Vigilância à saúde da doença de Chagas em municípios endêmicos de Minas Gerais: percepção e conhecimento de profissionais da vigilância entomológica

Health surveillance of Chagas disease in endemic municipalities of Minas Gerais state, Brazil: perception and knowledge of Entomological Surveillance professionals

Izabella Cristina Alves Souza Fernanda Cristina Santos Rodrigues Janice Maria Borba Souza Alexandra Paiva Araújo Vieira Lileia Gonçalves Diotaiuti Raquel Aparecida Ferreira Sobre os autores

Resumo

Objetivo

Traçar o perfil sociodemográfico dos agentes de combate a endemias (ACEs) dos municípios que compõem a microrregional de saúde de Itaúna, Minas Gerais; e apreender a percepção dos profissionais da vigilância entomológica sobre a doença de Chagas e serviços de saúde.

Metodologia

Aplicou-se um questionário semiestruturado aos ACEs e foi realizado um grupo focal com os coordenadores de endemias e digitadores.

Resultados

Dentre os ACEs, a maioria era do sexo feminino, entre 21 e 40 anos, com ensino médio, possuindo contrato de trabalho temporário há menos de 5 anos. Foi possível apreender: as más condições de trabalho dos ACEs, destacando-se a alta rotatividade e defasagem salarial; ausência de ações de promoção à saúde relacionadas à doença de Chagas; desarticulação entre a Atenção Primária à Saúde (APS) e Vigilância à Saúde (VS); e críticas às ações de controle da doença pós-processo de descentralização da saúde.

Conclusões

Há urgência na concretização da legislação inerente à natureza trabalhista e às condições de trabalho dos ACEs, bem como ao planejamento conjunto das ações de APS e VS, garantindo a atenção integral por meio de ações de promoção à saúde voltadas à população, focando especialmente a doença de Chagas, consolidando o SUS.

Palavras-Chave:
Agentes de combate a endemias; Epidemiologia; Triatominea

Abstract

Objective

To trace the sociodemographic profile of endemic disease combat agents (ACEs) in the municipalities that make up the health microregion of Itaúna, Minas Gerais; and apprehend the perception of entomological surveillance professionals about Chagas disease and health services.

Methodology

A semi-structured questionnaire was applied to the ACEs and a focus group was held with coordinators of endemic diseases and typists.

Results

Among the ACEs, the majority were female, between 21 and 40 years old, with high school education, with a temporary work contract for less than 5 years. It was possible to apprehend: the poor working conditions of the ACEs, highlighting the high turnover and wage gap; absence of health promotion actions related to Chagas disease; disarticulation between Primary Health Care (PHC) and Health Surveillance (HS); and criticism of disease control actions after the health decentralization process.

Conclusions

There is an urgent need to implement the legislation inherent to the labor nature and working conditions of the ACEs, as well as the joint planning of PHC and SV actions, guaranteeing comprehensive care through health promotion actions aimed at the population, focusing especially on Chagas disease, consolidating the SUS.

Keywords:
Endemic disease combat agents; Epidemiology; Triatominea

Introdução

A doença de Chagas ainda é um importante problema de saúde pública em 21 países da América Latina (WHO, 2021WORLD HEALTH ORGANIZATION. Doença de Chagas. 2021. Disponível em: http://www.who.int/es/news-room/fact-sheets/detail/chagasdisease(american-trypanosomiasis). Acesso em: 17 jan. 2021.
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). No ano de 2010, foi estimado que mais de 70 milhões de pessoas residentes nesses países estavam expostas ao risco de contrair a infecção chagásica (DIAS et al., 2016) e que, no Brasil, em torno de um milhão de pessoas estava infectada (DIAS et al., 2016) pelo Trypanosoma cruzi Chagas 1909, agente etiológico da doença.

A doença de Chagas é transmitida ao homem e a outros mamíferos, principalmente, pelos insetos da subfamília Triatominae (Hemiptera: Reduviidae) (WHO, 2021). Outrora no Brasil, a doença era considerada uma endemia restrita ao meio rural. No entanto, há alguns anos, em decorrência da intensidade dos movimentos migratórios internos ligados à dinâmica econômica, a doença vem se configurando em verdadeira endemia urbano-rural (VINHAES; DIAS, 2000VINHAES, M. C., DIAS, J. C. P. Doença de Chagas no Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 16, supl. 2, 2000. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2000000800002.
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). Além disso, a partir de 2005, foi instalado no Brasil o cenário epidemiológico relacionado à transmissão oral do parasito (BRASIL/MS, 2021), sendo a região Norte, historicamente, a responsável pela maior proporção de casos do país. Adicionalmente, na região amazônica passaram a ser relatados casos de transmissão vetorial extradomiciliar, devido à exposição acidental do homem ao ciclo silvestre do agente etiológico (BRASIL/MS, 2021BRASIL. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Doença de Chagas/Dia mundial. Abril 2021. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/abril/14/boletim_especial_chagas_14abr21_b.pdf Acesso em: 16 nov. 2021.
https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf...
).

Dentre os estados brasileiros, Minas Gerais (MG) é o de maior prevalência da doença de Chagas (VILLELA et al., 2007), sendo que a região centro-oeste do estado, local em que os municípios do presente estudo estão inseridos, é uma das mais endêmicas para a doença em MG (CAMARGOCAMARGO, M. E.; SILVA, G. R.; CASRILHO, E. A.; SILVEIRA, A. C. Inquérito sorológico da prevalência de infecção chagásica no Brasil, 1975/1980. Rev. Inst. Med. Trop. São Paulo, v. 26, p. 192-204, 1984.et al., 1984).

