Os desafios e as potencialidades da saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma análise dos processos de trabalho

Challenges and potentialities of oral health in the Family Health Strategy: an analysis of work processes

Millane Teles Portela de Oliveira Mariana Ramalho de Farias Maristela Inês Osawa Vasconcelos Israel Rocha Brandão Sobre os autores

Resumo

A saúde bucal foi inserida no Programa Saúde da Família por meio da Portaria do Ministério da Saúde nº 1.444/2000, mas somente após a publicação da Política Nacional de Saúde Bucal houve uma reorganização das práticas e ações em saúde bucal. O objetivo deste estudo foi identificar os principais desafios e potencialidades dos processos de trabalho em saúde bucal no âmbito da Estratégia Saúde da Família. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa realizada com as Equipes de Saúde Bucal e a Coordenação de Saúde Bucal do município de Coreaú, Ceará, Brasil, totalizando 11 participantes. A coleta das informações ocorreu entre abril e agosto de 2019, a partir de grupo focal, diário de campo e entrevista semiestruturada. Utilizou-se a Análise de Conteúdo de Bardin, sendo realizadas triangulação e interpretação das informações definidas em cinco categorias: organização do processo de trabalho; educação em saúde; interprofissionalidade e prática colaborativa; gestão participativa e satisfação dos usuários. Concluiu-se que, no processo de trabalho, a maior problemática é a marcação dos atendimentos em saúde bucal. As potencialidades identificadas foram a inserção da Odontologia na Estratégia Saúde da Família e a integração da equipe de saúde bucal com o efetivo interesse de transformação das práticas.

Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Odontologia em saúde pública; Saúde bucal; Políticas de saúde pública.

Abstract

Oral health was included in the Family Health Program through Ministry of Health Ordinance No. 1444/2000, but only after the publication of the National Oral Health Policy was there a reorganization of oral health practices and actions. This study aimed to identify the main challenges and potential of the oral health work processes within the scope of the Family Health Strategy. This research has a qualitative approach carried out with the Oral Health and Oral Health Coordination Teams in the municipality of Coreaú, Ceará, Brazil, totaling 11 participants. Information was collected between April and August 2019 from a focus group, field diary and semi-structured interviews. Bardin's Content Analysis was used, with triangulation and interpretation of the information defined in five categories: organization of the work process; health education; inter-professionality and collaborative practice; participatory management and user satisfaction. It was concluded that in the work process the biggest problem is the scheduling of oral health care. The potentialities identified were the insertion of Dentistry in the Family Health Strategy and the integration of the oral health team with the effective interest in transforming practices.

Keywords:
Primary Health Care; Public Health Dentistry; Oral Health; Public Health Policies.

Introdução

O Programa Saúde da Família (PSF) foi criado em 1994 pelo Ministério da Saúde (MS) como uma forma de operacionalizar o Sistema Único de Saúde (SUS) (MARTINS , 2014MARTINS, A. N. et al. A inserção do cirurgião-dentista no PSF: Revisão sobre as ações e os métodos de avaliação das equipes de saúde bucal. Revista de Iniciação Científica da Universidade Vale do Rio Verde. Três Corações, v.4, n.1, p. 24-33. 2014. ), visando ampliar o acesso da população aos serviços básicos de saúde, em consonância com as diretrizes estabelecidas pelo SUS. Em 1997, o PSF passa a denominar-se Estratégia de Saúde da Família (ESF), alterando-se uma visão pragmática e focalizada de programa para um conceito mais amplo de planejamento e desenvolvimento de ações assumidos pelo Estado, uma estratégia sem prazo limitado, adequada ao objetivo da Atenção Primária à Saúde (APS) de ampliação do vínculo e cuidado longitudinal (PIRES; GÖTTEMS, 2009PIRES, M. R. G. M.; GÖTTEMS, L. B. D. Análise da gestão do cuidado no Programa de Saúde da Família: Referencial teórico-metodológico. Rev Bras Enferm. Brasília, v. 62, n. 2, p. 294-299, mar-abr. 2009. ).

Apesar dessa mudança estratégica, somente em 2004 efetiva-se uma Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), por meio do Programa Brasil Sorridente, voltada à ampliação e qualificação da saúde bucal na APS. Ao longo de muitos anos, as práticas de saúde bucal no SUS ocorreram de forma paralela, porém separadas do processo de organização dos demais serviços de saúde. Essa tendência vem sendo revertida por meio do esforço para promover uma maior integração da saúde bucal nos serviços de saúde, a partir do compartilhamento de saberes e práticas que apontem para a promoção e vigilância em saúde e para revisão das práticas assistenciais, considerando a abordagem familiar e a defesa da vida (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. A Saúde Bucal no Sistema Único de Saúde. Brasília-DF: MS, 2018. ).

As atribuições do cirurgião-dentista (CD) na ESF passam por essa ação integral, ampliada e contínua, que alia a atuação clínica às práticas de saúde coletiva, assim, compete ao CD a coordenação de atividades coletivas, voltadas para o desenvolvimento da promoção e prevenção em saúde bucal, a capacitação da equipe da ESF, a participação em visitas domiciliares e a realização de atividades educativas, sempre ressaltando a importância do acolhimento e do vínculo (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, 22 set. 2017, ed. 183, seção 1, p. 68, 2017.).

