A implementação de ações intersetoriais na assistência a crianças com síndrome congênita do vírus Zika no estado do Rio de Janeiro

Sandra Aparecida Venâncio de Siqueira Eliane Hollanda Ingrid Karla da Nóbrega Beserra Lenaura Lobato Jeni Vaitsman Sobre os autores

Resumo

Este trabalho analisa as ações e parcerias estabelecidas entre os integrantes das Secretarias Estaduais de Saúde e da Assistência Social do Rio de Janeiro e outras organizações da área da saúde e assistência para atender à emergência sanitária desencadeada pela síndrome congênita do vírus Zika entre os anos de 2015 e 2018. O contexto caracterizava-se por acentuada crise econômica, erosão da capacidade de governança das autoridades políticas no estado, e reduzido conhecimento técnico-científico sobre a epidemia. Além de análise de documentos relativos ao tema, foram feitas 17 entrevistas com gestores e profissionais das duas secretarias. Roteiros semiestruturados focalizaram ações intersetoriais e processos de cooperação e coordenação inter e intraorganizacional. A grade analítica contemplou aspectos dos papéis interpessoais, informacionais e de tomada de decisão dos gestores e técnicos. Os resultados mostram que, apesar da crise política e econômica, os atores das secretarias conseguiram criar um fluxo de atenção aos pacientes. Observou-se que mecanismos informais de cooperação e coordenação foram fundamentais para a criação de estratégias intersetoriais de longo prazo.

Palavras-Chave:
Políticas Públicas; Implementação; Intersetorialidade; Cooperação; Coordenação; Vírus Zika

Introdução

A epidemia de Zika surgiu no país em 2015, em um contexto de baixo conhecimento sobre a doença e grave impacto na vida de muitas mulheres e crianças, especialmente aquelas pertencentes aos grupos socialmente mais vulneráveis. O temor sobre a possibilidade de nascimento de toda uma geração de crianças com sérias alterações neurológicas levou à intensa mobilização de diferentes segmentos sociais e esferas de governo.

Essa situação trouxe imensos desafios à proteção social, como a garantia de diagnóstico e oferta de cuidados de saúde a essas crianças, na esfera da atenção primária e especializada, bem como de outros direitos sociais, inclusive o acesso a transporte para o tratamento e o acesso à renda, tendo em vista que a maioria dessas famílias vive em situação de vulnerabilidade.

A resposta à crise colocada pela epidemia exigia uma governança envolvendo intersetorialmente entes federativos, organizações multilaterais e instituições de pesquisa nacionais e internacionais, o que deu origem à formação de várias redes e ações. Na área da saúde, foi criada a Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas (Renezika), formalizada com a Portaria nº 1.046, de 20 de maio de 2016, para subsidiar o Ministério da Saúde com informações de pesquisas relacionadas ao vírus Zika e doenças correlatas em várias esferas – vigilância, prevenção, controle, mobilização social, atenção à saúde e ao desenvolvimento científico e tecnológico (Brasil, 2016aBRASIL. Ministério da Saúde. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Portaria Interministerial nº 405, de 15 de março de 2016b. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/pri0405_15_03_2016.html. Acesso em: 29 maio 2019.
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).

O governo federal lançou, em dezembro de 2015, o Plano Nacional de Enfrentamento a Microcefalia e suas consequências, que na ocasião era a principal manifestação neurológica para o reconhecimento da síndrome congênita da Zika. Apenas mais tarde, com o acompanhamento das crianças, outras manifestações foram observadas, inclusive a síndrome sem a presença de microcefalia.

É importante destacar que o foco da ação governamental em crianças que apresentavam microcefalia ao nascimento trouxe dificuldades ao planejamento das ações, além de dificultar/excluir o acesso às políticas intersetoriais daquelas crianças que somente mais tarde apresentaram quadros neurológicos decorrentes do Zika (Aragão, 2017ARAGÃO, M. F. V. Nonmicrocephalic infants with congenital Zika syndrome suspected only after neuroimaging evaluation compared with those with microcephaly at birth and postnatally: how large Is the Zika virus “Iceberg”? AJNR Am J Neuroradiol., v. 38, p. 1427-34, 2017.).

A implementação do Plano envolveu 19 órgãos e entidades em três eixos de ação: Combate ao vetor; Desenvolvimento tecnológico, educação e pesquisa; e Cuidado. Este previa diversas ações para o apoio às crianças e suas famílias (Brasil, 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia no Brasil. Brasília, 2015. Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/08/microcefalia-protocolo-de-vigilancia-e-resposta-v1.pdf. Acesso em: 29 maio 2022.
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).

Como decorrência desse plano, em março de 2016, os Ministérios da Saúde (MS) e do Desenvolvimento Social e Combate à fome (MDS) apresentaram o desenho de uma estratégia intersetorial que deu origem à Portaria 405, com o intuito de estabelecer a Estratégia de Ação Rápida para o Fortalecimento da Atenção à Saúde e da Proteção Social de Crianças com Microcefalia (EAR). A Portaria visava orientar o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a trabalharem em conjunto para a localização, diagnóstico e provisão de cuidados de saúde e de assistência social às crianças inseridas nesse contexto. Esta estratégia deveria ser implementada em nível estadual e municipal (Brasil, 2016bBRASIL. Ministério da Saúde. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Instrução Operacional Conjunta nº 2. 31 mar 2016c. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/guest/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/22671119/UCEQlTzKXPyVi6cWuD3q0ksQ. Acesso em: 29 maio 2022.
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,c). O propósito do governo federal era acelerar o diagnóstico do agravo, para orientar as ações de cuidado e assistência, em especial ao Benefício de Prestação Continuada (BPC).11Benefício de transferência de renda do valor de um salário mínimo mensal para pessoas com deficiência (e idosos) com renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo vigente. Para tanto, era necessário localizar e confirmar o diagnóstico dos casos suspeitos, prover a avaliação clínica da criança e emitir laudo médico circunstanciado com as informações necessárias, de modo a possibilitar o planejamento do cuidado e a instrução do processo de concessão do BPC, no caso das famílias dentro dos critérios de elegibilidade previstos em lei.

