Avaliação de Quarta Geração: intervenções realizadas na atenção à crise em saúde mental

Fourth Generation Evaluation: interventions carried out in mental health crisis care

Fernanda Demetrio Wasum Daiana Foggiato de Siqueira Mariane da Silva Xavier Priscila de Melo Zubiaurre Márcia Aparecida Ferreira de Oliveira Carlos Alberto da Cruz Sequeira Sobre os autores

RESUMO

Este artigo tem como objetivo avaliar as práticas de intervenção na atenção à crise em saúde mental em um serviço de urgência e emergência. Trata-se de um estudo qualitativo, que utilizou a Avaliação de Quarta Geração como percurso teórico-metodológico. O cenário foi uma Unidade de Pronto Atendimento, localizada no interior do estado do Rio Grande do Sul. Participaram 18 profissionais da saúde que atuavam na unidade. Os dados foram coletados por meio de observação participante e entrevista com aplicação do Círculo Hermenêutico-Dialético, e analisados pelo Método Comparativo Constante. As principais práticas de intervenções na atenção à crise em saúde mental demonstradas no processo avaliativo foram as contenções físicas, a medicamentalização excessiva, a solicitação de apoio da força policial e a pouca utilização da escuta qualificada. Essas intervenções demonstram um desafio para a atenção psicossocial que tem como premissas a desinstitucionalização, a defesa dos direitos humanos e a participação das pessoas com transtornos mentais no tratamento. Esta pesquisa pode contribuir para a desconstrução do paradigma manicomial que, em situações de crise, vê a tutela, o controle e a violência como únicas opções de intervenção.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde mental; Intervenção na crise; Emergência; Enfermagem em emergência; Avaliação em saúde.

ABSTRACT

This article aims to evaluate intervention practices in mental health crisis care in an urgent and emergency service. This is a qualitative study, which used the Fourth Generation Evaluation as a theoretical-methodological path. The setting was an Emergency Care Unit, located in the interior of the state of Rio Grande do Sul. Eighteen health professionals who worked in the unit participated. Data were collected through participant observation and interviews using the Hermeneutic-Dialetic Circle. And, analyzed by the Constant Comparative Method. The main intervention practices in mental health crisis care demonstrated in the evaluation process were physical restraints, excessive medication, requesting support from the police force and little use of qualified listening. These interventions demonstrate a challenge for psychosocial care, which is based on deinstitutionalization, the defense of human rights and the participation of people with mental disorders in treatment. This research can contribute to the deconstruction of the asylum paradigm that, in crisis situations, sees guardianship, control and violence as the only intervention options.

KEYWORDS
Mental health; Crisis intervention; Emergency; Emergency nursing; Health evaluation

Introdução

As práticas em saúde mental podem ser denominadas como as formas de cuidado aplicadas ante os usuários em sofrimento psíquico. Estas vivenciaram diversas mudanças com o surgimento da Reforma Psiquiátrica e a priorização do cuidado pautado na liberdade, em detrimento das intervenções realizadas dentro de instituições manicomiais. Práticas que valorizam as subjetividades dos sujeitos demonstram sua importância, em especial, nos momentos de crise psíquica, em que os usuários demandam acolhimento e assistência em saúde11 Dias MK, Ferigato SH, Fernandes ADSA. Atenção à Crise em saúde mental: centralização e descentralização das práticas. Ciênc saúde coletiva. 2020;25(2):595-602. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232020252.09182018
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A Resolução do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) nº 678/2021 define que a crise em saúde mental pode ser identificada a partir do cumprimento de no mínimo três dos principais parâmetros de avaliação, que se constituem como: a presença de sintomas psiquiátricos graves e agudos; rupturas significativas no núcleo familiar e/ou relações sociais; rejeição por parte do sujeito em crise de toda forma de ajuda ou contato; recusa de intervenções em saúde; situações classificadas como emergenciais no núcleo familiar e/ou social; ou na impossibilidade do sujeito em sofrimento enfrentar esse momento de desespero e angústia sem assistência em saúde22 Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução COFEN nº 678, de 19 de agosto de 2021. Aprova a atuação da Equipe de Enfermagem em Saúde Mental e em Enfermagem Psiquiátrica. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2021 ago 26; Seção 1:97..

