Reflexos da pandemia de covid-19 na venda de alimentos em feiras livres no Maciço de Baturité-CE

Reflections of the COVID-19 pandemic on food sales in farmer’s markets in Maciço de Baturité-CE

José Cláudio Garcia Lira Neto Maria Wendiane Gueiros Gaspar Kellen Cristina da Silva Gasque Márcio Flávio Moura de Araújo Sobre os autores

RESUMO

A pandemia de covid-19 trouxe inúmeras mudanças aos territórios sustentáveis e saudáveis, implicando a necessidade de reorganização de estruturas sociais e de saúde. Objetivou-se compreender a dinâmica das feiras livres de vendas de alimentos no período pós-pandêmico de covid-19 em cidades do Maciço de Baturité, no Ceará, e avaliar as estratégias sanitárias e/ou de biossegurança utilizadas no enfrentamento da covid-19 por feirantes e consumidores. Realizou-se um estudo qualitativo entre outubro de 2021 e janeiro de 2023, em cinco cidades do Ceará. Em uma primeira etapa, foi realizada a observação das condições sanitárias e de biossegurança nas feiras livres, mediante um instrumento estruturado em quatro categorias. Em seguida, consumidores e feirantes foram entrevistados para o aprofundamento de discussões sobre os reflexos da pandemia sobre as feiras. Avaliaram-se as feiras de cinco cidades e entrevistaram-se 44 pessoas. Quatro cidades mostraram-se com condições sanitárias precárias e comprometimento da biossegurança e comercialização de alimentos. Feirantes e consumidores tiveram uma baixa percepção de risco sobre a covid-19 e levantaram a necessidade da perpetuação das feiras livres para a qualidade de vida e economia da região. As feiras livres são territórios sociais e econômicos sustentáveis, que ainda carecem de atenção por gestores e profissionais de saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Territórios socioculturais; Avaliação de risco; Saneamento de feiras; Higiene dos alimentos; Pandemia.

ABSTRACT

The COVID-19 pandemic has brought countless changes to sustainable and healthy territories, implying the need to reorganize social and health structures. The aim was to understand the dynamics of open-air food sales markets in the post-COVID-19 pandemic period in cities in the Maciço de Baturité, in Ceará, Brazil, and to evaluate the health and/or biosafety strategies used by marketers and consumers to deal with covid-19. A qualitative study was carried out between October 2021 and January 2023, in five cities in the state of Ceará. In the first stage, the sanitary and biosafety conditions at the street markets were observed using an instrument structured into four categories. Then, consumers and stallholders were interviewed to deepen discussions about the impact of the pandemic on the markets. We evaluated fairs in five cities and interviewed 44 people. Four cities were found to have precarious sanitary conditions and compromised biosafety in the sale of food. Marketers and consumers had a low-risk perception regarding COVID-19 and raised the need to perpetuate open-air markets for the region’s quality of life and economy. Free markets are sustainable social and economic territories, which still require attention from managers and health professionals.

KEYWORDS
Sociocultural territory; Risk assessment; Market sanitation; Food hygiene; Pandemics

Introdução

As feiras livres constituem-se como um território sustentável e saudável, fruto de um processo histórico e cultural, marcado por ancestralidade, histórias e experiências de vida das populações que permitem a promoção do bem-estar, da sustentabilidade e do desenvolvimento. Esses locais são arraigados de interação social, comunicação e lazer ao mesmo tempo que impulsionam a economia local11 Souza CR. As feiras livres como lugares de produção cotidiana de saberes do trabalho e educação popular nas cidades: alguns horizontes teóricos e analíticos no campo trabalho-educação. Trabalho Necessário 2015;13(22):126-144. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.13i22.p9597
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,22 Fundação Oswaldo Cruz. Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis: termo de referência conceitual e metodológico e proposta de governança. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019.
.

No Brasil, todavia, assim como em outros países emergentes, esses territórios também são desafiadores, haja vista a necessidade de asseverar a qualidade nutricional à sua população, garantindo a segurança alimentar (food security) e a qualidade dos alimentos comercializados, sem comprometer a segurança do alimento (food safety). Contudo, ainda há falhas nesses processos, o que leva à contaminação de consumidores por microrganismos nocivos à saúde humana, veiculados por água ou alimentos contaminados por fezes humanas ou de animais, metais pesados ou agrotóxicos, bem como afetados por más condições sanitárias ou baixos padrões de higiene pessoal e doméstica33 Nordhagen S, Lee J, Onuigbo-Chatta N, et al. What is safe and how much does it matter? food vendors’ and consumers’ views on food safety in urban Nigeria. Foods. 2022;11(2):225. DOI: https://doi.org/10.3390/foods11020225
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.

