Experiência formativa com uso do portfólio eletrônico como metodologia de ensino-aprendizagem

Taís Gabriele Alves da Silva Isabella Silva de Almeida Denise Lins de Sousa Sobre os autores

RESUMO

O Programa de Qualificação em Atenção Primária tem como objetivo fortalecer a Atenção Primária à Saúde no Distrito Federal, desenvolvendo ações de saúde proativas a partir da perspectiva de trabalhadores, gestores e representantes dos usuários do Sistema Único de Saúde. Em 2022, foi iniciado o Curso de Especialização em Gestão da Saúde da Família, em que se utilizou o portfólio eletrônico (e-Portfólio) como uma metodologia proativa, reflexiva e dialógica. Dentro de cada módulo, foram propostas intervenções para lidar com desafios cotidianos. A construção do e-Portfólio resultou em seis intervenções enfocadas na gestão da Estratégia Saúde da Família e alinhadas à qualificação do atendimento aos usuários. O uso desse recurso tecnológico gerou resultados positivos não apenas para a gestão, mas também para os funcionários, usuários e a comunidade. Além disso, facilitou o processo de feedback na jornada formativa, com a possibilidade de construção compartilhada, em que o professor-tutor acompanha a escrita, as reflexões, engaja-se com conteúdo teórico de apoio, aprimorando o processo de aprendizado e as mudanças nas práticas diárias.

PALAVRAS-CHAVE
Gestão em saúde; Tecnologia biomédica; Tecnologia educacional

Introdução

Atualmente, no campo da educação e formação profissional, nota-se a busca por metodologias e tecnologias de ensino e aprendizagem que acompanhem o crescente desenvolvimento tecnológico e a mudança no modo com que aprendemos, promovendo, portanto, uma aprendizagem contextualizada e que motive o aluno à construção do seu processo de aprendizagem11 Harlen W, Deakin Crick R. Testing and Motivation for Learning. Assess Educ. 2002;9(2):141-49. DOI: https://doi.org/10.1080/0969594022000005849
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. As inovações no processo ensino-aprendizagem, potencializadas principalmente após o contexto pandêmico vivenciado em decorrência da covid-19, trazem muitas contribuições e críticas a respeito da qualidade e da eficácia dos processos pedagógicos, do ensino a distância e da vulnerabilidade do sistema tradicional de ensino.

As metodologias ativas têm enfoque na aprendizagem do aluno, envolvendo-o, motivando-o e dialogando com ele, ou seja, o conhecimento é construído de forma simultânea, associando teoria e prática crítica a partir de desafios e problemas reais e atuais. Dentre os métodos e as ferramentas, destacamos aqui o portfólio reflexivo por potencializar o processo de aprendizado, o qual permite uma análise crítica-reflexiva que se fundamenta a partir de uma concepção construtivista de aprendizagem, enfatizando o papel ativo do aluno na construção do seu conhecimento22 Barrett HC. Researching electronic portfolios and learner engagement: The REFLECT initiative. J Adolesc Adult Literacy. 2005;49(6):528-37. DOI: https://doi.org/10.1598/JAAL.49.6.3
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,33 Elek C, Fok PK, Szűcs A. Students’ perceptions of portfolio assessment in higher education: A systematic review. Stud Educ Eval. 2020;64:100829. DOI: https://doi.org/10.1016/j.stueduc.2020.100829
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O portfólio reflexivo, portanto, promove ao aluno o desenvolvimento de habilidades de autoavaliação, autocorreção, estímulo à criatividade, desenvolvimento de responsabilidade, sendo um facilitador aliado à cultura de ensino, também na área da saúde44 Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Ciênc saúde coletiva. 2013;18(6):1847-56. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000600026
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, à medida que permite ao aluno documentar e acompanhar a aprendizagem, desenvolver uma imagem coerente da experiência e melhorar a autocompreensão33 Elek C, Fok PK, Szűcs A. Students’ perceptions of portfolio assessment in higher education: A systematic review. Stud Educ Eval. 2020;64:100829. DOI: https://doi.org/10.1016/j.stueduc.2020.100829
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. Nesse contexto, há diversos formatos de portfólios, como individual e coletivo, textual ou imagético, bem como eletrônico (também denominado e-Portfólio ou portfólio digital).