No Brasil, até o ano de 1999, os programas de controle de vetores tinham um caráter vertical, sendo executados diretamente por órgãos ligados ao Ministério da Saúde – inicialmente pela Superintendência de Campanhas em Saúde (SUCAM) –, e posteriormente pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Contudo, com o processo de descentralização das ações de saúde (BRASIL, 1999BRASIL. Portaria nº 1.399, de 15 de dezembro de 1999. Regulamenta a NOB SUS 01/96 no que se refere às competências da União, estados, municípios e Distrito Federal na área de epidemiologia e controle de doenças, define a sistemática de financiamento e dá outras providências. Diário oficial da União. 16 de dez 1999. http://www.funasa.gov.br/site/wp-content/files_mf/Pm_1399_1999.pdf. Acesso em: 08 dez. 2020.), houve a transferência dos programas e das responsabilidades (operacionalização, planejamento e execução das atividades de saúde) para os estados e municípios. Os programas de controle de endemias de MG foram municipalizados a partir do ano 2000, sendo conduzidos pelas prefeituras sob a coordenação das Gerências Regionais de Saúde (GRS) e, atualmente, também pelas Superintendências Regionais de Saúde (SRS). Essas gerências e superintendências pertencem à Secretaria Estadual de Saúde (SES), estando sediadas em municípios de maior importância política ou econômica. Hoje, em MG, há nove GRS e 19 SRS (SES-MG, 2020), competindo a elas as tarefas de normatização e articulação das ações regionais de saúde junto aos municípios, bem como a intermediação das necessárias pactuações orçamentárias.

O controle da doença de Chagas, como objeto da vigilância epidemiológica (VE), tem suas ações voltadas ao vetor domiciliado por meio da Vigilância à Saúde (VS), à transmissão transfusional, aos casos agudos e congênitos, à evolução e vigilância dos casos crônicos (DIAS et al., 2016, BRASIL 2020)BRASIL. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico da Secretaria de VS da Doença de Chagas Aguda e distribuição espacial dos triatomíneos de importância epidemiológica, Brasil 2012 a 2016. Brasília. 50, jan. 2019b.. Por sua vez, a VE monitora a presença dos triatomíneos por meio da vigilância ativa, que consiste na pesquisa e eliminação de triatomíneos nas unidades domiciliares das localidades, de forma programada e realizada por equipe municipal/estadual, e da vigilância com participação popular, que consiste na vigilância do domicílio pelo morador e notificação do encontro e encaminhamento de insetos suspeitos de serem vetores da doença (DIAS et al., 2016; BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à Saúde. Nota Técnica 36/2012 - Orientações sobre VS e a utilização de inseticida de ação residual no controle de triatomíneos - vetores da doença de Chagas, 2012. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/26/NT-36.2012%20-%20Orienta%C3%A7%C3%B5es%20sobre%20vigil%C3%A2ncia%20entomol%C3%B3gica%20e%20a%20utiliza%C3%A7%C3%A3o%20de%20inseticida%20de%20a%C3%A7%C3%A3o%20residual%20no%20controle%20de%20triatom%C3%ADneos.pdf. Acesso em: 12 jan. 2021.
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) aos Postos de Informação de Triatomíneos (PITs) (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à Saúde. Nota Técnica 36/2012 - Orientações sobre VS e a utilização de inseticida de ação residual no controle de triatomíneos - vetores da doença de Chagas, 2012. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/26/NT-36.2012%20-%20Orienta%C3%A7%C3%B5es%20sobre%20vigil%C3%A2ncia%20entomol%C3%B3gica%20e%20a%20utiliza%C3%A7%C3%A3o%20de%20inseticida%20de%20a%C3%A7%C3%A3o%20residual%20no%20controle%20de%20triatom%C3%ADneos.pdf. Acesso em: 12 jan. 2021.
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;, 2019) existentes e distribuídos na zona urbana e rural dos municípios. Atualmente, considera-se que toda a área endêmica para a doença de Chagas no Brasil esteja na fase de VE (DIAS et al., 2016).

Dentre os profissionais da VE destacam-se os Agentes de Combate a Endemias (ACEs), pertencentes às equipes municipais/estaduais de saúde e responsáveis pelas visitas às unidades domiciliares (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Parâmetros ACE municípios. [internet] [Brasília]; 2018. Disponível em:https://antigo.saude.gov.br/noticias/722-svs-noticias/42279-parametros-ace-municipios#:~:text=%C3%89%20o%20recurso%20financeiro%20que,combate%20%C3%A0s%20endemias%20(ACE). Acesso em 11 fev. 2021.
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). Durante as visitas, os ACEs responsáveis pelo controle da endemia realizam a busca ativa de triatomíneos e a borrifação com inseticidas das unidades domiciliares positivas para triatomíneos (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à Saúde. Nota Técnica 36/2012 - Orientações sobre VS e a utilização de inseticida de ação residual no controle de triatomíneos - vetores da doença de Chagas, 2012. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/26/NT-36.2012%20-%20Orienta%C3%A7%C3%B5es%20sobre%20vigil%C3%A2ncia%20entomol%C3%B3gica%20e%20a%20utiliza%C3%A7%C3%A3o%20de%20inseticida%20de%20a%C3%A7%C3%A3o%20residual%20no%20controle%20de%20triatom%C3%ADneos.pdf. Acesso em: 12 jan. 2021.
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; 2019BRASIL. Portaria nº 1378, de 09 de julho de 2013. Regulamenta as responsabilidades e define diretrizes para execução e financiamento das ações de VS pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, relativos ao Sistema Nacional de VS e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Diário oficial da União. 09 de jul 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1378_09_07_2013.html. Acesso em 10 fev. 2021.
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). Também é parte das atribuições desses profissionais a atuação como educadores em saúde, mobilizando e orientando a população sobre ações de controle e prevenção de doenças, bem como, sobre os cuidados e a relação do meio ambiente e vetores (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Parâmetros ACE municípios. [internet] [Brasília]; 2018. Disponível em:https://antigo.saude.gov.br/noticias/722-svs-noticias/42279-parametros-ace-municipios#:~:text=%C3%89%20o%20recurso%20financeiro%20que,combate%20%C3%A0s%20endemias%20(ACE). Acesso em 11 fev. 2021.
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).

Outros profissionais que também se destacam pela relevância nas ações desempenhadas dentro da VE da doença de Chagas são os coordenadores municipais de endemias e os digitadores municipais. Os coordenadores municipais são atores fundamentais dentro da vigilância, sendo os responsáveis pela coordenação, supervisão e orientação das atividades (SOUZA; DIOTAIUTI; DIAS., 2019). Os digitadores, por sua vez, são profissionais estratégicos dentro da vigilância, uma vez que são os responsáveis pela digitalização dos dados dos formulários de campo colhidos e preenchidos pelos ACEs durante as visitas domiciliares. Esses dados são, posteriormente, enviados aos níveis centrais e transformados em informações da VS (SOUZA; DIOTAIUTI; DIAS., 2019).