Ainda que fomentem o consumo de alimentos frescos e saudáveis, as feiras livres são centros potenciais de disseminação de enfermidades de grande preocupação para a saúde pública, como a covid-19, que, nos últimos anos, encontrou morada em espaços insalubres e em cenas de aglomeração e ampla interação entre pares. Somados a isso, fatores como o conhecimento limitado das implicações para a saúde por parte dos consumidores e feirantes, a carência de fiscalizações sanitárias e a baixa percepção de risco parecem ter contribuído para a progressão de hábitos desfavoráveis à saúde44 Salamandane C, Fonseca F, Afonso S, et al. Handling of fresh vegetables: knowledge, hygienic behavior of vendors, public health in Maputo Markets, Mozambique. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(17):6302. DOI: https://doi.org/10.3390/ijerph17176302
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A percepção de risco, por sua vez, é o processo de atribuição de risco a um objeto, uma situação ou ação, conceituada no campo das ciências sociais como um ato socialmente construído. Segundo Slovic55 Slovic P. Perception of risk. Science. 1987;236(4799):280-285. DOI: https://doi.org/10.1126/science.3563507
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, são os julgamentos intuitivos de risco de indivíduos e grupos sociais no contexto de informações limitadas e incertas, a partir de diferentes perspectivas teóricas, com influência sobre as decisões. Nas feiras livres, essa percepção deve ser clara aos feirantes e produtores de alimentos, uma vez que comportamentos e conhecimentos incorretos quanto aos hábitos de higiene, fonte de abastecimento, transporte, armazenagem e exposição dos produtos refletem na segurança alimentar e, por sua vez, na saúde das pessoas66 Abass K, Owusu AFS, Gyasi RM. Market vegetable hygiene practices and health risk perceptions of vegetable sellers in urban Ghana. Int J Environ Health Res. 2019;29(2):221-236. DOI: https://doi.org/10.1080/09603123.2018.1535057
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Mesmo sendo espaços sociais muito populares, investigações que articulam as práticas sociais com a vigilância em saúde nas feiras livres permanecem tímidas. Isso dificulta a visualização das necessidades, bem como a elaboração, o planejamento e a implementação de práticas de saúde nesses locais. Para mais, considerando a produção de saberes no universo do trabalho nas feiras livres, demanda-se de melhor entendimento e compreensão sobre a subjetividade estabelecida e expressa nas relações e movimentos dos atores sociais envolvidos nesse campo. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi compreender a dinâmica das feiras livres de vendas de alimentos no período pandêmico de covid-19 em cidades do Maciço de Baturité, no Ceará, bem como avaliar as estratégias sanitárias e/ou de biossegurança utilizadas no enfrentamento da covid-19 por feirantes e consumidores nesses territórios.

Material e métodos

Delineamento do estudo

Trata-se de um estudo qualitativo, realizado em feiras livres de cinco cidades do interior do estado do Ceará, na região do Maciço de Baturité, entre outubro de 2021 e janeiro de 2023.

O relato seguiu as diretrizes do Guideline Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (Coreq) na construção metodológica e na garantia da qualidade da pesquisa. Para a condução desta pesquisa, utilizou-se como questão orientadora: quais foram as dinâmicas estabelecidas e as estratégias de enfrentamento da covid-19 utilizadas por feirantes e consumidores em feiras livres de venda de alimentos?

Cenário

O estudo foi desenvolvido em cinco municípios pertencentes à região do Maciço de Baturité, no interior do estado do Ceará. A essa macrorregião, pertencem 13 cidades (Palmácia, Pacoti, Acarape, Redenção, Guaramiranga, Barreira, Mulungu, Baturité, Aratuba, Aracoiaba, Ocara, Capistrano e Itapiúna), ocupando uma área de 3.750,1 km22 Fundação Oswaldo Cruz. Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis: termo de referência conceitual e metodológico e proposta de governança. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019.. A população estimada, em 2022, foi de 232.867 habitantes77 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2022. Rio de Janeiro: IBGE; 2022..

Participantes

Participaram do estudo feirantes e consumidores das cidades de Pacoti, Aratuba, Redenção, Barreira e Mulungu, correspondendo a uma área com 82.585 habitantes77 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2022. Rio de Janeiro: IBGE; 2022.. Essas cidades foram selecionadas, pois apenas os seus representantes concederam autorização para o desenvolvimento do estudo.

Entrevistaram-se 44 pessoas, sendo 10 em Pacoti, 9 em Aratuba, 7 em Redenção, 8 em Barreira e 10 em Mulungu. Os participantes que atendiam aos critérios de elegibilidade foram selecionados in loco, durante a ocorrência das feiras livres. Inicialmente, era apresentada a proposta do estudo, com a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após essa etapa, aqueles que declararam concordância em participar e assinar o TCLE foram incluídos na pesquisa. Neste estudo, utilizou-se a amostragem por saturação.

Critérios de elegibilidade

Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: ser feirante regular em uma das feiras livres investigadas há mais de dois anos; ser consumidor dos produtos de uma das feiras livres investigadas; ser maior de idade (≥ 18 anos). Assim, foi possível identificar os participantes que passaram pelo período da pandemia de covid-19 e seus respectivos desafios.