Como a organização do processo de trabalho na odontologia tradicional não supre as necessidades dos profissionais, da população e nem das gestões municipais, uma vez que as ações estão concentradas no atendimento clínico no consultório odontológico, portanto, não-integral e meramente curativo, faz-se necessária uma reavaliação dessas práticas. As mudanças nos processos de trabalho do cirurgião-dentista na ESF envolvem um novo formato de trabalho em equipe, tanto na composição da Equipe de Saúde da Família, quanto da Equipe de Saúde Bucal (ESB) (OKUYAMA; SILVA, 2017OKUYAMA, H. C. H. Y.; SILVA, R. H. A. Gestão do cuidado em Odontologia: limites e potencialidades das ações na Estratégia Saúde da Família. Revista da ABENO, v. 17, n. 4, p. 133-143, 2017.; SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.). A potencialidade da equipe é compreendida como uma ferramenta de mudanças nos processos de trabalho, pois fortalece a integralidade, o acolhimento, o vínculo, a autonomia e a responsabilização; o trabalho em equipe multiprofissional potencializa as atividades desenvolvidas (OKUYAMA; SILVA, 2017OKUYAMA, H. C. H. Y.; SILVA, R. H. A. Gestão do cuidado em Odontologia: limites e potencialidades das ações na Estratégia Saúde da Família. Revista da ABENO, v. 17, n. 4, p. 133-143, 2017.; PERUZZO, 2018PERUZZO, H. M. et al. Os desafios de se trabalhar em equipe na Estratégia Saúde da Família. Escola Anna Nery. Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, 2018.; SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.). Entretanto, os problemas e desafios para essa mudança estratégica se mantém (OKUYAMA; SILVA, 2017OKUYAMA, H. C. H. Y.; SILVA, R. H. A. Gestão do cuidado em Odontologia: limites e potencialidades das ações na Estratégia Saúde da Família. Revista da ABENO, v. 17, n. 4, p. 133-143, 2017.; SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.).

Dentre os desafios da ESB, destaca-se a gestão do cuidado, que considera a abordagem integral, humanizada, com valorização dos profissionais, identificação das reais necessidades da população e otimização dos recursos e espaços disponíveis para o trabalho. Além desse, outro desafio que pode ser apontado é a falta de realização de diagnóstico de necessidades da população (OKUYAMA; SILVA, 2017OKUYAMA, H. C. H. Y.; SILVA, R. H. A. Gestão do cuidado em Odontologia: limites e potencialidades das ações na Estratégia Saúde da Família. Revista da ABENO, v. 17, n. 4, p. 133-143, 2017.).

Um problema identificado no processo de trabalho das equipes é a marcação de consulta em saúde bucal, uma vez que, apesar de várias tentativas terem sido realizadas com o objetivo de promover a universalidade e a equidade na atenção, ainda são observadas filas organizadas por ordem de chegada, predominando a lógica de demanda espontânea e pronto atendimento (AZEVEDO; COSTA, 2010AZEVEDO, A. L. M.; COSTA, A. M. A estreita porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS): uma avaliação do acesso na Estratégia de Saúde da Família. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v. 14, n. 35, p. 797-810, out./dez. 2010. ; SANTOS; ASSIS, 2006SANTOS, A. M.; ASSIS, M. M. A. Da fragmentação à integralidade: construindo e (des)construindo a prática de saúde bucal no Programa de Saúde da Família (PSF) de Alagoinhas, BA. Ciência & Saúde Coletiva , v. 11, n. 1, p. 53-61, 2006. ).

Ainda é possível apontar como um problema a falta de acompanhamento, supervisão e avaliação das ESB pela coordenação de saúde bucal, uma vez que as reuniões de planejamento e monitoramento das atividades são inconstantes e acabam por gerar ações fragmentadas e individualizadas em saúde bucal (SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.). A coordenação de saúde bucal tem a função de organizar o modelo de atenção à saúde bucal do município e orientar as ESB quanto aos seus deveres, responsabilidades e cumprimentos dos princípios e diretrizes do SUS na ESF (PIMENTEL , 2012PIMENTEL, F. C. et al. Caracterização do processo de trabalho das equipes de saúde bucal em municípios de Pernambuco, Brasil, segundo porte populacional: de articulação comunitária à organização do atendimento clínico. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 28, sup. S146-S157, 2012. ).

Considerando esse contexto, a partir da experiência de implantação da ESF em um município do nordeste do Brasil, o objetivo deste estudo foi identificar os principais desafios e potencialidades dos processos de trabalho em saúde bucal no âmbito da Estratégia Saúde da Família.

Metodologia

Este artigo é um recorte de uma pesquisa de dissertação do Mestrado Profissional em Saúde da Família da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)/Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (RENASF)/Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) realizada entre julho de 2018 e agosto de 2019. Não foram identificados conflitos de interesses na sua realização. O local escolhido relaciona-se aos objetivos de profissionalização e ampliação do trabalho dentro da ESF.

Trata-se de pesquisa qualitativa realizada com os profissionais das Equipes de Saúde Bucal (ESB) e a Coordenação de Saúde Bucal do município de Coreaú, no estado do Ceará, Brasil, totalizando 11 participantes: cinco cirurgiões-dentistas, cinco auxiliares de saúde bucal e uma coordenadora de saúde bucal. O critério de inclusão aplicado nesta pesquisa foi a inscrição no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde dos profissionais nas respectivas ESB e coordenação de saúde bucal do município. O critério de exclusão empregado foi o desligamento do serviço de saúde municipal. A coleta das informações ocorreu entre abril e agosto de 2019 por meio de grupo focal com os participantes, entrevista semiestruturada em profundidade apenas com participantes-chave que pudessem elucidar questionamentos persistentes e registro em diário de campo.

Inicialmente, após a apresentação dos objetivos e métodos da pesquisa para o grupo e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), seguiu-se com a realização do grupo focal, com observação direta dos participantes e registro em diário de campo, a fim de que fossem detectados aspectos significativos para a organização dos processos de trabalho do cirurgião-dentista na ESF.

O diário de campo configurou um momento de coleta transversal à realização da pesquisa, sendo empregado durante o grupo focal, as entrevistas e no exercício do trabalho para obtenção de informações por meio da observação direta dos participantes e do campo de estudo, sob atenção minuciosa das falas, gestos, comportamentos e atitudes.

