Abordagens da alienação parental: proteção e/ou violência?

Approaches to parental alienation: protection and / or violence?

Márcia Amaral Montezuma Rodrigo da Cunha Pereira Elza Machado de Melo Sobre os autores

Resumo

Este artigo analisa as abordagens da alienação parental a partir das dimensões conceitual, de poder e operativa, principais categorias extraídas de pesquisa qualitativa envolvendo entrevistas com a equipe de estudos psicossociais, mediadores e juízes da Vara de Família do Fórum Lafayette, de Belo Horizonte-MG. Na dimensão conceitual, foram abordados o conceito médico de síndrome e o conceito legal de ato ilícito e ato de litígio, este último associado a conflito familiar. Na dimensão de poder, foram apontadas a medicalização, a judicialização e a intervenção do Estado. E como dimensão operativa, abordagens exclusivamente periciais foram contrapostas às abordagens dos estudos psicossociais e de acompanhamento terapêutico, e discutiram-se as medidas legais, no seu aspecto protetivo e punitivo. Concluiu-se que, por meio da flexibilização das abordagens clínicas e legais, é possível ao Estado cumprir sua função de proteger o menor em vulnerabilidade, sem incorrer em violência institucional. Apontaram-se nessa direção a mediação e a nova lei da guarda compartilhada que, juntamente com intervenções terapêuticas de orientação preferencialmente psicanalítica ou sistêmica, promovem a responsabilização do sujeito para com suas escolhas e atos, melhor forma de resolução de conflitos.

Palavras-chave:
alienação; conflito familiar; alienação parental; violência; abuso infantil.

Abstract

This article analyses the approaches to parental alienation through the conceptual, power and operational dimensions, main categories drawn from qualitative research involving interviews with the staff of psychosocial studies, mediators and judges of the Family Court of Lafayette Forum of Belo Horizonte-MG, Brazil. In the conceptual dimensions, were addressed the concept of syndrome and the legal concept of illicit act and litigation act, this one associated with family conflict. As for the dimensions of power, the effects of medicalization, judicialization and state intervention were discussed. And as operative dimensions, solely expert approaches were opposed to psychosocial studies and therapeutic monitoring approaches and discussed with the legal approaches, in its protective and punitive aspect. It was concluded that by easing the clinical and legal approaches, it is possible for the state to fulfill its function of protecting the minor in vulnerable condition, but without incurring in institutional violence. In this direction, were appointed the mediation and the new law on joint custody which, together with therapeutic interventions, mainly of psychoanalytical or systemic orientation, point to the responsibility of the individual towards his choices and acts as the best way of resolving conflicts.

Keywords:
alienation; family conflict; parental alienation; violence; child abuse

Introdução

A descrição da síndrome de alienação parental (SAP) foi apresentada pelo psiquiatra forense norte-americano Richard Gardner como uma perturbação da infância ou adolescência que surgiria no contexto de uma separação conjugal e cuja manifestação preliminar seria uma campanha feita por um dos pais junto à criança, para denegrir, rejeitar e odiar o outro (GARDNER, 1985GARDNER, R. Recent trends in divorce and custody. Academy Forum, v. 29, n. 2, 1985. Disponível em: <http://www.fact.on.ca > Acesso em: 03 out. 2016.
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).

O autor destacou três fatores que contribuiriam para a “patogênese da desordem”: a “lavagem cerebral” instaurada pelo genitor alienador, podendo chegar a inventar maus-tratos e abuso sexual infantil por parte do outro genitor, “o qual seria uma vítima, apenas contribuindo numa pequena porcentagem dos casos por meio da sua passividade para o desenvolvimento da síndrome” (GARDNER, 2002b______. The empowerment of children in the development of parental alienation syndrome. The American Journal of Forensic Psychology, v. 20, n. 2, p. 5-29, 2002b., p. 9); fatores circunstanciais e fatores inerentes à própria criança. Também considerada como um dos oito sintomas que a criança portadora de SAP exibiria, a lavagem cerebral ocorreria na falta de motivos reais que a justificassem.

Foram descritos três tipos de SAP, correspondentes a estágios progressivos de afastamento entre a criança e o genitor alienado, de dependência do genitor alienador e de anulação da subjetividade da criança, determinando consequências as mais diversas (GARDNER, 1985GARDNER, R. Recent trends in divorce and custody. Academy Forum, v. 29, n. 2, 1985. Disponível em: <http://www.fact.on.ca > Acesso em: 03 out. 2016.
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), como o irreparável prejuízo das relações parentais e a possibilidade de as crianças se tornarem “selvagens e psicopatas” (GARDNER, 2002b).

O elemento mais importante do tratamento proposto por Gardner seria a transferência imediata da criança para a casa do genitor alienado, sendo o contato da criança com o alienador proibido, “a não ser por breves telefonemas”, monitorados pelo guardião alienado (GARDNER, 1985GARDNER, R. Recent trends in divorce and custody. Academy Forum, v. 29, n. 2, 1985. Disponível em: <http://www.fact.on.ca > Acesso em: 03 out. 2016.
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, p. 6). Além disso, o autor propôs um tratamento psicoterápico específico, vinculado ao juízo e caracterizado por métodos de coerção e manipulação, que chamou de “terapia da ameaça” (GARDNER, 2001). Aos adolescentes relutantes à mudança de guarda, caberia fazer “uma visita” aos hospitais psiquiátricos ou centros de detenção juvenis “para tomarem juízo” (GARDNER, 2002b, p. 14). Em casos de alegação de abuso sexual, a criança deveria ser colocada em acareação com o pai em audiência (GARDNER, 1985).