A crise também é entendida como um momento de desorganização, em que o sujeito se encontra impossibilitado de manter a homeostase psíquica33 Ferigato SH, Campos RTO, Ballarin MLGS. O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Rev Psicol UNESP [Internet]. 2007 [acesso em 2024 jan 16];6(1):31-44. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/sabrinaferigato2007oatendimentoacrise.pdf
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. De outro modo, salienta-se o potencial positivo e transformador da crise, em que existe um significado subjetivo e individual para esse sujeito que sustenta esse momento específico33 Ferigato SH, Campos RTO, Ballarin MLGS. O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Rev Psicol UNESP [Internet]. 2007 [acesso em 2024 jan 16];6(1):31-44. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/sabrinaferigato2007oatendimentoacrise.pdf
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Assim, a crise pode ser compreendida a partir de outra perspectiva, sendo vista como uma situação que possui capacidade criadora, levando a pessoa a opinar, decidir e questionar sua existência e o mundo que a cerca. É um momento crítico que gera descontinuidade e perturbação no curso normal da vida, quando coisas, indivíduos e contextos são deixados para trás e abrem-se outras e novas possibilidades de ser e estar no mundo44 Boff L. Crise: oportunidade de crescimento. Rio de Janeiro: Verus; 2022.. Nem toda crise em saúde mental se classifica como uma urgência ou emergência, além de que o referencial de urgências e emergências está associado ao modelo biomédico, que se utiliza de intervenções em saúde pontuais. De encontro a esse modelo, o referencial de crise psíquica exige uma abordagem psicossocial que considera as singularidades de cada indivíduo ante o sofrimento, o que fundamenta as tomadas de decisões e intervenções específicas a cada caso11 Dias MK, Ferigato SH, Fernandes ADSA. Atenção à Crise em saúde mental: centralização e descentralização das práticas. Ciênc saúde coletiva. 2020;25(2):595-602. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232020252.09182018
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,55 Almeida AB, Nascimento ERP, Rodrigues J, et al. Intervenção nas situações de crise psíquica: dificuldades e sugestões de uma equipe de atenção pré-hospitalar. Rev Bras Enferm. 2014;67(5):708-714. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670506
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Na clínica ampliada, modelo de cuidado proposto pela Reforma Psiquiátrica, a crise e os conflitos que se manifestam junto dela não devem ser apagados, contidos e nem ocultos nos serviços de saúde. Os momentos de crise psíquica precisam ser assumidos como estímulo para a transformação e crescimento das pessoas em sofrimento mental66 Lobosque AM. Clínica em movimento: por uma sociedade sem manicômios. Rio de Janeiro: Garamond; 2003..

Para que seja possível transformar a percepção a respeito da crise em saúde mental, dentro das instituições de saúde, é necessário modificar a ótica que associa o sofrimento psíquico com a loucura, em que o adoecimento mental é visto como algo pejorativo e não uma condição humana. Nesse contexto, o paradigma psicossocial, centrado no cuidado singular, demanda além do conhecimento teórico dos profissionais, a empatia, a ética e o respeito aos direitos e a dignidade dos usuários em sofrimento mental55 Almeida AB, Nascimento ERP, Rodrigues J, et al. Intervenção nas situações de crise psíquica: dificuldades e sugestões de uma equipe de atenção pré-hospitalar. Rev Bras Enferm. 2014;67(5):708-714. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670506
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Evidencia-se que mesmo com o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) e após a instituição da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) por meio da Portaria GM/MS nº 3088/2011, ainda predomina na atenção à crise intervenções asilares focalizadas na institucionalização dos sujeitos, em que o cuidado é realizado de forma supressora, a partir de práticas coercitivas, como a contenção física e a medicamentalização excessiva. Dessa forma, esse tipo de cuidado não acolhe o sujeito, e sim o controla, o que reforça as práticas de cuidado em saúde alicerçadas no modelo manicomial e hospitalocêntrico77 Cruz KDF, Guerrero AVP, Scafuto J, et al. Atenção à crise em saúde mental: um desafio para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Rev Nufen 2019;11(2):117-132. DOI: https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n02ensaio51
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Nesse sentido, pensar as práticas desempenhadas nos serviços de saúde ante o usuário em sofrimento mental também requer um olhar atento para os serviços de urgência e emergência, que recebem diversos casos de usuários em situação de crise psíquica. Uma das questões abordadas nos espaços de urgência e emergência é a fragilização referente ao conhecimento dos profissionais diante das necessidades de cuidado dos usuários em situação de crise. Os profissionais da saúde sentem-se inseguros para realizar os atendimentos atrelados à saúde mental, o que por vezes favorece o uso de práticas de cuidado coercitivas, como a contenção mecânica88 Ramos TDSS, Ramalho MA, Souza TDSS, et al. Percepção de profissionais do atendimento pré-hospitalar na assistência à urgência e emergência (crise) em psiquiatria. Res Soc Dev. 2021;10(11):e275101119423. DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i11.19423
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Diante desse cenário, formulou-se a seguinte questão norteadora: como acontecem as práticas de intervenção na atenção à crise em saúde mental nos serviços de urgência e emergência? Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo avaliar as práticas de intervenção na atenção à crise em saúde mental em um serviço de urgência e emergência.

Material e métodos

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, que utilizou a Avaliação de Quarta Geração (AQG)99 Guba EG, Lincoln Y. Avaliação de Quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011., como referencial teóricometodológico e como parâmetros avaliativos os quatro parâmetros fundamentais do modelo psicossocial1010 Costa-Rosa AD. O Modo Psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 141-168.: a definição de ‘seu objeto’ e dos ‘meios’ teórico-técnicos de intervenção (o que inclui as formas da divisão do trabalho interprofissional); as formas da organização dos dispositivos institucionais; as modalidades do relacionamento com os usuários e a população; e, as implicações éticas dos efeitos de suas práticas em termos jurídicos, teórico-técnicos e ideológicos.

A metodologia proposta pela AQG baseia-se em uma avaliação construtivista e responsiva com abordagem hermenêutico-dialética. Ela apresenta-se a partir das construções significativas de determinados grupos de pessoas a respeito das situações que os cercam (contextos psicológicos, sociais e culturais) e que tem alguma relação com o objeto da avaliação. Tais construções ocorrem a partir da interação direta da avaliadora (pesquisadora) com os stakeholders ou grupos de interesse. Uma das principais características da AQG é ser um processo participativo, no qual as reivindicações, preocupações e questões dos grupos de interesse servem como organizadores para determinar quais informações são importantes99 Guba EG, Lincoln Y. Avaliação de Quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011.,1111 Wetzel C. Avaliação de serviço em saúde mental: a construção de um processo participativo [tese na Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005 [acesso em 2024 jan 16]. 291 p. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22131/tde-16052007-150813/pt-br.php
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Neste estudo, o grupo de interesse foi constituído pelos profissionais da equipe de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Compreendeu-se que, por ter como objeto de avaliação suas práticas, seria fundamental que estes profissionais fossem os protagonistas do processo avaliativo.

