Resumo

O estudo tem como objetivos: cartografar a trajetória de racismo estrutural e de sofrimento psíquico de uma mulher negra acompanhada por uma enfermaria psiquiátrica em um Hospital Geral; e refletir sobre a relação entre o racismo estrutural e sofrimento psíquico. O racismo é a operacionalização tecnológica, destinada ao exercício do biopoder, que coloca negros em posições inferiores, determinando desvantagens a partir da raça. A violência racista impõe o debate para o campo da saúde mental por sua influência no sofrimento psíquico. Pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, com abordagem cartográfica, por meio da trajetória de uma usuária-cidadã-guia, utilizando-se da entrevista semiestruturada e do diário de campo cartográfico. A analise fez emergir as cenas: ser negra e como a sociedade nos vê; auto ódio; solidão da mulher negra, que demonstram como o sofrimento psíquico é influenciado pelo racismo estrutural que condicionam a existência do negro ao menor valor, à estigmatização e à desumanização. A subjetividade produzida internaliza sentimentos de inferioridade, de solidão, de auto-ódio e de não lugar. Torna-se urgente a problematização da questão racial na produção do cuidado em saúde mental, bem como uma reforma societária que proporcione a existência plena de direitos e de dignidade das pessoas negras.

Palavras-Chave:
Racismo; Saúde mental; População negra

Abstract

The study aims to map the trajectory of structural racism and psychic suffering of a black woman accompanied by a psychiatric nursery in a General Hospital; and to reflect on the relationship between structural racism and psychic suffering. Racism is the technological operationalization, destined to the exercise of biopower, which places black people in inferior positions, determining disadvantages based on race. Racist violence imposes the debate on the field of mental health due to its influence on psychic suffering. Qualitative, descriptive and exploratory research, with a cartographic approach, through the trajectory of a user-citizen-guide, using a semi-structured interview and a cartographic field diary. The analysis made the scenes emerge: being black and how society sees us; self-hate; and loneliness of black women that demonstrate how psychic suffering is influenced by structural racism that condition the existence of black people to the lowest value, stigmatization and dehumanization. The subjectivity produced internalizes feelings of inferiority, loneliness, self-hatred and non-placement. It is urgent to problematize the racial issue in the production of mental health care, as well as a societal reform that provides the full existence of rights and dignity of black people.

Keywords:
Racism; Mental health; Black population

Introdução

O presente estudo tem como objeto a cartografia de uma mulher negra, com foco de análise nas vivências do racismo e sua relação com o sofrimento psíquico. Para tanto, resgata-se a compreensão de racismo como a maneira em que pessoas racializadas são sistematicamente colocadas em posições inferiores financeira, política ou no seu cotidiano. Este processo é manifestado por meio de práticas conscientes ou inconscientes que determinam privilégios ou desvantagens a depender do grupo racial ao qual o indivíduo pertence. Assim, discutir racismo é pensar em operacionalização tecnológica, destinada ao exercício do biopoder, que regula a distribuição de morte e possibilita as funções assassinas do Estado, que produzem condições para a aceitabilidade do fazer morrer (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).

O conceito de raça só pode ser compreendido quando considerado sua historicização a partir dos imaginários das sociedades europeias, desde o século XV. Este processo determinou a construção de sinônimos entre a cor da pele e a subjetivação do corpo negro, colocando-o em um lugar de objetificação redutora da humanidade, contraponto da humanidade encarnada pelo branco. Nessa conjuntura que justifica a racialização, o negro e a raça passaram a ter o mesmo significado para os Estados ocidentais inseridos na lógica neocolonial. A criação da categoria negro vinculada a categoria raça estabelece uma diferença entre o padrão estabelecido pelas sociedades europeias ocidentais e o negro, menos humano, primitivo e incapaz de autogoverno, sobre o qual se projeta toda ordem de concepções, preconceitos e racismos (MBEMBE, 2018MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1, 2018.).

Para este estudo, assumimos a noção estrutural do racismo por compreender sua construção, perpetuação e naturalização como uma engrenagem na transmissão de privilégios e violências. Assim, como resultado de um ordenamento social articulado de modo político, econômico e jurídico, o racismo estrutural é, também, matéria da reflexão interseccional, por sua constituição de classe, de raça e de gênero (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).

A reflexão acerca do racismo no debate da saúde convida a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS) que a estabelece como sendo o estado completo de ¨bem-estar físico, mental e social e não apenas a mera ausência de doença ou enfermidade” (ONU, 2016Organização das NAções Unidas. Saúde mental depende de bem-estar físico e social, diz OMS em dia mundial. Nova York, 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/saude-mental-depende-de-bem-estar-fisico-e-social- diz-oms-em-dia-mundial/. Acesso em: 27 dez 2022.
https://nacoesunidas.org/saude-mental-de... ). Contudo, frente ao exposto, questiona-se: como o corpo negro pode alcançar o proposto quando está inserido em uma sociedade que tem como baliza para a humanidade critérios de raça e a cor? Como é possível manter equilíbrio da saúde física, social e mental em uma lógica que (re)produz, sistematicamente, estruturas de subalternizações e vulnerabilizações?

O pensamento de Neusa Santos Souza (1983SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983; v. 4) contribui para essa reflexão ao defender que tornar-se negro é sofrer violências constantes e cruéis no desenvolvimento do ego, que entra em conflito ao buscar alcançar um ideal branco e, ao mesmo tempo, recusar a si mesmo e a suas caraterísticas enquanto corpo negro. Neste sentido, o racismo torna-se fundamental para o debate no campo da saúde mental, uma vez que, ao destinar esforços para alcançar a ideia de embranquecimento, o negro entra por um caminho doloroso e inútil, pois o objetivo de satisfazer as expectativas brancas não é alcançado, colocando o prazer de ser e estar em um corpo negro como algo secundário (SOUZA, 1983SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983; v. 4).