Gardner (2002aGARDNER, R. O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de SAP? Trad. Rita Rafaeli, 2002a. Disponível em: <http:// www.alienacaoparental.com.br> Acesso em: 03 out. 2016.
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) deflagrou uma campanha para incluir a SAP como transtorno psiquiátrico na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), por meio de seu próprio site, dos de seus seguidores e de associações de pais separados. Essa campanha foi em grande parte responsável pela divulgação da sua teoria em vários países, inclusive no Brasil (PEREZ, 2013PEREZ, E. L. Breves comentários acerca da lei da alienação parental (Lei 12.318/2010). In: DIAS, M. B. (Coord.) Incesto e alienação parental de acordo com a Lei 12.318/2010 (Lei de Alienação Parental). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.), tendo gerado, no meio jurídico e da saúde mental, controvérsias relativas à causalidade, à falta de estudos empíricos fundamentando sua pertinência como diagnóstico médico, ao tratamento proposto (CLEMENTE; PADILLA-RACERO, 2015CLEMENTE, M.; PADILLA-RACERO, D. Are children susceptible to manipulation? The best interest of children and their testimony. Children and Youth Services Review, n. 51, p. 101-107, 2015.), e ao preconceito relativo ao gênero (LAPIERRE; CÔTÉ, 2016LAPIERRE, S.; Côté, I. Abused women and the threat of parental alienation: Shelter workers' perspectives. Children and Youth Services Review, n. 65, p. 120-126, 2016.).

Entende-se que a alienação parental (AP) é um fenômeno antigo que passou a receber atenção recentemente devido à nova formação dos laços familiares, a qual gerou maior proximidade entre pais e filhos (PEREZ, 2013PEREZ, E. L. Breves comentários acerca da lei da alienação parental (Lei 12.318/2010). In: DIAS, M. B. (Coord.) Incesto e alienação parental de acordo com a Lei 12.318/2010 (Lei de Alienação Parental). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.). Pesquisa recente encontrou 13,3% de prevalência em pais adultos da Carolina do Norte (HARMAN et al., 2016HARMAN, J. J. et al. Parents Behaving Badly: Gender Biases in the Perception of Parental Alienating Behaviors. American Psychological Association. Journal of Family Psychology, v. 30, n. 7, p. 866-874, out 2016. ).

Presente não apenas nos tribunais do direito de família, como também em processos administrativos, penais e civis (BROCKHAUSEN, 2011BROCKHAUSEN, T. Síndrome de Alienação Parental e psicanálise no campo psicojurídico: de um amor exaltado ao dom do amor. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.), autores se referem à AP como maus-tratos psicológicos (BAKER; VERROCCHIO, 2014), tendo sido objeto de duas leis sancionadas no Brasil que refletem a amplitude da demanda social de resolução do problema: a lei da alienação parental (Lei n° 12.318, de 26/08/ 2010) e a nova lei da guarda compartilhada (Lei nº 13.058, de 22/12/ 2014).

Se por um lado o tipo de tratamento proposto por Gardner apresenta-se como solução punitiva, traumática e violenta, por outro entende-se que, sendo a convivência familiar um direito e dever de todos, justifica-se a interferência estatal quando necessário (FIGUEIREDO, 2011FIGUEIREDO, M. R. S. A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o Poder Estatal e o Poder Familiar. Jurisprudência Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 175-198, 2011. ). Nesse caso, a questão é como se dá essa interferência e quais os seus limites: como proteger o indivíduo da violência doméstica, sem, entretanto, incorrer no âmbito da violência institucional por meio da medicalização e da dominação do Estado?

Por considerar inadequada a abordagem médica do quadro, sem deixar de reconhecer o consenso quanto à ocorrência da utilização de filhos por casais em litígio (CLEMENTE; PADILLA-RACERO, 2015CLEMENTE, M.; PADILLA-RACERO, D. Are children susceptible to manipulation? The best interest of children and their testimony. Children and Youth Services Review, n. 51, p. 101-107, 2015.), utilizaremos a seguir apenas o termo AP.

Metodologia

Foi realizada pesquisa qualitativa, cuja metodologia constituiu-se de entrevistas semiestruturadas com a equipe da Vara de Família do Fórum Lafayette, de Belo Horizonte-MG. Todos foram intencionalmente selecionados, a partir do seu envolvimento, interesse e expertise sobre o tema. O número das entrevistas foi definido segundo critério de saturação.

Foi instrumento de coleta de dados roteiro semiestruturado, elaborado pelos pesquisadores. A questão inicial referiu-se à abordagem da AP de forma ampla, para permitir uma escuta em profundidade. Foram acrescentadas perguntas relativas à judicialização, à aplicação do universal da lei ao particular de cada caso, e às diversas atuações dos profissionais, sempre de forma ampla e aberta e quando esses temas não surgiram espontaneamente.

As entrevistas ocorreram por meio de agendamento, tiveram duração mínima de uma hora e meia, e transcorreram em ambientes que apresentaram condições de privacidade. Todos os participantes assinaram TCLE. As entrevistas foram gravadas e transcritas.

A análise de dados foi realizada por meio de análise de conteúdo, na perspectiva de Laurence Bardin (MINAYO, 2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2013.), tendo considerado unidades de pensamento presentes no discurso dos entrevistados. Dessa maneira, foram definidas três principais categorias: dimensão conceitual, dimensão de poder e dimensão operativa. Privilegiaram-se as intersecções teóricas obtidas em revisão ampla da literatura com as informações empíricas dos entrevistados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFMG sob o parecer n° 43455215.4.0000.51.49.

Resultados e Discussão

As entrevistas foram realizadas com cinco juízes, dois mediadores, seis psicólogos e dois assistentes sociais da equipe de estudos psicossociais, que dá suporte técnico ao juízo. Com o intuito de preservar a identidade dos participantes, os juízes serão referidos pela letra J (J1, J2, J3, J4, J5); e os demais pela letra E (E1, E2, E3, etc.), referente à equipe interdisciplinar.

Dimensão conceitual

Conceito de AP como síndrome

Não dá para trabalhar com essa ideia de síndrome, não dá! Essa tentativa da medicina de sempre estabelecer em categorias, não vejo dessa forma (E8).

Os membros da equipe manifestam rejeição clara ao termo síndrome, enquanto os juízes, reticentes, se esquivam de dar opinião em área médica, mas apontam uma confusão fundamental:

Eu precisaria saber também se a doença é do ponto de vista do filho alienado, se posso classificá-lo como doente, ou se a doença é do alienador, aquele que faz a desqualificação, que faz o trabalho de alienação (J5).