Coleta de dados

A coleta de dados ocorreu no período de outubro de 2021 a janeiro de 2023, dividida por etapas. Na primeira etapa, os pesquisadores visitaram as feiras livres das cinco cidades para observação das condições de higiene e segurança contra a covid-19, aplicando um checklist que abordou questões relacionadas com segurança alimentar, higiene de alimentos e estratégias de enfrentamento da covid-19 em feiras livres pelos feirantes e consumidores. Essa etapa foi desenvolvida entre outubro de 2021 e dezembro de 2022. Isso ocorreu, pois, no estado do Ceará, devido aos lockdowns, parte das feiras foram encerradas por determinados períodos.

O checklist foi elaborado por uma pesquisadora da área de engenharia de alimentos, baseado no Regulamento Técnico de Procedimentos Operacionais Padronizados aplicado aos Estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Alimentos e na Lista de Verificação das Boas Práticas de Fabricação em Estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Alimentos, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), considerando as Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) nº 275/2022 e nº 216/2004, e a Portaria nº 326/1997 do Ministério da Saúde do Brasil. Ademais, também foram consideradas as Normas Técnicas nos 47, 48 e 49 de 2020, lançadas pelo Ministério da Saúde, baseadas nas diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e em pesquisas88 Belem NKR, Silva PAA, Castro VS, et al. Recomendações técnicas para atualização das boas práticas de fabricação de alimentos (BPF) visando a prevenção da COVID-19 em serviços de alimentação: checklist e revisão de manuais BPF. SciELO. 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.3844
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,99 Cunha DT, Oliveira ABA, Saccol ALF, et al. Food safety of food services within the destinations of the 2014 FIFA World Cup in Brazil: Development and reliability assessment of the official evaluation instrument. Food Res Int. 2014;57:95-103. DOI: https://doi.org/10.1016/j.foodres.2014.01.021
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. A pesquisadora que elaborou o instrumento não possuía vínculo institucional com a fundação de pesquisa dos pesquisadores proponentes deste estudo ou com as cidades em que a investigação foi realizada. O checklist foi aplicado mediante observação direta (in loco) do pesquisador que coletou os dados da pesquisa.

O instrumento foi organizado em quatro eixos que abordavam fatores observados nas feiras livres, sendo eles: 1) Equipamentos e insumos/medidas de biossegurança para a prevenção de covid-19, contendo 10 perguntas; 2) Comercialização de carnes, contendo oito perguntas; 3) Comercialização de frutas e hortaliças, contendo sete perguntas; e 4) Condições de higiene, contendo 10 perguntas.

As perguntas estão expostas na seção dos resultados, na tabela 1. Para cada questão, uma escala categórica nominal dicotômica de respostas ‘sim’ ou ‘não’ foi implantada, a fim de identificar o nível de implementação das medidas. Ressalta-se que o instrumento de investigação continha questões baseadas em estratégias de mitigação da covid-19 exploradas e orientadas pela Organização Pan-Americana da Saúde/OMS, e instruções acerca do manuseio de alimentos. A escala de pontuações gerava um escore, que, quanto maior fosse, pior seria a situação de saúde nesses ambientes. A maior pontuação possível de alcançar no checklist é de 12,8 pontos.

Tabela 1
Fatores que comprometem a higiene alimentar e propiciam a disseminação da covid-19, em feiras livres, em cinco cidades do Maciço de Baturité. Ceará, 2023

Após essa etapa, entrevistas foram conduzidas e gravadas, com um gravador de voz, nas feiras livres, após autorização dos participantes do processo. Aos participantes analfabetos, o TCLE foi lido, na presença de uma testemunha, e a tomada da impressão digital foi realizada para o aceite do participante. Ademais, visitou-se uma fazenda, estação produtora de alimentos agrícolas (frutas, verduras e legumes) e de baixo processamento (mel, sucos e farinha), que encaminhava alimentos a feirantes de cidades do Maciço de Baturité.

Nessas ocasiões, perguntas semiestruturadas foram elaboradas a partir daquelas conduzidas na fase de inspeção das feiras, com a finalidade de ilustrar as situações e aprofundar lacunas oriundas da primeira etapa. As perguntas foram:

  1. Por que o(a) senhor(a) acha que as feiras livres são importantes para a alimentação das pessoas?

  2. Qual a importância das feiras livres para o desenvolvimento da cidade/região?

  3. No contexto da pandemia, o(a) senhor(a) se sente seguro(a) para vir à feira comprar/vender alimentos?

  4. O(A) senhor(a) acredita que a feira dispõe de recursos para a proteção/enfrentamento da covid-19?

  5. Que estratégias o(a) senhor(a) acha que seriam necessárias para aumentar a segurança das pessoas contra a covid-19 na feira?