O cenário do estudo foi uma UPA de um município do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. A UPA se configura como um serviço de atendimento a urgências e emergências no período de 24 horas. Compõe a Raps do município em questão e se caracteriza como uma das principais portas de entrada para o atendimento de situações de crise em saúde mental.

O trabalho de campo ocorreu no período de março a outubro de 2023, sendo utilizadas as etapas adaptadas da AQG: contato com o campo; organização da avaliação; identificação dos grupos de interesse; desenvolvimento das construções conjuntas; ampliação das construções conjuntas; preparação da agenda de negociação e execução da negociação1111 Wetzel C. Avaliação de serviço em saúde mental: a construção de um processo participativo [tese na Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005 [acesso em 2024 jan 16]. 291 p. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22131/tde-16052007-150813/pt-br.php
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O ‘contato com o campo’ se deu em primeiro momento através de uma reunião com o membro responsável pela direção da UPA e um representante líder da equipe que atua no serviço. Nesta reunião foi apresentado o projeto de pesquisa e seus objetivos. Em um segundo momento, realizou-se a apresentação ao grupo de interesse. Essa fase da AQG é de suma importância em um estudo participativo, pois qualifica-se como a etapa em que os participantes conhecem, se identificam e se comprometem como participantes do processo avaliativo.

Na ‘organização da avaliação’ a pesquisadora se aproximou do contexto do estudo a fim de realizar a etnografia prévia, assim como do grupo de interesse, em que se almejou a criação de uma relação de confiança para o desenvolvimento da pesquisa. Isto é, a pesquisadora vivenciou o contexto e a dinâmica do serviço pesquisado, sem ainda estar engajada com as atividades da avaliação. O principal nesta etapa foi ganhar o direito de entrada99 Guba EG, Lincoln Y. Avaliação de Quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011.. Para isso, utilizou-se da observação participante, totalizando 203 horas.

De maneira simultânea, identificou-se o grupo de interesse, sendo este os profissionais da saúde que fazem parte da equipe multidisciplinar (enfermeiros, médicos, técnicos de enfermagem) de um serviço de urgência e emergência e que atendem usuários em situação de crise em saúde mental, totalizando 18 participantes.

Seguiu-se a etapa de ‘desenvolvimento das construções conjuntas’. Foram realizadas as entrevistas por meio da aplicação do Círculo Hermenêutico-Dialético (CHD). É hermenêutico porque tem caráter interpretativo e é dialético pois proporciona, por meio de trocas e reflexões, a interação entre diferentes pontos de vista para que se tenha uma síntese elaborada das ideias99 Guba EG, Lincoln Y. Avaliação de Quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011..

A aplicação do CHD iniciou a partir da escolha do primeiro respondente chamado de R1. Esta escolha deu-se pelo fato de este ser identificado como uma liderança na equipe. R1 participou de uma entrevista aberta, na qual foi convidado para falar livremente sobre as intervenções realizadas na atenção à crise em saúde mental na UPA. Posteriormente, a entrevista foi transcrita e analisada, obtendo-se as primeiras questões, preocupações e reivindicações, configurando as construções iniciais de R1, denominadas de C1.

Após o término da primeira entrevista, a pesquisadora solicitou que R1 indicasse outro respondente, o R2. O segundo respondente também teve a oportunidade de falar livremente sobre o objeto da avaliação. Após concluir suas manifestações, a pesquisadora apresentou questões que não foram abordadas por R2, mas que foram mencionadas por R1. Desse modo, R2 foi convidado a manifestar sua opinião sobre as referidas questões. Isso se repetiu com as demais entrevistas.

Cabe expressar que a análise foi realizada de forma constante. Ou seja, após cada entrevista as percepções, reivindicações, preocupações e questões de cada respondente foram analisadas. Esse processo permitiu que o conteúdo das entrevistas ficasse disponível para as seguintes. Assim, os respondentes não apenas geraram novas construções, como também comentaram os temas das entrevistas anteriores, tornando o seu conteúdo mais completo e fundamentado.

O CHD foi aplicado até que as informações fornecidas se aproximassem ou se repetissem. Portanto, o objetivo desse processo foi a interação das diferentes construções sobre um objeto, em busca de uma síntese esclarecida, baseada na participação crítica de todos os respondentes99 Guba EG, Lincoln Y. Avaliação de Quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011..

Já na etapa de ‘ampliação das construções conjuntas’, a pesquisadora pôde adicionar informações (referencial teórico do tema, construções de outros círculos, percepções/observações registradas pela pesquisadora no diário de campo, construção ética do avaliador) consideradas pertinentes para alguma questão ao CHD.