No âmbito do desenvolvimento de Tecnologias Educacionais em Saúde (TES) - conjunto de conhecimentos e recursos que permitem planejar, acompanhar, executar, facilitar e subsidiar o processo de aprendizagem55 Pavinati G, Lima LV, Soares JPR, et al. Tecnologias educacionais para o desenvolvimento de educação na saúde: uma revisão integrativa. Arq Ciênc Saúde UNIPAR. 2022;26(3):328-49. - e da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTIS), parte integrante da Política Nacional de Saúde, no Sistema Único de Saúde (SUS), identifica-se o compromisso político e ético ante a produção e a apropriação tecnológica que contribuem para reduzir as desigualdades sociais em saúde, assegurando os princípios fundamentais do SUS66 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia. Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. 2. ed. Brasília, DF: ed. Ministério da Saúde; 2008.. Dessa forma, o e-Portfólio apresenta-se como uma potente ferramenta que permite a interação entre ensino e extensão, conforme preconizado na Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS)77 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. rev. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018..

Nesse sentido, justifica-se o presente relato de experiência, cujo objetivo é descrever e discutir a experiência do uso do e-Portfólio como recurso de tecnologia educacional em saúde sendo parte do processo ensino-aprendizado, viabilizado dentro do Curso de Especialização em Gestão em Saúde da Família (Cegesf). Trata-se de proposta formativa integrante do Programa Estadual de Qualificação da Atenção Primária à Saúde (Qualis-APS), criado pela Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) por meio da Portaria nº 39, de 23 de janeiro de 2019, e reformulado pela Portaria nº 131, de 14 de abril de 2023, que tem como objetivo fortalecer a APS no DF, desenvolvendo ações em saúde de forma ativa e do ponto de vista de trabalhadores, gestores e representantes dos usuários do SUS do DF mediante pactuação de metas88 Secretaria de Estado de Saúde (DF). Portaria nº 131, de 14 de abril de 2023. Dispõe sobre o Programa de Qualificação da Atenção Primária à Saúde. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF. 2023 abr 17 [acesso em 2024 set 13]; Edição 72; Seção I:5-6. Disponível em: https://dodf.df.gov.br/index/visualizar-arquivo/?pasta=2023%7C04_Abril%7CDODF%20072%2017-04-2023%7C&arquivo=DODF%20072%2017-04-2023%20INTEGRA.pdf
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. Entre os objetivos desse programa, está o desenvolvimento de “produção científica sobre o programa e seus resultados, como também monitoramento e avaliação na APS do Distrito Federal”88 Secretaria de Estado de Saúde (DF). Portaria nº 131, de 14 de abril de 2023. Dispõe sobre o Programa de Qualificação da Atenção Primária à Saúde. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF. 2023 abr 17 [acesso em 2024 set 13]; Edição 72; Seção I:5-6. Disponível em: https://dodf.df.gov.br/index/visualizar-arquivo/?pasta=2023%7C04_Abril%7CDODF%20072%2017-04-2023%7C&arquivo=DODF%20072%2017-04-2023%20INTEGRA.pdf
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, além de se operacionalizar as diretrizes no que se refere a “educação continuada, com oferta de ações educacionais inovadoras para os profissionais e gestores da APS, concernentes ao modelo da ESF”88 Secretaria de Estado de Saúde (DF). Portaria nº 131, de 14 de abril de 2023. Dispõe sobre o Programa de Qualificação da Atenção Primária à Saúde. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF. 2023 abr 17 [acesso em 2024 set 13]; Edição 72; Seção I:5-6. Disponível em: https://dodf.df.gov.br/index/visualizar-arquivo/?pasta=2023%7C04_Abril%7CDODF%20072%2017-04-2023%7C&arquivo=DODF%20072%2017-04-2023%20INTEGRA.pdf
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Metodologia

Em 2022, foi iniciado o Cegesf. Todos os gerentes e supervisores das Unidades Básicas de Saúde (UBS) das cinco regiões de saúde do DF foram convidados a se inscrever no curso, iniciado em abril de 2022 e finalizado em agosto de 2023, com duração de 1 ano e 4 meses. O curso foi organizado em uma carga horária de 300 horas de matérias obrigatórias e de 60 horas de optativas (minicursos, oficinas, seminários e eventos), desenhado na modalidade de Ensino a Distância (EaD), com encontros síncronos (ao vivo), atividades assíncronas (on-line sem horário específico) no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) e com encontros presenciais.