A entrevista semiestruturada em profundidade foi realizada devido à existência de questionamentos persistentes, de forma individual (em momento distinto do grupo focal) e apenas com os participantes-chave, que durante a realização do grupo focal demonstraram ter mais elementos a serem acrescentados, agregando maior relevância à pesquisa, uma vez que possibilitou novos aspectos para discussão.

Tanto o grupo focal quanto as entrevistas foram gravadas em áudio e utilizado o método de saturação das falas. Após a coleta das informações, houve a transcrição das falas do grupo focal e das entrevistas individuais, com posterior leitura imparcial destas falas, a fim de selecionar os termos relevantes; em seguida esses termos ou expressões foram codificados em categorias e verificadas quais categorias apresentavam similaridade e que se completavam segundo critérios de relevância e repetição. Conseguinte a todas essas etapas, foi realizado o tratamento dos resultados, com inferências e interpretação das informações de acordo com os núcleos de sentido, conforme a técnica de Análise de Conteúdo descrita por Bardin (2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo. Edições 70, 2016. ). Todo o material coletado no grupo focal, nas entrevistas e os registros feitos no diário de campo foram analisados segundo as categorias escolhidas e em consonância aos valores conferidos aos núcleos de sentido, por meio da triangulação das informações.

A pesquisa teve anuência da gestão municipal e foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), com parecer de nº 3.241.911 e seguiu as normas da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília-DF: Conselho Nacional de Saúde, 2012. ).

Resultados e Discussão

Após a análise e interpretação das informações coletadas no grupo focal, nas entrevistas individuais e no diário de campo, realizou-se a triangulação das informações e definiram-se cinco categorias, segundo os núcleos de sentido: organização do processo de trabalho; educação em saúde; interprofissionalidade e prática colaborativa; gestão participativa; acolhimento e agendamento dos usuários.

Organização do processo de trabalho

Inexistência de agenda programada

O maior problema relatado pelos participantes é a marcação de consultas, pois cada equipe marca seus usuários da maneira que considera melhor. Assim, os métodos de marcação são variados a fim de tentar organizar a demanda. A fila de espera é imensa, fazendo com que, por vezes, o usuário tenha que aguardar mais de um mês pelo atendimento; além disso, existem os encaixes e atendimentos extras, segundo as urgências e as queixas apresentadas. Não existe equivalência entre o número de equipes da ESF e ESB, ocasionando ainda mais acúmulo de atividades e atendimentos para os profissionais. A marcação ocorre por agendamento com ou sem classificação de risco, pelo agente de saúde ou por demanda espontânea. Alguns participantes afirmam que o agendamento reduziu e organizou a demanda, porém outros se dizem satisfeitos com a sua marcação pelo agente de saúde ou mesmo com a demanda livre:

Dentro da sede do distrito estou fazendo agendamento. O pessoal tava indo 3h da manhã. O agendamento diminuiu um pouquinho a demanda. Eu classifico o risco. Quem for de alto e médio risco eu vou agendando (CD3).

Às vezes o paciente vem e só tem vaga para o mês seguinte. Acabava lotando a agenda do mesmo jeito. A demanda livre não é resolutiva (CD2).

A gente tem que pensar numa forma de encaixar os retornos. Mesmo que o primeiro acesso tenha sido proporcionado pela agente de saúde, ele precisa ter garantido o tratamento concluído (CD5).

Deve-se considerar o método de marcação de consultas odontológicas para que este não configure uma barreira de acesso aos usuários do sistema de saúde (SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.). Torna-se necessário o planejamento, a programação e a priorização das ações de saúde a serem realizadas (MELO , 2016MELO, L. M. L. L. et al. A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016. ). O agendamento das consultas odontológicas é ideal, já que evita filas e as interrupções durante os atendimentos (NUTO , 2010NUTO, S. A. S. et al. O acolhimento em saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família, Fortaleza-Ce: um relato de experiência. Rev. APS, Juiz de Fora, v. 13, n. 4, p. 505-509, out-dez. 2010. ).

Melo (2016MELO, L. M. L. L. et al. A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016. ) identificaram que a maioria dos profissionais sente dificuldade em cumprir a agenda programada devido à grande demanda. No entanto, mesmo diante desse entrave, todos reconhecem a importância desse instrumento para a reorganização dos processos de trabalho. Outro problema identificado é a dificuldade de a população reconhecer a ESB como parte da ESF, assim como os próprios profissionais de saúde bucal, outros profissionais da ESF e até mesmo gestores não fazem esse reconhecimento em muitas situações, o que causa incompreensão diante da ausência no consultório odontológico para a realização de visitas domiciliares, atividades coletivas ou educação em saúde.

Garantia de retornos e continuidade do tratamento odontológico

A continuidade do tratamento odontológico, garantido pelas consultas de retorno até a conclusão do tratamento, não é constante entre os participantes. Alguns asseguram os retornos e relatam todos os procedimentos realizados no prontuário clínico do usuário, contudo outros afirmam não ter controle sobre os retornos; outros afirmam que simplesmente não marcavam os usuários. No entanto, os participantes confirmam que não garantir os retornos acaba por ocasionar um desaparecimento temporário do usuário do sistema, já que estes querem apenas solucionar suas queixas; por outro lado, tem usuários que procuram por atendimento semanalmente até que as suas queixas e necessidades sejam sanadas:

A gente extrai o dente que tá doendo, depois, daqui a dois anos, ele vem de novo quando estiver com dor. São esses pacientes que somem. Pra mim a dificuldade maior é o retorno, aí o paciente se perde (CD2).

Eu anoto tudo no prontuário, a classificação de risco e o que foi feito no paciente. Eu agendo novamente até terminar o tratamento (CD3).

Tem paciente que vem todo dia na demanda livre pra acabar mais rápido. É bom estipular o horário de chegada (ASB2).

A não priorização dos retornos e tratamentos concluídos resulta em baixa resolubilidade dos problemas bucais, já que não há acompanhamento dos casos e nem a formação de vínculos entre os profissionais e os usuários.