A estratégia exigia coordenação no planejamento e gestão dos níveis centrais – do governo federal, estados e municípios –, assim como cooperação entre as unidades de atendimento, no nível local, na implementação das ações de assistência social e de saúde.

No âmbito do SUS, a portaria orientou a determinação e localização dos casos suspeitos de microcefalia através de busca ativa – pela Secretaria Estadual de Saúde (SES) – e oferta de transporte e hospedagem da criança e familiar, quando estes residissem fora do domicílio, sob a responsabilidade dos municípios. A estruturação da rede de assistência, bem como a definição dos serviços de referência e dos fluxos de atenção à saúde, ficou sob a responsabilidade dos gestores estaduais, municipais e distritais do SUS. De forma pactuada, esses atores definiam os estabelecimentos de saúde que emitiriam os laudos médicos com diagnóstico para eventual processo de concessão do BPC.

No âmbito do SUAS, a portaria orientou a colaboração com a rede do SUS na busca ativa de crianças suspeitas de microcefalia e suas famílias, a identificação das crianças elegíveis ao BPC, bem como a provisão de serviços e benefícios de proteção social a esses grupos.

Considerando as particularidades elencadas, o objetivo deste trabalho foi analisar como uma estratégia intersetorial, na área da saúde e de assistência social, mobilizou atores, criou mecanismos institucionais e redes para assistir as crianças afetadas no estado do Rio de Janeiro. Com isso, pretendeu-se, na perspectiva das políticas públicas, identificar no processo de implementação destas ações elementos que explicassem, além de possíveis ações bem-sucedidas, dificuldades e aprendizados institucionais. Como se sabe, a comparação entre o que é planejado e o que realmente foi implementado têm reflexos sobre futuras abordagens de problemas sociais (Schofield, 2004SCHOFIELD, J. A model of learned implementation. Simposium on implementing public policy: learning from theory and practice. Public Administration, v. 82, n. 2, p. 235-248, 2004.; Sabatier; Jenkins-Smith, 1999SABATIER, P.; JENKINS-SMITH, H. (eds.). The advocacy coalition framework: An assessment. In SABATIER, P. A. (Ed.). Theories of the Policy Process. Boulder: Westview Press, 1999. p.117-166.).

Metodologia do trabalho

Ações intersetoriais são aquelas implementadas com base na ação conjunta, com foco em determinado grupo-alvo; demandam níveis razoáveis de coordenação para que sejam efetivas. No caso de políticas ou programas com interfaces em diferentes setores, coordenação e cooperação são ainda mais cruciais para o alcance de resultados. O processo de coordenação refere-se às decisões e ações tomadas por um ou mais atores de nível hierárquico semelhante – ministérios, por exemplo –, com o objetivo de reduzir lacunas ou produção de redundâncias na prestação de serviços públicos, o que amplia as interconexões horizontais (articulação horizontal) e permite realizar ajustes nas políticas e programas intersetoriais (Peters, 1998PETERS, G. Managing horizontal government. The politics of coordination. Canadian Centre for Management Development. Research Paper n. 21. January 1998.; Solar; Irwin, 2010SOLAR, O.; IRWIN, A. A Conceptual Framework for Action on the Social Determinants of Health. Discussion Paper 2. Geneva: World Health Organization, 2010.; Rantala; Bortz; Armada, 2014).

A cooperação ou articulação vertical, por sua vez, remete à ação conjunta de um grupo de indivíduos de diferentes esferas governamentais – estados e municípios, por exemplo –, para alcançar um objetivo comum, visando maior eficiência em suas ações e otimização de recursos (Gillinson, 2004GILLINSON, S. Why Cooperate? A Multi-Disciplinary Study of Collective Action. London: Overseas Development Institute, 2004.).

No âmbito da teoria política, essas questões são vistas como um problema de ação coletiva que a política pública deve enfrentar (Olson, 1965OLSON, M. The Logic of Collective Action. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1965.; Elster, 1989ELSTER, J. The Cement of Society. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.; Gillinson, 2004GILLINSON, S. Why Cooperate? A Multi-Disciplinary Study of Collective Action. London: Overseas Development Institute, 2004.), cuja resposta depende de mecanismos de cooperação e de coordenação, sem os quais é improvável que se alcancem resultados sustentáveis (Polski; Östrom, 1999POLSKI, M. M; ÖSTROM, E. An Institutional Framework for Policy Analysis and Design. Workshop in Political Theory and Policy Analysis. Bloomington: Indiana University, 1999. Workshop Working Paper Series n. W 98-27.; Östrom, 2005ÖSTROM, E. Understanding Institutional Diversity. Princeton: Princeton University Press, 2005.; 2009).