A coleta dos dados foi conduzida por um dos pesquisadores, e a duração das entrevistas variou de 10 a 20 minutos. Após essa etapa, todas as entrevistas foram transcritas, por dois pesquisadores, separadamente, para comparação do corpus textual final. Este foi, na sequência, armazenado no software de análise qualitativa IRaMuTeQ 0.7, alpha 2 (2020).

Análise de dados

Para a apresentação dos dados extraídos do instrumento de pesquisa, utilizou-se a estatística descritiva. Os dados foram exportados para uma planilha no Excel® e, em seguida, apresentados de forma numérica. Já a análise dos dados qualitativos foi guiada pela descrição interpretativa proposta pela pesquisadora canadense Sally Thorne1010 Thorne S. Interpretive description: qualitative research for applied practice, 2nd ed. New York: Routledge; 2016. DOI: https://doi.org/10.4324/9781315545196
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. Essa abordagem propõe a leitura aberta do texto transcrito para obtenção do sentido do todo. Dois pesquisadores leram o material coletado da pesquisa várias vezes, sem se ater muito aos detalhes nesse estágio inicial da análise, mas codificando as sequências que foram consideradas importantes para a análise.

Para melhor estruturar a análise, formularam-se alguns questionamentos, partindo da premissa de que o conhecimento adquirido ainda não é suficiente. Desse modo, durante a leitura do corpus textual, emergiram as questões: a) o que é visto? b) o que está acontecendo? c) o que isso significa?

Após essa codificação preliminar, alguns relatos começaram a ser rotulados e agrupados para uma melhor compreensão, sob a forma de conceitos. Em seguida, os pesquisadores principais discutiram os conceitos e a relação entre eles para concluir o processo analítico.

Para a análise quantitativa dos dados qualitativos, um pesquisador externo (ou seja, que não compartilha a autoria deste artigo) realizou a transcrição dos relatórios com o apoio do software livre IRaMuTeQ 0.7, alpha 2 (2020). No software, foi possível agrupar e organizar graficamente os relatos dos participantes (corpus textual) por meio de análises de lexicografia básica (frequência de palavras) e análise de similitude1111 Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: Um software gratuito para análise de dados textuais. Temas em Psicologia. 2013;21(2):513-8. DOI: http://dx.doi.org/10.9788/TP2013.2-16
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.

Aspectos éticos

O estudo seguiu as orientações da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa sob CAAE: 53677721.8.0000.5576, e parecer nº 5.418.372. Com o objetivo de garantir o anonimato dos participantes, as falas foram codificadas com a letra P (participante) e numeradas conforme a ordem de obtenção dos relatos.

Resultados

Análise dos fatores de higiene alimentar e segurança das feiras livres

A partir da observação das feiras nas cidades do Maciço de Baturité, percebeu-se que as cidades de Barreira e de Redenção obtiveram as maiores notas na avaliação gerada pelo checklist e, portanto, a pior situação de saúde para consumidores e feirantes. Ressalta-se que a feira investigada na cidade de Mulungu não comercializava carnes, logo, não foi possível gerar pontuação no eixo 2 (tabela 1).

Análise de narrativas de feirantes e consumidores de feiras livres por meio da estatística textual clássica

Neste estudo, foram entrevistados 32 consumidores e 12 feirantes, sendo a maioria do sexo masculino (54,5%). Após a leitura criteriosa dos relatos pelos pesquisadores, os discursos foram agrupados de acordo com as perguntas norteadoras, e codificadas conforme a importância para análise.

A partir da pergunta ‘Por que a feira é importante para a alimentação das pessoas?’, pôde-se compreender a relevância das feiras para garantir a oferta de alimentos mais saudáveis e isentos do uso de defensores agrícolas.

[...] contribui pra uma alimentação mais saudável e variada. [P5].

[...] os produtos [...] não têm agrotóxicos, é tudo natural. [P10].

[...] aqui é onde [os produtos] estão mais ‘fresquinhos’ e saudáveis. [P31].

A possibilidade de encontrar, nesses territórios saudáveis e sustentáveis, produtos acessíveis e atrativos, em especial, economicamente, também se faz presente em diferentes discursos: “além de sair um preço mais econômico que o supermercado, é muito importante usar as frutas e verduras [...] faz muito bem para a saúde” [P13].

As feiras livres vão além de um local para compra e venda de alimentos, possibilitando uma melhor interação social, um espaço de lazer e partilha de saberes e experiências: “Eu, ‘de primeira’, não ligava [...] mas [hoje] acho bom porque aqui eu tenho amigo, converso [...]” [P24].

Em relação ao desenvolvimento para o território/região em que a feira livre está inserida, os participantes da pesquisa consideraram que ela é um espaço de protagonismo para o trabalho e geração de renda.

[...] possibilita que os próprios moradores da cidade sejam protagonistas na alimentação [...] dos outros, de forma saudável. [P5].