Apesar da extrema relevância e do protagonismo dos profissionais da VE no controle da doença chagásica, há poucos estudos disponíveis na literatura, particularmente no enquadramento adotado neste trabalho. Diante do exposto, este estudo avaliou o conhecimento e a percepção desses profissionais sobre aspectos relacionados à doença de Chagas e a serviços de saúde na área da Microrregional de Saúde de Itaúna (MSI). Além disso, também foi avaliado o perfil sociodemográfico dos ACEs dos municípios da área.

Metodologia

Este estudo trata de uma pesquisa de abordagem quanti-qualitativa, conduzida entre os meses de maio e novembro de 2016, nos municípios pertencentes à MSI. Abaixo segue uma breve descrição da área de estudo, a contextualização da organização operacional das ações de controle da doença de Chagas na Superintendência Regional de Saúde de Divinópolis (SRSD)ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE. Doenças transmissíveis e não-transmissíveis. 2006 Disponível em: <http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=2878:opas-oms-apoia-o-processo-de-certificacao-da-interrupcao-da-transmissao-da-doenca-de-chagas-por-vetores-secundarios-no-brasil&Itemid=463> Acesso em: 07 abr. 2020.
http://www.paho.org/bra/index.php?option...
, a descrição dos instrumentos de coletas de dados e o percurso metodológico empregado no estudo.

Área de estudo

A MSI é composta pelos municípios Itaúna, Itatiaiuçu, Itaguara e Piracema e pertence à SRSD, que, por sua vez, possui 54 municípios (Figura 1). A SRSD pertence à Secretaria de Estado de Saúde de MG e está situada na região centro-oeste de MG, em um dos locais do estado no qual a transmissão humana do T. cruzi foi frequente no passado (VILLELAVILLELA, M. M.; SOUZA, J. M. B.; MELLO, V. P. et al. VS da doença de Chagas na região centro-oeste de MG, Brasil, entre os anos de 2000 e 2003. Cad. Saúde Pública., v.21, p. 878-886, 2005.et al., 2005). Na SRSD, as ações de controle da doença de Chagas passaram a ser descentralizadas e executadas pelos municípios a partir de 2001 (SOUZA; DIOTAIUTI; DIAS., 2019).

Figura 1
Mapa de MG mostrando as 13 macrorregionais de saúde e sua classificação enquanto áreas de risco para a reinfestação de triatomíneos. Em destaque a macrorregional Centro-Oeste. Abaixo destaque para a SRSD e a MSI. Finalmente, ao lado a MSI e seus quatro municípios.

Contexto operacional de organização das ações de controle da doença de Chagas na MSI

À época do estudo nos municípios da MSI, a equipe de endemias/profissionais da VE municipal era composta por: um coordenador, um digitador, apenas um ACE, que trabalhava com o controle da doença de Chagas, e os demais ACEs, que trabalhavam com o controle da dengue. Os ACEs que trabalhavam nas ações de controle da doença participavam de uma capacitação específica, coletiva, teórica e prática com duração de duas semanas antes de iniciar suas atividades e, posteriormente, de reciclagens convencionais ou por meio de supervisões e reuniões periódicas por parte da coordenação do nível regional. Os coordenadores municipais de endemias também recebiam capacitações específicas sobre a doença. Os agentes que trabalhavam com as ações de controle da dengue apenas esporadicamente participavam das capacitações a respeito da doença de Chagas, e, finalmente, os digitadores eram capacitados individualmente em serviço nos seus municípios. Algumas das caracterizações descritas acima também foram verificadas no estudo de Villela (VILLELA et al., 2007).

Conhecimento dos ACEs sobre alguns aspectos relacionados à doença de Chagas e serviços de saúde relacionados

Conforme já mencionado anteriormente, os ACEs são atores principais dentro da VE da doença de Chagas, desempenhando atividades imprescindíveis à prevenção e ao controle da doença. Além disso, são os profissionais da vigilância que estão em contato direto com a população, e, portanto, precisam passar informações e conceitos corretos e confiáveis à comunidade. Nesse sentido, é de grande importância o entendimento do que esses profissionais conhecem e percebem a respeito da doença, dos vetores e fluxos de serviços.

Tendo em vista a importância de “ouvir” o maior número de profissionais, optamos por empregar questionários enquanto instrumentos de coleta de dados. Primeiramente, foi aplicado um questionário piloto a dez ACEs dos municípios da MSI. Em seguida, esses questionários foram analisados e incorporadas as sugestões de melhoria na linguagem e redação apontadas pelos participantes. Após esse processo de validação do instrumento, foi gerado o questionário final semiestruturado com a linguagem adequada ao público-alvo.

Para aplicação do questionário final, um convite foi encaminhado a todos os ACEs dos quatro municípios, exceto aos participantes do questionário piloto. A aplicação dos questionários ocorreu nas Unidades Básicas de Saúde dos municípios.

O questionário semiestruturado final era composto por 13 questões distribuídas em três eixos estruturais: perfil sociodemográfico do participante, doença de Chagas e serviços de saúde. O primeiro eixo continha seis questões, abordando perfil e aspectos relacionados ao tempo e à experiência do profissional no cargo ocupado; o segundo eixo continha uma questão, analisando a oferta de cursos de capacitação sobre a doença de Chagas. O terceiro eixo continha sete questões, avaliando a percepção dos participantes acerca do conhecimento dos profissionais da vigilância sobre o fluxo de serviços relacionados à doença, ou seja, das ações que devem ser desencadeadas pelas atividades de controle vetorial.

Cada participante avaliava as 13 questões do questionário, e, de acordo com a sua percepção/conhecimento acerca do tema abordado, na afirmativa da questão poderia marcá-las em sim ou não. Após a aplicação dos questionários, eles foram analisados e o percentual de respostas (sim ou não) foi quantificada para cada pergunta. Finalmente, para cada questão foi calculada a média das porcentagens de respostas de todos os participantes.