Em seguida, partiu-se para a ‘preparação da agenda para a negociação’. Nesse momento, a pesquisadora organizou uma síntese correspondente aos resultados do CHD para a apresentação aos participantes. A posteriori, ocorreu a ‘execução da negociação’, o momento propriamente dito da apresentação do material empírico ao grupo de interesse. Os participantes foram reunidos em uma sala virtual, na qual tiveram acesso aos resultados da pesquisa em forma de texto. Também foi elaborada uma enquete em que os participantes puderam manifestar se estavam de acordo, se não estavam de acordo ou se desejavam realizar alterações no texto. As questões provenientes dessa etapa foram consideradas como resultado e objetivou-se que o grupo de interesse compreendesse suas próprias construções, validando-as. Nesta etapa, a avaliadora foi mediadora, respeitando os princípios da avaliação qualitativa.

A análise foi realizada a partir do Método Comparativo Constante99 Guba EG, Lincoln Y. Avaliação de Quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011., em que a análise e a coleta das informações foram concomitantes.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (CAEE: 67700323.9.0000.5346; Parecer: 5.957.171). A pesquisadora apresentou a justificativa e os objetivos da pesquisa, explicando todas as possíveis dúvidas, assim como os riscos e benefícios dela, após os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A respeito dos direitos concedidos aos participantes de pesquisas, foi considerada a legislação de pesquisas com seres humanos, as Resoluções nº 466 de 12 de dezembro de 2012, e nº 510, de 7 de abril de 2016, que respaldam legalmente tais questões1212 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção I:549.,1313 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24; Seção I:44.. Em prol de garantir o anonimato dos participantes, eles foram identificados pela letra ‘R’, inicial da palavra Respondente, seguido do número sequencial que diz respeito a ordem em que foram realizadas as entrevistas.

Resultados

Sobre as intervenções realizadas na atenção à crise em saúde mental no serviço de urgência e emergência, as contenções físicas, mecânicas e químicas se destacaram como as ações de primeira escolha pelos profissionais. Em situações nas quais o usuário encontrava-se agitado, a presença da polícia militar (Brigada) foi solicitada para auxiliar na contenção mecânica. Em contrapartida, por meio de um olhar crítico, os profissionais identificaram que poderiam ser realizados outros modos de intervenção como a escuta e o acolhimento, porém predominam as práticas que não valorizam a subjetividade das pessoas cuidadas.

Paciente mais em surto psicótico é feito a contenção, com compressas, com ataduras, com lençóis e às vezes mesmo assim eles têm tanta força, eles estão tão em surto, que eles ainda conseguem se desvencilhar e às vezes a gente não consegue fazer sozinha, é chamado a Brigada para eles auxiliarem, eles têm mais força bruta assim vamos dizer, mas é feito e é bastante, mesmo o paciente medicado já. A gente pega a força mesmo, bota na maca ou bota na cama e amarra. (R5).

Quando ele (usuário) está muito agitado ou tem algum risco para nós, aí a gente contém eles. (R6).

Bastante a questão da medicação, principalmente. Ele chega às vezes em surto e a gente tem que fazer, às vezes eles não param, sabe? Prometazina e Haldol. (R7).

Só medicação, além de conter mecanicamente, é feito medicação. Acho que poderia ter outro tipo de intervenção (escuta e acolhimento), mas é medicamentosa ou mecanicamente. (R16).

A respeito do uso da força policial nas contenções, esta é percebida como uma forma de segurança quando os usuários são identificados como agressivos com a equipe de enfermagem durante o episódio de crise em saúde mental. Os profissionais identificam que a presença intimidadora da polícia, por vezes, substitui a contenção mecânica.

Os policiais, às vezes são necessários, às vezes tem pacientes que não deixam a gente chegar perto e com a equipe de enfermagem eles são agressivos, autoritários, aí quando a brigada vem, eles acalmam, não precisa nem conter às vezes, eles ficam bem calminhos. (R4).

Quando o paciente vem com Samu, vem em surto, a brigada sempre está junto, eu se o paciente está aqui e surta eu não vou atender sem a brigada e eu noto que o pessoal também tem esse receio e a maioria respeita se a brigada tá aí. (R7).

As práticas tutelares e autoritárias são reforçadas com a presença da polícia militar. Forma-se um aparato disciplinar que tem como objetivo domar o corpo, ao invés de possibilitar espaço que acolha o sofrimento.

A polícia é chamada, se eles são muito agressivos e a maioria quando é usuário (de drogas), eles são muito, tanto fisicamente quanto com palavras, ofensas, eles não querem que a gente mexa, não querem que a gente encoste, não querem que faça medicação. É chamado a brigada, a brigada vem e não conversa muito, pega a força mesmo, bota no leito e a gente ata. (R5).

Sobre a participação da polícia, não é muito legal. Eu acho meio grosseiro até porque o paciente está fora de si, ele não está ciente do que ele está fazendo e muitas vezes a gente observa que eles (policiais) falam: ‘te comporta com as meninas, porque a gente está aqui’. Eles usam da autoridade deles, não é legal. (R8).

Em detrimento do acolhimento e da escuta, a medicamentalização também é uma intervenção utilizada como recurso para que as regras do serviço sejam cumpridas, como por exemplo não fumar.

Medicação, principalmente. Até porque aqui eles já chegam e muitas vezes são pacientes que fumam e aí eles querem sair para fumar e não pode por ser regra da unidade, então eles ficam mais agitados ainda, então é necessário medicar um pouco mais. (R8).