[...] gera emprego, gera renda [...]. [P12].

[...] é a oportunidade de dar emprego às pessoas [...]. [P16].

Para além da sustentabilidade arrolada, as feiras livres são meios de sobrevivência, e sua inexistência, possivelmente, comprometeria o desenvolvimento e o bem-estar individual, familiar e comunitário: “tem família que vive disso aqui” [P27].

No contexto da pandemia de covid-19, ao serem interrogados sobre a segurança de frequentarem espaços como as feiras livres, os investigados relataram que aqueles eram territórios em que eles se sentiam seguros, atribuindo isso à existência das vacinas ou por ser um ambiente ao ar livre.

Tá todo mundo vacinado, né? Agora a gente se sente seguro [...], porque antes não tinha vacina, mas agora sim a gente se sente seguro. [P1].

Sim. É um espaço ao ar livre [...] não tem ambiente fechado. [P9].

Me sinto seguro por duas coisas, uma porque eu tenho cuidado, e a outra é porque eu já tenho quatro vacinas. [P10].

No entanto, os discursos acerca da segurança não foram unânimes, e a enfermidade ainda causava sentimentos negativos sobre a utilização daquele espaço. Também é notável a compreensão sobre a necessidade de prevenção contra a covid-19, uma vez que essa condição ainda gera danos à saúde da população.

Não cem por cento [...] eu não vinha para cá porque eu via muitas pessoas sem máscara, e isso me causava um maior temor. [P2].

A pandemia [...] ‘tá’ acabando, mas não é confiável [...] tem um bocado de gente que não é vacinado, e a doença ainda ‘tá’ viva. [P7].

Os relatos sobre a baixa percepção de risco à saúde que a covid-19 apresenta também foram encontrados.

Não, porque tem muita gente que não segue o protocolo, né? [P32].

[...] era ‘pra’ gente ‘tá’ tudo de máscara, mas ninguém liga. [P25].

Em cidades com uma população pequena, no interior do estado, períodos próximos às eleições políticas são marcados por mudanças na estrutura social. Isso pode ser visto até mesmo na promoção de cuidados com a saúde.

Às vezes sim, às vezes não [...] quando a gente vê que a pandemia ‘tá’ voltando, a gente já fica com medo [...], chegou as campanhas políticas, acabou tudo [os casos]. [P14].

Ainda que considerassem os territórios não seguros, os feirantes indicaram que a privação da atividade laboral poderia comprometer a sobrevivência deles.

A gente sente um pouco com receio, mas a gente trabalha e depende da feira pra sobreviver [...], se a gente não vier aqui pra vender, a gente não paga o aluguel e não sobrevive. [P42].

Uma questão sobre a existência de recursos para o enfretamento da covid-19 nas feiras livres também foi lançada, mas os relatos não foram consonantes. Todavia, observou-se entre muitos participantes algum nível de compreensão sobre medidas de prevenção contra a moléstia.

Sim. ‘As vendedoras tudo’ de máscara [...] passando álcool em gel, de instante em instante. [P3].

[...] como é um lugar ao ar livre, eu acho que é bem mais provável ser seguro. [P8].

Não [...] você não vê ninguém de máscara, até eu mesmo não estou [...], mas espero que todos tenham tomado a vacina. [P16].

Sim, com certeza. Todo mundo ficou usando máscara, no período que foi recomendado, e agora que não ‘tá’ mais recomendado, que liberou, todo mundo ‘tá’ vacinado, então ‘tá’ colaborando. [P35].

A mudança na conduta social, em face da pandemia, também foi amplamente relatada.

Não. As pessoas relaxam, né? Vem pessoas de fora que, às vezes, até estão contaminadas, e a gente não sabe. [P20].

Não. O período do fluxo grande mesmo tinha, mas hoje não. As pessoas acham que a covid acabou [...] não têm mais aqueles cuidados que tinham antes, de usar máscara, sempre com álcool em gel na bolsa. [P31].

Não, não tem mais [...] não é só na feira. Todos os lugares não têm. Falta o uso de máscara, de conscientização e de compromisso com o próximo. [P44].

Não [...] não tem fiscalização. [P11].

Durante os discursos, também foi factível o reconhecimento dos consumidores e feirantes sobre as vias e os riscos de contaminação. Tal fato pode ser atribuído à veiculação de informações sobre a doença pelos meios de comunicação.

Não. O risco é grande. Mas, o pior é que quando você chega [na feira], ‘o povo é tudo’ tossindo, falando em cima da gente [...] quem já pegou [covid-19] tem maior risco de ter do que quem não teve, né? [...] a gente pega na televisão essas coisas que eu ‘tô’ dizendo. [P40].