Percepção de profissionais de saúde acerca da doença de Chagas e serviços de saúde relacionados

Os coordenadores e digitadores municipais, apesar de não desempenharem atribuições que os coloque em contato contínuo com a população e o campo, são primordiais dentro da vigilância. O primeiro por ser o arquiteto e supervisor das ações de vigilância, garantindo a qualidade do trabalho (SOUZA; DIOTAIUTI; DIAS., 2019), e o segundo por ser o processador das informações oriundas das visitas domiciliares dos ACEs e dos PITs, logo, atividade que exige zelo e atenção dos seus executores (SOUZA; DIOTAIUTI; DIAS, 2019SOUZA, J. M. B.; DIOTAIUTI, L. G.; DIAS, J. C. P. Vigilância da doença de Chagas: manual técnico das atividades de controle de triatomíneos. Belo Horizonte, Instituto René Rachou, 2019. https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/34622/2/2019_JaniceBorba_ManualTriato.pdf)). Diante do pequeno número desses profissionais nos municípios e da perspectiva de riqueza de informações provenientes de entrevistas, este foi o instrumento escolhido para apreender a percepção desses profissionais nos aspectos relacionados à doença de Chagas.

Primeiramente, os pesquisadores enviaram um convite por e-mail aos coordenadores de endemias e aos digitadores municipais de todos os municípios, convidando-os a participar de um grupo focal. Esse grupo focal foi realizado no auditório da vigilância epidemiológica do município de Itaúna, município disponível para receber a equipe do projeto.

O roteiro do grupo foi composto por 19 perguntas, apreendendo a percepção dos participantes a respeito do conhecimento dos profissionais da vigilância sobre a infecção chagásica e ações de controle, sobre os fluxos de serviços de saúde relacionados à doença, a atribuições e à rotina de trabalho dos profissionais da VE, particularmente dos ACEs.

Os grupos foram gravados com consentimento dos entrevistados, transcritos e analisados sob a perspectiva de análise de conteúdo de Bardin (BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo. Edições 70, 2016.) em três fases cronológicas. Identificaram-se unidades de análise em cada grupo focal e entre eles, nomeando-se as seguintes categorias: a) doença de Chagas e serviços de saúde; b) política e sociedade; c) agentes de combate a endemias.

O presente estudo foi submetido e aprovado pelo comitê de ética em pesquisa do Instituto René Rachou sob o registro CAAE 53400616.8.0000.5091.

Resultados e Discussão

Perfil sociodemográfico dos ACEs dos municípios da MSI

Participou do preenchimento do questionário final um total de 46 ACEs. Dentre esses, 54,3% eram do sexo feminino; 78,3% possuíam entre 21 e 40 anos; e 80,5% haviam cursado, pelo menos, o ensino médio completo (Tabela 1). Dos que estavam cursando o ensino superior, apenas um o fazia em curso na área da saúde. Esses achados são semelhantes ao encontrado em pesquisas conduzidas com Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) em outros municípios do país (CASTROCASTRO, T. A. et al. Agentes Comunitários de Saúde: perfil sociodemográfico, emprego e satisfação com o trabalho em um município do semiárido baiano. Cad. Saúde Colet., 2017, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 294-301.et al., 2017; REZENDEREZENDE, C. N.; FERREIRA, R. A.; DOS SANTOS, L. P.; NOGUEIRA, M. J. Perfil e condições de trabalho de agentes comunitários de saúde em município mineiro endêmico para doenças negligenciadas transmitidas por vetores. Revista Saúde (Sta. Maria). V. 46, n. 2, 2020.et al., 2020). Apesar das diferenças nas atribuições dessas duas profissões – ACS e ACE –, elas guardam diversas similaridades, sobretudo no que tange à dinâmica do serviço, que é realizado de casa em casa, exigindo disposição e preparo físico dos profissionais, o que pode justificar, por exemplo, o perfil de pessoas jovens nas duas profissões. De acordo com a lei n. 11.350/2006 (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 11.350, de 05 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional nº 51, de 14 de fevereiro de 2006, e dá outras providências. Diário oficial da União. 05 de out 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11350.htm. Acesso 10 fev. 2021.
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), que instituiu e regulamentou o trabalho dos ACEs, não há uma exigência de formação técnica para essa função, sendo exigido o ensino fundamental completo. Além disso, essa lei também regulamentou a seleção pública simplificada desses profissionais, o que se reflete no resultado de 91,3% dos participantes possuírem vínculo de trabalho não efetivo.

Tabela 1
Perfil sociodemográfico dos ACEs dos municípios da MSI, MG

Ainda a respeito do perfil dos participantes, 84,9% afirmaram não acumular outro cargo ou posição e 71,8% mencionaram ocupar o cargo de ACE há menos de cinco anos (Tabela 1). Conforme apontado pelos coordenadores dos ACEs durante a realização dos grupos focais, aparentemente, há uma alta rotatividade de ACEs nos municípios, justificando o fato de a maioria desses profissionais estar há menos de 5 anos no cargo. Ainda segundo os coordenadores, essa rotatividade seria gerada pelas más condições de trabalhos dos ACEs e pelo frágil vínculo de trabalho.

Percepção dos ACEs sobre a doença de Chagas e serviços de saúde relacionados

A maioria dos ACEs de todos os municípios (77%) afirmou que não há cursos de capacitação relacionados à doença de Chagas nos municípios (Tabela 2). Esse aspecto reflete a ausência de atenção despendida à doença nos municípios. Achado semelhante foi encontrado em trabalho anterior realizado na região em escuta aos ACSs (RODRIGUESRODRIGUES, F. C. S. et al., Agentes comunitários de saúde: percepção sobre os serviços de saúde relacionados à doença de Chagas. Cad. Saúde Colet, v. 28 n. 1, p. 130-139, 2020. https://doi.org/10.1590/1414-462X202000280458et al., 2020).

Tabela 2
Percepção dos ACEs dos municípios da MSI, MG sobre aspectos relacionados ao conhecimento dos profissionais da VE da MSI acerca da doença de Chagas e serviços de saúde

Os ACEs dos municípios de Itaguara (83%) e de Piracema (100%) consideravam que o formulário utilizado no trabalho de campo era preenchido corretamente pelos ACEs. Entretanto, os profissionais de Itatiaiuçu e Itaúna não apresentavam a mesma percepção (Tabela 2). Acredita-se que a provável ineficiência no preenchimento dos dados do formulário apontada por parte dos participantes pode estar relacionada ao fato de os profissionais considerarem o preenchimento dos instrumentos de coleta de dados uma atividade meramente burocrática e de importância secundária, conforme já discutido na literatura (LAGUARDIALAGUARDIA, J. et al. Information system for notifiable diseases (SINAN): challenges in developing a national health information system. Epidemiol. Serv. Saúde, v. 13, n. 3, p. 135-146, 2004.et al., 2004). Uma alternativa a essa hipótese é que a deficiência apontada seja consequência da ausência de capacitações voltadas aos profissionais, conforme já abordado anteriormente.