Atento à pauta, o Ministério da Saúde instituiu, através da Portaria no 992, de 13 de maio de 2009, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), reconhecendo a existência do racismo no Sistema Único de Saúde e destacando o prejuízo que a desigualdade racial traz ao atendimento à população negra (BRASIL/MS, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma Política do SUS. Brasília, 2017.). Contudo, apesar do marco legal implementado, como produto dos esforços do movimento negro brasileiro, a estrutura racista segue operando vulnerabilizações sociais à população negra. As desigualdades raciais são materializadas quando se observam os lugares ocupados no mundo do trabalho, na distribuição de renda, na moradia, na educação, nas representações políticas, nas situações ligadas à violência e na saúde (IBGE, 2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2018 (Estudos e Pesquisas – Informação Demográfica e Socioeconômica, n. 41). Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 27 dez 2022.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza... ; ALVES, 2020ALVES, I. C.; ALMEIDA, N. C. O impacto do racismo na saúde mental e no desenvolvimento de negros (as) no Brasil. R.E.V.I. - Revista de Estudos Vale do Iguaçu, v. 36, n. 2, 2020.; IPEA, 2008Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/4729/1/Comunicado_n4_Desigualdade.pdf. Acesso em: 27 dez 2022.
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea... ).

Estudos evidenciam que as práticas racistas cotidianas, identificadas como fatores estressantes, atravessam a existência daqueles que são acompanhados nos serviços de saúde por apresentarem sofrimentos psíquicos (SMOLEN; ARAÚJO, 2016SMOLEN, J. R.; ARAÚJO, E. M. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Ciênc. saúde colet., v. 22, n. 12, dez 2017. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/csc/v22n12/1413-8123-csc-22-12-4021.pdf. Acesso em: 27 dez 2022.). Soma-se a isso, como produtor de sofrimento, o constante estado de aflição, angústia, ansiedade e distorções do pensamento produzidos pelos processos de subjetivação, pautado pelo menor valor da população negra, pelo preconceito e pela discriminação (DAMASCENO; ZANELLO, 2018DAMASCENO, M. G.; ZANELLO, V. M. L. Saúde mental e racismo contra negros: produção bibliográfica brasileira dos últimos quinze anos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 38, n. 3, jul-set. 2018. Disponível em https://www.scielo.br/j/pcp/a/gPSLSxDcHDhDccZgpk3GNVG/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 27 dez 2022.).

Cabe destacar que o sofrimento psíquico se evidencia, não apenas pela sintomatologia psiquiátrica tradicional, mas, sobretudo, por expressões não clínicas e subjetivas, alinhadas aos sentimentos expressos pelas próprias pessoas (RAFAEL ., 2021RAFAEL, R. M. R.; CORREIA, L. M.; MELO, A. S.; PRATA, J. A.; DEPRET, D. G.; ESPIRITO SANTO, T. B. et al. Sofrimento psíquico na pandemia de COVID-19: prevalência e fatores associados em uma faculdade de enfermagem. Rev Bras Enferm., v. 74, supl. 1, e202100232021, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0023 Acesso em: 27 dez 2022.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0... ). Desta forma, afirmamos que o sofrimento psíquico está no escopo dos sentimentos causados por situações que geram danos à representação, à identidade e à subjetividade, sendo decorrente de preconceitos, discriminações e estereótipos. A organização social neoliberal, pautada no racismo estrutural produz, invariavelmente, violências concretas e simbólicas, produtoras de dolorosas marcas no inconsciente.

A formação social brasileira enraizou opressões e desigualdades pautadas no racismo estrutural que, por consequência, apresentam-se de maneira contumaz nas políticas e serviços de saúde mental. A população negra está presente entre os indicadores de violações de direitos humanos, assim como dentre aquelas que sofre as mais diversas formas de violência operadas pelo Estado neoliberal. Considerando o processo de estigmatização e preconceito, a população negra em sofrimento psíquico encontra-se, portanto, em um lugar agravado pela interrelação de vulnerabilizações. Por outro lado, estudos evidenciam a ausência de produções teóricas que contribuam para o pensamento interseccional da saúde mental com a questão racial (PASSOS, 2017PASSOS, R. G.; MOREIRA, T. W. F. Reforma psiquiátrica brasileira e questão racial: contribuições marxianas para a luta antimanicomial. SER Social, Brasília, v. 19, n. 41, p. 336-354, jul-dez 2017.).

A esta altura, a relação entre o racismo estrutural e a saúde mental nos leva a novos questionamentos: pode-se dizer que a pessoa negra, inserida na sociabilidade neoliberal sustentada por estruturas racistas, quando submetida ao poder medicalizante e estigmatizante da trajetória psiquiátrica é impactada de maneira singular? Ou ainda, seria possível concluir a existência da relação entre a sociedade estruturada no racismo e a produção de sofrimento psíquico de pessoas negras?