Durante a pesquisa, foi desenvolvido de forma colaborativa um novo modelo de atendimento e agendamento dos usuários. Assim, houve melhor organização, definição e padronização dos protocolos de acolhimento e escuta dos usuários.

Finalização dos tratamentos odontológicos

Quando inseridos no sistema de saúde e uma vez iniciado o tratamento, o usuário só deve ter alta após concluir todas as suas necessidades, ou seja, seus retornos devem ser garantidos e agendados após cada atendimento, a fim de promover a completa realização dos tratamentos odontológicos destes (NUTO , 2010NUTO, S. A. S. et al. O acolhimento em saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família, Fortaleza-Ce: um relato de experiência. Rev. APS, Juiz de Fora, v. 13, n. 4, p. 505-509, out-dez. 2010. ). Essa atitude propicia uma maior resolubilidade dos problemas de saúde bucal da população.

A constante falta de materiais e insumos odontológicos foi relatada como uma grande dificuldade, o que impossibilita uma maior quantidade de tratamentos concluídos. O profissional se sente desgastado física e mentalmente quando atende uma grande demanda, mesmo não possuindo os materiais e equipamentos necessários para supri-la, sendo necessário realizar ajustes. Em virtude disso, um participante relatou que praticamente não conclui os tratamentos. Outro participante ressaltou que a finalização dos tratamentos está relacionada à educação em saúde, já que consultas periódicas possibilitariam um maior vínculo com o usuário e mais momentos de instrução de higiene oral. Outros relataram que, mesmo diante de todas as dificuldades, conseguem ter respostas satisfatórias e finalizam uma quantidade significativa de tratamentos odontológicos:

Eu quase não dou tratamento concluído. Nós temos essa falha aqui. Eu tenho uma grande falha: eu dificilmente concluo um tratamento (CD1).

Além do desgaste e da gente trabalhar muito, o material não dá. Chega à tarde às vezes não tem um espelho pra gente atender. Atende todos os pacientes da tarde sem espelho, sem broca, fazendo das tripas coração. Até que agora eu estou conseguindo concluir os tratamentos. E também, até por uma questão de educação em saúde, porque quando a gente conclui o tratamento, a gente consegue ter mais contato com o paciente, dar mais orientação de higiene, e quando ele voltar em seis meses para fazer a limpeza, ele não vai ter cárie (CD2).

A falta de recursos materiais e insumos odontológicos constitui uma fragilidade no trabalho em saúde bucal, uma vez que dificulta ou mesmo impossibilita os atendimentos e procedimentos clínicos, gerando uma maior fila de espera (HIROOKA , 2017HIROOKA, L. B. et al. Organização da saúde bucal em uma região do estado de São Paulo segundo a Avaliação Externa do PMAQ-AB, 2012. Rev. Bras. Odontol., Rio de Janeiro, v. 74, n. 2, p. 101-13, abr-jun. 2017.; MENDES JÚNIOR , 2015MENDES JÚNIOR, F. I. R.; BANDEIRA, M. A. M.; TAJRA, F. S. Percepção dos profissionais quanto à pertinência dos indicadores de saúde bucal em uma metrópole do Nordeste brasileiro. Saúde Debate, v. 39, n. 104, p. 147-58, 2015.; SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.).

As distintas falas relacionadas à garantia dos retornos e conclusão dos tratamentos evidenciam como os processos de trabalho são diferenciados e sem monitoramento e avaliação das ações de saúde bucal.

Com a garantia dos retornos continuados, os usuários têm a possibilidade de concluírem seus tratamentos odontológicos. Mesmo diante da conclusão do tratamento, estes devem ser agendados para acompanhamentos periódicos com a ESB e orientados para o autocuidado com a sua saúde bucal (CARVALHO , 2004CARVALHO, D. C. et al. A dinâmica da Equipe de Saúde Bucal no Programa Saúde da Família. Boletim da Saúde. Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 175-184, jan-jun. 2004. ).

Após todas as ponderações, as potencialidades evidenciadas nas falas foram a inserção da ESB na ESF, considerada como um acerto, um ganho para a saúde pública, pois facilita o acesso da população às ações e serviços de saúde bucal; e o fato de que se considera inviável trabalhar sem agendamento na atualidade, pois o agendamento das consultas permite maior organização da demanda e das atividades a serem realizadas pelos profissionais:

A meu ver dá certo, já tá dando certo, porque antes nem tinha, né? E hoje tem e faz tudo, só não faz o serviço mais especializado (CD3).

A ressignificação das práticas em saúde bucal propõe modelos que concordem com a integralidade à saúde; os usuários devem ser corresponsáveis pela sua saúde (SANTOS, 2006SANTOS, A. M.; ASSIS, M. M. A. Da fragmentação à integralidade: construindo e (des)construindo a prática de saúde bucal no Programa de Saúde da Família (PSF) de Alagoinhas, BA. Ciência & Saúde Coletiva , v. 11, n. 1, p. 53-61, 2006. ).

Modificar o modelo de atenção à saúde bucal é algo que só pode ser alcançado mediante a vontade política de mudança e reformulação, vinculada à saúde geral e por meio de ações intersetoriais (CARVALHO , 2004CARVALHO, D. C. et al. A dinâmica da Equipe de Saúde Bucal no Programa Saúde da Família. Boletim da Saúde. Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 175-184, jan-jun. 2004. ).