Em relação às ações de prevenção voltadas para a população exposta ao risco de contrair a infecção, 79% dos ACEs dos municípios afirmaram a existência de tais ações nos municípios (Tabela 2). Esse achado contradiz, em certa medida, a informação fornecida pelos próprios participantes sobre a escassez de cursos de capacitação relacionados à doença.

A maioria dos ACEs de Itaúna, Itaguara e todos de Piracema afirmaram dominar o fluxo de serviços relacionado à doença de Chagas, ao contrário dos ACEs de Itatiaiuçu (Tabela 2). Nesse contexto, vale ressaltar que, mesmo que a maioria dos ACEs participantes desse estudo trabalhe no controle da dengue e não da doença chagásica, o conhecimento sobre os fluxos de serviços de todas as endemias deveria ser do domínio de todos os agentes.

A maioria dos ACEs de Itaguara, Itatiaiuçu e Piracema percebia que havia um conhecimento dos profissionais de saúde a respeito das medidas a serem tomadas quando um triatomíneo (nome popular na região: barbeiro) era encontrado (Tabela 2). Esse conhecimento é imprescindível, já que segundo o Ministério da Saúde, quando os ACEs encontram barbeiros colonizando as unidades domiciliares, a borrifação das casas com inseticidas deve ser realizada (BRASIL/MS, 2012).

A maioria dos ACEs de Itaguara e Itaúna afirmou conhecer as medidas a serem tomadas em relação às outras instituições de saúde quando um barbeiro (triatomíneo) era identificado, o contrário da maioria dos ACEs de Itatiaiuçu e Piracema (Tabela 2). Ainda sobre o vetor, aproximadamente 87% dos ACEs dos municípios afirmaram saber a qual instituição recorrer quando não conseguiam realizar a identificação taxonômica do inseto (Tabela 2). O conhecimnto a esse respeito é extremamente importante, uma vez que as espécies de triatomíneos possuem diferentes comportamentos e capacidade de domiciliação, logo a identificação taxonômica correta do vetor é fundamental para definição da intervenção mais adequada (GURGEL-GONÇALVESGURGEL-GONÇALVES, R. et al., Geographic Distribution of Chagas Disease Vectors in Brazil Based on Ecological Niche Modeling. J of Trop Med., p. 1-15, 2012.et al., 2012).

Finalmente, em torno de 68% dos ACEs dos municípios consideravam que os PITs funcionam adequadamente nos municípios (Tabela 2). De fato, em estudo anterior realizado na MSI, profissionais da APS relataram que os PITs existem e funcionam na região, sendo necessário apenas que essa terminologia seja alterada para melhorar a compreensão dos usuários e até mesmo dos profissionais de saúde (RODRIGUES et al., 2020). Nesse trabalho, os autores discutem que os participantes mencionaram que o termo Triatomíneo poderia ser substituído pelo nome popular do inseto conhecido pela população em determinada localidade, isto é: barbeiro, bicudo etc.

A não uniformidade nas respostas dos participantes, variando em função dos municípios, pode ser devida à heterogeneidade na formação teórica e qualificação dos profissionais, sobretudo, num cenário em que as capacitações foram apontadas como inexistentes. Além disso, apesar de a maioria dos ACEs estar há menos de 5 anos no trabalho, há uma importante variação nesse tempo, indo de menos de 2 anos a 15 anos de trabalho (Tabela 1), fato que pode incidir diretamente no conhecimento e, talvez, na percepção dos participantes. Somada a esses fatores, a doença de Chagas não era o agravo de maior demanda entre a equipe participante.

Percepção dos coordenadores de endemias e digitadores sobre o conhecimento dos profissionais da VE acerca da doença de Chagas e serviços de saúde relacionados

O grupo focal contou com a presença de sete participantes, sendo quatro coordenadores de endemias e três digitadores.

Alguns participantes apontaram que o processo de descentralização da saúde trouxe modificações em relação à forma e à organização do trabalho das equipes de controle da infecção chagásica nos municípios. Essas apreensões podem ser observadas nos trechos abaixo, nos quais os participantes comparam a situação do Programa de Controle da Doença de Chagas (PCDCh) antes e depois do processo de descentralização das ações:

Tinha uma metodologia diferente também... E também, eles eram focados pra isso. Eles tinha uma equipe grande que vinha no município, não vinha um agente, vinha a equipe, fazia a visita a área urbana e a área rural. Até onde eu sei era assim… (participante 2)

[...] Eu posso dizer que acho que era mais incisiva essa SUCAM. Pelo princípio do que eu vejo, como tava falando, né? Que eu já prestei vários... Eu acho que o trabalho ele era, né?... Ele era mais realizado. (participante 4)

A diminuição das atividades e ações de controle da doença de Chagas e a redução drástica no número de profissionais nas equipes de trabalho, provavelmente, geraram nos profissionais ouvidos uma sensação de que hoje as ações de controle dessa endemia não vêm sendo priorizadas. A diminuição de investimentos nas ações de controle, possivelmente, deve-se ao baixo destaque da doença no novo cenário epidemiológico, uma vez que, atualmente, no Brasil, as notificações de novos casos da doença chagásica aguda são baixas (SINAN, 2021). No entanto, é importante destacar que o ACE possui um importante papel diante da nova portaria do MS, que orienta sobre a notificação dos casos crônicos da doença de Chagas (BRASIL, 2020BRASIL. Portaria nº 264, de 17 de fevereiro de 2020. Altera a Portaria de Consolidação nº 4/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir a doença de Chagas crônica, na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-264-de-17-de-fevereiro-de-2020-244043656 Acesso em: 02 dez.2021.
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), auxiliando na detecção e vigilância desses casos em seu território.

A situação descrita acima somada a outras questões, como falta de reconhecimento e inserção nas políticas de saúde pública, falta de voz da população acometida ou sob o risco, e até mesmo as estimativas conservadoras do país em relação ao número de afetados na fase crônica, resultaram na pouca importância atribuída às ações de controle da doença de Chagas. Além disso, é importante destacar que a infecção chagásica é uma das doenças mais negligenciadas em todo o mundo (WHO, 2021). Nesse sentido, alguns participantes destacaram em suas falas a negligência à doença pelo sistema de saúde e pela sociedade, conforme se observa abaixo:

Se ele (governo) pode economizar na doença de Chagas, ele vai. [...] Se ele pode economizar no programa de Chagas, ele vai economizar no programa de Chagas... (participante 4) (grifo nosso).