O questionamento da AP como síndrome não exclui a presença de distúrbios psíquicos nos casos acompanhados, os quais podem constituir fator preditivo para a AP (FIDLER; BALA, 2010FIDLER, B. J.; BALA, N. Children resisting postseparation contact with a parent: concepts, controversies and conundrums. Family Court Review, v. 48 n. 1, p. 10-47, 2010.), pois “às vezes a questão não é a alienação em si, a questão é o problema mental que a pessoa tem” (J1).

Uma das principais críticas feitas à abordagem da AP como síndrome é a de tomar de maneira simplista sua reconhecidamente complexa causalidade (AGLLIAS, 2015AGLLIAS, K. Difference, choice, and punishment: parental beliefs and understandings about adult child estrangement. Australian Social Work, v. 68, n. 1, p. 115-129, 2015.), apontada claramente pelos entrevistados:

Os mais variados motivos, o mais comum deles é a infidelidade. Mas também existem outros: a prática de violência normalmente por parte do homem, questões referentes a diferentes modos de viver, status sócio econômico, padrão de vida, eventualmente divergências religiosas, às vezes abuso de álcool, uso de drogas, tudo isso pode deflagrar a crise e eu acho que a AP é mais um ingrediente no meio disso tudo (J2).

Autores destacaram a frequente ocorrência de abuso e outras formas de opressão por parte do genitor alienado (LAPIERRE; CÔTÉ, 2016LAPIERRE, S.; Côté, I. Abused women and the threat of parental alienation: Shelter workers' perspectives. Children and Youth Services Review, n. 65, p. 120-126, 2016.), causas sociais e problemas de desenvolvimento e personalidade da própria criança (FIDLER; BALA, 2010FIDLER, B. J.; BALA, N. Children resisting postseparation contact with a parent: concepts, controversies and conundrums. Family Court Review, v. 48 n. 1, p. 10-47, 2010.). As consequências sobre as crianças não foram tidas como exclusivas da AP: “Isso não é relativo só à alienação, mas à forma como os pais conduzem a educação dos filhos na questão do limite” (E7).

É digno de nota que nenhum dos entrevistados utilizou o termo SAP.

Conceito legal de AP

A AP para mim, numa análise cuidadosa da lei, é um comportamento (J1).

No texto da lei não há menção ao termo síndrome e sim ato, o que indica que a lei não equivale à teoria de Gardner, apesar da clara referência a ela. Para Perez (2013PEREZ, E. L. Breves comentários acerca da lei da alienação parental (Lei 12.318/2010). In: DIAS, M. B. (Coord.) Incesto e alienação parental de acordo com a Lei 12.318/2010 (Lei de Alienação Parental). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013., p. 46), “a lei não trata do processo de AP necessariamente como patologia, mas como conduta que merece intervenção judicial, sem cristalizar única solução para o controvertido debate acerca de sua natureza”.

Membros da equipe se referem à dificuldade que a influência das ideias de Gardner gera na interpretação da lei:

Esse entendimento mais comum de que AP é algo causado por um, e sofrido por outro, é um entendimento mais senso comum, mais absorvido. Até de certa forma a lei dá a entender isso também, mas a realidade é mais complexa que isso (E1).

Encontramos falas que apontam duas possíveis interpretações de ato de AP - ato ilícito e ato de litígio. O conceito de ato ilícito não é trazido por todos os juízes, mas permeia a fala de alguns e por vezes é acompanhado de julgamentos morais ao genitor alienador, entretanto essas falas não são constantes no seu discurso e não determinam suas decisões, como veremos adiante.

Pelos termos da lei a gente entende a conduta como uma conduta ilícita. A pessoa pratica um ilícito, ou seja, ela se vale da mentira, tal como um estelionatário faz. Pode-se comparar a AP com um estelionato (J1).

Eu acho que isso é perverso, sabe? Tem a questão da maçã podre. Se você colocar ali no cesto, contamina todo mundo (J4).

A equipe, diferentemente, não trabalha com o conceito de ato ilícito, e um de seus membros tenta distinguir a noção do mal sem entrar na questão moral: “Não tem ninguém mau na história, mas estão fazendo um mal danado” (E4). Em revisão da literatura, Sousa (2010SOUSA, A. M. Síndrome da alienação parental: um novo tema nos juízos de família. São Paulo: Cortez Editora, 2010.) destacou como aspecto marcante nas publicações nacionais a presença de julgamentos morais com relação ao genitor alienador, a qual atribui à falta de fundamentação científica da teoria de Gardner e ao interesse na propagação do tema.

Porém, ao interpretar AP como ato de litígio - “É incrível porque na maioria dos casos, o que você percebe é que é uma coisa do litígio conjugal” (E4) -, entrevistados e autores (FIDLER; BALA, 2010FIDLER, B. J.; BALA, N. Children resisting postseparation contact with a parent: concepts, controversies and conundrums. Family Court Review, v. 48 n. 1, p. 10-47, 2010.) sustentam que todos os membros da família contribuem para a alienação:

Entendo o conflito conjugal numa perspectiva relacional, de dinâmica da relação. A gente encontra explicação para o conflito na história lá de trás, onde se pode fazer um resgate com as partes dos padrões de relação, de convívio, para tentar entender o que se passa no momento atual (E9).

Sendo assim, comportamentos alienadores podem ocorrer inclusive em famílias intactas (BAKER; VERROCCHIO, 2014).

Atos de litígio são associados a conflitos familiares, tanto pela teoria sistêmica, como pela psicanálise, para a qual a família poderia ser definida como o conjunto das condições com as quais se realiza a passagem pelo complexo de Édipo e o tipo de enlaçamento dos elementos que o compõem. A família é criada pela realidade psíquica do sujeito, que articula uma forma de separação dos pais (LACAN, 1988LACAN, J. O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.), fundamental para a constituição do sujeito do desejo. Uma vez que a busca da completude associada ao par mãe/criança é irremediavelmente fracassada (FREUD, 1930/1976), o preço de ser desejante é o da castração, do mal-estar e da insatisfação, a cada um, portanto, cabendo encontrar sua maneira de lidar com essa dura realidade, o que justificaria o enfoque da psicanálise no particular do sujeito (MONTEZUMA, 2017MONTEZUMA, M. A. Alienação parental: diagnóstico médico ou jurídico? In: DIAS, M. B.(Coord.) Incesto e alienação parental , 4ª ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.).