Para um melhor entendimento sobre o nível de compreensão e orientação das pessoas sobre a covid-19, lançou-se a seguinte questão: ‘Que estratégias o(a) senhor(a) acha que seriam necessárias para aumentar a segurança das pessoas contra a covid-19 na feira?’. As respostas obtidas foram similares, envolvendo a necessidade do uso de máscara, de álcool em gel e o distanciamento social - largamente promovidos durante o primeiro ano da pandemia. Entretanto, também foi possível perceber que problemas insurgiram nas falas de feirantes e consumidores, a partir desse questionamento; e interlocuções entre os comportamentos coletivos considerados de risco e a escassez de recursos ou acesso aos serviços públicos foram desveladas.

Eu acho que as pessoas poderiam usar máscara e álcool em gel, e o distanciamento [...]. [P4].

Todo mundo se vacinar. [P15].

[...] orientar melhor essas pessoas, porque muitos não tem orientação de profissionais de saúde [...]. [P16].

[...] lidar com ser humano é complicado [...] as pessoas ‘é aquele jeito teimoso’ [...] por mais que sejam avisados, alertados, ficam naquela segurança que não acontece com ‘fulano’, não vai acontecer comigo, e por conta disso a gente se ‘descuida de se cuidar’ [...]. [P31].

Pra começar, o pessoal do município [poderia] fazer a limpeza [da feira] [...], aqui é o esgoto entupido, os banheiros todos entupidos [...] tudo a céu aberto. [P36].

[...] a segurança que eu acho é eu ficar na minha casa, mas se todo mundo tivesse os cuidados de ‘tá’ de máscara, não tirasse a máscara [...] usar o álcool [...], eu acho que melhorava um pouco, a gente sentia mais segurança. [P38].

Uma boa fiscalização ‘pra’ quem participa aqui da feira [...]. [P39].

Usando máscara e diminuindo mais a conversa com os amigos mais de perto [...] pegando em mão, porque transmite [a covid-19] [...]. [P43].

Conscientização da coletividade. [P44].

Contudo, ainda que seja de amplo conhecimento que a covid-19 foi responsável por ceifar vidas e ameaça a saúde pública, há quem desconsidere seu risco. Tais discurso e comportamento podem influenciar, negativamente, na promoção de medidas para o bem coletivo. Outrossim, há quem se preocupe com essas condutas e expresse isso em tom de inquietação. Isso foi sublinhado por duas falas, expressas a seguir:

[...] um uso obrigatório, né? Eu ‘tô’ dizendo assim, mas eu nunca usei uma máscara, nunca tomei uma vacina, ‘graças à Deus’. [P22].

[...] a gente vendo tanto problema, tanta gente morrer [...] e tem gente que não acreditava que não existia. O próprio presidente foi um, né? [...] antes todo mundo se vacinava, era obrigado, mas nessa nação nova não é mais [...]. [P24].

Análise de narrativas de feirantes e consumidores de feiras livres por meio da nuvem de palavras

Dentre as palavras mais citadas nas narrativas, destacaram-se: ‘gente’, ‘máscara’, ‘feira’, ‘coisa’, ‘vir’, ‘todo’ e ‘álcool’ (figura 1). Essas palavras com maiores frequências, evidenciadas no gráfico, permitem uma melhor compreensão acerca das experiências individuais e coletivas nas feiras livres durante os anos da pandemia de covid-19. Uma maior necessidade de interação social tomou conta dos discursos, e as narrativas foram envoltas pela ida às feiras livres e pela possibilidade de as pessoas darem continuidade às relações, ainda que tomando os devidos cuidados para aumento da proteção individual e coletiva - embora isso tenha se perdido ao longo do tempo, como observado, possivelmente por falta de uma maior compreensão sobre enfermidades, como a covid-19, sobre a necessidade de higiene alimentar e pela tímida educação de saúde perpassada.

Figura 1
Nuvem de palavras mais frequentes das narrativas de feirantes e consumidores de feiras livres do Maciço de Baturité, Ceará

Análise de narrativas de feirantes e consumidores de feiras livres por meio da árvore de similitude

A análise apresentada tem o intuito de identificar estruturas e núcleos centrais presentes nas narrativas. A partir disso, identificou-se que o principal termo apresentado foi ‘gente’, fortemente relacionado com ‘feira’, ‘mundo’ e ‘máscara’ (figura 2). Isso reforça a existência de relações sociais formadas no cenário das feiras livres e o atravessamento de temas distintos por esse contexto.