Na intenção de responder as questões apresentadas, toma-se como objetivos: cartografar a trajetória de racismo estrutural e de sofrimento psíquico de uma mulher negra acompanhada por uma enfermaria psiquiátrica em um Hospital Geral; refletir sobre a relação entre o racismo estrutural e sofrimento psíquico.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, com abordagem cartográfica, por meio da trajetória de uma usuária-cidadã-guia. O desenho dos estudos qualitativos trabalha com um conjunto de fenômenos humanos, abordando significados, crenças, aspirações, valores e atitudes, compreendidos como parte da realidade social na qual a pessoa pensa sobre o que faz e interpreta suas ações a partir da realidade vivida e partilhada entre os pares. Nessa concepção, os conhecimentos sobre os indivíduos só são possíveis com a descrição da experiência humana, da forma como esta é vivida e definida por seus próprios atores (MINAYO, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.). Por sua vez, o estudo descritivo e exploratório é uma investigação de pesquisa empírica, com foco na formulação de questões percebidas na aproximação do pesquisador com um ambiente, o que possibilita o maior detalhamento do fenômeno (GIL, 2019GIL, A. C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 6. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2019.).

Soma a estes, a cartografia, que tem como intenção o mapeamento dos territórios, das desterritorializações, das trajetórias individuais e coletivas e de suas redes vivas. Desta maneira, permite-se a análise sob muitas perspectivas, identificando as situações problemas ou positivas mapeadas, bem como as disputas e as tensões que as operam (MERHY, 2004MERHY, E. E. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde (mimeo). Disponível em https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/2103.pdf. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.nescon.medicina.ufmg.br/bibl... ). Registra-se, nesse trânsito, o visto e o sentido no processo relacional que captura e produz processos de subjetivação, sem operar no binômio dicotômico da interioridade do pesquisador/exterioridade do campo (SLOMP JÚNIOR ., 2020SLOMP JUNIOR, H.; MERHY, E. E.; RODRIGUES, M. R.; SEIXAS, C. T.; BORTOLETTO, M. S. S.; BADUY, R. S.; CRUZ, K. T. Contribuições para uma política de escritura em saúde: o diário cartográfico como ferramenta de pesquisa. Athenea Digital, v. 20, n. 3, p. e2617, 2020. Disponível em: https://atheneadigital.net/article/view/v20-3-slomp. Acesso em: 27 dez 2022.). Parte-se do pressuposto que o pesquisador, imerso no mergulho cartográfico, “in-mundiciza” neste outro mundo, que agora passa também a ser seu (GOMES; MERHY 2014GOMES, M. P. C.; MERHY E. E. Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Coleção Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014.).

Neste sentido, além de preocupar-se em como os sujeitos veem e percebem a realidade, a cartografia também mergulha no campo mediada pela micropolítica dos encontros, no qual os afetos e intensidades de todos os envolvidos ganham visibilidade e dizibilidade a partir da descentralização e do abandono da neutralidade da pesquisadora (PAULON & ROMAGNOLI, 2010). Se não está comportado na cartografia a imparcialidade e a interpretação, autoriza-se, além do registro das ações e falas dos outros, a inclusão como fonte dos registros dos afetos daquele que a escreve, debruçando-se, assim, em uma “multiplicidade de vozes em nós, nossas e do outro-encontro-cartográfico em nós” (SLOMP JÚNIOR et al., 2020).

O cenário escolhido foi uma Enfermaria Psiquiátrica inserida em um Hospital Universitário do Estado do Rio de Janeiro. O espaço oferta, atualmente, 10 leitos. O setor disponibiliza de um atendimento multiprofissional que conta com uma equipe de enfermagem (enfermeiros e técnicos), que atuam 24 horas, bem como psicólogas, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e médicos. Compõem também a equipe residentes de enfermagem, de psicologia, de medicina e profissionais do curso de especialização em psiquiatria.

A porta de entrada dos pacientes, em sua maioria, é pelo encaminhamento do ambulatório de psiquiatria, instalado ao lado da Enfermaria, que acolhe e avalia a demanda dos pacientes encaminhados pela Clínica da Família - regulado pelo SISREG - ou pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do território.

A investigação se deu através da concepção de usuário-cidadão-guia, na qual acompanhamos uma mulher negra internada na instituição durante o seu processo de cuidado, vida e de sofrimento psíquico, deixando entrever seus conflitos e potências no encontro com os trabalhadores, família, território e todos os demais espaços que ela nos permitisse acessar (SLOMP JÚNIOR et al., 2020).

Os critérios definidos para escolha do(a) usuário(a)-guia foram: estar internado na Enfermaria de Psiquiatria; autodeclarar-se pretos ou pardos no quesito raça/cor, de acordo com os critérios de autodeclaração do IBGE. Foram excluídos aqueles que colocaram opções diferentes de preto ou pardo no quesito raça/cor e que não foram internados no setor. Ademais, considerou-se como fundamental para a realização da cartografia a aproximação e o vínculo estabelecidos na relação profissional-usuário durante o processo de cuidado da usuária-cidadã-guia na instituição, bem como a identificação racial e os afetos gerados e expressados em nós através do conhecimento de sua história de vida.

Para a coleta dos dados, utilizou-se o Diário de Campo Cartográfico, ferramenta que, por meio da narrativa reflexiva, permite uma escrita em primeira e terceira pessoa, se alternando e expressando reflexões éticas, sociais e políticas que envolvem o campo pesquisado (POZZOLI, 2017POZZOLI, S. M. L.; CECÍLIO, L. C. O. Sobre o cuidar e o ser cuidado na atenção domiciliar. Saúde em Debate, v. 41, n. 115, p. 1116-1129, 2017. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406354599011. Acesso em: 27 dez 2022.). Logo, interessa ao Diário de Campo Cartográfico a produção de uma complexa intertextualidade produzida a partir do registro do percurso operado pela micropolítica dos encontros entre mundos, empreendendo esforços para a apreensão rizomática de fluxos, espaços, tempos e vozes (DELEUZE; GUATTARI, 2000DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: D&G, 2000.) produzidos em ato e a todo o momento da pesquisa, desde antes do campo até os textos analíticos subsequentes (SLOMP JÚNIOR et al., 2020).