O desenho do estudo englobou a análise de documentos técnico-normativos, produzidos pelo MS e SES/RJ; atas de reunião da Comissão Intergestores Bipartite (CIB), que estabelecem os pactos entre os gestores estaduais e municipais na formulação e implementação de políticas de saúde. Foram realizadas 17 entrevistas com gestores envolvidos na coordenação e normatização de ações e profissionais de nível superior responsáveis pelo diagnóstico e atendimento das crianças e seus responsáveis, assim distribuídas:

  • Esfera federal (4): (1) assessor técnico do Ministério da Saúde; (3) profissionais de nível superior do Instituto Fernandes Figueira (atendimento).

  • Esfera Estadual (9): Superintendente da Atenção Especializada da SES (1) (coordenação); Superintendente da Atenção Básica da SES (1) (coordenação); Apoiador Institucional da SES (2) (articulação com municípios e acompanhamento de dados); Instituto Estadual do Cérebro (2) (atendimento); Superintendente da Assistência Social (1) (coordenação); Assessor Técnico da Assistência (1) (membro do Comitê Gestor); Ministério Público Estadual (1) (procurador responsável pelo atendimento às demandas protocoladas sociedade civil e mães).

  • Esfera Municipal (4): Secretário Municipal de Saúde (1); Secretário Municipal de Assistência Social (1); Coordenador Municipal da Proteção Básica da Assistência Social (1); Profissional de Atendimento Direto (1).

A escolha dos entrevistados se deu com base na técnica “bola de neve”, em que os primeiros respondentes indicam pessoas-chave, que foram de suma importância para a consolidação dos dados.

Foram elaborados roteiros distintos para os profissionais que atuavam nos cargos de gestão e para os profissionais responsáveis pelo atendimento às crianças e famílias. A diferenciação dos roteiros foi importante para que os profissionais pudessem delimitar, nas suas falas, os aspectos específicos da sua atuação.22O estudo que ora se apresenta foi financiado e faz parte da pesquisa “Ciências Sociais e Humanidades frente à Epidemia de Zika Vírus no Brasil”, submetida pela Fiocruz/Ensp, aprovada pelo Comitê de Ética, conforme a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil, por meio do CAAE: 67311617.8.0000.5240. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)..

A análise dos dados foi realizada a partir de categorias operacionais, entre as quais: tipos e mecanismos de coordenação; conhecimento das atividades de cada organização; canais de comunicação entre organizações e atores; acompanhamento dos procedimentos e seus níveis; compartilhamento de informações e recursos. Como atividades-fim para a identificação dessas categorias, foram exploradas: definição de serviços de referência e fluxos de acesso; busca ativa por diagnóstico ou tratamento; disponibilidade de transporte; diagnóstico/relatório médico; encaminhamento a diferentes serviços.

Coordenação e cooperação nas ações desenvolvidas pela SES-RJ

Período de emergência

Apesar de a Constituição Federal de 1988 ter definido para os governos estaduais o papel de coordenação e planejamento das políticas no âmbito estadual, a dificuldade de superação histórica de questões políticas trouxe inúmeras dificuldades para a efetivação da descentralização no estado do Rio de Janeiro (ERJ), o que acarretou, ao longo dos anos, acúmulo das funções de gestor do sistema estadual e provedor de serviços. Além disso, a implementação de ações para o combate à epidemia da síndrome congênita do Zika ocorreu em contexto em que o estado enfrentava forte crise política e financeira, ampliando ainda mais os desafios a serem superados.

Mesmo com a existência de tais dificuldades, os gestores das secretarias estaduais de Saúde e de Assistência Social apresentaram a Nota Técnica Conjunta n. 001, de 01 de julho de 2016, estabelecendo as diretrizes para a criação da sala de situação estadual, visando acompanhar os casos notificados e aqueles em seguimento. Coordenada pela Superintendência de Atenção Básica do Estado do Rio de Janeiro, era composta por diversos atores das duas políticas. Para centralizar as informações sobre o acompanhamento dessas crianças em seu território e formular estratégias de ação, cada município devia indicar um responsável, conhecido como ponto focal, de cada uma dessas áreas, o que exigia deste profissional conhecimento da rede e capacidade de articulação com os serviços (Rio de Janeiro, 2016).

Cabia aos pontos focais dos municípios a notificação de casos suspeitos/confirmados e a solicitação de inclusão dessas crianças nos serviços. Os dados coletados eram informados aos gestores estaduais da Saúde e da Assistência, que por sua vez consolidavam os dados da unidade federada e os enviavam ao MS.

O compartilhamento de informações sobre os casos em que se fazia necessária a busca ativa seguia um fluxo coordenado pelas instâncias estaduais. Depois da análise das informações, as mesmas eram repassadas da SES-RJ à Secretaria Estadual de Assistência Social. A partir daí, os dados eram encaminhados às unidades de atenção básica, no âmbito da saúde, e aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), no âmbito da assistência. Com isso, as buscas aos casos de crianças diagnosticadas com SCZ eram realizadas no território.

A partir desses dados, a sala de situação, responsável pelo monitoramento das ações, estabelecia estratégias para realizar o fechamento dos casos e assegurar o acompanhamento das crianças pelas políticas de saúde e assistência. Nesse período, várias reuniões foram realizadas nas secretarias, internamente e/ou em conjunto, para troca de informações e definição de estratégias de apoio aos municípios.