As duas interpretações potencialmente determinariam diferentes abordagens judiciais. A interpretação como ato ilícito pode levar à proposição de medidas penais, tal como o fez Viana (2013VIANA, M. R. S. Possibilidade da aplicação da Lei Maria da Penha nos casos de alienação parental. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 37, p. 213-222, 2013.), que sugeriu a aplicação da Lei Maria da Penha para ambos os gêneros em casos de AP. Já a segunda interpretação encontrada, ao tomar a AP como um ato de litígio conjugal, devolve-a para o campo do Direito de Família, que remete o sujeito à responsabilidade civil, diferentemente do Direito Penal (PEREIRA, 2015PEREIRA, R. C. Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015.), permitindo abordagens que conduzam à responsabilização:

[...] cada um tem lá a sua particularidade e precisam ser escutados nessa sua particularidade, se é que você quer realmente fazer um trabalho que permita as pessoas perceberem como é que elas se colocam nessas situações (E8).

Dimensões de poder

Medicalização

É o sujeito suposto poder. Os profissionais que se prestam a dar posições extremamente assertivas estão correndo o risco de normatizar a família do ponto de vista psicológico, da aptidão, da normalidade (E1).

O termo medicalização descreve um processo pelo qual problemas da vida são definidos e tratados como problemas médicos (GAMBRILL, 2014GAMBRILL, E. The Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders as a major form of dehumanization in the modern world. Research on Social Work Practice, v. 24, n. 1, p. 13-36, 2014. ). A transformação da experiência da dor pela civilização moderna foi discutida por Ivan Illich (1981ILLICH, I. A expropriação da saúde: Nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.) - ao convertê-la em problema técnico, a dor deixa de ser um sinal que demanda análise e reflexão sobre o mal para o qual ela aponta, tornando-se apenas alarme que exige intervenção exterior a fim de interrompê-la. Essa medicalização da dor, afirma ele, reduz a capacidade que todo homem possui de assumir a responsabilidade pela sua transformação, “capacidade em que consiste precisamente a saúde” (Illich, 1981, p. 130).

Nomear uma determinada patologia... se trabalhar com aquele indivíduo em cima de uma checklist, que o sujeito tem determinada psicopatologia, você deixa de ver o entorno, as outras possibilidades que ele tem (E9).

A inclusão da AP no DSM-V teria como maior problema o de rotular com um transtorno mental crianças que poderiam simplesmente estar apresentando uma reação de raiva às mudanças provocadas em sua vida pela separação dos pais (FRANCES, 2010FRANCES, A. Normality is an endangered species: psychiatric fads and overdiagnosis, 2010. Disponível em: <http://www. Psychiatric Times> Acesso em: 03 out. 2016.
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), o que seria do interesse da psiquiatria e da indústria farmacêutica (GAMBRILL, 2014GAMBRILL, E. The Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders as a major form of dehumanization in the modern world. Research on Social Work Practice, v. 24, n. 1, p. 13-36, 2014. ), assim como de peritos e advogados, já que prolongaria muitas disputas, aumentando o tempo e o custo requerido (HOUCHIN et al., 2012HOUCHIN, T. M. et al. The parental alienation debate belongs in the courtroom, not in DSM-5. Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law, v. 40, p. 127-31, 2012.).

O risco do estabelecimento de uma moda passageira, “como teve na moda o diagnóstico de déficit de atenção, hiperatividade” (E2), é apontado por Frances (2010FRANCES, A. Normality is an endangered species: psychiatric fads and overdiagnosis, 2010. Disponível em: <http://www. Psychiatric Times> Acesso em: 03 out. 2016.
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), que percebe que, ao envolver tanto a atenção pública, a AP vem atender à demanda de rótulos que possam explicar o sofrimento humano, sem considerar que, não se tratando de matéria quantitativa, o diagnóstico dos transtornos mentais fica à revelia do profissional ou das forças do contexto social.

Judicialização

Cada vez mais as pessoas pedem a interferência do Estado na vida privada delas (J4).

Oliveira e Brito (2013OLIVEIRA, C. F. B.; BRITO, L. M. T. Judicialização da vida na contemporaneidade. Psicologia: Ciência e Profissão. Brasília, v. 33, n. esp, p. 78-89, 2013. p. 80) definem judicialização como “o movimento de regulação normativa e legal do viver, do qual os sujeitos se apropriam para a resolução dos conflitos cotidianos”. Alguns membros da equipe relacionam a judicialização da AP à oferta de leis e à sua ampla divulgação pela mídia:

O fato de se ter criado leis no Brasil para decidir essas questões que envolvem AP e guarda compartilhada, acaba também favorecendo ou estimulando a judicialização da vida (E9).

Se por um lado a lei nomeia o problema, facilita o acesso a informações e a busca de ajuda especializada (BROCKHAUSEN, 2011BROCKHAUSEN, T. Síndrome de Alienação Parental e psicanálise no campo psicojurídico: de um amor exaltado ao dom do amor. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.), por outro entende-se que a criação de uma nova lei não seria necessária, caso se instituíssem medidas que visassem à boa convivência familiar, ao invés da punição dos seus membros (SOUSA, 2010SOUSA, A. M. Síndrome da alienação parental: um novo tema nos juízos de família. São Paulo: Cortez Editora, 2010.).

Outras falas relacionam a judicialização à mudança de valores na sociedade:

As pessoas procuram o direito sem uma reflexão do que o direito envolve de relação com o outro... Essas mudanças favoreceram que se procurasse a justiça como apoio, como referência pra solução de muitos conflitos que talvez pudessem ser resolvidos em outros campos (E8).