Soma-se ao Diário de Campo Cartográfico a realização de entrevistas semiestruturadas, compostas por perguntas abertas, na qual a entrevistada pode discorrer sobre o tema, sem estar presa ao questionamento formulado, permitindo a abordagem de novas questões pelo interlocutor. A entrevista ocupou-se de disparadores que questionaram as motivações iniciais da trajetória psiquiátrica da usuária, bem como sobre a percepção do racismo estrutural e seus efeitos no sofrimento psíquico.

Os encontros tiveram como ponto de partida a relação estabelecida na enfermaria de psiquiatria, por ser um lugar de melhor acesso para a usuária. Posteriormente, este espaço se expandiu para a circulação no território e no trabalho. Para todos os encontros foi utilizado um gravador de voz. Os áudios foram transcritos e analisados. Nesta etapa, ocorreu a decomposição do texto em partes menores, considerando o tema a ser pesquisado e a forma como foi abordado pela participante. Dessa forma, conseguimos manter a integração entre os dados e o objetivo da pesquisa e, também, fez aparecer o pesquisador como narrador (SANTOS, 2016SANTOS, C. G. Formação pelo trabalho em saúde: narrativas de aprender e ensinar. Niterói, 2016.).

O texto decomposto foi transformado em cenas conforme os tópicos analisadores de acordo com a temática envolvida. Esse momento se fez no movimento de (re)conhecer nosso próprio “fator de a(fe)tivação”, aquilo que ao ler os textos narrativos nos tocou despertando sensibilidade, fazendo sentido de real, de vivido (SANTOS, 2016SANTOS, C. G. Formação pelo trabalho em saúde: narrativas de aprender e ensinar. Niterói, 2016.).

O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa (COEP) da UERJ sob o parecer número 4.518.608. A fim de preservar as identidades dos envolvidos no processo, foram escolhidos nomes africanos para os personagens da cartografia, a saber: seus dois ex-maridos (Azekel e Nilo) e suas três filhas (Jani, Chara e a mais nova, Jamila).

Resultados e Discussão

Fotografia de Aza

Aza é uma mulher negra, de 47 anos, evangélica, moradora de umas das favelas do município do Rio de Janeiro, que trabalhava como auxiliar de serviços gerais. Ela descreveu uma infância de miséria, destacando as necessidades que passou em casa, precisando ir à feira pedir ou pegar o que sobrava para se alimentar. Foi criada pelos seus pais e, por ser a filha mais velha de 6 irmãos, tinha muita responsabilidade. Sua mãe, Núbia, diz que Aza brincava com outras crianças, mas às vezes se isolava nos cantos.

Foi casada duas vezes, sendo Jani e Chara, filhas do primeiro casamento, e Jamila, do segundo. Apesar de morar com Azekel, seu primeiro marido que fazia uso abusivo de drogas, Aza sempre se considerou mãe solo. Era ela quem tinha que trabalhar para sustentar a casa. No segundo casamento refere que algo a alertava que seu marido escondia alguma coisa que nunca a contou. Essa descoberta é definida por Aza como o momento que deu início à sua trajetória na saúde mental.

Aza tem o diagnóstico psiquiátrico de depressão grave com sintomas psicóticos há mais de 8 anos, estando afastada do trabalho quase o mesmo período. Para seu sustento, contava com o dinheiro que recebia do programa bolsa família e do auxílio-doença. Este último se caracteriza como um dos motivos do sofrimento psíquico que Aza enfrenta, pois ela relatou muita dificuldade de se submeter a avaliação médica das perícias, carregando no seu histórico de internações a sintomatologia de escuta alucinatória autodepreciativa e de autoagressão próximo a data das perícias.

Produção: As cenas dos encontros que ficaram gravadas em nós

Apresentamos nesta etapa o resultado e a análise dos encontros e das entrevistas semiestruturadas realizadas com Aza e com a multiplicidade de atores envolvidos na trajetória cartográfica. Somam-se a estes as informações capturadas nos prontuários. O processamento dos dados fez emergir cinco categorias analíticas, a saber: ser negra e como a sociedade nos vê; auto-ódio; solidão da mulher negra; produção de cuidado nas instituições e na vida; e território de exceção. Para este estudo, tendo em vista a necessidade de aprofundamento da análise, o objetivo da pesquisa, a narrativa de Aza e os critérios de submissão, serão apresentadas apenas as três primeiras categorias em formato de cenas.

Cena I - Ser negra e como a sociedade nos vê

Estávamos no ônibus, a caminho da empresa que contratava o trabalho de Aza para conversarmos sobre seu processo de afastamento pelo INSS. Aza estava angustiada, dizia não gostar de andar de ônibus pelo barulho e pela quantidade de pessoas. Nesses momentos, “as vozes falam mais alto”. Aza aceitou minha proposta de fazermos o trajeto conversando. Foi quando, passando por uma das escolas que sua filha Jamila estudou. Em tom de indignação, contou que sua filha fora acusada de roubo, segundo ela, por motivações racistas. Jamila tinha acabado de ganhar um celular novo; outra menina tinha um igual e este, supostamente, tinha sido pego por alguém da sala de aula (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