Eu acho que é um pouco negligenciada e... acho que não tem muito interesse nisso aí não. Interesse eu falo assim, é... não há muitos casos na nossa região então ela passa meia despercebida, e não tem um fundamento aí nessa questão de aprender mais, de saber valorizar. Eu acho. (Participante 1).

Além do baixo número de notificações da doença (SINAN, 2021) mencionado anteriormente, a doença de Chagas tem curso silencioso de evolução crônica (DIASDIAS, J. C. et al. 2 nd Brazilian Consensus on Chagas Disease, 2015. Rev Soc Bras Med Trop., v. 49, supl. 2, p. 3-60, 2016. Doi: 10.1590/0037-8682-0505-2016.et al., 2016; SOUZA; DIOTAIUTI; DIAS., 2019), o que não chama muito a atenção da população, do poder público e dos próprios profissionais de saúde. Outro fator que, provavelmente, contribuiu para o “esquecimento” da doença relatada pelos participantes pode ser a interpretação equivocada e veiculada pelos meios de comunicação de que a doença de Chagas teria sido erradicada (RAMOS; CARVALHO, 2001RAMOS JR, N. A.; CARVALHO, D. M. Os diferentes significados da certificação conferida ao Brasil como estando livre da doença de Chagas. Cad. Saúde Pública. 2001 Dez; 17(6): 1403-1412. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000600011
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), quando, na verdade, tratava-se do reconhecimento oficial de que a transmissão por Triatoma infestans (KLUG, 1834) havia sido interrompida (OPAS/WHO, 2006). Em julho de 2006, o Brasil foi declarado livre da transmissão da doença de Chagas por essa espécie, seu principal vetor (OPAS, 2006). A compreensão equivocada dessa conquista contribuiu para que diversos municípios acreditassem que não precisariam mais investir em medidas de prevenção e controle da doença, influenciando, também, na má informação da população e de muitos profissionais de saúde. No entanto, cabe destacar que o Brasil continua endêmico para cerca de 65 espécies de triatomíneos, sendo que 13 delas possuem importância epidemiológica na transmissão do parasito ao homem (BRASIL 2019b).

Nos municípios havia profissional que desconhecia os protocolos atuais recomendados pelo Ministério da Saúde para diagnóstico da doença de Chagas (BRASIL/MS, 2013) e a respeito dos exames laboratoriais para detecção da doença ofertados tanto na rede pública (do próprio município), quanto na rede privada. Abaixo, segue a fala:

[...] Tanto, no município, também no centro de saúde, lá, o nosso exame de Chagas, pra doença de Chagas, é o modo antigo... é o exame antigo (Machado Guerreiro) ainda. Num tem o... Lá não faz o exame, esse exame atual da doença de Chagas. É o antigo. (participante 4, grifo nosso).

O exame antigo referido na fala do participante é o exame de Machado Guerreiro, que é a reação de fixação de complemento. Esse exame sorológico foi usado por mais de 50 anos, mas, desde 1995, não é mais preconizado pelo Ministério da Saúde (BRASIL/MS, 2013), não sendo mais utilizado pelos laboratórios da rede do Sistema Único de Saúde (SUS). Desta forma, a fala acima demonstra desatualização a esse respeito.

Ações educativas, envolvendo toda a comunidade, são imprescindíveis para o enriquecimento da discussão coletiva e a promoção do conhecimento necessário para que os indivíduos exerçam a sua autonomia no cuidado da própria saúde (MBATNAM’BATNA, A. J. et al. Ações educativas em atenção primária à saúde: uma proposta para estratégias de saúde da família. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 45921-45930, jul. DOI:10.34117/bjdv6n7-279, 2020.et al., 2020). Nesse sentido, a respeito de ações educativas sobre a doença de Chagas envolvendo a população nos municípios, ao contrário dos ACEs, todos os participantes consideraram a inexistência dessas ações nos municípios, como podemos observar no trecho seguinte:

Ah, acho que no meu município no momento pra falar a verdade eles precisam se organizar e fazer... mais promoções de saúde. Porque assim, quando não tem muito caso também, não tem uma necessidade assim. É mais pra conhecer e tocar nesse assunto, pra que quando acontecer as pessoas terem esse alerta, né? (participante 6).

Uma das possíveis explicações para a discrepância entre as respostas das duas categorias profissionais pode ser atribuída ao fato de que, normalmente, dentro da VS são os ACEs que conduzem as ações de educação junto à comunidade, estando estas, inclusive, dentro das suas atribuições, bem como o repasse de informações sobre os riscos de doenças (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Parâmetros ACE municípios. [internet] [Brasília]; 2018. Disponível em:https://antigo.saude.gov.br/noticias/722-svs-noticias/42279-parametros-ace-municipios#:~:text=%C3%89%20o%20recurso%20financeiro%20que,combate%20%C3%A0s%20endemias%20(ACE). Acesso em 11 fev. 2021.
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). Logo, esses profissionais estariam mais familiarizados com essas práticas, ao contrário dos digitadores, por exemplo, e até mesmo dos coordenadores.

Adicionalmente, destaca-se que as ações de VS devem ser coordenadas com as demais ações e serviços desenvolvidos e ofertados no SUS, garantindo a integralidade da atenção à saúde da população (BRASIL, 2013BRASIL. Recomendações sobre o diagnóstico parasitológico, sorológico e molecular para confirmação da doença de Chagas aguda e crônica. Rev. Patol. Trop., v. 42, n. 4, p. 475-8. 2013.). O Decreto nº 8.474, de 22 de junho de 2015, publicado posteriormente, reforça a necessidade de integração das ações dos ACEs à equipe de Atenção Básica em Saúde (BRASIL, 2015BRASIL. Decreto nº 8.474, de 22 de junho de 2015. Regulamenta o disposto no § 1º do art. 9º-C e no § 1º do art. 9º-D da Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006, para dispor sobre as atividades de Agente Comunitário de Saúde e de Agente de Combate às Endemias. Diário oficial da União. 22 de jun 2015. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2015/decreto-8474-22-junho-2015-781039-norma-pe.html. Acesso em:10 fev. 2021.
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), assim como o Art. 4º-A da Lei nº 11.350 de 05/10/2006 (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 11.350, de 05 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional nº 51, de 14 de fevereiro de 2006, e dá outras providências. Diário oficial da União. 05 de out 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11350.htm. Acesso 10 fev. 2021.
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), e alterações, estabelece que o ACS e o ACE deverão realizar atividades de mobilização da população de forma integrada (SILVEIRA; DIAS, 2011SILVEIRA, A. C.; DIAS, J. C. P. O controle da transmissão vetorial. Rev Soc Bras Med Trop., v. 44, supl. 2, p. 52-63, 2011.). No entanto, aparentemente, a integração entre APS e a vigilância epidemiológica nos municípios é praticamente inexistente, como relatado no trecho a seguir:

[...] No meu município é assim, interação é pouca... Perto, mas a... é como se o tratamento epidemiológico lá fosse isolado da saúde. Porque, sinceramente, não tem apoio nenhum, nenhum, nenhum... (participante 1).

