e Pedagogias oculto-presentes de mulheres negras do Território Quilombola do Rio Jambuaçu-Moju/PA [tese]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2019. 150 f..

Tal atuação pretérita de protagonismo das mulheres na organização dos quilombos se mantém viva na atualidade das comunidades remanescentes de quilombolas. Nesses anos de execução do projeto, percebeu-se que essas mulheres são as protagonistas na manutenção do bem viver e das práticas de cuidado dos seus territórios. Isso significa que elas estão à frente de muitas das tecnologias construídas, seja em sua execução propriamente dita, seja no pedido de inserção de tecnologias assistidas pelo poder público.

São elas as responsáveis pelos pedidos de caminhão-pipa na prefeitura, que detêm o conhecimento das técnicas de amassar o adobe para a construção das chamadas ‘casas velhas’, são elas que andam 5 km até a barragem do Calhauzinho para bater goma na roupa, organizam os produtos (hortaliças, tubérculos e fumo) para a venda das feiras. São elas que lideram e endossam o coro das associações e mobilizam seus corpos e reivindicações no diálogo com o poder público.

As mulheres quilombolas aspiram com a possibilidade de viver de forma sustentável e saudável dentro dos seus territórios, com seus filhos e familiares. No caminho para a concretização desse bem viver, elas são afetadas por adversidades cotidianas que as mobilizam na construção de tecnologias para a permanência e continuidade do território. São tecnologias que passam pela oralidade, traduzidas no jeito de falar dessas mulheres, carregado de expressões que revelam seus saberes tradicionais e o conhecimento do território que habitam, pelo olhar atento e esperançoso, pelas mãos calejadas. Contudo, são essas mesmas mãos que estão prontas para oferecer cuidado e carinho ao mesmo tempo que levantam suas enxadas na terra e mexem as colheres em suas panelas fartas, mobilizando uma rede de tecnologias de afetos. Sem dúvida, a experiência nas comunidades quilombolas aponta que são as mulheres quilombolas as protagonistas na produção de tecnologias sociais para o bem viver nos quilombos, e os homens e crianças seguem, nem sempre de forma cordial, suas deliberações.

No que tange à implementação das tecnologias sociais nos territórios, são as mulheres que lideram as ações circunscritas para esta finalidade. As assembleias, os encontros e as pautas sempre foram direcionados por elas, no intuito de fortalecer a gestão territorial e ambiental em curto e longo prazo. Pensar na água, nas suas formas de acesso e na sua gestão é pensar na sobrevida dos quilombos. Portanto, trazem-se aqui duas narrativas a partir do olhar de duas lideranças quilombolas. A primeira fala, de Nenga, traz uma reflexão profunda sobre como a água está no cotidiano de sua vida. Nessa ocasião, ela fala sobre a Lagoa do Boi Morto e faz uma pequena avaliação de sua importância:

Água é vida. Sem água a gente não tem nada. Como que a gente toma um banho, lava uma roupa ou cozinha? Não tem como viver sem água. Então a vida da gente aqui é muito sofrida mesmo. A gente permanece porque é o lugar em que a gente nasceu e se criou. A gente não quer desistir. Então aquele projeto da Lagoa do Boi Morto, aquela água vai servir para a gente criar um animal, pra dar água a um porco, cuidar das galinhas, pra cuidar dos cachorros. Então essa água para nós foi um sonho na comunidade, pois a gente sempre pensou em resgatar aquela lagoa. (Nenga, Comunidade Quilombola Córrego do Narciso, 2023).