Sobre as regras impostas no serviço de urgência e emergência, observa-se a falta de flexibilidade e valorização da singularidade dos usuários, por exemplo, pessoas que fazem uso do cigarro necessitam se abster completamente do uso enquanto estão dentro da unidade. Tais regras, impostas de forma arbitrária, contribuem com o aumento da ansiedade ou até mesmo a evasão desses sujeitos do serviço. Nesse sentido, observa-se uma semelhança com o modelo manicomial, em que os indivíduos eram percebidos como meros cumpridores de regras das instituições asilares, sem o direito de questionar, fortalecendo práticas de violência e coerção.

Ademais, antes da realização das contenções mecânica e química, não acontecem outros tipos de intervenção na atenção à crise em saúde mental, como a abordagem verbal. Nesse contexto, o diálogo é entendido como uma questão de identificação ou de prioridade, sendo que os usuários em atendimento de saúde mental não são percebidos como prioridade de cuidado.

Eu não sou aquela pessoa que vou sentar e ficar lá conversando, tenho colegas que já tem esse perfil, eu já não consigo, eu não consigo ir lá ficar sentada, eu vejo que precisa, mas não consigo, até porque eu me prendo mais nos pacientes da urgência mesmo ou clínicos e também eu acho as duas coisas, uma questão de identificação e uma questão de prioridades. (R9).

Os profissionais avaliaram que a abordagem verbal ou escuta, denominada por eles como conversa/diálogo, é uma intervenção em saúde mental. No entanto, consideram que essa abordagem não é para todos os usuários, por exemplo, para os identificados como em surto, ser escutado não é uma opção.

Quando não se consegue dar contorno à crise dos usuários, recorre-se a outros pontos de atenção da Raps, como, por exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e a atenção primária. Cabe destacar que no modelo de atenção psicossocial o sujeito que tem um sofrimento precisa ser escutado, independente do dispositivo de cuidado. Investir na escuta qualificada significa investir nas pessoas, em suas experiências vividas. Significa estar atento às suas necessidades psicossociais, valorizando suas subjetividades, sem ‘endurecer’ a relação de cuidado. Parafraseando R15: “eles precisam ser ouvidos”.

A escuta, mas não para pacientes em surto, só para os outros, às vezes se não consegue internação Gerint (Gerenciamento de Internações Hospitalares), eles conversam com o paciente, conversam com o familiar, ‘ah! Vamos tentar com a rede do posto, Caps, antes de tentar internação’. A escuta é feita no Caps, o médico só conversa e faz o encaminhamento, tipo se não tem psiquiatra no Caps, daí a enfermeira do Caps faz uma escuta. (R13).

Tentar acalmar o paciente, porque às vezes eles precisam ser ouvidos, a gente tenta conversar, mas às vezes não consegue, se ele está muito em surto. Tenta fazer a medicação e depois conversar, eles ficam mais agitados se estão contidos, e a gente tenta conversar, esse tipo de diálogo que a gente tem. (R15).

Nesse contexto de intervenção na crise em saúde mental, os profissionais avaliaram que a presença da enfermagem, por ser constante, permite conhecer os usuários e algumas situações que os levaram à crise. Diferente disso, a equipe médica realiza ações pontuais de cuidado, como visita para avaliação e prescrição das medicações.

As ações pontuais refletidas no atendimento médico, levam-nos a pensar sobre as transformações necessárias na formação em saúde. É preciso construir espaços que permitam formar profissionais mais preocupados em desconstruir as práticas psiquiátricas alicerçadas na hierarquia e menos implicados com a burocracia e o controle.

Eu acho que quem faz o cuidado é a enfermagem, o médico vai lá, ele avalia, deu. Mas quem tá junto, quem escuta é a gente. (R4).

Tem muita gente que vem aqui que a gente já sabe, a gente fala ‘é os vip’, a gente brinca porque eles estão aí sempre, principalmente os que vêm em surto ou é usuário (de drogas), e eu acho que sim, já tem um certo vínculo. (R7).

A gente já conhece que é paciente usuário (de drogas) e que ele usou (droga), não usou a medicação que ele faz uso sempre. Então, ele acaba tendo essas crises, não é uma convulsão e os médicos não lembram. (R5).

A questão de a equipe de enfermagem permanecer por mais tempo ao lado do usuário durante o período no qual este se encontra no serviço de urgência e emergência foi avaliado como uma possibilidade de construção de vínculo, que permite aos profissionais reconhecer quem reinterna, e aos familiares e pacientes o sentimento de segurança.

Na atenção psicossocial, o vínculo é fundamental para o cuidado, pois é através dele que a confiança é construída, permitindo que as ações de saúde sejam elaboradas de modo compartilhado, por meio da valorização do conhecimento/vivência dos usuários e de seus familiares, a fim de que seja construída uma relação emancipatória e não de controle. Pensar na emancipação dos usuários está diretamente relacionado com a redução e enfrentamento das situações de vulnerabilidade que, por vezes, são criadas, reforçadas e reproduzidas pelos serviços de saúde.

Eu acho que é fundamental criar esse vínculo, porque é o paciente que geralmente vai vir outras vezes e até mesmo para a família se sentir mais confiante e segura também, se esse paciente te conhece e sabem que você tratou bem, que você entendeu, que você teve empatia em outros momentos com ele, ele também vai colaborar mais, vai se sentir mais seguro e acho que é um benefício para os dois lados. (R11).