Os gestores selecionados para participar do Cegesf foram divididos em comunidades de aprendizagem, com dez alunos e um tutor responsável em cada, de acordo com as regiões de saúde em que trabalhavam (oeste, norte, leste, sul etc.). Dessa forma, intencionava-se que a produção do conhecimento partisse de questões mais próximas daquele coletivo. A construção do e-Portfólio se deu de forma individualizada, entretanto, havia colaboração mútua entre os alunos, sendo possível partilhar experiências que seriam aplicadas no âmbito individual de trabalho de cada gestor.

A maior parte da teoria foi ministrada pelo AVA, com problematização e desenvolvimento de intervenções nas aulas presenciais. Para construção do e-Portfólio, era necessário possuir uma conta do Gmail. A plataforma utilizada para a construção do e-Portfólio foi o Google Workspace - padlet por ser uma ferramenta intuitiva, de fácil acesso e visualização, além de ser gratuita. O layout inicial foi desenvolvido pelo setor de design/tecnologia da Fundação Oswaldo Cruz em Brasília (Fiocruz Brasília), no entanto, na plataforma, havia a possibilidade de personalizar o e-Portfólio99 e-Portfólio [Internet]. Repositório. [acesso em 2024 jan 25]. Disponível em: https://padlet.com/eportfoliocegesf/reposit-rio-e-portf-lios-cegesf-dejgou441dllvhc1
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de forma a atender às necessidades, à criatividade e habilidades técnicas de cada aluno do Cegesf.

O layout padrão do e-Portfólio continha os seguintes campos obrigatórios para livre criação: 1) Sobre mim - espaço em que cada aluno poderia colocar informações profissionais e pessoais; 2) Intervenção em Gestão - espaço específico para relato das ações de intervenção; 3) Experiências em Gestão - espaço no qual o aluno poderia inserir sua experiência na gestão; 4) Programa Qualis-APS - informações sobre o Programa; e 5) Biblioteca (figura1).

Figura 1
Modelo de layout padrão do e-Portfólio do Curso de Especialização em Gestão em Saúde da Família da Fiocruz Brasília, 2022

Inicialmente, cada aluno tinha a tarefa de, em cada Unidade de Aprendizagem, propor uma intervenção, implementá-la e fazer uma análise crítico-reflexiva sobre a atividade desenvolvida no contexto da UBS de acordo com o referencial teórico em estudo. Assim, ao final do curso, haveria 12 experiências registradas.

Entretanto, na quarta intervenção, foram propostas algumas mudanças metodológicas, reduzindo-se o número de intervenções de 12 para 6, ampliando o tempo de implementação e de análise crítico-reflexiva das ações implementadas. As intervenções foram descritas e compartilhadas nos e-Portfólios. Por ser de domínio público, os tutores conseguiam acessar a página por meio de um link e acompanhavam as informações que eram inseridas para prosseguirem com a avaliação (figura 2).

Figura 2
Repositório público de e-Portfólios do Curso de Especialização em Gestão em Saúde da Família da Fiocruz Brasília, 2022

Para desenvolvimento das ações, os alunos partiram de questões norteadoras constantes no manual do aluno do Cegesf, trazendo aspectos relacionados com local de intervenção, problemática de trabalho, objetivos e resultados esperados, referencial teórico utilizado, atores envolvidos e cronograma para a realização da intervenção1010 Escola Gov Fiocruz Brasília. Curso Especialização Gestão Estratégia Saúde Família. Guia estudante CEGESF. Brasília, DF: Fiocruz. 2022. [Curso modalidade distância]..

A construção do e-Portfólio foi contínua ao longo dos módulos no curso à medida que a teoria era ministrada, com o intuito de associá-la à prática. Para iniciar sua elaboração, o aluno deveria identificar um problema na sua UBS de atuação e, a partir do conteúdo teórico vivenciado, propor uma intervenção. O objetivo da intervenção estava diretamente relacionado com a proposição de melhorias para o serviço de saúde e a implementação de tecnologias, bem como de procedimentos que visavam, consequentemente, repercutir na melhoria da satisfação do usuário e melhorar os processos de trabalho.

Para cada ação de intervenção incluída no e-Portfólio, além de responder às questões norteadoras de cada módulo teórico, era necessário realizar a atualização com os resultados obtidos. Para ilustrar as ações, poderiam ser adicionados recursos visuais, como imagens, vídeos, gráficos ou outros elementos. O e-Portfólio, por fim, poderia ser utilizado como um cartão de visita para o aluno mostrar seu progresso e crescimento profissional de forma clara, organizada e atraente.