Educação em saúde

Um aspecto relevante da análise das informações diz respeito à educação em saúde. Os participantes demonstraram interesse no exercício dessas atividades por meio de ações educativas nas escolas e escovação bucal supervisionada; foi destacado, inclusive, como um indicador de saúde bucal. Modificar hábitos, sensibilizar e educar pessoas não são tarefas rápidas e, muito menos, fáceis, porém necessárias quando se objetiva transformar o panorama de saúde bucal atualmente prevalente. Prevenir é sempre uma alternativa melhor e de menor custo. Quando são desenvolvidos muitos procedimentos curativos e reabilitadores surge um questionamento sobre como estão sendo praticadas as ações preventivas e o motivo destas não serem efetivas. As ações de educação em saúde podem e devem ser realizadas nas próprias UBS ou em ações intersetoriais, como escolas, creches, grupos de idosos da assistência social, a fim de desenvolver uma saúde bucal preventiva:

Eu me sinto melhor fazendo essas atividades que estando no consultório fazendo exodontias. [...] Porque você mudar a mentalidade de uma pessoa é muito difícil. Pra diminuir a demanda só com atitude preventiva, com ação coletiva (CD1).

Um dos dois pontos dos indicadores de saúde bucal quem eles mais batem é tratamento concluído e escovação supervisionada, que bate justamente nessa tecla da prevenção. O número de exodontias é um indicador negativo, porque se você faz muita exodontia, quer dizer que você tá falhando na prevenção (CD5).

As ações de educação em saúde planejadas na agenda da ESB podem ser desenvolvidas na comunidade pelos ASB e ACS, supervisionados pelo cirurgião-dentista. Podem ser palestras educativas, escovação bucal supervisionada e práticas de promoção e prevenção da saúde. Recomenda-se que 15% a 25% da carga horária de trabalho sejam destinadas a atividades de planejamento, capacitação e ações coletivas (MELO , 2016MELO, L. M. L. L. et al. A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016. ). O desenvolvimento de ações de educação em saúde compreende transformações que percorrem a formação dos profissionais de saúde (SANTOS, 2006SANTOS, A. M.; ASSIS, M. M. A. Da fragmentação à integralidade: construindo e (des)construindo a prática de saúde bucal no Programa de Saúde da Família (PSF) de Alagoinhas, BA. Ciência & Saúde Coletiva , v. 11, n. 1, p. 53-61, 2006. ; SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.).

Dentre as atribuições comuns a todos os profissionais da AB se encontram a realização de atividades de educação em saúde à população adscrita aos territórios, segundo o planejamento da equipe, e a participação nas atividades de educação permanente (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. A Saúde Bucal no Sistema Único de Saúde. Brasília-DF: MS, 2018. ). É perceptível que a ESB deve participar das atividades de promoção e educação em saúde, a fim de orientar a população sobre os problemas de saúde bucal e seus fatores de risco.

A realização de atividades de educação em saúde, prevenção de agravos e promoção da saúde ainda representam um desafio a ser superado na prática em saúde bucal, pois muitas vezes o atendimento clínico é tido como prioridade absoluta. No entanto, foi evidenciado que os participantes consideram que é algo fundamental para a formação do vínculo e o desenvolvimento de um senso de autocuidado, representando uma potencialidade que deve ser explorada.

Interprofissionalidade e prática colaborativa

Um grande desafio ainda presente para as ESB é o desenvolvimento de atividades interprofissionais, pois a maioria dos profissionais de saúde bucal participantes deste estudo relataram que não participam frequentemente das reuniões de equipe, nas quais são discutidos problemáticas do território, demandas levadas pelos ACS e onde é possível a realização de busca ativa dos pacientes faltosos aos atendimentos, como é o caso das gestantes, que ainda apresentam grande resistência ao tratamento odontológico; e quando se fala em reuniões de equipe se refere tanto às reuniões entre as ESB como às reuniões entre as ESB e as equipe da ESF, uma vez que os profissionais de saúde bucal devem ser formados para o trabalho intra e interprofissional de modo a potencializar e valorizar os novos processos de trabalho na ESF.

Nos grupos de educação em saúde foi possível identificar a ausência da ESB, admitindo que a população permanecesse desprovida das informações sobre saúde bucal:

Às vezes nós nos excluímos e somos excluídos. O dentista tem que participar das reuniões de equipe. [...] Porque vão ser discutidos problemas, os agentes de saúde vão trazer demandas também, então dá pra fazer busca ativa (CD5).

Às vezes eu não participo da reunião de equipe [...] Quando tem esses grupos de gestante, essas coisas, eu paro lá o atendimento, vou lá e falo rápido e volto pro atendimento, não libero um turno pra isso (CD3).

Melo (2016MELO, L. M. L. L. et al. A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016. ) apontam que quatro horas semanais devem ser disponibilizadas ao desempenho de reunião com todos os membros da equipe, tendo ou não a participação da coordenação. Isso possibilita uma maior aproximação da equipe, com consequente discussão dos casos, planejamento das ações, monitoramento e avaliação das atividades desenvolvidas, resolução de conflitos e troca de conhecimentos e experiências.

As reuniões de equipe têm forte potencial para o fortalecimento do vínculo e estreitamento das relações de trabalho, além de proporcionar melhor planejamento e desempenho das atividades. Uma equipe mais integrada tende a produzir melhor e a pensar em alternativas mais viáveis para os problemas do cotidiano de trabalho. No entanto, muitas vezes, os profissionais de Odontologia ainda se sentem excluídos em relação às atividades desenvolvidas pela equipe da ESF (PERUZZO , 2018PERUZZO, H. M. et al. Os desafios de se trabalhar em equipe na Estratégia Saúde da Família. Escola Anna Nery. Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, 2018.).

Para que o trabalho em equipe seja efetivo é necessário que haja colaboração entre os seus membros, troca de saberes e experiências e complementaridade nas atividades (PERUZZO , 2018PERUZZO, H. M. et al. Os desafios de se trabalhar em equipe na Estratégia Saúde da Família. Escola Anna Nery. Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, 2018.; SCHERER , 2018SCHERER, C. I. et al. O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE. Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.).