Figura 2
Análise de similitude monotemática das narrativas de feirantes e consumidores de feiras livres do Maciço de Baturité, Ceará

Discussão

Os resultados permitiram avaliar que os territórios sob investigação eram marcados por iniquidades multiescalares e multidimensionais, amplamente influenciados pela pandemia de covid-19. Ainda que se visualize a resistência nas dinâmicas relacionais, próprias de regiões pouco exploradas pela atividade humana, percebe-se que há sítios marcados pela visão capitalista, com a perpetuação do negacionismo científico, amplamente insuflado por um prisma político1212 Sott MK, Bender MS, Silva Baum K. Covid-19 Outbreak in Brazil: Health, Social, Political, and Economic Implications. Int J Health Serv. 2022;52(4):442-454. DOI: https://doi.org/10.1177/00207314221122658
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Nesse interim, foi possível perceber que urgiu uma reorganização coletiva e individual, levando as pessoas a traçarem novas formas de produzir e de se estabelecer nesses territórios vivos1313 Ribeiro-Silva RC, Pereira M, Campello T, et al. Covid-19 pandemic implications for food and nutrition security in Brazil. Ciênc saúde coletiva. 2020;25(9):3421-3430. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.22152020
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. No estado do Rio Grande do Sul, uma mudança na conformação das feiras livres, com aumento da divulgação pelas redes sociais, redução dos atendimentos nos territórios, oferta de álcool a 70% e entrega domiciliar, foi parte das estratégias adotadas1414 Preiss PV, Silva GP, Deponti CM, et al. Impacto da covid-19 na comercialização de alimentos da agricultura familiar no Rio Grande do Sul, Brasil. Eutopía. 2022;21(junio):9-29. DOI: https://doi.org/10.17141/eutopia.21.2022.5362
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. Também, compreendeu-se, a partir das narrativas apresentadas, que os cenários de desenvolvimento social e econômico das cidades investigadas foram atingidos pela desvalorização advinda de setores políticos e sufocados pela falta de medidas de promoção da saúde e relação dos determinantes sociais de saúde conectados ao funcionamento de espaços como as feiras livres de alimentos1515 Pereira M, Oliveira AM. Poverty and food insecurity may increase as the threat of COVID-19 spreads. Public Health Nutr. 2020;23(17):3236-3240. DOI: https://doi.org/10.1017/S1368980020003493
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.

Nas feiras livres, há, sem dúvidas, fios de interação simbólicos que emanam informações e decisões, abrigando uma rede com várias lógicas a partir de regras, valores e culturas, apoiadas na troca de ideias, pontos de vista, argumentos e experiências1616 Sato L. Processos cotidianos de organização do trabalho na feira livre. Psicol Soc. 2007;19(esp):95-102. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000400013
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,1717 Carvalho SM, Costa IB, Rigon SA, Cassarino JP. Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso. Saúde debate. 2022; 46(esp2):542-54. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E236-542
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. Nas feiras, os indivíduos são ‘pessoas coletivas’ que transmitem suas visões do mundo por meio do tempo1818 Pereira SB, Brito TP, Pereira VG. Feira-livre como experiência de Bem Viver: uma expressão pulsante das resistências cotidianas. PerCursos. 2022;23(53):180-210. DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1984724623532022180
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. Nesses locais, as relações de trabalho mesclam-se com relações familiares, de amizade e de vizinhança, possibilitando uma organização social que é, sobretudo, parte de um desenvolvimento tecnológico sofisticado e necessário de entendimento para uma melhor compreensão socioambiental e antropológica1616 Sato L. Processos cotidianos de organização do trabalho na feira livre. Psicol Soc. 2007;19(esp):95-102. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000400013
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,1717 Carvalho SM, Costa IB, Rigon SA, Cassarino JP. Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso. Saúde debate. 2022; 46(esp2):542-54. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E236-542
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. Contudo, esses são territórios que ainda carecem de uma maior valorização pelas governanças, tendo em vista a escassez de investigações que podem gerar melhores representações para a construção de políticas públicas, como brevemente apontado pelos participantes dessa pesquisa.

Em relação às condições gerais de funcionamento das feiras livres, estas são distintas em cada local. Suas condições de operação são marcadas tanto pelo baixo conhecimento individual e coletivo como pela insuficiente percepção de risco acerca da comercialização e consumo de alimentos. Esses não são resultados exclusivos do cenário desta pesquisa, mas são encontrados em ambientes similares44 Salamandane C, Fonseca F, Afonso S, et al. Handling of fresh vegetables: knowledge, hygienic behavior of vendors, public health in Maputo Markets, Mozambique. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(17):6302. DOI: https://doi.org/10.3390/ijerph17176302
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, no quais foi possível identificar uso insuficiente de insumos de proteção individual e coletiva, falta de higiene e altos riscos de contaminação microbiológica, além de riscos físicos e químicos. Mesmo antes da pandemia de covid-19, a literatura tem apontado para uma baixa suscetibilidade percebida à infecção por microrganismos nesses espaços, comprometendo a segurança do alimento e favorecendo a eclosão de problemas de saúde1919 Liao Q, Wu P, Lam WW, et al. Public risk perception and attitudes towards live poultry markets before and after their closure due to influenza A(H7N9), Hong Kong, January-February 2014. J Public Health (Oxf). 2016;38(1):34-43. DOI: https://doi.org/10.1093/pubmed/fdv020
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.