A avaliação do e-Portfólio deveria seguir os seguintes critérios: engajamento e cumprimento dos prazos de elaboração; escrita consistente, clara e objetiva, uso da literatura científica e dados do território; definição de objetivos e metas para a intervenção; originalidade, criatividade e inovação da proposta. Diante disso, em cada ação executada, o aluno deveria deixar claro em sua escrita se os objetivos foram alcançados, descrever as facilidades e as dificuldades de implementação, se houve adequações ao longo do processo, quais foram os efeitos da ação no processo de trabalho e se houve desdobramento para outras ações1111 Escola Gov Fiocruz Brasília. Curso Espec gestão Estratégia Saúde Família. Man e-Portfólio CEGESF. Brasília, DF: Fiocruz. 2022. [Curso modalidade distância].. Ao final do curso, todo o conteúdo desenvolvido no e-Portfólio serviu como subsídio para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).

A experiência formativa com uso do e-portfólio

Foram realizadas seis intervenções no âmbito das questões cotidianas emergentes no contexto da gestão da Estratégia Saúde da Família (ESF) e em diálogo com a qualificação do cuidado aos usuários e à comunidade adscritos ao território da UBS (quadro 1).

Quadro 1
Resultado das ações de intervenções no território realizadas em uma UBS no Curso de Especialização em Gestão em Saúde da Família da Fiocruz Brasília, 2022

Entre os aspectos a serem ressaltados nesta experiência, ao compararmos a primeira intervenção com as últimas, estão a gradualidade no processo de aprendizagem e o melhor desenvolvimento na análise crítico-reflexiva das ações implementadas. Inicialmente, as propostas eram mais simples e menos estruturadas, até por um desconhecimento da metodologia de aprendizagem, da plataforma e da função do e-Portfólio. Posteriormente, compreendemos que, ao correlacionar as intervenções com os assuntos estudados nos módulos e ao utilizar recursos visuais, imagens, notas técnicas, gráficos e tabelas, tínhamos ações mais robustas, propositivas e com maior margem de análise dos impactos delas no cotidiano da APS.

Quanto ao uso do e-Portfólio, observa-se que este esteve como potencial ferramenta de aprendizagem ao permitir uma reflexão crítica do que se estava construindo, ao mesmo tempo que, ao elaborar a intervenção, era possível analisá-la criticamente e acompanhar a sua evolução e o seu desenvolvimento. O e-Portfólio proporcionou, nesse processo de aprendizagem, a oportunidade de refletir criticamente sobre a prática clínica, auxiliando no desenvolvimento de habilidades de pensamento crítico e na integração teoria-prática.

Outro aspecto constatado foi a importância do e-Portfólio no aprendizado ativo ao permitir o registro de evidências, como notas técnicas, relatórios, portarias e trabalhos acadêmicos, de forma a embasar a tomada de decisão para a implementação da intervenção. A avaliação contínua e formativa, a partir do feedback regular e individualizado, possibilitou a identificação de potencialidades e fragilidades para melhoria da prática profissional. Esses achados são compatíveis com um estudo que relata que os portfólios eletrônicos se concentram principalmente na consciência da aprendizagem e do desenvolvimento de competências, assim como na capacidade de avaliar pontos fortes e fracos e refletir sobre o progresso pessoal1212 Syzdykova Z, Koblandin K, Mikhaylova N, et al. Assessment of E-Portfolio in Higher Education. Int J Emerg Technol Learn (iJET). 2021;16(02):120. DOI: https://doi.org/10.3991/ijet.v16i02.15831
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Ao iniciarmos o curso, estávamos saindo do período mais crítico da pandemia de covid-19. Dessa forma, em alguns momentos, as demandas da reorganização dos serviços nos atravessaram de modo a comprometer a proposição das ações de intervenção, como no caso da ação de intervenção 3, que teve como objetivo desenvolver uma proposta de educação permanente em saúde na UBS 11 de Ceilândia. A ideia era instituir uma roda permanente de educação, intitulada Roda de Saberes, com apoio da Preceptoria do Programa de Residência de Medicina em Família e Comunidade; entretanto, devido às inúmeras atividades inerentes ao programa, foi realizado apenas um encontro, sem continuidade.

Fazer esses registros das experiências no e-Portfólio e lidar com a frustração da intervenção não continuada foram elementos críticos que emergiram quanto ao processo de trabalho na saúde da família, com as constantes situações críticas que demandam a atenção do gestor e das equipes de saúde da família, como no caso da própria pandemia de covid-19, do surto de dengue e o surto de monkeypox (abril-julho 2022). Isso destaca uma limitação do uso do e-Portfólio no que se refere à sobrecarga de trabalho. A criação e a manutenção de um portfólio exigiram tempo e esforço significativos por parte dos alunos e dos tutores, as quais tiveram que ser alinhadas à carga horária das atividades síncronas, assíncronas, aos encontros presenciais, às horas de trabalho e ao tempo para implementação da intervenção.