A educação interprofissional em saúde valoriza o encontro com os usuários e entre as diferentes categorias profissionais, articulando saberes especializados ao abordar a complexidade das necessidades de saúde, em contraposição à formação e prática especializada isolada (COSTA, 2016COSTA, M. V. A educação interprofissional no contexto brasileiro: algumas reflexões. Interface - Comunicação, Saúde Educação, v. 20, n. 56, p. 197-8, 2016.; SILVA , 2015SILVA, J. A. M. et al. Educação interprofissional e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Rev Esc Enferm USP, v. 49, n. esp. 2, p. 16-24, 2015.). A articulação no cuidado permite que um profissional conheça a atuação do outro e, assim, possa agregar novos saberes à sua prática, promovendo o trabalho em equipe, a escuta e a valorização do conhecimento do outro (SILVA , 2015SILVA, J. A. M. et al. Educação interprofissional e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Rev Esc Enferm USP, v. 49, n. esp. 2, p. 16-24, 2015.).

O trabalho em equipe e a prática colaborativa devem contribuir para melhorar o acesso e a qualidade da atenção à saúde prestada aos usuários, assim como pode promover maior satisfação dos profissionais em sua prática. A colaboração deve partir do desejo de contribuir com o trabalho desenvolvido pelos demais profissionais, requerendo a garantia de condições para uma efetiva participação dos profissionais, dos usuários e da comunidade (PEDUZZI; AGRELI, 2018PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface - Comunicação, Saúde Educação, v. 22, supl. 2, p. 1525-34, 2018.).

A participação do usuário na construção e condução do plano terapêutico contribui para qualificar as práticas de saúde, compartilhando a responsabilidade pelos cuidados em saúde (PEDUZZI; AGRELI, 2018PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface - Comunicação, Saúde Educação, v. 22, supl. 2, p. 1525-34, 2018.; SILVA , 2015SILVA, J. A. M. et al. Educação interprofissional e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Rev Esc Enferm USP, v. 49, n. esp. 2, p. 16-24, 2015.). Escutar as necessidades e opiniões dos usuários permite a formulação de um plano terapêutico que tenha viabilidade a longo prazo e possa ser exequível pelo usuário.

Gestão Participativa

A gestão participativa foi evidenciada nas falas como algo não realizado. Os participantes trabalham cada um à sua maneira, de acordo com suas convicções pessoais e da forma que consideram mais adequada, sem que haja interferência positiva da gestão. Foi percebido que não existe um alinhamento das ações entre as ESB, assim como as reuniões das ESB não fazem parte da rotina de trabalho e nem do planejamento das ações:

A coordenação nunca interferiu. Eu só perguntei a ela se eu poderia começar a fazer agendamento e ela disse que sim (CD3).

A coordenação nunca interferiu, só deu a determinação de não voltar pacientes (CD1).

Melo (2016MELO, L. M. L. L. et al. A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016. ), em sua pesquisa, perceberam que cada cirurgião-dentista adequava sua agenda de atividades sem discussão prévia com a gestão a fim de que esta fosse direcionada às reais necessidades do município, problema pautado para discussão no Conselho Municipal de Saúde (CMS); evidencia-se, assim, que a dificuldade na organização da agenda de trabalho da ESB não é particular de um município.

O monitoramento do trabalho das equipes pelo coordenador de saúde bucal é visto como um aspecto positivo, pois evidencia a responsabilidade do gestor em organizar o modelo de atenção à saúde bucal do município; isso é possível por meio dos relatórios de produção e pela avaliação dos indicadores, revelando as ações que devem ser priorizadas, com discussão dos resultados das avaliações em reunião com as ESB (MELO 2016MELO, L. M. L. L. et al. A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016. ). No entanto o que se percebe na prática é um distanciamento da coordenação de saúde bucal dos serviços de saúde, sem reuniões periódicas com as ESB para planejamento, monitoramento e avaliação das ações realizadas.

A estrutura dos serviços de saúde, apesar de não se configurar como fornecedora do apoio necessário à realização das atividades, permitindo uma melhor percepção, análise e resolução dos problemas identificados, caracteriza-se como um fator importante de ser analisado, a fim de se potencializar espaços de debates e discussões sobre a ética nos serviços de saúde (GOMES , 2019GOMES, D.; ZOBOLI, E. L. C.; FINKLER, M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da Atenção Primária à Saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, e290208, 2019.).

Acolhimento e agendamento dos usuários

Na realidade deste município estudado, algumas UBS não apresentam ESB. Como consequência, os usuários se deslocam para outras unidades, aumentando a demanda e a fila de espera e impactando negativamente na satisfação com o serviço em saúde bucal.

Alguns participantes relataram que a população se encontra mais satisfeita em realizar o agendamento na UBS do que por demanda espontânea ou marcação por agentes de saúde, já que os próprios usuários podem escolher a melhor data e turno para o seu atendimento, de acordo com a disponibilidade. O agendamento reduziu as reclamações gerais, mas ainda é possível observar descontentamento com os atendimentos prioritários por ciclos ou condições de vida:

Eu percebo que eles estão mais satisfeitos que com a demanda livre e a marcação por agentes de saúde. [...] Ele procura e a gente marca pra próxima data que esteja disponível. É bom porque ele marca pro dia que ele acha melhor e é bom por isso (CD2).

Os outros pacientes que estão marcados para o mesmo dia acham ruim que as gestantes são prioridade (ASB2).

Os usuários muitas vezes não conseguem compreender a necessidade de organização da demanda por prioridades ou por ciclos de vida, uma vez que, quando adotado o critério de atendimento por ordem de chegada, eles querem que esse aspecto seja respeitado, independentemente de haver outros usuários com condições clínicas que indiquem o atendimento prioritário. Isto evidencia a importância de agendamento das consultas e melhor organização dos atendimentos, além do diálogo constante com os usuários para estes possam compreender e participar das decisões.