Os casos suspeitos foram encaminhados ao Instituto Estadual do Cérebro (IEC), órgão que ficou responsável pelo diagnóstico das crianças com microcefalia, executado em três etapas: consulta multiprofissional com as crianças e suas famílias; realização de exames complementares e disponibilização dos laudos; orientação sobre dúvidas e quanto os serviços de acompanhamento que deviam ser feitos no município de origem da criança, a quem cabia inserir a mesma na rede e definir fluxos de atenção.

A situação demandava pessoal qualificado e recursos financeiros. É importante lembrar que, à medida em que o trabalho era desenvolvido, novas demandas surgiam: integração com INSS, que operacionalizava o BPC para as crianças identificadas pela assistência social, bem como com a área de educação, para a oferta de creches. Nesse processo, evidenciou-se um conjunto de fatores que influenciaram o processo de cooperação e/ou coordenação no âmbito da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, sistematizados no Quadro 1, a seguir.

Quadro 1
Coordenação e Cooperação Intersetorial no estado do Rio de Janeiro para o combate à SVZ

No caso das instituições de pesquisa, verificaram-se disputas pela primazia da análise do fenômeno da epidemia, o que pode ter também influenciado as iniciativas de cooperação. Nos serviços, o desconhecimento e as controvérsias sobre a doença geraram incertezas e indefinições sobre os procedimentos, em especial sobre o protocolo de atenção à saúde, o que requereu alterações na condução das ações por parte de estados e municípios.

Na coordenação, os principais conflitos evidenciados são de natureza intraorganizacional, principalmente no interior da estrutura de saúde estadual, atribuídos em parte à crise política e financeira vivida pelo Rio de Janeiro. Houve pouca adesão do governo estadual ao problema da epidemia, cabendo aos gestores das respectivas secretarias a função de implementar as medidas necessárias junto aos municípios, num contexto de poucos recursos financeiros e humanos.

Outra dificuldade vivenciada no estado foi a de definir os pontos focais que ficariam responsáveis na assistência e saúde em monitorar o fechamento do diagnóstico e acompanhamento das crianças. A variedade no porte populacional dos municípios, e a consequente concentração de casos nas cidades maiores, sobretudo na região metropolitana, que aglutina boa parte de recursos de saúde, dificultou a definição dos pontos focais em municípios menores, com baixo número de casos e serviços especializados distantes. Esse fator foi agravado com as alterações nos governos municipais em janeiro de 2017. A mudança de gestores levou à destituição dos pontos focais anteriormente nomeados, dificultando a continuidade no processo de captação e acompanhamento das crianças.

Como a literatura utilizada neste trabalho tem demonstrado, a coordenação é desenvolvida por atores dos níveis centrais que atuam dentro de um sistema de decisão integrado e delimitado por regras, normas e procedimentos formais que visam garantir a racionalidade das ações desenhadas. Já os profissionais que executam ações de campo interagem a partir dos seus setores/locais de trabalho, tornando operacional o roteiro determinado pelos níveis centrais. As entrevistas mostraram que, no caso da SES, mecanismos formais como comunicados e memorandos, em geral, eram utilizados apenas para a comunicação com instâncias superiores da secretaria. Prevaleciam os mecanismos informais de contato, como telefone e aplicativos, utilizados para agendar discussões e marcar reuniões.

Apesar dessas dificuldades organizacionais e da ausência de mecanismos intersetoriais para o desenvolvimento do papel de coordenação estadual, as iniciativas individuais dos gestores e profissionais de saúde, por meio da criação de redes interpessoais, foram capazes de gerar cooperação entre os diferentes atores. Essa cooperação “informal” se deu entre organizações públicas, permitindo algum grau de coordenação entre serviços públicos.

Período pós-emergência

A Portaria nº 3.502 do Ministério da Saúde, publicada em 19 de dezembro de 2017, definiu o fim da situação emergencial relacionada à epidemia (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.502/GM/MS, de 19 de dezembro de 2017. Disponível em: http://www.brasilsus.com.br/images/portarias/dezembro2017/dia22/portaria3502.pdf. Acesso em: 29 maio 2022.
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). Naquele momento, a SES precisou adequar seu trabalho à nova realidade: mesmo com o recuo nas taxas de incidência, novos casos SCZ ainda eram identificados e precisavam de acompanhamento. Outros pontos igualmente importantes se relacionavam ao seguimento de crianças com manifestações tardias da síndrome, além daquelas que estavam entrando em idade de frequentar a educação infantil.

As dificuldades vivenciadas pelos municípios durante a epidemia de SCZ e que demandaram apoio dos gestores estaduais para sua superação serviram de base para a elaboração de plano de trabalho que desse continuidade às ações na nova realidade. Em 2018, essas iniciativas foram incorporadas no Plano de execução da estratégia de fortalecimento das ações de cuidado das crianças suspeitas ou confirmadas por SCZ e STORCH33Sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes vírus. (Rio de Janeiro, 2018). Cabe destacar que a elaboração do plano estava em consonância com as proposições presentes na Portaria n. 3.502, de dezembro de 2017, e que se direcionavam a todos os estados brasileiros. No estado do Rio de Janeiro, vários profissionais e instituições inseridos na discussão e atendimento dos casos de SCZ passaram a compor o Comitê Gestor Estadual, com o objetivo de discutir as estratégias, a continuidade das ações e o planejamento pactuado no Plano.