Cida, liderança do Quilombo do Córrego do Rocha, por sua vez, mostra como seu território estava desassistido em termos de políticas públicas, além de apontar para uma análise positiva futura a partir do cercamento da nascente e de ver, depois de tantos anos, sua água jorrando:

Olha, esse projeto chegou até a comunidade numa época que a gente estava jogado para escanteio, passando por uma fase de esquecimento pela gestão pública, de esquecimento enquanto ser humano mesmo, dotado de muita fragilidade. Mas, ao mesmo tempo, de direitos a políticas públicas. E a gente estava passando uma dificuldade muito grande com a água em que… Bom, a gente não tinha água e estava tendo dificuldade de trazer o caminhão pipa! Então [o projeto] trouxe um símbolo muito grande de esperança. É o esperançar de resistir. Porque hoje, ao visitar essa tecnologia implantada lá, e eu voltar à minha infância quando eu passava naquele local e tinha água nascendo, brotando naquele território, isso não tem preço, eu gostaria muito de passar isso em vida para as próximas gerações. Para mim, é um marco histórico. (Cida, Quilombo Córrego do Rocha, 2023).

A partir dessas falas, mensura-se, ainda que brevemente, a importância dos resultados da implementação das tecnologias sociais nos territórios. Elas mostram um olhar atento à realidade quilombola ao mesmo tempo que apontam para um futuro no qual o acesso à água pode ser possível. Um futuro que, embora engendrado pelas mulheres, conflui para todas as gerações e populações tradicionais.

Considerações finais: ‘Por uma nova abordagem’ das tecnologias sociais

Tomando de empréstimo ‘Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal’, do geógrafo Milton Santos1414 Santos M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 19. ed. Rio de Janeiro: Record; 2010., propõem-se novos debates e ressignificação do conceito e dos usos das tecnologias sociais, que são travestidas ‘da boa intenção’ das instituições que oportunizam, ‘em diálogo’ com as comunidades, a construção de tecnologias sociais - quando, na verdade, são as comunidades que conhecem seus territórios, suas fragilidades e potencialidades, e diante delas criam variadas tecnologias que promovem mais qualidade de vida e sustentabilidade ao quilombo. São as instituições e a gestão pública que devem aprender como os saberes quilombolas, pois eles apresentam outras respostas ao mundo capitalista contemporâneo, sobre a possibilidade de uma vida mais sustentável e saudável que respeita o ambiente. Com toda a tecnologia que se tem disponível, não se consegue ousar em viver com a escassez de água no cotidiano de algumas pessoas, enquanto os territórios quilombolas lidam com essa realidade há, pelo menos, 30 anos.

Dessa forma, deve-se problematizar tecnologias que são tidas como ‘sociais’, mas que, ao final, parecem apenas uma transferência de tecnologia, sem monitoramento, sem aprendizado, sem apropriação e, principalmente, sem replicabilidade. A quem interessa levar a sério os saberes produzidos nos territórios, em nível de respeitar e apreender aquilo que é construído dentro das comunidades e expandir esses conhecimentos para saberes científicos tão objetificados e paradigmáticos?

Esta proposta versa sobre a ampliação da escuta das práticas e saberes tradicionais: não há tecnologia bem consolidada sem o protagonismo e apropriação desses povos. Os saberes de manejo sobre esses territórios e de seus recursos naturais são imemoriais, e devem ser o ponto de partida de qualquer intervenção externa. Uma lagoa ou um cercamento de nascente executado à revelia dos saberes tradicionais não podem ser considerados uma tecnologia social: só existe saber no diálogo e na troca.

Como contribuição a esse debate, deixa-se descrito o processo das tecnologias implementadas nos quilombos. Embora demasiadamente técnica, essa descrição pode encontrar outros interlocutores, que, simultaneamente, podem reproduzir ou (re)inventar a partir daquilo que está registrado. Tais tecnologias, recombinadas pelos saberes tradicionais, abrem as portas para algo não apenas ‘social’: são plurais, diversas e culturalmente adequadas às realidades quilombolas. São múltiplas no sentido fluido do termo: embora longe dos circuitos acadêmicos, os saberes técnicos, corporais e ancestrais produzidos nesses territórios antecedem esta escrita, mas, por vários motivos já descritos, estão invisíveis no arcabouço teórico vigente. Cabe a todos que essa mudança seja feita, a partir de uma nova abordagem sobre as tecnologias sociais: não apenas social, mas, sobretudo, histórico-cultural.