As pessoas estão sofrendo frustrações com essas relações mal resolvidas, justamente porque essas relações hoje já não são mais tão estáveis, as relações se tornaram instáveis, elas não conseguem elas próprias solucionar, então transferem pro judiciário. Nós temos usado esse termo ”os restos do amor”, em função dessa mudança da própria lógica da família (J5).

Bauman (2004BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.) afirma que hoje se deseja “desfrutar das doces delícias de um relacionamento evitando, simultaneamente, seus momentos mais amargos e penosos” (p. 9). Buscam-se “relacionamentos de bolso”, do tipo de que se “pode dispor quando necessário”. O dispositivo legal contribui com esses valores “líquidos” ao ofertar motivos para disputas infindas:

Temos que levar em consideração que muitos profissionais do direito não estão sensibilizados para isso. Eles não têm a sensibilidade de perceber que talvez seja melhor tentar solucionar o problema sem a judicialização do que com a judicialização. (J5).

Na direção inversa, mudança de valores e grandes transformações sociais exercem interferências no ordenamento jurídico, a partir das demandas a ele endereçadas, como esclarece um juiz:

No âmbito do direito civil, o direito mais mutável que temos é o direito de família. Antigamente não tinha divórcio, agora tem, antigamente não tinha nenhum tipo de união homossexual, homoafetiva, hoje tem. Antigamente não tinha barriga de aluguel e todas as questões que isso propõe, antigamente não tinha AP, o casamento era um tipo de casamento só, não havia guarda compartilhada. Nós já tivemos aqui o primeiro divórcio homossexual. Realmente nos últimos 20/30/50 anos, o direito de família tem sido alterado. Hoje já há decisões admitindo que uma criança tenha duas mães ou dois pais. E a lei sempre veio consolidar algo que já está ocorrendo (J2).

Poder do Estado

A judicialização é necessária, embora o Estado deva pesar bastante até onde ele vai (J2).

Os entrevistados mencionam situações que requerem intervenção:

Em caso de filhos menores eu acho razoável que o Estado verifique em que condições esse divórcio vai acontecer, como essas crianças estão sendo envolvidas, as suas necessidades... Se você quer rever o valor de uma pensão alimentícia, tem que vir aqui. Se você quer investigar uma paternidade, se o casal tem divergido sobre uma partilha de bens, a divergência tem que ser sanada pelo estado juiz (J2).

Casos de acusação de alienação, de abuso sexual, mesmo que a maioria seja invenção, a gente não sabe, a gente tem que correr atrás, se de repente um que seja esteja ocorrendo... então, nós temos que ter aqui um cuidado (J3).

Entretanto, pondera-se que “quanto mais se judicializa, não significa que a gente está contribuindo para uma sociedade mais democrática” (E9), equívoco que tomaria a necessidade de punição como algo indispensável ao bem comum, com isso reforçando-se a segregação social, a culpabilização do indivíduo e as políticas penais violentas e estigmatizantes (OLIVEIRA; BRITO, 2013OLIVEIRA, C. F. B.; BRITO, L. M. T. Judicialização da vida na contemporaneidade. Psicologia: Ciência e Profissão. Brasília, v. 33, n. esp, p. 78-89, 2013.).

Melo (2010MELO, E. M. Podemos prevenir a violência: teoria e prática. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2010., p. 13) descreve como violência “qualquer situação em que o ator social perde o reconhecimento de si como sujeito de linguagem, mediante o uso do poder, da força física ou de qualquer outro meio de coerção, sendo então rebaixado da condição de sujeito à de objeto”, podendo advir do próprio Estado, com suas políticas controladoras, que determinam a chamada violência institucional, exemplificada por E6:

Um dia eles brigaram e ela mostrou pra ele que ela tinha medidas protetivas contra ele desde quatro meses antes da briga acontecer, então já há quatro meses antes não seria aconselhável, ele estaria proibido de frequentar a casa dela. Ela chamou a polícia, ele foi preso, uma pessoa que nunca tinha tido antecedentes, ficou sete dias no CERESP, saiu com essa mancha na ficha funcional e hoje não consegue emprego em grande empresa porque puxa a folha corrida e tem lá prisão por Maria da Penha e a partir daí nunca mais ela deixou ele ver o menino (E6).

A utilização indiscriminada de dispositivos legais e de mecanismos judiciais pode colocar em risco o corpo social, especificamente as relações entre pais e filhos (OLIVEN, 2010OLIVEN, L. R. A. Alienação parental: a família em litígio. Dissertação (Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade) - Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2010.), mas não se pode atribuir totalmente ao Estado a dimensão de dominação, com a qual contribuem vários atores sociais por meio de um conjunto de micropoderes (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.):

Por que uma mãe tem o direito de ir na escola e falar que o pai não pode ir? Proibir a escola de mostrar o boletim pra ele? Por isso se criou a lei da guarda compartilhada, porque as escolas negam acesso ao pai. Os pais fazem a mesma coisa, quando a mulher está com novo companheiro, por exemplo, sentem-se no direito de agredir verbalmente, de por o filho contra a mãe, fazem acusações de abuso, de falso abuso (E2).

Apesar de o poder se expressar também nas relações de gênero, marcadas por valores culturais arraigados (HARMAN et al., 2016HARMAN, J. J. et al. Parents Behaving Badly: Gender Biases in the Perception of Parental Alienating Behaviors. American Psychological Association. Journal of Family Psychology, v. 30, n. 7, p. 866-874, out 2016. ), percepções disso não são consensuais:

Porque você lida aqui na justiça com vários mitos sociais colocados. Então tudo que mãe fala é verdade, mãe só quer proteção de filho; o pai é mais ausente, porque ele tem que ser provedor, você lida com a instituição desses papéis sociais culturalmente postos (E6).

Isso não é um comportamento inerente às mulheres, é de quem quer afastar, que pode ser o pai de uma criança ou adolescente, a mãe, o avô, a avó (E2).