O planejamento do Plano de Execução das Ações Vinculadas ao Zika-STORCH (2018) estruturou as intervenções a partir de nove eixos de atuação: Eixo I –Vigilância Epidemiológica; Eixo II – Promoção e Prevenção; Eixo III – Atenção Básica; Eixo IV – Atenção Especializada; Eixo V – Atenção Hospitalar; Eixo VI – Reabilitação; Eixo VII – Educação em Saúde; Eixo VIII – Intersetorialidade; e Eixo IX – Gestão (Rio de Janeiro, 2018).

A continuidade da discussão e acompanhamento dos casos, mesmo após decretado o final da emergência em saúde pública, reforçaram a necessidade de imprimir legitimidade aos espaços e arranjos institucionais. Alterações metodológicas e de planejamento devem ser consideradas no desenvolvimento de proposições intersetoriais, no plano decisório da agenda pública (Costa; Bronzo, 2012COSTA, B. L. D.; BRONZO, C. Intersetorialidade no enfrentamento da pobreza: o papel da implementação e da gestão. In: FARIA, C. A. P. Implementação de políticas públicas: teoria e prática. Belo Horizonte: Ed PUC Minas, 2012.).

A reorganização das atividades visava a produção de um registro consistente e com qualidade das informações de acompanhamento das crianças suspeitas ou diagnosticadas com a síndrome; a definição e compreensão do papel dos pontos focais; a oferta de transporte às crianças para tratamento fora do município; a definição de um fluxo que facilitasse o compartilhamento dos casos entre atenção básica e atenção primária; a redução do elevado número de crianças com diagnóstico em aberto; e a realização de atividades intersetoriais que assegurassem proteção às crianças. Várias ações e um conjunto de indicadores de monitoramento foram desenhados para assegurar o acompanhamento de sua implementação e posterior avaliação. A despeito das dificuldades vivenciadas pela instância estadual para desempenhar seu papel de coordenação, desenvolveram-se esforços para a manutenção da sala de situação, visando a discussão dos casos; a elaboração de estratégias e ações para a melhoria da atenção à saúde prestada por essas crianças; e a ampliação das parcerias com outras secretarias e instituições de ensino-pesquisa que se dedicavam à temática da SCZ.

No âmbito federal, iniciativas por parte dos técnicos foram tomadas para a compreensão da doença, procurando-se aproximar e articular estudos que permitissem avançar no conhecimento sobre o desenvolvimento da síndrome nas crianças. Foi feito um consórcio para estabelecer uma articulação entre estudos de diferentes coortes. A construção da rede de forma tempestiva possibilitou a cooperação entre diferentes organizações e instituições de pesquisa.

A reorganização dessas atividades por meio do Plano de execução da estratégia de fortalecimento das ações de cuidado das crianças suspeitas ou confirmadas por SCZ e STORCH foi fundamental após um período conturbado no âmbito do Governo Federal. Nesse campo, os impactos foram gerados, sobretudo, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, fator que ocasionou mudanças nas equipes técnicas de vários ministérios envolvidos com a problemática do vírus da zika. Além disso, reforça-se que a descontinuidade não se deu apenas pelo lado federal, pois a decretação do fim da emergência coincidiu com as eleições municipais de 2016. Como dito, com a posse de novos prefeitos em janeiro de 2017 e mudança nas equipes, muitos municípios tiveram que recomeçar do zero, interrompendo processos já em curso.

Os aspectos mencionados e a decretação do fim da emergência significaram a retração de recursos e de atividades, dificultaram a coordenação e interromperam processos de cooperação em curso. No entanto, na medida em que universidades, institutos de pesquisas, sociedades e associações, serviços, de diferentes especialidades haviam se mobilizado, permaneceu o interesse nos estudos sobre a dinâmica da epidemia e suas consequências.

Coordenação e cooperação na implementação de ações intersetoriais

Observa-se que, apesar das dificuldades de recursos humanos e materiais, o processo de cooperação entre a SES e as secretarias municipais de Saúde possibilitou a identificação da demanda e a reavaliação de casos anteriormente descartados. Tal desempenho pode ser atribuído a dois fatores principais: a relação desenvolvida pelos grupos com seu objeto de trabalho e as várias parcerias com instituições de ensino, pesquisa e cuidado.

A cooperação entre atores, em seus diversos aspectos, explica grande parte do acerto das ações de combate à epidemia. Neste aspecto, é possível identificar o estabelecimento de laços de cooperação entre os membros do grupo gestor, e destes com diversos parceiros na área da saúde, justificado nas entrevistas realizadas não apenas por razões técnicas, mas também de defesa da saúde pública.

Embora o desenvolvimento de ações intersetoriais seja uma diretriz muito defendida pelas políticas públicas como necessidade prática, pois sobre uma mesma população dentro de um território incidem problemas que devem ser enfrentados por diferentes setores, nem sempre a integração de políticas, ou pelo menos a articulação entre setores como a Saúde e a Assistência Social, é efetivada. O que da mesma forma ocorreu, no caso estudado, na relação com outras áreas sociais, como Educação e Previdência.

Vários são os fatores que explicam a dificuldade de ações intersetoriais, mas pode-se destacar a tradição centralizada e setorizada da estrutura burocrática brasileira, as formas de transferência de recursos entre os níveis de governo e a baixa tradição de cooperação interorganizacional.