A integração entre as ações e atividades desses componentes da saúde, particularmente no âmbito educacional e de promoção à saúde, é imprescindível, tornando efetivo o controle dos vetores e a atenção aos afetados pela doença de Chagas, e ainda facilitando o diagnóstico e tratamento precoces de novos casos. Em 2007 um estudo realizado em alguns municípios mineiros (VILLELAVILLELA, M. M. et al., Vigilância epidemiológica da doença de Chagas em programa descentralizado: avaliação de conhecimentos e práticas de agentes municipais em região endêmica de MG, Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 23, n. 10, p. 2428-2438, 2007.et al., 2007) ressaltou que o Programa de Saúde da Família (PSF) desenvolvia importantes ações educativas relacionadas à doença de Chagas, mostrando-se um importante aliado nas atividades de controle dessa doença. De fato, a APS configura-se enquanto um local privilegiado e estratégico para promoção da saúde e prevenção das doenças, seja no território microárea (área de responsabilidade do agente comunitário de saúde) ou no território área de abrangência (área de responsabilidade de uma unidade de atenção primária à saúde), garantindo a atenção integral, melhorando e proporcionando mudanças positivas no cuidado e no processo saúde e doença da população. Logo, o fortalecimento da integração entre as ações desenvolvidas na APS e VS deve ser priorizado nos municípios do presente estudo.

Na MSI há vários PIT’s instalados em regiões estratégicas dos municípios, conforme evidenciado nas falas abaixo:

Sete PIT’s. Um fica na zoonose, e seis estão espalhados nas unidades de saúde. E tem um que é colaborador. Nessa localidade não existe... Nessa região não tem postos de saúde, ai tem o colaborador, desde quando foi implantado o PIT. (participante 3)

Lá tem, por exemplo, são nove na zona rural, nas unidades de saúde. (participante 5).

Nos municípios, a visita dos ACEs aos PITs vem ocorrendo mensalmente, de acordo com as orientações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de VS. Guia de VS. 4 ed. Volume único. Brasília: Ministério da Saúde; 2019 Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_vigilancia_saude_4ed.pdf Acesso em: 20 nov. 2021.
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). Ainda segundo os participantes, a população é bem-informada sobre o funcionamento e a localidade desses postos, como pode ser observado na fala abaixo:

[...] tem a localidade que cada população é participativa, né? [...] tem localidade no meu município que o pessoal sai da zona rural e leva pro PIT da cidade. (participante 6).

Os achados relacionados ao número e à localização dos PITs, a visita dos ACEs aos postos e o conhecimento dos PITs pela população são extremamente relevantes, uma vez que hoje a participação popular no controle vetorial dos triatomíneos é essencial para manter a população atenta e ativa na vigilância dos triatomíneos e no cuidado com o próprio domicílio (DIAS, 2009DIAS, J. C. P. Elimination of Chagas disease transmission: perspectives. Mem. Inst. Oswaldo Cruz, v. 104, supl. 1, p. 41-45. 2009.; ABAD-FRANCHABAD-FRANCH, F. et al. Community Participation in Chagas Disease Vector Surveillance: Systematic Review. PLoS Negl Trop Dis., v. 5, n. 6, p. e1207. https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0001207, 2011.et al., 2011) para o sucesso no controle da doença (DIAS DIAS, J. V. L. et al. 2016. Conhecimentos sobre triatomíneos e sobre a doença de Chagas em localidades com diferentes níveis de infestação vetorial. Ciênc. saúde coletiva, v. 21, n. 7, p. 2293-2304.et al., 2016).

Quanto aos serviços relacionados à doença de Chagas, da mesma forma que os ACEs, os coordenadores e digitadores afirmaram que os profissionais da vigilância dominam todo o fluxo de serviços, que vai da entrada do inseto e passa pela identificação dos vetores até o encaminhamento dos resultados, como relatado a seguir:

[...] se é, por exemplo, um barbeiro que o próprio morador coletou lá na propriedade e trouxe ele pra cá, entrega e a gente identifica. A gente sabe identificar se ele é fitófago se ele é....qualquer tipo de barbeiro. Se ele é fitófago, se ele é hematófago, se ele é predador. Isso aí é básico. Olhando que é predador... que é hematófago, aí a gente encaminha pra... pra... pra regional para que ele faça o exame pra ver se ele tá positivo ou não. E no caso de ta encontrando aqui é o seguinte. Achou um, a gente já vai, já vai fazer uma pesquisa naquela casa, e também a borrifação imediatamente. (Participante 7)

Em estudo recente realizado nos mesmos municípios, os profissionais da APS também afirmaram dominar todo o fluxo de serviços relacionados ao encaminhamento do vetor da doença (RODRIGUES et al., 2020). Isso sugere e reforça que os serviços relacionados ao vetor parecem estar bem estruturados nos municípios e que são amplamente conhecidos pelos profissionais de saúde e até mesmo pela população.

Durante o grupo focal, os coordenadores destacaram algumas das importantes atribuições exercidas pelos ACEs em seus municípios:

[...] Essa orientação (vetores da doença) é feita pelo próprio agente, né? O próprio agente que vai de casa em casa, já faz... Nem é tanto uma orientação da parte lá da epidemiologia não, é do agente mesmo. O agente que passa de casa em casa, que faz essa orientação. (Participante 1, grifo nosso).

Os participantes relataram que os ACEs acumulam diferentes atribuições, uma vez que há somente um agente trabalhando com a doença de Chagas em cada município.