Nessa ocasião, Jamila teve a sua bolsa revistada e sua mãe foi chamada à escola. Aza precisou levar a nota fiscal do celular e ir à casa da mãe da menina que foi roubada para se desculpar, mesmo já tendo sido comprovado que Jamila não tinha roubado o aparelho. Surpresa, questionei porquê tinha feito isso. Aza respondeu que sentiu necessidade de fazer para que sua filha não fosse maltratada na escola. Desde então ela tem medo de deixar sua filha sair e que outra situação como essa aconteça (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

A cena materializa o racismo estrutural enquanto relação de poder e sustentação de privilégios. Este, em sua(re)produção sistemática, elabora subjetividades que leva ao sofrimento psíquico que, segundo estudos, afeta, inclusive, crianças e adolescentes negros (EMILIANO, 2021EMILIANO, C. D. Desafios das equipes para acolher crianças e adolescentes negros em CAPSij: relato de uma experiência de pesquisa. In: BARROS, S.; BALAN, C.; BATISA, L. E. (Orgs.). Atenção psicossocial a crianças e adolescentes negros no SUS: caderno de textos. São Paulo: EEUSP, 2021).

Afirmamos, portanto, uma dupla influência do racismo na relação que estabelecida entre mãe, filha e a sociedade. Se por um lado, o racismo estrutural produz sofrimentos psíquicos em Jamila, que passou pelo constrangimento em sua instituição de ensino, produz, também, em sua mãe, que se vê provocada a atuar frente ao ocorrido. E sua ação, conduzida pelo impulso protetor de impedir que Jamila passasse por novos episódios, condiciona, invariavelmente, novos sofrimentos, uma vez que, para tanto, se vê impelida a cercear a livre circulação da filha no território.

Em outro relato, quando conversávamos sobre situações de racismo, Aza recordou de quando foi perseguida no mercado pelo segurança. Compartilhamos da semelhança de ser uma pessoa negra na relação com os seguranças de alguns estabelecimentos. Ela disse que tinha vontade de sair correndo e gritar como estava se sentindo. Referiu que fica muito triste por nós sermos alvo desse preconceito, afinal “eles acham que só preto que rouba, que só preto que faz coisas erradas” (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

Ao falar sobre o seu trabalho, contou que compunha a equipe da faxina de uma instituição escolar em dupla com outra mulher negra, destacando a falta de estrutura e as condições desumanas às quais eram submetidas. Contudo, nesse bojo, o que se avoluma é o relato acerca do sentimento de inferioridade, despertado pelos olhares dos alunos. Nesse momento eu pensava sobre como os papéis trabalhistas mais subalternos são destinados majoritariamente a pessoas negras, sobrepondo dois elementos importantes para a reflexão acerca do sofrimento psíquico: a raça e a classe (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

Este relato está alinhado com estudos que evidenciam que, no capitalismo, a divisão racial do trabalho é uma categoria fundamental para a análise do racismo estrutural, uma vez que a raça é um indicador de discriminação e desigualdade na constituição do mercado de trabalho brasileiro. Os determinantes históricos contribuíram para a sedimentação da divisão racial do trabalho como um nocivo marcador para a vida da população negra por suas mais variadas formas de violência, desemprego e inserções precárias (ALVEZ, 2022).

Fomos ao seu trabalho e evidenciaram-se os motivos que mobilizavam o desejo de não retornar ao espaço. Ao chegarmos na instituição, fomos informados de que a pessoa que tinha marcado conosco não tinha chegado ainda. Após aguardarmos por uma hora, a pessoa chegou e nos informou que aquele não era o dia do médico do trabalho, contrariando o que tinha sido comunicado no momento do agendamento. Aza estava ansiosa, balançava as pernas e olhava de um lado para o outro o tempo todo, fizemos juntas um exercício de respiração com óleo essencial de lavanda e ela se acalmou. Remarcamos a visita ao seu trabalho para a próxima semana (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

Na semana seguinte, ao sermos finalmente atendidas, percebi que a pessoa responsável, não se dirigia a ela, direcionando-se apenas a mim. Por que ela falava comigo como se Aza não estivesse ali ou não fosse capaz de compreender as informações? O incômodo ficou ainda mais evidente quando a atendente pediu o meu número de celular para entrar em contato com Aza. Nesse momento, afirmei que ela poderia pegar o meu contato, mas que tudo o que estava sendo comunicado poderia ser falado diretamente à Aza, incluindo o contato posterior por telefone. Por fim, ficamos esperando a nossa vez e vimos várias pessoas passarem na nossa frente, confesso que já estava perdendo a paciência com a forma que estávamos sendo tratadas (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

Segundo Fanon (2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.), no mundo branco, o branco é único honesto, sendo atribuído a toda pessoa não-branca o status de ruim e inferior. Reafirma-se, nessa conjuntura, o lugar de objetificação e de desumanização que instaura uma sociabilidade que, estruturalmente, pré-condiciona circulações e produz subjetividades. Esperam de nós, pessoas negras, uma conduta específica, semelhante às que Aza compartilha conosco: “da negra suja, marginal, desonesta”. O ordenamento estabelecido pela configuração objetiva e subjetiva do trânsito social instaura a não mobilidade dos lugares socialmente esperados. Vemos, portanto, nossa vivência marcada pelos mitos e estereótipos que permeiam o ser negro em uma sociedade branca.