A segunda intervenção registrada no e-Portfólio partiu da necessidade de ampliar o atendimento ao paciente tabagista na região. Portanto, propôs-se a estruturação do atendimento ao tabagista na UBS 11 de Ceilândia. A unidade em questão não possui equipe multiprofissional (eMulti) de apoio para implementar a ação de intervenção, assim, muitos esforços foram demandados. Entre eles, a mobilização dos profissionais que, em algum momento, tinham realizado a capacitação para atuar no programa de cessação do tabagismo e a reorganização de agendas, a fim de dispor de carga horária para a realização da atividade em detrimento de outros atendimentos. Ademais, o prazo previsto para iniciar o atendimento ao tabagista era de aproximadamente 60-90 dias, sendo que o primeiro encontro ocorreu apenas um ano após.

Durante todo o processo de estruturação do atendimento ao tabagista, deparamo-nos com déficit de recursos humanos, capacitação de profissionais, processo de cadastramento e habilitação da unidade e reorganização das agendas para atendimento da demanda espontânea e programada. Tais desafios e obstáculos foram registrados no e-Portfólio, assim como toda a estruturação do processo de trabalho, o que pode servir como subsídio para outras unidades na implementação de grupos.

De forma geral, observou-se uma maior interação entre os alunos, uma vez que havia possibilidade de discussão das intervenções individuais nos momentos em grupos, partilhando experiências e supondo melhorias, ou formas de superar adversidades, as quais eram posteriormente desenvolvidas e escritas dentro da plataforma. Os alunos tinham livre acesso aos portfólios de todos os alunos cursistas, podendo retirar dos demais ideias para as suas próprias intervenções em seus cenários de atuação. Observamos que os processos de trabalho mudam de acordo com a gestão local, enfatizando a importância dos Procedimentos Operacionais Padrão (POP) dentro da área de saúde. Estudo semelhante realizado no DF indicou que esse tipo de metodologia reforçou o entrosamento entre os cursistas, sendo um método avaliativo de maior flexibilidade, transcendendo o modelo de ensino tradicional1313 Xavier DB, Alkmim DF, Dutra EB, et al. Portfolio Reflexivo Eletrônico: experiência inovadora de sanitaristas na Residência Multiprofissional em Atenção Básica do HUB/UnB. Tempus Actas Saúde Colet. 2016;10(4):235-46..

O e-Portfólio esteve como caderno-espaço de apoio para o registro das etapas concluídas e dos atravessadores que surgiram durante a implantação da intervenção. A dinamicidade desse tipo de tecnologia educacional nos permitiu olhar todo o processo de trabalho de maneira crítico-reflexiva, permitindo-nos sair da lógica demanda-resposta. Nessa perspectiva, aprendemos a lidar com as adversidades e a reconhecer a multifatorialidade das ações e das demandas de um serviço de saúde da APS, o que implica o desenvolvimento da habilidade em fabricar outras estratégias de ação e intervenção para as práticas cotidianas.

Assim como relatado em estudos da literatura, observamos que uma das vantagens do e-Portfólio é proporcionar aos estudantes feedbacks imediatos após as correções realizadas pelos tutores, permitindo a identificação rápida de fragilidades no processo de aprendizado, havendo, ainda, a possibilidade de interação e avaliação simultânea por mais de um docente1414 Antonio MARGM, Santos GG, Passeri SMRR. Portfólio on-line: estratégia para melhorar o sistema de avaliação da disciplina de Atenção Integral à Saúde do curso de medicina. Interface (Botucatu). 2020;24:e190069. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.190069
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Outro aspecto analítico do uso do e-Portfólio nesse processo formativo e enquanto TES é em relação aos papéis do gestor e do supervisor da ESF. Na última edição da Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), em 2017, enfatiza-se a importância do papel do gerente de UBS na qualificação do processo de trabalho, reiterando que a eleição de um profissional para esse cargo deve considerar