Pensa-se que essa nova abordagem está em processo de construção1515 Kneodler TS, Silva ES, Haberland DF, et al. Tecnologias sociais para ações de gestão de risco em desastres: uma revisão de escopo. Saúde debate. 2022;46(esp8):187-200. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E81
https://doi.org/10.1590/0103-11042022E81...
; um conceito capaz de abranger o que eles fazem é algo novo ainda, e está sendo elaborado em conjunto com as comunidades. O que se sabe, por enquanto, é que são tecnologias plurais, que mesclam saberes tradicionais com novos conhecimentos, são carregados de afeto e resistência. Os remanescentes de quilombos seguem firme a proposta dos quilombos oitocentistas, planejam uma nova sociedade, mais democrática, justa e igualitária. Espera-se, assim, que haja tecnologia que faça escorrer água nas torneiras das pias das mulheres quilombolas.

Agradecimentos

Agradecemos ao Programa Institucional de Territórios Saudáveis e Sustentáveis, assessorado e coordenado pela Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS - Fiocruz), financiado pelo Programa Inova Fiocruz sem a qual esse trabalho não seria possível.

  • Suporte financeiro: o artigo resultante do projeto ‘Comunidades quilombolas e Covid-19: desenvolvimento de tecnologias sociais para promoção de saúde no Médio Jequitinhonha, Minas Gerais’ contou com financiamento do Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis (Pitss) e do Programa de Pós-Doutorado Júnior, ambos com editais subsidiados pelo Programa de Fomento à Inovação (Inova Fiocruz). Projeto de nº 64171984373325, ID VPPIS-003-FIO-20-2-18

Referências

  • 1
    Tripp D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educ Pesqui. 2005;31(3):443-466. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022005000300009
    » https://doi.org/10.1590/S1517-97022005000300009
  • 2
    Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.
  • 3
    Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1994.
  • 4
    Meihy JCSB, Seawright L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto; 2020.
  • 5
    Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu [Internet]. 2009 [acesso em 2024 jan 20];(5):7-41. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=51046
    » http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=51046
  • 6
    Dagnino R. Tecnologia social: contribuições conceituais e metodológicas. Florianópolis: Eduepb e Insular; 2014.
  • 7
    Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação (BR). Tecnologia Social [Internet]. [Brasília, DF]: MCT; [data desconhecida] [acesso em 2024 jan 20]. Disponível em: https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/ciencia/politica_nacional/_social/Tecnologia_Social.html#:~:text=Tecnologia%20Social%20%C3%A9%20entendida%20como,Debate%20%2D%20Tecnologia%20Social%20no%20Brasil
    » https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/ciencia/politica_nacional/_social/Tecnologia_Social.html#:~:text=Tecnologia%20Social%20%C3%A9%20entendida%20como,Debate%20%2D%20Tecnologia%20Social%20no%20Brasil
  • 8
    Gallo E, Nascimento V. O território pulsa: territórios sustentáveis e saudáveis da Bocaina: soluções para a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável territorializados. Paraty, RJ: Fiocruz; 2019.
  • 9
    Kopenawa D, Bruce A. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2019.
  • 10
    Limulja H. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami. São Paulo: Ubu Editora; 2022.
  • 11
    Mbembe A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições; 2018.
  • 12
    Gomes FS. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma; 2015.
  • 13
    Machado JCN. Poder, Organização Política e Pedagogias oculto-presentes de mulheres negras do Território Quilombola do Rio Jambuaçu-Moju/PA [tese]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2019. 150 f.
  • 14
    Santos M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 19. ed. Rio de Janeiro: Record; 2010.
  • 15
    Kneodler TS, Silva ES, Haberland DF, et al. Tecnologias sociais para ações de gestão de risco em desastres: uma revisão de escopo. Saúde debate. 2022;46(esp8):187-200. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E81
    » https://doi.org/10.1590/0103-11042022E81

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    23 Fev 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br