Questionada sobre como se sente quando está em crise, Aza relata que se vê em um não-lugar, como se ela não fosse desse mundo ou ele não a pertencesse. Com muita angústia e olhos apertados, diz que não tem forças para lutar e realizar seus sonhos. E completa: diz que “não sonha mais, sente como se sua vida tivesse acabado e que ela somente espera a morte” (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

Sobre esse aspecto, cabe o resgate do conceito de necropolítica que aponta para a representação do poder do soberano da capacidade que este tem de determinar quem pode viver e quem deve morrer. Contudo, esta concepção não compreende a morte apenas como resultado de conflitos belicosos que resultam na perda da vida. Trata-se, também, de estratégia de negação da vida, reproduzidas cotidianamente de forma violenta, mas também de modo naturalizado, sutil ou velado. A estrutura necropolítica, além da morte objetiva, produz subjetividades que cerceiam a potência da vida em sua magnitude. Morrer é, também, perder a capacidade de planejar, de vislumbrar o amanhã, de sonhar (MBEMBE, 2018MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1, 2018.).

Ao não ser reconhecida por uma sociedade que é pautada por ideais brancos, Aza não acredita ser parte desse mundo. Como uma pessoa negra, diferente do branco - o único considerado humano - a usuária traz em seu relato o sentimento de não pertencimento e ao não encontrar/conceber/vislumbrar nesse mundo uma possibilidade de sonhar e viver “vê sua existência ontológica desfazer-se em um vazio dolorosamente nauseante” (FAUSTINO, 2020FAUSTINO, D. M. Notas sobre a sociogenia, o racismo e o sofrimento psicossocial no pensamento de Frantz Fanon. Reis, Rio Grande, v. 4, n. 2, jul.-dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.furg.br/index.php/reis/article/view/12211. Acesso em: 27 dez 2022., p. 17).

O que se evidencia na narrativa de Aza é a materialidade do racismo estrutural que estabelece uma sociabilidade marcada pela concepção do corpo negro intrinsecamente vinculado ao status de criminoso. A culpa de sua filha no episódio do roubo do celular não foi questionada e a obrigou a apresentar provas de honestidade. No mesmo tom, estão os relatos acerca das perseguições dos seguranças nos mercados, que parecem realizar certa antecipação criminalidade pela simples presença do corpo negro no estabelecimento.

Concretamente, os episódios apresentados bastariam para estabelecer uma relação entre o racismo e o sofrimento psíquico. Contudo, a situação é agravada quando refletimos sobre a subjetividade produzida pela recorrência do fenômeno. Aquele que passa por situações cotidianas de racismo internaliza o lugar de menor valor e, como evidenciado pelo pedido de desculpas à mãe da colega de sala de sua filha, interioriza o autocontrole da suposta responsabilidade e culpabilidade.

Operando do mesmo modo na internalização do sentimento de inferioridade, destacamos, por fim, a vivência no trabalho e no INSS. O tratamento dispendido à Aza enquanto faxineira de uma escola e, posteriormente, na busca por seus direitos, atua na confirmação de sua vivência e compreensão da recepção do corpo negro pelo mundo branco e por sua estrutura racista.

Os olhares de inferioridade, a espera, os equívocos no agendamento da perícia estabelecem, rotineiramente, ora o menor valor, ora a invisibilidade do corpo negro. Reafirmamos, assim, a relação entre o prejuízo a saúde mental, a subjetividade de Aza e a forma sistemática como a discriminação que tem a raça, (mas também, o gênero e a classe) como fundamentos que culminam em desvantagens sociais e sofrimento psíquico. Aza verbaliza as experiências ao trazer o sentimento de “não lugar”. Contudo, este pode, em uma dobra analítica, ser compreendido como um lugar duramente estabelecido para as pessoas negras na sociabilidade racista.

Cena II – Auto-ódio

Em um dos nossos encontros, Aza relata que teria uma festa de família no final de semana, mas disse não sabia se iria. Questionei o porquê e ela respondeu que não tinha roupas e dinheiro para fazer o cabelo, tendo expressado o desejo de cortá-lo ou fazer tranças iguais as que eu estava naquele dia. Aza aprofundou suas reflexões sobre o tema dizendo sentir vergonha de si mesma e da sua cor, que “nada nela ficaria bonito”, completando que “se cortasse o cabelo ficaria feia e não sentiria vontade de sair na rua, mas que se de repente fosse de outra cor isso poderia ser diferente” (Encontro com Aza).

Nesse momento, Aza relatou ouvir vozes, dizendo não saber distinguir se eram masculinas ou femininas, mas que falavam ao mesmo tempo. Contou que quando se olhava no espelho, as ouvia dizer que ela era feia, que não conseguiria sair desse sofrimento e que não sabia fazer nada. Eram frequentes os conteúdos de desvalorização. Quando atravessadas por essas experiências, Aza me questionava se realmente eram vozes ou se era seu pensamento (Trecho do diário de campo cartográfico e entrevista semiestruturada).

Evidencia-se com esta cena um processo identificado por Fanon (2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.) como auto-ódio, no qual o negro, inserido no contexto cultural, social político e econômico do mundo branco, experiencia processos de subjetivação que internalizam a negação do próprio corpo, estabelecendo uma profunda atmosfera de incertezas. Ao perceber-se em confronto ou não adequação ao estabelecido pelo mundo branco, o que se produz no campo da subjetivação é o não reconhecimento estético do próprio corpo. Por consequência, o caminho para produzir modos de existir, ainda que em sofrimento, é a busca frustrada pela aproximação dos critérios estabelecidos pelo padrão da branquitude.