A partir dos resultados apresentados, é importante ressaltar que a organização dos serviços por meio da Raps foi pensada para que os usuários possam ser cuidados em sua totalidade, integralmente, tendo sua singularidade valorizada. Entretanto, por vezes, no Brasil a Raps apresenta seu foco direcionado para o hospital como o lugar destinado à pessoa vista como louca e perigosa, em detrimento dos serviços de base territorial como a Atenção Primária à Saúde e os Caps. Assim, espaços como a UPA, que se configura como um potente dispositivo emergencial, acabam por reproduzir uma lógica manicomial mediante o silenciamento dos sujeitos através da medicalização. Portanto, mudar as práticas pressupõe uma reorganização que passa não somente pela mudança estrutural dos serviços, mas também pela formação dos profissionais que neles atuam. Desinstitucionalizar é colocar o usuário como protagonista do cuidado e não como espectador das práticas que o controlam.

Discussão

A respeito das intervenções na atenção à crise em saúde mental em um serviço de urgência e emergência, os participantes da pesquisa avaliaram que as contenções mecânicas e químicas são as práticas mais utilizadas. Tem-se o conhecimento que as contenções mecânicas são associadas a eventos adversos como lesões por pressão, estresse psicológico, contusão, luxação dos membros, desnutrição, constipação intestinal, aumento da agitação, lesões isquêmicas dos membros, delirium, entre outros. O uso de contenções mecânicas podem ser as faixas, coletes, compressas e ataduras que impedem a movimentação do usuário até as grades bilaterais anexadas aos leitos1414 Figueiredo Júnior JC, Santos LCA, Ribeiro WA, et al. Contenção mecânica x humanização: contributos da enfermagem para o cuidado na saúde mental no âmbito hospitalar. Brazilian Journal of Science 2022 [acesso em 2024 jan 16];1(6):52-57. DOI: http://dx.doi.org/10.14295/bjs.v1i6.124
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Ela foi utilizada ao longo da história como meio de conter fisicamente as alterações de comportamento. Atualmente, ainda se associa seu uso a um ato de repreensão. Dessa forma, estimula-se que seu uso seja refletido pelos profissionais como um recurso quando todas as outras estratégias de cuidado forem esgotadas. Cabe ressaltar que, quando utilizada, a contenção mecânica deve ser desenvolvida de forma criteriosa, em que os profissionais devem atentar para questões físicas e psicológicas, como a integridade da pele, circulação sanguínea e a compreensão do usuário sobre o que está ocorrendo1515 Maximo PA, Santos TSD, Santos GS et al. A importância da contenção mecânica e a avaliação permanente da equipe de enfermagem. Braz J Hea Rev [Internet]. 2019 [acesso em 2024 jan 16];2(2):1172-1212. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/1324
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Após a realização da contenção, o usuário deve ser reavaliado com atenção. Os profissionais da saúde devem observar se há circulação sanguínea nos membros contidos, os sinais vitais do usuário e o nível de consciência deste. Ademais recomenda-se que, assim que possível, a contenção seja interrompida, visando a diminuição de riscos físicos e psicológicos à pessoa cuidada1515 Maximo PA, Santos TSD, Santos GS et al. A importância da contenção mecânica e a avaliação permanente da equipe de enfermagem. Braz J Hea Rev [Internet]. 2019 [acesso em 2024 jan 16];2(2):1172-1212. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/1324
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,1616 Rodrigues A, Gonzaléz L, Castro P, et al. Contenção mecânica: percepção dos Enfermeiros. RIIS. 2020;3(1):31-34. DOI: https://doi.org/10.37914/riis.v3i1.70
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Sobre a contenção farmacológica ou química, a mesma pode ser definida como o uso de medicamentos para sedação ou interrupção rápida da crise psíquica. Os participantes da pesquisa avaliaram que a contenção química é frequentemente usada na diminuição dos sintomas ansiosos nos usuários em observação na unidade e durante as crises psíquicas. O uso excessivo das medicações revela o objetivismo do cuidado, em que as subjetividades dos sujeitos, suas histórias de vida e experiências são deixadas de lado, olhando-se apenas para os sintomas e para a forma mais rápida de cessá-los1717 Zeferino MT, Cartana MHF, Fialho MB, et al. Percepção dos trabalhadores da saúde sobre o cuidado às crises na Rede de Atenção Psicossocial. Esc Anna Nery. 2016;20(3):e20160059. DOI: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160059
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Ao articular os dados obtidos com as discussões apresentadas, é possível afirmar que desenvolver uma atenção à crise em saúde mental que esteja fundamentada no modelo psicossocial é um desafio. No cotidiano da urgência e emergência, as práticas coercitivas de cuidado são mais utilizadas em detrimento de outras intervenções como a escuta qualificada e o acolhimento. A conversa e o diálogo se caracterizam como uma intervenção pouco utilizada no cotidiano do serviço. Evidencia-se que a força policial é acionada com frequência no serviço de urgência, associando o usuário em crise psíquica ao potencial de periculosidade.