Embora o acesso aos serviços de saúde bucal seja o fator que mais influencia o grau de satisfação dos usuários, a resolutividade do tratamento odontológico é um aspecto que evidencia a satisfação do usuário com a qualidade do atendimento, pois as relações humanas e o vínculo profissional-paciente são variáveis importantes neste quesito (BRUNHAUSER , 2013BRUNHAUSER, A. L.; MAGRO, M. L.; NEVES, M. Avaliação dos serviços de saúde: um estudo comparativo. RFO, Passo Fundo, v. 18, n. 1, p. 24-31, jan-abr. 2013.). A humanização do serviço de saúde bucal e a boa relação entre o profissional e o usuário estabelece o vínculo necessário à satisfação deste, que reconhece quando os profissionais demonstram respeito, atenção, afetividade, confiança e credibilidade (MOIMAZ , 2016MOIMAZ, S. A. S. et al. Avaliação do usuário sobre o atendimento odontológico no Sistema Único de Saúde: uma abordagem à luz da humanização. Ciência & Saúde Coletiva , v. 21, n. 12, p. 3879-3887, 2016.).

A percepção dos usuários é extremamente importante para se verificar o resultado das ações desenvolvidas e direcionar para o planejamento do serviço. O fato de a agenda odontológica e toda a organização do processo de trabalho em saúde bucal serem discutidos nos conselhos locais e municipais de saúde possibilitam uma maior aproximação do usuário com o serviço e com os profissionais (MELO , 2016MELO, L. M. L. L. et al. A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016. ). A organização da demanda possibilita minimizar as queixas dos usuários, e permitir uma assistência odontológica mais eficaz (NUTO , 2010NUTO, S. A. S. et al. O acolhimento em saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família, Fortaleza-Ce: um relato de experiência. Rev. APS, Juiz de Fora, v. 13, n. 4, p. 505-509, out-dez. 2010. ).

A ESB deve acolher os usuários e identificar as prioridades, desconsiderando o critério de classificação por ordem de chegada (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Humaniza SUS: Acolhimento e classificação de risco nos serviços de urgência. 1ª ed. Brasília-DF: MS , 2009. ; SANTOS, 2006SANTOS, A. M.; ASSIS, M. M. A. Da fragmentação à integralidade: construindo e (des)construindo a prática de saúde bucal no Programa de Saúde da Família (PSF) de Alagoinhas, BA. Ciência & Saúde Coletiva , v. 11, n. 1, p. 53-61, 2006. ). O agendamento deve ser realizado, quando possível, por hora marcada ou por bloco de horário, a fim de minimizar o tempo de espera pelo atendimento na unidade de saúde (SANTOS, 2006SANTOS, A. M. Organização das ações em saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família: Ações individuais e coletivas baseadas em dispositivos relacionais e instituintes. Revista APS, v. 9, n. 2, p. 190-200, jul-dez. 2006. ).

O acolhimento como prática das ações de atenção e gestão da saúde, segundo a análise dos processos de trabalho, possibilita construir uma relação de confiança e compromisso entre as equipes e o serviço de saúde, além do vínculo entre profissionais, usuários e gestores da saúde em defesa do SUS como uma política pública fundamental para a população brasileira. O acolhimento não representa um local específico, mas uma postura ética que deve ser adotada por todos os profissionais, compartilhando saberes e angústias. A classificação de risco é um mecanismo que além de organizar a fila por outros critérios que não o por ordem de chegada, dá melhor condições de trabalho e aumenta a satisfação dos usuários (BRASIL, 2009bBRASIL. Ministério da Saúde. Humaniza SUS: Acolhimento e classificação de risco nos serviços de urgência. 1ª ed. Brasília-DF: MS , 2009. ).

Conclusão

Os desafios para a organização dos processos de trabalho em saúde bucal ainda são muitos e recorrentes; muitas fragilidades encontradas na época da implantação das ESB na ESF ainda persistem, como as dificuldades na organização da demanda de atendimentos clínicos e na realização de atividades coletivas, a ausência de materiais e insumos necessários para o trabalho, a dificuldade no encaminhamento para a realização de procedimentos especializados, a fragilidade na integração da ESB com a equipe da ESF e a falta de uma gestão participativa, ocasionando superlotação da agenda, sobrecarga dos profissionais e insatisfação dos usuários. Sabe-se que a mudança de práticas é algo desafiador e que requer um esforço conjunto para que aconteça, mas é extremamente necessária para a melhoria dos processos de trabalho e deve ser uma constante no trabalho em saúde bucal, a fim de promover uma práxis cada vez mais voltada às reais necessidades da população.

Uma potencialidade identificada nas falas dos participantes foi a inserção da ESB na ESF, configurando um ganho para a saúde pública, tendo o processo de construção de uma agenda para a saúde bucal como uma necessidade a ser implantada, a fim de promover a organização da demanda e satisfação dos usuários, uma vez que o agendamento das consultas odontológicas poderá auxiliar na redução das filas de espera e permitir o desenvolvimento de diversas ações preventivas, curativas e reabilitadoras em saúde bucal. Além disso, o potencial do trabalho interprofissional e da prática colaborativa, com reuniões periódicas de equipe, demonstra interesse na transformação das práticas e representa uma estratégia de fortalecimento do processo de trabalho.

Os resultados obtidos com esta pesquisa sugerem que a metodologia utilizada é passível de replicação em outros municípios brasileiros com cenários semelhantes no que diz respeito ao porte econômico e populacional, servindo como um modelo de comparação em estudos equivalentes, a fim de subsidiar a descoberta de novas potencialidades da saúde bucal na ESF.11M. T. P. de Oliveira e I. R. Brandão: concepção da obra, aquisição, análise e interpretação de dados; elaboração do trabalho e revisão crítica do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada. M. R. de Farias e M. I. O. Vasconcelos: análise e interpretação de dados; elaboração do trabalho e revisão crítica do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada.