Refletir sobre a branquitude é fundamental para a compreensão acerca, não só da identidade branca, mas também sobre seus lugares de privilégio, de poder e aptidões como algo herdado. A branquitude fortalece o discurso da democracia racial brasileira por meio da discriminação, de discursos e de práticas, atuando ativamente na cristalização de uma estrutura racista (SCHUCMAN, 2018SCHUCMAN, L. V. Branquitude e privilégio. In: SILVA, M. L. et al. (Orgs.). Violência e sociedade: o racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro. São Paulo: Escuta, 2018.).

Segundo Maria Aparecida Bento (2002) a branquitude age de acordo com pactos narcísicos que são:

Deste modo, afirma-se que a branquitude cumpre funções psíquicas mobilizadoras de desejos, afetos e líbidos. Pela estrutura sócio-histórica do processo relacional estabelecido pelo racismo estrutural, que determinou lugares de privilégios e de uma normalidade atuante, mas não nomeada, o branco está sempre presente na vida psíquica do negro como modelo, apoio, objeto ou adversário.

Em outra oportunidade, conversávamos sobre estudos quando Aza me disse que se sente diferente das outras pessoas e que “para nós negros, é tudo mais difícil, pois vemos que a maioria dos brancos conseguem estudar e fazer uma faculdade e que pessoas negras a gente quase não vê” (entrevista semiestruturada).

A narrativa descrita acima aponta, novamente, para o fenômeno da interiorização da inferioridade, produzida por um não reconhecimento de representatividade nos espaços de estudo. Estudos evidenciam que em uma estrutura agenciada pela colonialidade, que determina o eurocentrismo consolidador de um padrão de humanidade que diferencia inferiores de superiores, irracionais de racionais, primitivos de civilizados, tradicionais de modernos (QUIJANO, 2010QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.), é fundamental compreender como a representatividade interfere nas relações de cuidado em saúde (EMILIANO, 2021EMILIANO, C. D. Desafios das equipes para acolher crianças e adolescentes negros em CAPSij: relato de uma experiência de pesquisa. In: BARROS, S.; BALAN, C.; BATISA, L. E. (Orgs.). Atenção psicossocial a crianças e adolescentes negros no SUS: caderno de textos. São Paulo: EEUSP, 2021). A ausência ou a não validação das representatividades negras produz a sedimentação da compreensão e da subjetividade da subordinação e da subalternidade, elementos que estão, indiscutivelmente, vinculados ao sofrimento psíquico.

Ademais, Aza destaca que “o que ela sabe fazer, não é considerado um saber”. Neusa Santos Souza (1983SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983; v. 4) vai nos dizer que no mundo branco, o branco é o único letrado, bem-sucedido, inteligente e sempre exemplo a ser seguido. O negro então, se torna o oposto a tudo isso e, nas palavras de Grada Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.):

O “não lugar” relatado por Aza em outro episódio, a esta altura do estudo já pode ser, na verdade, compreendido com lugar bem estabelecido para o negro na sociabilidade neoliberal, reiterado pelo estabelecimento e introjeção da negação da negritude. O auto-ódio é aqui evidenciado pela recusa da valorização do próprio corpo negro, estabelecido socioculturalmente e, por consequência, internalizado como inadequado. A massificação do padrão estabelecido pela branquitude como critério de beleza e a ausência de referências negras em espaços de sucesso é, neste ponto, a expressão materializada do racismo estrutural que, novamente, relaciona-se com a produção de subjetividades e de sofrimento psíquico.

Cena III - Solidão da mulher negra

Ao contar sua história, Aza definiu com tristeza e raiva a relação com os ex-maridos como um marco no início da sua trajetória de sofrimento psíquico. Como muitas mulheres negras, Aza dizia de uma solidão mesmo quando estava nesses relacionamentos, contando da falta de apoio e da pouca importância que Azekel, o primeiro companheiro, dava à criação das filhas, bem como do sentimento de “ser mãe e pai delas” (entrevista semiestruturada).

O início do relacionamento com o Nilo, pai da sua filha mais nova (Jamila) é descrito como motivado pelo fato de ser uma pessoa que a ajudava muito, tendo assumido cuidados financeiros e emocionais. Entretanto, Aza destaca também que, às vezes, sentava no portão de sua casa e chorava intensamente (entrevista semiestruturada).

O início desta narrativa foi acompanhado pela face de angústia e cerramento dos olhos. Segurei a sua mão, para que ela pudesse se sentir acolhida e continuar. No decorrer de sua fala, foi ficando ainda mais angustiada e chorou. Perguntei se queria que parássemos, pela sua angústia, mas pela minha também. Pensei que não conseguiria acolhê-la, caso continuássemos. Aza quis continuar, então disse que um dia voltando da igreja Deus suscitou em seu coração que deveria se preparar para o que iria ver. Disse que sempre soube que ele escondia algo. Foi quando, ao chegar em casa, viu Nilo na cama com um garoto (Trecho do diário de campo cartográfico; entrevista semiestruturada).

Inicialmente, cabe trazer que, para Nobert Elias (2001ELIAS, N. A Solidão dos moribundos: seguidos de “Envelhecer e morrer”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.), a solidão pode ter vários significados: pode ser por uma desilusão amorosa, por não ter encontrado o parceiro ideal ou por estar com as pessoas sem uma relação afetiva. Lélia Gonzalez (1979), aprofundando o tema no que tange à questão racial e ao gênero, afirma que a solidão afetivo-sexual da mulher negra não é um assunto recente afinal, o racismo e o sexismo são a base do sistema de opressão que teve seu início no período da escravidão e foram conservados após a abolição até os dias de hoje.

Fanon (2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.), por sua vez, destaca que a escolha afetiva de pessoas negras relaciona-se com o racismo e com a experiência colonizador-colonizado, a partir da qual estas têm sua subjetividade, desejo e sexualidade configuradas a partir de processos internalizados de modelos ideológicos de dominação colonial.