Assim, o uso indiscriminado das medicações aponta para uma psiquiatria tradicional e tutelar, diferente da saúde mental a partir da Reforma Psiquiátrica. A utilização dos fármacos para o alívio de sintomas possui benefícios, porém o uso deve ser controlado, para que não se tenha uma banalização da sua utilização, em que as soluções das adversidades dos indivíduos são depositadas unicamente em uma composição química1717 Zeferino MT, Cartana MHF, Fialho MB, et al. Percepção dos trabalhadores da saúde sobre o cuidado às crises na Rede de Atenção Psicossocial. Esc Anna Nery. 2016;20(3):e20160059. DOI: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160059
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O paradigma da Reforma Psiquiátrica e o consequente advento da atenção psicossocial busca, entre outros objetivos, a superação da dualidade saúde-doença e sujeito-objeto. Com isso, possui o intuito de questionar a verticalidade das relações de cuidado e do saber-poder biomédico, democratizando os espaços de saúde mental. Entretanto, evidencia-se que nos serviços de urgência e emergência há a necessidade de superação do modelo biomédico-medicalizador, o qual ainda privilegia práticas burocráticas e segregatórias de cuidado77 Cruz KDF, Guerrero AVP, Scafuto J, et al. Atenção à crise em saúde mental: um desafio para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Rev Nufen 2019;11(2):117-132. DOI: https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n02ensaio51
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No que se relaciona a outras intervenções, além das contenções químicas e físicas, os participantes reconhecem a conversa ou a escuta como práticas de intervenção que podem ser utilizadas nos atendimentos de saúde mental. Porém, os profissionais identificam que pouco aplicam no cotidiano essa intervenção, atribuindo sua utilização a outros serviços como os Caps e suas diferentes modalidades.

A escuta qualificada pode ser definida como o encontro do profissional com as subjetividades do indivíduo escutado, um momento em que se atenta para os gestos, emoções, relatos e ações que são expressas. A Política Nacional de Humanização (PNH), lançada em 2003, propõe novas formas de gestão e cuidado a partir de práticas humanizadoras como o acolhimento e a escuta. O acolhimento caracteriza-se como o reconhecimento do que o outro traz como legítimo e único, é a relação entre equipes e serviços com os usuários, realizado através da escuta qualificada, na qual são ouvidas as necessidades e demandas singulares de cada pessoa1818 Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Humanização. Brasília, DF; 2013.,1919 Santos AB. Escuta qualificada como ferramenta de humanização do cuidado em saúde mental na Atenção Básica. APS. 2019;1(2):170-179. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v1i2.23
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Observa-se que por diversas vezes o indivíduo em sofrimento não percebe a influência de seus conflitos e suas dores no que pensa, fala ou expressa, podendo o profissional atuar como importante ferramenta para a ressignificação do sofrimento psíquico através da escuta qualificada. A realização da escuta pelos profissionais possibilita uma atuação pautada nas singularidades e subjetividades dos indivíduos, em que se respeita o momento da crise psíquica como uma manifestação do sofrimento e uma forma de expressão, que não deve ser inibida em sua totalidade, e sim avaliada de forma individual, e pode ser associada a outras estratégias de cuidado dependendo de cada caso1919 Santos AB. Escuta qualificada como ferramenta de humanização do cuidado em saúde mental na Atenção Básica. APS. 2019;1(2):170-179. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v1i2.23
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Cabe assegurar que a escuta qualificada, enquanto ferramenta de cuidado, deve ser aplicada em todos os serviços de saúde, independentemente de sua complexidade. Dessa forma, as subjetividades dos indivíduos podem ser respeitadas e as intervenções em saúde se aproximam do modelo psicossocial do cuidado pautado na humanização da assistência1919 Santos AB. Escuta qualificada como ferramenta de humanização do cuidado em saúde mental na Atenção Básica. APS. 2019;1(2):170-179. DOI: https://doi.org/10.14295/aps.v1i2.23
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. Ressalta-se que quanto mais humanizadas forem as ações de cuidado e assistência nas situações de crise em saúde mental, melhor será a resolutividade do cuidado nos demais serviços que compõem a Raps77 Cruz KDF, Guerrero AVP, Scafuto J, et al. Atenção à crise em saúde mental: um desafio para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Rev Nufen 2019;11(2):117-132. DOI: https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n02ensaio51
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Ainda, referente às intervenções em saúde mental utilizadas nos serviços de urgências e emergências, o acionamento da polícia apareceu como uma das práticas utilizadas no momento da crise psíquica. Os participantes reconhecem a força policial como uma presença autoritária e tutelar ante o indivíduo em sofrimento, porém acabam chamando para a realização das contenções mecânicas. O despreparo dos profissionais de saúde em atuar nas crises psíquicas é um dos fatores que contribui para o acionamento frequente da polícia e a realização de medidas coercitivas de cuidado, como contenções químicas e físicas2020 Navarro KMS, Silva MTND, Camargo RMPD. A percepção de socorristas sobre o atendimento pré-hospitalar de pessoas em agudização do transtorno mental. Rev Uningá. 2019;56(2):58-70. DOI: https://doi.org/10.46311/2318-0579.56.eUJ2135
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O ato de contatar a força policial, mesmo sem necessidade, frente às crises psíquicas, caminha próximo a julgamentos morais e ao processo de criminalização dos indivíduos com transtornos mentais, em que ainda se associa o sofrimento mental à periculosidade e estigmas2121 Brito AAC, Bonfada D, Guimarães J. Onde a reforma ainda não chegou: ecos da assistência às urgências psiquiátricas. Physis. 2015;25(4):1293-1312. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312015000400013
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A contenção mecânica utilizada de forma brusca e sem a condução correta faz alusão há um tempo sombrio na psiquiatria, em que ocorria a negação de direitos básicos às pessoas com transtornos mentais. Dessa forma, a contenção mecânica quando realizada pela polícia pode ser visualizada como uma forma repressora de cuidado, já que se identificam relações de poder desiguais, de um lado o policial como ser autoritário e de outro o sujeito como alguém perigoso que necessita ser detido2121 Brito AAC, Bonfada D, Guimarães J. Onde a reforma ainda não chegou: ecos da assistência às urgências psiquiátricas. Physis. 2015;25(4):1293-1312. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312015000400013
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Para a realização adequada dos atendimentos e das intervenções frente às crises psíquicas, os participantes da pesquisa destacaram o vínculo como componente essencial frente aos casos, sendo a enfermagem o núcleo profissional mais próximo dos usuários.