Crianças e adolescentes também exercem o seu poder - “chegam aqui numa posição muito mais cristalizada, isso é contemporâneo, muito mais donas dessa decisão” (E4), e sabem, na opinião dos entrevistados, “manipular, sabem chantagear, eles sabem muito fazer essas coisas, então, nem sempre o que eles querem é o melhor pra eles” (J3). Ocorre um empoderamento excessivo da criança, simultâneo à perda da autoridade dos pais, que “acabam reféns dos filhos, porque a tarefa mais difícil dos pais é impor limites aos filhos” (J4).

Por outro lado, os "novos direitos" da infância parecem suprimir a vulnerabilidade infantil, sugerindo uma suposta autonomia da criança que poderia mascarar a manipulação de um ou ambos os pais, tornando-a refém daquele mais forte (BRANDÃO, 2009), como no caso relatado por J3:

Dessa vez pela insistência do pai aceitei conversar com a filha. A moça entrou, só ficamos a moça e nós três, eu, o promotor e a escrevente. A primeira pergunta dela foi: minha mãe vai ficar sabendo o que eu vou falar? Ao responder que não, ela começou a se soltar: eu quero voltar a ficar com meu pai, meu pai que cuida de mim, meu pai que me leva pro médico, minha mãe teve outros filhos, com outros homens, então eu fico meio de lado, minha mãe está bebendo muito, bateu o carro na árvore e ela falou que vai se matar se eu falar que quero ficar com meu pai.

Podemos depreender que, se por um lado a justiça garante a todos o acesso ao direito, por outro permite a sua utilização como meio de satisfações individuais, desviando-se da função jurídica, a qual deve ser utilizada, mas com moderação, evitando a junção do discurso “tenho direito” com “tenho poder” (OLIVEN, 2010OLIVEN, L. R. A. Alienação parental: a família em litígio. Dissertação (Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade) - Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2010.).

Dimensões operativas

Atuação da equipe multiprofissional

A lei da AP prevê que, havendo indício da prática de ato de AP, o juiz, se necessário determinará perícia psicológica ou biopsicossocial, procedimento, entretanto, largamente utilizado na prática judicial:

Praticamente em todos os casos em que se alega AP é realizado uma perícia técnica para apuração. O que se pretende com a perícia é responder aquela pergunta se o pai ou a mãe praticou atos que podem ser classificados como de AP segundo o regramento que nós temos, conforme a nossa lei define. Em caso positivo é preciso tentar desvendar em que circunstâncias, o que ocorreu, o que está ocorrendo, qual é a influência sobre a criança (J2).

Membros da equipe revelam controvérsias quanto à concepção de perícia:

É perícia mesmo, exame, é avaliação. E o resultado dessa perícia, desse exame, vai ser um laudo, um relatório psicológico (E2).

Minha preocupação é que eles nos exijam estar nesse lugar de dizer: há ou não há. Porque fica fácil pra ele dar consistência ao nosso parecer, a nossa palavra, como técnico, como perito para dizer: aconteceu, aí ele vai aplicar a lei ali dentro do que é previsto pra esse caso (E5).

As abordagens periciais têm um grande peso na decisão judicial, havendo pressão significativa para que os profissionais cheguem a um diagnóstico conclusivo, embora não existam ferramentas suficientes para tal (CLEMENTE; PADILLA-RACERO, 2015CLEMENTE, M.; PADILLA-RACERO, D. Are children susceptible to manipulation? The best interest of children and their testimony. Children and Youth Services Review, n. 51, p. 101-107, 2015.), nem consenso em campos como a psicologia e a psiquiatria, que apresentam diferentes pontos de vista, alguns inclusive imbuídos de preconceitos (HARMAN et al., 2016HARMAN, J. J. et al. Parents Behaving Badly: Gender Biases in the Perception of Parental Alienating Behaviors. American Psychological Association. Journal of Family Psychology, v. 30, n. 7, p. 866-874, out 2016. ). Apesar disso, os discursos produzidos por peritos detêm status de ciência, e, portanto, valor de verdade (MIRANDA JÚNIOR, 2010).

Entrevistados distinguem perícia de estudos psicossociais:

O estudo ele não é um saber sobre o outro, é um estudo. Estamos estudando, estamos juntos de alguma forma. A perícia eu temo muito esse nome, porque ela é um saber sobre o outro, o saber sobre o que é bom pro outro (E4).

Para a psicanálise, só se pode dizer que houve escuta onde se obteve uma resposta que indicou o registro da mensagem, cujo sentido será dado posteriormente pelo sujeito (LACAN, 1985LACAN, J. O Seminário. Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.), diferentemente da resposta imediata da perícia stricto sensu, carregada de saber prévio.

Segundo Miranda Júnior (2010), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que as equipes multidisciplinares utilizem procedimentos além da perícia, como acompanhamento, encaminhamento e prevenção, os quais permitem ao avaliador intervir no conflito familiar para além do dualismo certo/errado, ganhador/perdedor, inocente/culpado.

Fora o aspecto de prevenção, que não foi abordado, a equipe tem seguido essas diretrizes e os juízes valorizam esse trabalho, a despeito da demanda de laudos conclusivos:

Eu já vou fazer audiência com o laudo do estudo técnico. Se a parte fala: mas eu não quero que o pai veja, eu já respondo: mas o estudo está falando que não tem problema nenhum com o pai (J3).

Dentre os procedimentos utilizados pela equipe, foram mencionados perícia, aplicação de testes psicológicos, estudos psicossociais, encaminhamentos, visitas assistidas e laudos. Todos eles demonstraram ter efetividade segundo o estudo de Bow et al. (2009BOW, J. N. et al. Examining parental alienation in child custody cases: a survey of mental health and legal professionals. The American Journal of Family Therapy, v. 37, p. 127-145, 2009.), sendo que a aplicação de testes e o atendimento dos pais litigiosos em conjunto foram considerados os de menor efetividade, o que coincide com a percepção da equipe. Destacamos que apenas um membro da equipe referiu-se ao uso de testes, mesmo assim eventual.