Essa setorização implica também uma condução orçamentária, gerencial, fiscal e organizacional heterogênea para os governos locais. No Brasil, o processo de descentralização veio sendo implementado com uma exacerbação da municipalização, de forma bastante desigual e, num primeiro momento, com uma indefinição de papéis dos níveis federal e estadual (Abrucio; Franzese, s/d).

Além disso, os arranjos institucionais das políticas de saúde e assistência social colocam limites para os estados exercerem a ação intersetorial. Embora as políticas sejam descentralizadas e prevejam responsabilidade compartilhada entre os níveis de governo, os mecanismos de coordenação e cooperação entre as instâncias envolvidas são frágeis, dificultando a integração de redes de serviços, de otimização de recursos e de compartilhamento de financiamento. Na saúde, por exemplo, a gestão é local e o financiamento partilhado entre as três esferas de governo. Na assistência social, a gestão é compartilhada e as ações custeadas pelo município. No caso específico do BPC, a gestão e o financiamento são de responsabilidade federal (Vaitsman; Lobato, 2017VAITSMAN, J.; LOBATO, L. de V. C. Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas com deficiência: barreiras de acesso e lacunas intersetoriais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 11, p. 3527-3536, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320172211.20042017. Acesso em: 29 maio 2022.
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).44Mesmo sendo o BPC um benefício da assistência social, a quem cabe cadastrar e encaminhar possíveis beneficiários, assim como proceder à avaliação social no âmbito do INSS, há restrições a essa avaliação social em relação à perícia médica realizada pelo INSS (Vaitsman; Lobato, 2017).

Identifica-se que as fragilidades na integração dos serviços ocorrem por inúmeros aspectos. Entre eles, a baixa capacidade técnica e financeira no fornecimento de equipamentos e recursos humanos; a dependência de muitos municípios em relação às instâncias estaduais; as disparidades regionais e desigualdades sociais; e a capacidade de gestão e provisão dos serviços (Lobato; Senna, 2015LOBATO, L.; SENNA, M. Health Federalism in Brazil. In: FIERLBECK, K.; PALLEY, H. (orgs). Comparative Health Care Federalism. 1 ed. Surrey: Ashgate, 2015, v.1, p. 179-194.).

Do ponto de vista da implementação, observa-se, no que diz respeito aos conflitos interorganizacionais, que existe razoável autonomia de algumas das entidades e serviços envolvidos no enfrentamento da epidemia. Seja porque são instituições de pesquisa e/ou serviços, com grande capacidade de captar recursos e por isso têm poder e prestígio, seja porque pertencem a distintos níveis de governo. Apesar do alto comprometimento com o enfrentamento da epidemia, as disputas iniciais pela primazia da análise do fenômeno podem ter influenciado, num primeiro momento, as iniciativas de cooperação. A situação foi superada com o posterior estabelecimento de várias parcerias entre esses atores.

Os conflitos intraorganizacionais identificados no interior da estrutura de saúde estadual, atribuídos em parte à crise política e financeira vivida pelo estado do Rio de Janeiro, limitaram a adesão do nível central do governo estadual ao problema da epidemia e ao seu desempenho enquanto coordenação, ficando aos gestores das respectivas secretarias a função de implementar as medidas necessárias junto aos municípios, com poucos recursos financeiros e humanos.

O papel destacado dos profissionais e gestores ocorre diante das dificuldades de coordenação da rede de serviços e da ausência de mecanismos intersetoriais. Muitas das ações implementadas dependeram da iniciativa individual de gestores e profissionais, por meio da criação de redes interpessoais, gerando cooperação. Essa cooperação “informal” se deu entre organizações públicas, permitindo algum grau de coordenação entre serviços.

O debate mais recente sobre o tema da implementação de políticas públicas parece convergir no sentido de entender esse processo não apenas como uma etapa posterior a decisão e delineamento de uma intervenção e anterior à sua avaliação. A clássica visão top-down de implementação foi substituída pela compreensão de que esse é um processo complexo em que formulação e implementação se interpenetram em vários níveis e “camadas decisórias”. Em outras palavras, ajustam-se permanentemente a necessidades técnicas e políticas, bem como aos atores que a põem em prática (Lotta, 2019LOTTA, G. A política pública como ela é: contribuições dos estudos sobre implementação para a análise de políticas públicas. In: LOTTA, G. Teoria e análises sobre implantação de políticas públicas no Brasil. Brasília: Enap, 2019.).

Vários autores55Pressman e Wildavsky (1973), Zahariadis (1999), Walker e Marchau (2003) e Raaphorst (2017). destacam a incerteza como componente típico dos processos de implementação, uma vez que o fenômeno da incerteza atravessa todas as relações sociais. No campo das políticas públicas, sua importância é discutida de diferentes maneiras há várias décadas.

Segundo Raaphorst (2017RAAPHORST, N. Uncertainty in Bureaucracy. Toward a Sociological Understanding of Frontline Decision Making. Ph.D. Thesis. Rotterdam: Erasmus University, 2017.), a literatura aponta três caminhos para a análise do tema: a incerteza como um problema de informação; como um problema de interpretação; ou ainda, como um problema relativo às interações sociais.

Embora o tema possa ser visto por todos esses ângulos, a terceira abordagem do problema da incerteza – e a que mais interessa, neste caso – refere-se à sua presença nas relações sociais. Aqui, o pressuposto é que a incerteza é parte inseparável das relações sociais. A liberdade de ação, ou poder discricionário do gestor, relaciona-se muitas vezes com a imprevisibilidade dos fatos ou o tensionamento que pode cercar algumas situações que precisam ser enfrentadas.