Evidências têm apontado que em territórios vivos, como os mercados tradicionais de alimentos, é possível identificar uma grande influência da motilidade humana e de fatores climáticos no aumento de surtos de doenças transmissíveis e veiculadas por vetores2020 Young I, Thaivalappil A, Reimer D, et al. Food Safety at Farmers’ Markets: A Knowledge Synthesis of Published Research. J Food Prot. 2017; 80(12):2033-2047. DOI: https://doi.org/10.4315/0362-028X.JFP-17-193
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,2121 Huang CH, Lin CY, Yang CY, et al. Relationship between the incidence of dengue virus transmission in traditional market and climatic conditions in Kaohsiung city. Can J Infect Dis Med Microbiol. 2021;9916642. DOI: https://doi.org/10.1155/2021/9916642
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. Todavia, as narrativas apresentadas indicaram pouca regulamentação, fiscalização e estabelecimento de normas para o funcionamento desses espaços, demonstrando a ausência de cuidado de gestores públicos e da sociedade civil.

Somado a isso, em regiões como as que abrigam feiras livres, parecem imperar a baixa percepção de risco dos atores envolvidos, a falta de práticas de proteção e prevenção ante a pandemia e a não adesão às medidas sanitárias e de biossegurança importantes para o controle de enfermidades, em especial, pelo acesso restrito a serviços de saúde de qualidade. Outrossim, fatores como o estado de saúde individual ou familiar, a influência das mídias de massa, o conhecimento sobre a doença, o bem-estar, a orientação política, a confiança sobre as ações determinadas, a experiência direta e indireta e a propensão para vacinar tendem a interferir nas melhores escolhas e atitudes nesse quadro. Como consequência, isso inclina-se a provocar aumento de desigualdades sociais e mudança na conformidade local, impactando o funcionamento das feiras livres, por exemplo.

Os impactos dessas transformações, nos últimos anos, ainda não foram mensurados em contextos locais, como aqueles explorados pelo estudo em tela. Contudo, em países como os Estados Unidos da América, pesquisadores identificaram uma redução de até 62% nas vendas de produtos em mercados tradicionais, gerando projeções negativas na sustentabilidade desses territórios2222 O’Hara JK, Woods TA, Dutton N, et al. COVID-19’s Impact on Farmers Market Sales in the Washington, D.C., Area. J Agric Appl Econ Asssoc. 2021:1-16. DOI: https://doi.org/10.1017/aae.2020.37
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. Assim, a apreensão sobre os reflexos da pandemia na venda de alimentos em feiras livres direciona à necessidade de maiores entendimentos sobre a percepção de risco de indivíduos e suas coletividades, bem como na urgência de identificação de comportamentos preventivos e de preditores relacionados.

Outra percepção que se teve foi a diferença entre o ponto de vista do comerciante da feira e do consumidor em relação à biossegurança. Atribuiu-se isso a uma séria de fatores, incluindo percepções de risco, prioridades econômicas e falta de conhecimento ou informação adequada sobre as práticas de biossegurança.

Uma diferença na percepção de risco é uma explicação fundamental para essas visões divergentes. De acordo com a teoria da percepção de risco, diferentes indivíduos avaliam os riscos de maneira diferente, baseando-se em uma variedade de fatores psicológicos, culturais e sociais. Comerciantes podem perceber as ameaças à saúde de maneira diferente dos consumidores, influenciados por sua familiaridade e rotina diária. Além disso, a implementação de práticas de biossegurança pode ser percebida como onerosa ou impraticável pelos comerciantes, especialmente em contextos de recursos limitados ou falta de apoio institucional. Isso contrasta com os consumidores, que podem demandar ambientes mais seguros sem considerar plenamente os desafios enfrentados pelos comerciantes para implementar essas medidas2323 Henson S, Traill WB. The demand for food safety: Market imperfections and the role of government. Food Policy. 1993;18(2):152-162. DOI: https://doi.org/10.1016/0306-9192(93)90023-4
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Conclusões

Na perspectiva de feirantes e consumidores, as feiras livres de alimentos são locais que ultrapassam a questão de comércio de alimentos frescos a baixo custo, são também um espaço de interação social. Por isso, um dos reflexos da pandemia de covid 19 nesses espaços foi uma preocupação com a interação social (perspectiva do consumidor) e com a manutenção do comércio (perspectiva do feirante). Por outro lado, constatou-se que os territórios ainda não conseguem garantir um ambiente que cumpra fielmente as medidas de sanitárias e de biossegurança, mesmo após a pandemia de covid-19 recente.

  • Suporte financeiro: este trabalho foi contemplado pelo Edital nº 06/2020 - Fiocruz, intitulado ‘Territórios Sustentáveis e Saudáveis no contexto da pandemia Covid-19’, sob o título de ‘Reflexos da pandemia de COVID 19 na venda de alimentos em feiras livres no Maciço de Baturité-CE: estudo misto sobre segurança alimentar e sustentabilidade’ (inscrição nº 64171806284625)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    09 Maio 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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