A abordagem terapêutica, entretanto, encontra dificuldades - “a gente tem as limitações, por exemplo, o tempo que a gente tem para estar com as partes, é o tempo da justiça, é o tempo do processo” (E9), a solução sendo o encaminhamento - “às vezes a gente precisa acionar a rede” (E4), o que também não dispensa controvérsias - “podemos combinar que isso aconteça fora, mas o processo está aqui, nós somos a referência. Tudo isso pode ser pensado, mas é caso a caso” (E1).

Enquanto entrevistados referiram-se apenas a intervenções terapêuticas - “Eu acho que antes de ingressar com uma ação, a pessoa deveria passar por um tratamento, passar por uma terapia, porque isso iria facilitar a compreensão, o entendimento daquela situação” (J4), autores recomendam também a implantação de políticas públicas que atuem na prevenção de agentes estressores que venham a se somar ao conflito familiar (AGLLIAS, 2015AGLLIAS, K. Difference, choice, and punishment: parental beliefs and understandings about adult child estrangement. Australian Social Work, v. 68, n. 1, p. 115-129, 2015.).

Setor de mediação

A ideia é reunir esses pais para dar, com eles, uma solução por meio do diálogo (E8).

O setor de mediação engloba a mediação propriamente dita, a conciliação e as oficinas de parentalidade. A conciliação é um processo breve, que busca o estabelecimento de acordos:

O conciliador tenta ali naqueles trinta minutos, mas às vezes ele vê que as pessoas precisam de mais tempo e aí ele vai encaminhar para a mediação (E3).

As oficinas de parentalidade são reuniões em grupo com pais e filhos, separadamente, para discutir questões relativas ao divórcio.

Apesar de sua origem recente, efeitos da lei da mediação como a resolução ou pelo menos amenização da morosidade da justiça são previstos (DIAS, 2015DIAS, M. B. A mediação e a conciliação no novo CPC, 2015. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br > Acesso em: 03 out. 2016.
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). Entrevistados e autores, inclusive Gardner (1985GARDNER, R. Recent trends in divorce and custody. Academy Forum, v. 29, n. 2, 1985. Disponível em: <http://www.fact.on.ca > Acesso em: 03 out. 2016.
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), se referiram à mediação como uma forma de prevenção de litígios. Juízes e equipe reconhecem o serviço:

Primeiro vou mandar lá pra mediação, é outro instrumento que o juiz pode recorrer, para resolver uma lide envolvendo AP (J1).

Nesses casos que a gente vê que existe uma possibilidade de entendimento mas que isso vai demandar um trabalho para acontecer, eu tenho mandado pra mediação, pra eles se entenderem ali (E10).

Restrições, porém, são colocadas quanto à indicação da mediação:

A mediação é para casos bem peculiares, não é para todos os casos. Por exemplo, um caso de partilha, não é caso de mediação. Mas um caso de discussão, de guarda, onde há muito desgaste emocional, a mediação serve pra isso (J3).

Nem sempre é possível. Quando uma das partes está muito fragilizada, eu acho complicado. Quando um é portador do sofrimento mental também acho complicado (E2).

Uma entrevistada levanta ainda a resistência provocada como paradigma novo:

Só que essa mudança de paradigma, de funcionamento, querem ver o resultado é ontem, querem ver a estatística. A forma da mediação incomoda ainda aqueles que gostariam de ver volumes de atendimento e não qualidade, quantidade. Ainda há pessoas que dizem que não acreditam nisso, que acham que não é possível que duas pessoas que estão litigando sentar e conversar. E fora que o local adequado seria um local com mesa redonda, um ambiente agradável, aqui tem muito ruído, entra e sai, não funciona (E3).

Medidas protetivas

À questão sobre o manejo da lei, universal, no particular do caso a caso, um juiz responde:

A lei é de caráter universal, mas no caso concreto, você vai adequar. Nós hoje temos um sistema jurídico vigente no Brasil constituído pelas normas e pelos princípios. As normas são mais fechadas, é sim sim, é não não. E os princípios são mais maleáveis. Posso adequar, utilizar um princípio de acordo com o caso concreto. Então apesar da universalidade da lei, nós no direito de família temos que pensar nessa forma de aplicação do direito, de maneira a ser mais apaziguador, que você tenha um resultado positivo e a grande preocupação do direito de família é que esse resultado seja definitivo, que as partes não voltem mais tarde para pedir uma revisão ou para informar um descumprimento (J5).

Essa flexibilização da lei para efeito de apaziguamento ocorre ao serem utilizadas abordagens que dão lugar à fala do sujeito. Porém, onde se configura o limite da fala, o aspecto punitivo é inevitável:

Eu tento trabalhar nesse sentido de desconstruir essas verdades que já chegam aqui prontas, como um diagnóstico que já chega pronto. Tento para que essas pessoas possam ver outras possibilidades de ação. Agora, quando isso não funciona, aí a lei, realmente, é um dispositivo importante para fazer uma barra para os excessos que sempre aparecem nessas disputas judiciais (E9).

O juiz poderá aplicar medidas provisórias no sentindo de proteger essa criança e normalmente, elas vão ter conteúdo negativo, não fazer isso, não fazer aquilo (J2).

As medidas protetivas seriam: busca e apreensão da criança; regulamentação de visitas, mudança de guarda, guarda compartilhada.

Eu já tive caso aqui de determinar uma busca e apreensão de uma criança e depois até voltei atrás, porque houve má fé de um lado, então, criou-se uma situação que na verdade não existia (J4).

A busca e apreensão podem ser requeridas quando um genitor não devolve os filhos no dia fixado judicialmente ou impede o convívio dos filhos com o outro genitor. É medida traumática, que exige, muitas vezes, a intervenção de força policial, causando constrangimentos às partes e estresse à criança, por isso devendo ser utilizada como último recurso (FIGUEIREDO, 2011FIGUEIREDO, M. R. S. A intervenção estatal na convivência paterno/materno-filial: tensões entre o Poder Estatal e o Poder Familiar. Jurisprudência Revista OABRJ, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 175-198, 2011. ).

Quem tem direito de ser assistido é o filho. O pai tem a obrigação de assistir à criança, ao filho dele... Eu já fiz aqui algumas vezes, por exemplo, de impor uma visitação, mesmo contra a vontade do outro (J4).