A abordagem relacional se define por não considerar a realidade de forma estática. Reconhece que os atores dos processos de implementação não apenas seguem regras, mas que estas são mediadas pelas opiniões e valores do gestor. Além disso, precisam enfrentar situações que não tinham sido previstas, como, por exemplo, recusas e resistência a projetos, tanto da parte do público afetado como, eventualmente, de gestores locais.

Nesta pesquisa, observou-se que a variável “incerteza” atravessou praticamente todos os aspectos do trabalho desenvolvido na SES-RJ, de forma muito mais aguda e complexa do que se poderia supor.

No caso específico da secretaria estadual, a situação se converteu num círculo vicioso: o atraso no pagamento dos salários afetou muitos funcionários que não tiveram como pagar o transporte até o trabalho; houve remanejamentos e demissões de pessoas com cargo de assessoria que prejudicaram a continuidade de trabalho nas equipes; e a falta de transporte para visitas aos municípios também constituiu um fator que dificultou os processos.

A contratação temporária de profissionais e técnicos (seja pela terceirização de serviços ou por serem cargos de indicação política) gerou alta rotatividade na gestão de serviços, com interrupção e descontinuidade nas ações.

É importante ressaltar que as Comissões Intergestores Bipartites têm se constituído como espaços fundamentais ao processo de descentralização e gestão democrática. É neste espaço que estado e municípios pactuam as ações e as políticas a serem implementadas. Por meio delas, é possível avaliar os cenários existentes e organizar o planejamento dos sistemas de políticas públicas entre os níveis de governo. Entre os entrevistados, verificou-se que esse espaço também contribuiu para a cooperação e sensibilização dos gestores municipais para a articulação intersetorial. Essas instâncias de pactuação demonstraram a iniciativa do nível estadual para a coordenação das ações, com divulgação e orientação para as medidas de emergência (pontos focais, protocolos, encaminhamentos), limitadas pela restrição e instabilidade de recursos financeiros e humanos.

Há que se destacar que o estado do Rio de Janeiro, apesar da importância de suas instituições de pesquisa e de atendimento à saúde, possui um grande “gargalo” na definição e organização de fluxos de atendimento, aspectos que se relacionam em grande medida à precariedade do sistema de regulação.

Por iniciativa de grupos de mães em associação com instituições de pesquisa e de atendimento, foram criadas redes para reivindicar serviços para as crianças com a síndrome, conhecidas como redes de advocacy e apoio. As redes impulsionaram a criação de estruturas de apoio às famílias, a discussão dos problemas e demandas das crianças e a realização de audiências públicas com a participação do Ministério Público, visando à criação de um fluxo de atenção que evitasse a “peregrinação” das mães, por vários serviços e até duplicidade de atendimento.

A participação de um ente externo numa coalização política com múltiplos atores envolvidos e papéis não muito bem definidos pode levar a alterações na visão dos tomadores de opinião, influenciando suas decisões e levando à possibilidade de pactuação (Sabatier; Weibler, 2007SABATIER, P.; WEIBLER, C. Theory of process policy. Colorado, Westview Press, 2007.).

No caso específico da atenção às crianças com zika, como a doença era desconhecida, não havia protocolos preestabelecidos. Era necessário que os serviços de saúde e reabilitação incorporassem, na sua agenda, determinado número de vagas para a atenção às crianças. A interferência do Poder Judiciário naquele contexto se explica, em última instância, por dois fatores. Por um lado, a grave crise econômica e política por que passava o estado do Rio de Janeiro. Por outro, pela presença de diversos serviços especializados que têm características e missões próprias, que não estavam preparadas para atender às questões específicas trazidas pela epidemia. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP RJ) foi demandado a intervir no sentido de organizar a atenção à saúde daquelas crianças. Através de Audiência Pública com diversos atores, pactuou a inserção de serviços especializados e definiu o fluxo de atenção.

O movimento das mães colocou o cotidiano das associações no âmbito da judicialização do acesso aos direitos pelas crianças e suas famílias. Essa inserção do Ministério Público e de outros órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça, reflete a importância dos movimentos e organizações de mães diante das questões vinculadas à SCZ. Contudo, reflete também as restrições dos gestores na condução apropriada da atenção, comprometendo o acesso aos direitos das crianças e famílias, que precisam recorrer ao Poder Judiciário.

Considerações finais

O direcionamento de estratégias de enfrentamento à emergência em saúde pública causada em decorrência da epidemia do Zika vírus evidenciou o papel e importância dos sistemas de vigilância epidemiológica e de vigilância socioassistencial. A identificação dos primeiros casos contribuiu para a criação de estratégias, protocolos e normativas que reforçavam, entre outras coisas, a importância de atuação conjunta entre políticas.

Ao analisar a implementação de ações intersetoriais na assistência a crianças com SCZ no estado do Rio de Janeiro, verifica-se a importância das instituições de pesquisa e do comitê gestor na condução de estratégias para o período de enfrentamento à epidemia e na continuidade de ações prioritárias no período posterior ao fim da emergência em saúde pública.

Mesmo num cenário de crises políticas e econômicas, houve uma importante atuação de atores estratégicos, inseridos nas instituições de gestão de políticas públicas, como Secretaria Estadual de Saúde e Secretaria Estadual de Assistência Social, na criação de fluxos e estratégias de atendimento a crianças e famílias.