Outro aspecto importante, é a comparação entre o lugar da mulher negra e da mulher branca. Mesmo dentro do feminismo, movimento que luta pela equidade de gênero, a mulher negra enfrenta questões diferenciadas as da mulher branca pois:

A solidão não se expressa somente nas relações amorosas, mas também na relação com a maternidade e na responsabilidade familiar. Segundo o IBGE (2010), cerca de 49,9% das mães solo do nosso país, são pretas ou pardas. Uma realidade comum, principalmente na vida de mulheres negras periféricas como Aza, que sozinhas e com dificuldades acabam sendo as únicas responsáveis pelo sustento de sua casa e criação de seus filhos.

Caminhando para o encerramento do artigo, cabe destacar que, mesmo com o caráter estruturante e estrutural do racismo, não tratamos aqui de uma matéria que apresenta impossibilidades de avanços. Apontamos, portanto, para a importância das responsabilizações individuais e institucionais, mas, sobretudo, para as profundas mudanças nas relações sociais, políticas e econômicas o que, invariavelmene, levará às transformações nos cotidianos pessoais e dos dispositivos (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).

Como parte integrante destas relações sociais, ressaltamos o campo da saúde mental e a necessidade imperiosa de retomar o que foi estabelecido pela Carta de Bauru que, em 1987, marcou uma ruptura com os métodos tradicionais da psiquiatria, trazendo para o bojo dos debates as violências perpetradas pelos serviços como materialidade das exercidas pelo Estado, que sustenta mecanismos de exploração e de produção social da loucura. Os serviços de saúde mental são, deste modo, a expressão de uma estrutura presente nos mecanismos de opressão dos ambientes de trabalho, dos cárceres e da discriminação contra negros, contra a população LGBTQIA+, contra indígenas e contra as mulheres (BAURU, 1987BAURU. Manifesto de Bauru. In: II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental: por uma sociedade sem manicômios. Bauru, 1987. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf. Acesso em: 27 dez 2022.
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa... ).

Portanto, é inegociável que o esforço por uma sociedade sem manicômios, proclamado pela luta antimanicomial, não seja, apenas, uma reforma nas instituições de saúde mental, mas, sobretudo, um projeto de transformação societária o que inclui profundas mudanças na estrutura racista fundante da sociabilidade brasileira.

Considerações finais

Ao chegar ao fim da experiência, percebemos que as relações estabelecidas dentro dos muros de um hospital não são suficientes para acessar as conexões existenciais que as pessoas estabelecem em suas vidas. É, portanto, necessário, imundizer-se pelas trajetórias. Para tanto, cabe o estabelecimento de vínculos sólidos que autorizam a circulação nas redes vivas para trazer à cena a diversidade de experiência e a potência das redes vivas estabelecidas para além das instituições.

Compreendemos, portanto, que a produção de cuidado só se dá através do vínculo, da interação com os outros e com os modos de ser e estar no mundo dessas pessoas. Ou seja, se nós, enquanto profissionais de saúde mental, ficarmos somente no lugar de sabedoria inquestionável e no instituído pela clínica tradicional, não conseguiremos acessar as infinitas possibilidades de cuidado que podem surgir do contato com a vida das pessoas e de como estas produzem subjetividades nos usuários.

Vimos ainda que, quando esses sujeitos são mulheres, negras, periféricas e mães solo, como Aza, “tudo é mais difícil”. O sofrimento psíquico que as afeta têm grande influência da forma como são vistas pela sociedade e pelo lugar que nela ocupam. Nesse sentido, a história de Aza aponta que a visão que a sociedade tem da negra é composta por uma manutenção de um lugar de inferioridade e da associação ao que é ruim. Isso se expressa em diversas camadas sociais e também individuais, ao serem interiorizadas na percepção que a pessoa negra tem de si mesma.

Nesta direção, o estudo evidencia que o resultado deste processo é um sentimento de auto-ódio, o qual Aza nos mostra ser, não só uma aversão a tudo que se relaciona com a sua cor e a sua cultura, mas, também, um sentimento de menor valor e de não pertencimento a este mundo.

Aza ainda experimenta um sentimento que é comum a mulher negra, o de solidão, que afeta as relações amorosas e a sua relação com a maternidade. Esse sentimento não é algo recente na história, pois são produto do racismo, do sexismo e do classismo enquanto base do sistema de opressão. As mulheres negras têm, ainda hoje, o seu lugar na sociedade marcado por estereótipos que as destinam o preterimento, relações sem afeto ou humilhações por parte de seus parceiros. Quando comparadas às mulheres brancas, enquanto elas denunciavam aspectos do machismo e a tradição nas relações amorosas, as mulheres negras falavam sobre a solidão e a falta de parceiros fixos, demonstrando assim aspectos do racismo e do sexismo.

Nesse sentido, não é possível restringir seu cuidado a um modelo que não considere os efeitos que esses aspectos têm no seu sofrimento, bem como é contraproducente a construção do plano de cuidados que não são realizados junto aos usuários, com devida a importância às redes vivas instituintes, seus processos históricos e aqueles com quem ela se conecta, para além dos profissionais envolvidos no seu tratamento.

É através do relacionamento com o outro, dos encontros afetuosos e da escuta da trajetória de vida dos usuários que conseguiremos construir um cuidado efetivo no que se destina a auxiliá-los no seu processo de existência-sofrimento.

Referências

Datas de Publicação

Histórico