[...] critérios profissionais e não meramente político-eleitorais. Outra agregação que remete à gestão é a constante menção sobre a necessidade de adequação do desenho da Atenção Básica às diferentes realidades de cada local e possibilidades de adaptação por meio do gestor municipal, com autonomia nas suas escolhas1515 Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde debate. 2018;42(esp1):38-51. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S103
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Como supervisora da equipe, construir o e-Portfólio das intervenções propostas me possibilitou inclusive olhar para as demandas relacionadas com o cumprimento das metas e com a compreensão dos indicadores do Programa Previne Brasil, as quais estão muito presentes no cotidiano de trabalho. Enquanto gestores, por vezes, ocupamos um papel de pressionar os profissionais da APS para o cumprimento das metas a fim de apresentarmos dados concisos à SES. Nessa perspectiva de autoanálise do nosso processo de trabalho, foi possível propor ações de qualificação e orientação relacionadas com esse aspecto da produção, do quantitativo do processo de trabalho, além de sanar alguns nós críticos do processo de trabalho das equipes e de estar mais próxima das equipes para apoiar nos fazeres cotidianos. Ao estruturar e implementar uma ação, pudemos refletir sobre as reais dificuldades e eleger estratégias pertinentes e mais eficazes para a melhoria do processo de trabalho.

Considerações finais

O processo de construção do e-Portfólio enquanto facilitador da produção do conhecimento, ou seja, como uma ferramenta de ensino-aprendizado, favoreceu a implementação de intervenções práticas - e, em sua maioria, simples - na vivência da experiência de gestão.

Há desafios quanto à utilização do e-Portfólio, entre eles, a integração curricular. Integrar o uso do portfólio de forma eficaz ao currículo de educação em saúde exige uma revisão cuidadosa dos objetivos de aprendizagem e uma colaboração estreita entre professores, tutores, profissionais atuantes nas UBS e usuários. Para sua utilização, portanto, deve-se ter claramente estabelecido qual o propósito de um portfólio eletrônico no processo de aprendizagem, de forma que essa ferramenta possa apoiar na avaliação formativa e somativa.

Sabe-se que grandes são os desafios dos gestores com todos os movimentos e mudanças que ocorrem diariamente na APS. Demandas tanto das diretorias como dos profissionais de ESF e usuários puderam ser formalizadas e colocadas em ação de forma mais estruturada e dinâmica, facilitando o processo de trabalho. A possibilidade em selecionar uma questão, pensar em uma proposta de intervenção, colocá-la em prática e refletir sobre o processo nos permitiu ampliar nossas ferramentas para o trabalho cotidiano enquanto gestoras, assim como dar visibilidade a questões que, por vezes, estavam mascaradas nas muitas demandas que nos atravessam.

Realizar uma intervenção com embasamento científico e uso de um recurso tecnológico gerou resultados positivos não somente para a gestão, mas também para servidores, usuários e comunidade em um contexto geral. O e-Portfólio facilitou o processo de feedback contínuo no processo formativo, trazendo horizontalidade na relação entre alunos e educadores. A possibilidade de uma construção compartilhada, em que o professor-tutor acompanha a escrita, as reflexões, aponta os pontos fortes, apresenta caminhos reflexivos possíveis, dialoga com o conteúdo teórico de apoio e compartilha outras referências, qualifica o processo de aprendizagem e mudanças no cotidiano das práticas. Ter uma comunidade de aprendizagem, também favoreceu a interação entre os aprendizes compartilhando ideias, colaborando para projetos e fornecendo feedback construtivo uns aos outros.

  • Suporte financeiro:

    não houve

Referências

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    Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Ciênc saúde coletiva. 2013;18(6):1847-56. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000600026
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    Pavinati G, Lima LV, Soares JPR, et al. Tecnologias educacionais para o desenvolvimento de educação na saúde: uma revisão integrativa. Arq Ciênc Saúde UNIPAR. 2022;26(3):328-49.
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    Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? 1. ed. rev. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.
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    » https://dodf.df.gov.br/index/visualizar-arquivo/?pasta=2023%7C04_Abril%7CDODF%20072%2017-04-2023%7C&arquivo=DODF%20072%2017-04-2023%20INTEGRA.pdf
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    e-Portfólio [Internet]. Repositório. [acesso em 2024 jan 25]. Disponível em: https://padlet.com/eportfoliocegesf/reposit-rio-e-portf-lios-cegesf-dejgou441dllvhc1
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    Escola Gov Fiocruz Brasília. Curso Espec gestão Estratégia Saúde Família. Man e-Portfólio CEGESF. Brasília, DF: Fiocruz. 2022. [Curso modalidade distância].
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2023
  • Aceito
    14 Abr 2024
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