Os dados coletados apontam que a implementação das ações intersetoriais de saúde e assistência social, onde elas ocorreram, dependeu mais da iniciativa de cooperação informal entre agentes públicos do que de mecanismos formais das políticas. Foram gerados protocolos de atenção para diagnóstico e acompanhamento de casos confirmados, redes de informação e mecanismos de monitoramento das ações nos municípios. Contudo, foi falha a coordenação da rede de serviços, devido à estrutura descentralizada dos sistemas de saúde e assistência social, a carência e baixa qualidade dos serviços nos municípios e à instabilidade financeira e de recursos humanos. Os serviços de atenção às crianças e famílias permanecem precários e de baixa qualidade e não há controle integral sobre os casos inconclusivos.

No contexto analisado, identifica-se que o setor saúde teve importante papel de articulação com as demais políticas públicas, apesar de áreas como a assistência social ainda sofrerem para a efetivação das diretrizes previstas na política, bem como de garantirem um financiamento adequado para o atendimento da realidade das famílias. A previdência social, por apresentar uma estrutura bastante hierarquizada, também desafiou a criação de ações intersetorializadas que garantissem o acesso a direitos e benefícios.

Mecanismos de cooperação e coordenação intersetorial são apontados como estratégicos na efetividade de políticas públicas. No Brasil são fundamentais, em especial nas políticas sociais. As áreas de saúde e de assistência social contêm a perspectiva intersetorial, já quem têm concepção ampliada sobre os problemas sociais e reconhecem a necessidade de ação integrada de políticas na garantia da proteção social. A Constituição de 1988 contemplou a ideia/princípio de seguridade social, que previa uma estrutura institucional única entre as áreas de saúde, previdência e assistência social.

Contudo, a trajetória posterior foi de separação de recursos, funções e fronteiras fechadas entre as distintas áreas. Essa setorialização se reproduziu nos aparatos estatais dos estados e municípios, gerando estruturas verticalizadas com superposição de ações e vazios institucionais. Mecanismos intersetoriais institucionalizados não garantem, por si só, a prestação adequada de serviços. Mas fortalecem a ação do estado e podem, inclusive, proteger essa ação em contextos de crise, como no caso do Rio de Janeiro durante a epidemia de Zika.

O estudo demonstrou que mecanismos informais puderam, mesmo que com limites, informar a criação de estratégias intersetoriais de mais longo prazo, como foi o caso do Plano de execução da estratégia de fortalecimento das ações de cuidado das crianças suspeitas ou confirmadas por SCZ e STORCH. O plano, contudo, esbarra na ausência de adesão à intersetorialidade pelas estruturas das diferentes políticas. Nesse sentido, para que se atinja a necessária intersetorialidade, é preciso rever as estruturas institucionais que a restringem.

Outro fator de grande importância, que merece ser mencionado, é relacionado à questão do aprendizado institucional, que ocorre durante os processos de implementação de uma política, mesmo que esta, no caso, tenha sido definida como de relativa curta duração – o tempo de uma epidemia.

Se considerarmos que a execução de uma política pública representa o “Estado em ação”, e, ao mesmo tempo, expõe as dificuldades e eventualidades na realização desta tarefa, percebe-se a importância do aprendizado sobre políticas. No caso estudado, o período pós-emergência deixa clara a reorganização das tarefas pela SES, visando diversificar e ampliar a qualidade dos serviços prestados, estruturando as atividades em nove eixos que contemplaram/ampliaram temas como promoção e prevenção, intersetorialidade e gestão.

Como ressalta Schofield (2004SCHOFIELD, J. A model of learned implementation. Simposium on implementing public policy: learning from theory and practice. Public Administration, v. 82, n. 2, p. 235-248, 2004.), o aprendizado é, simultaneamente, limitado pela burocracia e ressaltado pelo papel burocrático e hierárquico que os implementadores desempenham. Temas como motivação e tempo de experiência concorrem para a ampliação do aprendizado. Essa reorganização, e a criação de um Comitê Gestor, sugerem também um aprendizado político, visando ao fortalecimento da SES enquanto organização, num momento em que o papel do Ministério da Saúde redirecionou suas prioridades institucionais.

  • 1
    Benefício de transferência de renda do valor de um salário mínimo mensal para pessoas com deficiência (e idosos) com renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo vigente.
  • 2
    O estudo que ora se apresenta foi financiado e faz parte da pesquisa “Ciências Sociais e Humanidades frente à Epidemia de Zika Vírus no Brasil”, submetida pela Fiocruz/Ensp, aprovada pelo Comitê de Ética, conforme a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil, por meio do CAAE: 67311617.8.0000.5240. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
  • 3
    Sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes vírus.
  • 4
    Mesmo sendo o BPC um benefício da assistência social, a quem cabe cadastrar e encaminhar possíveis beneficiários, assim como proceder à avaliação social no âmbito do INSS, há restrições a essa avaliação social em relação à perícia médica realizada pelo INSS (Vaitsman; Lobato, 2017).
  • 5
    Pressman e Wildavsky (1973), Zahariadis (1999), Walker e Marchau (2003) e Raaphorst (2017).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2022
  • Aceito
    28 Jun 2023
  • Revisado
    04 Jun 2023
  • Corrigido
    24 Maio 2024
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