Agradecimentos

Agradecemos à Prefeitura Municipal de Coreaú, Ceará, Brasil e à Secretaria Municipal de Saúde pela anuência e apoio na realização desta pesquisa.

Referências

  • AQUILANTE, A. G.; ACIOLE, G. G. O cuidado em saúde bucal após a Política Nacional de Saúde Bucal - “Brasil Sorridente”: um estudo de caso. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 1, p. 239-248, 2015.
  • AZEVEDO, A. L. M.; COSTA, A. M. A estreita porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS): uma avaliação do acesso na Estratégia de Saúde da Família. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v. 14, n. 35, p. 797-810, out./dez. 2010.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo São Paulo. Edições 70, 2016.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. A Saúde Bucal no Sistema Único de Saúde Brasília-DF: MS, 2018.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Humaniza SUS: Acolhimento e classificação de risco nos serviços de urgência 1ª ed. Brasília-DF: MS , 2009.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, 22 set. 2017, ed. 183, seção 1, p. 68, 2017.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília-DF: Conselho Nacional de Saúde, 2012.
  • BRUNHAUSER, A. L.; MAGRO, M. L.; NEVES, M. Avaliação dos serviços de saúde: um estudo comparativo. RFO, Passo Fundo, v. 18, n. 1, p. 24-31, jan-abr. 2013.
  • CARVALHO, D. C. et al A dinâmica da Equipe de Saúde Bucal no Programa Saúde da Família. Boletim da Saúde Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 175-184, jan-jun. 2004.
  • COSTA, M. V. A educação interprofissional no contexto brasileiro: algumas reflexões. Interface - Comunicação, Saúde Educação, v. 20, n. 56, p. 197-8, 2016.
  • GOMES, D.; ZOBOLI, E. L. C.; FINKLER, M. Problemas éticos na saúde bucal no contexto da Atenção Primária à Saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, e290208, 2019.
  • HIROOKA, L. B. et al Organização da saúde bucal em uma região do estado de São Paulo segundo a Avaliação Externa do PMAQ-AB, 2012. Rev. Bras. Odontol., Rio de Janeiro, v. 74, n. 2, p. 101-13, abr-jun. 2017.
  • MARTINS, A. N. et al A inserção do cirurgião-dentista no PSF: Revisão sobre as ações e os métodos de avaliação das equipes de saúde bucal. Revista de Iniciação Científica da Universidade Vale do Rio Verde Três Corações, v.4, n.1, p. 24-33. 2014.
  • MELO, L. M. L. L. et al A construção de uma agenda de gestão compartilhada para reorganização da demanda em saúde bucal. Revista Ciência Plural, v. 2, n. 1, p. 42-55, 2016.
  • MENDES JÚNIOR, F. I. R.; BANDEIRA, M. A. M.; TAJRA, F. S. Percepção dos profissionais quanto à pertinência dos indicadores de saúde bucal em uma metrópole do Nordeste brasileiro. Saúde Debate, v. 39, n. 104, p. 147-58, 2015.
  • MOIMAZ, S. A. S. et al Avaliação do usuário sobre o atendimento odontológico no Sistema Único de Saúde: uma abordagem à luz da humanização. Ciência & Saúde Coletiva , v. 21, n. 12, p. 3879-3887, 2016.
  • NUTO, S. A. S. et al O acolhimento em saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família, Fortaleza-Ce: um relato de experiência. Rev. APS, Juiz de Fora, v. 13, n. 4, p. 505-509, out-dez. 2010.
  • OKUYAMA, H. C. H. Y.; SILVA, R. H. A. Gestão do cuidado em Odontologia: limites e potencialidades das ações na Estratégia Saúde da Família. Revista da ABENO, v. 17, n. 4, p. 133-143, 2017.
  • PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface - Comunicação, Saúde Educação, v. 22, supl. 2, p. 1525-34, 2018.
  • PERUZZO, H. M. et al Os desafios de se trabalhar em equipe na Estratégia Saúde da Família. Escola Anna Nery Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, 2018.
  • PIMENTEL, F. C. et al Caracterização do processo de trabalho das equipes de saúde bucal em municípios de Pernambuco, Brasil, segundo porte populacional: de articulação comunitária à organização do atendimento clínico. Cad. Saúde Pública Rio de Janeiro, v. 28, sup. S146-S157, 2012.
  • PIRES, M. R. G. M.; GÖTTEMS, L. B. D. Análise da gestão do cuidado no Programa de Saúde da Família: Referencial teórico-metodológico. Rev Bras Enferm Brasília, v. 62, n. 2, p. 294-299, mar-abr. 2009.
  • SANTOS, A. M. Organização das ações em saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família: Ações individuais e coletivas baseadas em dispositivos relacionais e instituintes. Revista APS, v. 9, n. 2, p. 190-200, jul-dez. 2006.
  • SANTOS, A. M.; ASSIS, M. M. A. Da fragmentação à integralidade: construindo e (des)construindo a prática de saúde bucal no Programa de Saúde da Família (PSF) de Alagoinhas, BA. Ciência & Saúde Coletiva , v. 11, n. 1, p. 53-61, 2006.
  • SCHERER, C. I. et al O trabalho em saúde bucal na Estratégia Saúde da Família: uma difícil integração? SAÚDE DEBATE Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 2, p. 233-246, out. 2018.
  • SILVA, J. A. M. et al Educação interprofissional e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Rev Esc Enferm USP, v. 49, n. esp. 2, p. 16-24, 2015.

Nota

  • 1
    M. T. P. de Oliveira e I. R. Brandão: concepção da obra, aquisição, análise e interpretação de dados; elaboração do trabalho e revisão crítica do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada. M. R. de Farias e M. I. O. Vasconcelos: análise e interpretação de dados; elaboração do trabalho e revisão crítica do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2020
  • Revisado
    25 Jan 2021
  • Aceito
    13 Abr 2021
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br