O vínculo pode ser compreendido como uma tecnologia leve de cuidado e uma construção que requer confiança e afeto entre profissionais da saúde e usuários, em que se identifica no indivíduo cuidado um ator ativo de seu processo de saúde e doença, corresponsável por ele. Dessa forma, o vínculo, além de uma conexão entre duas pessoas, trata-se de uma forma de operacionalizar a saúde, produzindo uma relação terapêutica e autônoma pelas duas partes envolvidas2222 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, et al. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019;23:e170627. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.170627
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O vínculo, enquanto encontro com o outro, possui características singulares para sua eficácia, tornando necessário que os envolvidos na relação estejam dispostos a visualizar a outra parte como um ser diferente de si, com necessidades e expectativas subjetivas. Apenas a partir disso será possível realizar pactuações sobre um cuidado de saúde que se aproxime das experiências de vida e dos contextos dos sujeitos. Assim, a aproximação prévia com usuários em crise psíquica e posterior construção de vínculo torna mais eficaz a realização de intervenções pautadas no acolhimento quando já se tem uma relação de cuidado com esses indivíduos, se conhece as famílias e o contexto, favorecendo um atendimento empático e de qualidade2222 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, et al. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019;23:e170627. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.170627
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Desse modo, pode-se dizer que o modelo de cuidado em saúde mental no Brasil ainda requer esforços para a superação de práticas segregatórias e coercitivas, bem como para a consolidação de uma rede de ações e serviços comunitários e de bases territoriais. Além disso, na lógica da urgência e da crise, emerge a necessidade de exceder o modelo biomédico-medicalizador. Para isso, é necessário investir em ações que articulem diferentes saberes e práticas que integrem e incorporem as múltiplas dimensões do fenômeno da crise em saúde mental2121 Brito AAC, Bonfada D, Guimarães J. Onde a reforma ainda não chegou: ecos da assistência às urgências psiquiátricas. Physis. 2015;25(4):1293-1312. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312015000400013
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Nesse contexto, discutir sobre atenção psicossocial e proporcionar espaços de Educação Permanente em Saúde (EPS) dentro dos serviços de urgência e emergência, revela-se essencial para a redução do uso de intervenções coercitivas de cuidado, como as contenções químicas e físicas.

Compreender como as relações de afeto, que ao contrário da tutela, não têm como objetivo a imobilização dos sujeitos, podem ser uma potente discussão para a EPS, pois refletirá nos modos de agir e pensar no cuidado em saúde2323 Figueiredo EBL, Souza ÂC, Abrahão A, et al. Educação permanente em saúde: uma política interprofissional e afetiva. Saúde debate. 2022;46(135):1164-1173. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202213515
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Dessa forma, a diminuição das práticas manicomiais e tutelares dá espaço ao paradigma psicossocial, centrado nas subjetividades e experiências singulares das pessoas. A escolha por práticas psicossociais de cuidado, como acolhimento e escuta qualificada, mostra-se atrelada diretamente à redução dos preconceitos, à construção do vínculo e melhor adesão aos tratamentos.

Considerações finais

Os dados apontam para desafios na atenção à crise em saúde mental. Sendo o principal desafio a substituição de práticas coercitivas que associam usuário em crise psíquica ao potencial de periculosidade, por outras intervenções que valorizem a sua singularidade, como a escuta qualificada e o acolhimento.

Enquanto contribuições do estudo, este possibilitou compreender como acontecem as práticas de intervenção na atenção à crise em saúde mental em um serviço de urgência e emergência. Foi possível, também, desenvolver um processo avaliativo, participativo e formativo no serviço a partir da utilização da metodologia de AQG.

Essa pesquisa contribui para conhecimento sobre a atuação frente a crises psíquicas e pode ser utilizada na educação permanente de profissionais que atuam nos serviços de urgência e emergência, buscando uma melhor atuação no cuidado em saúde mental. Assim, compreender como o ensino e assistência na saúde podem auxiliar na formação e desenvolvimento de futuros enfermeiros e outros profissionais aptos a atuarem no cuidado em saúde mental no espaço da urgência e emergência, a pesquisa contribui também para a desconstrução do paradigma manicomial que em situações de crise vê a tutela, o controle e a violência como únicas opções de intervenção.

Sobre as limitações da pesquisa, destaca-se a dificuldade da participação de profissionais para além da área da enfermagem. Observa-se que a participação ampla de diversos profissionais pode somar para mais percepções a respeito da temática. Neste sentido, considera-se a necessidade de novas pesquisas para que outras realidades possam ser exploradas e outras metodologias possam ser aplicadas a partir da presente temática. O campo da saúde mental com enfoque no espaço da urgência e emergência segue sendo uma área que precisa ser mais debatida em prol de uma assistência humanizada frente às crises psíquicas.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2024
  • Aceito
    10 Jun 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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