A mudança de guarda é “a medida mais grave, o alienante perde o direito da guarda, pode acontecer até de ambos não terem a guarda, nem o pai, nem a mãe, a gente entregar a outra pessoa” (J1), considerada traumática pelos entrevistados e cogitada apenas mediante o fracasso de soluções flexíveis:

Não, a gente não chegou a fazer ainda não. Não chegamos a fazer isso não porque a gente sabe que vai ser traumático. Principalmente para a criança. Porque nesses casos a gente tem tido oportunidade de conversar, se é adolescente, a partir de 10 anos a gente já tem o hábito de ouvir. Ainda mais se é um adolescente, está num processo de alienação, tem repulsa pelo genitor, imagina se você fizer esse trabalho de inversão da guarda! É muito violento. Então, antes de chegar a essa decisão extrema, já terei tentado todos esses métodos alternativos. Porque às vezes só mudar a guarda não resolve, só muda o problema de lugar. Ou piora o problema (J5).

Às vezes é um remédio amargo, mas a gente tem que agir com muita cautela, até para você também não prejudicar aquele que é o alienador. Mas ele não é um alienador consciente, digamos assim, ele está doente. Ele precisa de um tratamento, ele precisa se reencontrar. E se você age, muitas vezes, com essa violência, isso gera, às vezes, um transtorno maior. A gente tem caso até de suicídio (J4).

Apesar de colocada também como medida punitiva na lei de AP, a guarda compartilhada (GC) apresenta um caráter diferente das outras. Entrevistados demonstram grande aceitação:

A GC é uma forma de fazer as partes se entenderem. A AP seria o contrário da GC. Porque a AP é justamente um querer impedir que o outro tenha acesso à criança e a GC é uma divisão de responsabilidades. O compartilhamento da guarda vem como uma solução para a lide existente entre as partes com relação à AP. Temos feito muitos acordos de GC, justamente por isso (J1).

“Mas eu acredito que a partir do momento em que a GC é instituída e passa a ser difundida socialmente, as pessoas começam a aceitar como modelo padrão. O motivo que desencadeia a AP e a questão de identificar o culpado, o responsável pelo término da separação vai deixar de existir. Então eu acredito que o filho deixaria de ser um objeto de disputa e de vingança. Então sobre essa perspectiva, eu acredito que reduziria sim a AP” (E7).

A GC está se tornando a solução mais prevalente no mundo, tendo a maioria das crianças sob esse regime obtido melhores resultados em medidas de bem-estar físico, emocional, comportamental e psicológico (NIELSEN, 2014NIELSEN, L. Shared Physical Custody: Summary of 40 Studies on Outcomes for Children. Journal of Divorce & Remarriage, v. 55, p. 614-636, 2014.). A exceção é feita para os casos de litígios graves: “Eu, pelo menos, nunca julguei um caso de litígio em prol da GC para quem quer que seja, nunca fiz isso na minha vida” (J2). Portanto, para a nova formulação, cabe flexibilizar:

A lei não é uma regra a ser seguida, não é necessariamente uma regra, tanto que se o outro não concordar, não dá, não tem como fazer GC. Ela não engessa, ela vem como uma opção, como uma solução, o juiz não impõe, ele propõe a GC, que é muito diferente (J1).

A melhor guarda vai ser a que melhor couber naquele caso, não é porque está prescrito na lei que ela é melhor (E5).

O que se constata, ao final, é que em Direito de Família, não há como estabelecer regra única, devendo cada caso ser analisado isoladamente, com o objetivo de avaliar o que melhor se apresenta para cada família (LISBOA, 2015). Nem assim, entretanto, haverá garantias de que o caso será solucionado:

A gente orienta, a gente dá conselhos e tudo. Mas o íntimo de cada um, que vai lá no coração de cada um, a gente não tem condição de interferir. Seria pretensão demais do Estado. Nem mesmo uma boa lei, uma lei bem-intencionada, como é essa lei da GC, como é essa da AP, muito bem intencionada, mas olha, não basta. A lei é rudimento pobre e fraco (J4).

Conclusão

A teoria da AP de Gardner, apresentada sob a forma de uma lógica própria e circular, revelou-se absolutamente inconsistente do ponto de vista psiquiátrico, tanto a partir da literatura quanto a partir da percepção dos entrevistados, que entendem a AP como um conflito familiar e não como uma doença.

Mostrou-se de fundamental importância a análise do fenômeno no caso a caso das famílias e dos sujeitos envolvidos, sem, entretanto, perder de vista o contexto social, político e econômico no qual se insere, destacando-se a necessidade de políticas públicas que atuem preventivamente.

O papel de cada membro da família na distribuição dos poderes revela que a dimensão de dominação não pode ser atribuída exclusivamente ao Estado, o que aponta para a responsabilização do sujeito para com suas escolhas e atos como a melhor forma de resolução de conflitos. A mediação e a nova lei da GC, juntamente com abordagens clínicas como as de orientação psicanalítica contribuem para ajudar cada um nesse processo de responsabilização. Assim, seria possível ao Estado assistir às famílias, cumprindo sua função de proteger o menor em vulnerabilidade, sem incorrer em violência institucional.

Ressaltamos a relevância de futuros estudos sobre cada abordagem operativa especificamente. Devido à preponderância da literatura norte-americana, que privilegia o tratamento comportamental, encontramos pouca produção articulada à psicanálise nas bases de dados, por isso recomendamos pesquisas em bases específicas.11M. A. Montezuma realizou o desenho da pesquisa, trabalho de campo e redação do artigo. R. C. Pereira participou da co-orientação da pesquisa e da revisão do artigo. E. M. de Melo responsabilizou-se pelo desenho, orientação da pesquisa e revisão do artigo.

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Nota

  • 1
    M. A. Montezuma realizou o desenho da pesquisa, trabalho de campo e redação do artigo. R. C. Pereira participou da co-orientação da pesquisa e da revisão do artigo. E. M. de Melo responsabilizou-se pelo desenho, orientação da pesquisa e revisão do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2017
  • Aceito
    31 Out 2017
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