[...] e também um... a maioria dos municípios é um funcionário só que trabalha na área. E ele praticamente trabalha sozinho, é dono do serviço, ele sabe de tudo, ele faz tudo. [...] É igual, por exemplo, vai borrifar uma casa tem que tirar telha por telha... Então assim, ele tem que ser uma pessoa muito de confiança pra tá fazendo. O salário não é muito bom na área. Tudo isso é um fato, né? (Participante 6).

Outras questões muito enfatizadas foram a baixa remuneração do cargo de ACE, ausência de férias, ausência de 13º salário, de insalubridade, alta rotatividade, vínculo de trabalho precário e inexperiência. Um participante destacou escassez de capacitações para esses profissionais. Seguem algumas falas:

E outra coisa, salário gente... Teve mudança no salário dos agentes. O município não paga. E eu não sei... e a gente tá / ... e eu acho que tinha que não só... Tinha que ter um incentivo por trás disso. Porque não é um serviço fácil, é um serviço muito complicado. (participante 1).

Eu to quatro anos lá e não, fez uma capacitação pros agentes. (participante 4).

Apesar de a Lei nº 11.350 de 05/10/2006 (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 11.350, de 05 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional nº 51, de 14 de fevereiro de 2006, e dá outras providências. Diário oficial da União. 05 de out 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11350.htm. Acesso 10 fev. 2021.
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) e alterações (BRASIL, 2013BRASIL. Recomendações sobre o diagnóstico parasitológico, sorológico e molecular para confirmação da doença de Chagas aguda e crônica. Rev. Patol. Trop., v. 42, n. 4, p. 475-8. 2013.; 2015) regulamentarem o exercício das atividades dos ACEs e ACSs, definirem o piso salarial, priorizarem o regime trabalhista CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), estabelecerem critérios de plano de carreira, entre outras coisas, a precarização dos contratos de trabalho apontada pelos participantes – contratos esses que em sua maioria excluem os direitos trabalhistas – ainda é praticada pelos municípios, conforme apontado por 13% dos ACEs (Tabela 1). Essa precarização acaba resultando, principalmente, na rotatividade dos agentes e no comprometimento da qualidade do serviço, fatos observados também nos estudos de Villela (VILLELA et al., 2007).

Considerações finais

A relação construída entre os pesquisadores e os participantes da pesquisa se estabeleceu como uma estratégia para compreender a percepção dos profissionais da VE dos municípios da MSI sobre os serviços de saúde relacionados à doença de Chagas, tema pouco explorado na literatura.

A maior e mais grave lacuna apreendida por meio deste estudo foi a desarticulação entre a APS e VS. Os municípios da MSI desenvolviam ações de vigilância centralizadas, sem a devida capilaridade com as unidades básicas de saúde, impossibilitando a integralidade do cuidado, eixo central das legislações norteadoras das diretrizes de integração entre APS e VS. É provável que esse constitua um dos potenciais grandes desafios do SUS. Nesse mesmo sentido, não surpreende a ausência de ações de promoção à saúde e de ações educativas relacionadas à doença de Chagas nos municípios, visto que grande parte dessas atividades se originam no âmbito da APS. Sendo assim, é urgente que os municípios da MSI realizem o planejamento conjunto das ações de APS e da VS com base nas necessidades do território, com vistas a garantir a atenção integral por meio de ações de promoção, proteção e prevenção de agravos, melhorando e proporcionando mudanças positivas no cuidado e no processo saúde e doença da população – particularmente das endemias negligenciadas como a doença de Chagas.

Por sua vez, o principal ponto positivo apreendido neste estudo foi a existência de um número adequado de PITs instalados em locais estratégicos, aparentemente acessíveis à população e em funcionamento adequado nos municípios.

Finalmente, impressiona a diversidade de problemas e dificuldades de natureza trabalhista, de formação e qualificação técnica do ACE mencionadas pelos participantes. Dessa forma, percebe-se a urgência da concretização da legislação inerente posta até o momento como relevante instrumento de contribuição para a estruturação e o fortalecimento do SUS.

As ideias, impressões e concepções apreendidas neste trabalho são de extrema importância. Contudo, trata-se de um estudo de caráter exploratório, sendo incentivadas futuras abordagens e emprego de outras técnicas de coletas de dados, esclarecendo e avançando nas hipóteses e nos problemas aqui evidenciados e colocados.

Agradecimentos

Às agências e às instituições financiadoras e/ou às apoiadoras do trabalho: Fundação de Amparo à Pesquisa de MG (PPSUS/2013-FAPEMIG), Secretaria Estadual de Saúde de MG (SES/MG), Secretarias Municipais de Saúde de Piracema, Itaguara, Itaúna e Itatiaiuçu. Ao Gustavo Libério de Paula, pela confecção do mapa da área de estudo. À Heloísa da Conceição Alves, pela revisão gramatical do manuscrito. E aos profissionais de saúde dos municípios da microrregional de saúde de Itaúna, pela disponibilidade e atenção.

Referências

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  • BRASIL. Portaria nº 1.399, de 15 de dezembro de 1999. Regulamenta a NOB SUS 01/96 no que se refere às competências da União, estados, municípios e Distrito Federal na área de epidemiologia e controle de doenças, define a sistemática de financiamento e dá outras providências. Diário oficial da União. 16 de dez 1999. http://www.funasa.gov.br/site/wp-content/files_mf/Pm_1399_1999.pdf. Acesso em: 08 dez. 2020.
  • BRASIL. Lei nº 11.350, de 05 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional nº 51, de 14 de fevereiro de 2006, e dá outras providências. Diário oficial da União. 05 de out 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11350.htm. Acesso 10 fev. 2021.
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  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à Saúde. Nota Técnica 36/2012 - Orientações sobre VS e a utilização de inseticida de ação residual no controle de triatomíneos - vetores da doença de Chagas, 2012. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2019/julho/26/NT-36.2012%20-%20Orienta%C3%A7%C3%B5es%20sobre%20vigil%C3%A2ncia%20entomol%C3%B3gica%20e%20a%20utiliza%C3%A7%C3%A3o%20de%20inseticida%20de%20a%C3%A7%C3%A3o%20residual%20no%20controle%20de%20triatom%C3%ADneos.pdf. Acesso em: 12 jan. 2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2021
  • Aceito
    01 Maio 2022
  • Revisado
    21 Fev 2022
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