Manda pra um, joga pra outro: a emergência sanitária da zika nas margens do Estado

Martha Cristina Nunes Moreira Ellen Hilda Souza de Alcantara Oliveira Daniel de Souza Campos Marcos Antonio Ferreira do Nascimento Paulo Cesar Peiter Sobre os autores

Resumo

Distantes temporalmente da declaração da emergência em saúde pública de importância internacional (ESPII) e emergência em saúde pública de importância nacional (ESPIN) provocada pela epidemia de zika, no ano de 2015, enunciamos a herança da emergência humanitária. Com base em uma pesquisa qualitativa, por meio de grupos focais realizados com profissionais de saúde e familiares das crianças afetadas epidemia de zika em Natal e Feira de Santana, buscamos discutir esse fenômeno de saúde pública pelas lentes da Antropologia do Estado. Concluímos que o não reconhecimento do Estado como uma instância encarnada no cotidiano das práticas por parte dos seus agentes locais leva à reprodução de práticas discriminatórias esvaziadas de sentido político e do reconhecimento de moralidades que permeiam as ausências nas ações de promoção de saúde e estratégias de reconhecimento e busca por estratégias para a garantia do direito à saúde.

Palavras-Chave:
Emergências em saúde pública; Epidemia de zika; Antropologia do Estado; Microcefalia; Saúde da criança

Configurações da epidemia de zika para uma Antropologia do Estado

Este artigo é escrito passados sete anos da declaração da emergência em saúde pública de importância nacional (ESPIN) e internacional (ESPII) provocada pela epidemia de zika, em 2015 e, portanto, faz-se urgente demarcar temporalmente essa escrita. A ideia de urgência vem acompanhada do simbolismo de que algo frente à emergência pode ser um sinal de maior alerta. O alerta é para não esquecer, apagar, desmemorializar o sofrimento, a indignação e as necessidades criadas para determinado grupo de mulheres e suas famílias, que viveram, durante a gravidez, a infecção pelo Zika-V, com repercussões até então desconhecidas pela ciência, pelos profissionais de saúde e população em geral, entre mosquitos / infecções virais / microcefalia em bebês.

Assumiremos a expressão microcefalia/micro, reconhecendo como outras pesquisadoras (Fleischer; Lima, 2020SILVA, A. C.; MATOS, S. S.; QUADROS, M. T. Economia política do zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Anthropológicas, v. 28, n. 1, p. 223-246, 2017.; 2021; Pinheiro; Longhi, 2017PINHEIRO, D. A.; LONGHI, M. C. Maternidade como missão! A trajetória militante de uma mãe de bebê com microcefalia em PE. Cadernos de Gêneros e Diversidade, v. 3, n. 2, p. 113-133, 2017.) como parte do universo das pessoas diretamente envolvidas com o cuidado das crianças de micro. A microcefalia está relacionada à expressão visível das alterações na cabeça, que bebês, hoje crianças com 6-7 anos, desenvolveram ainda no período fetal, a partir da síndrome congênita pelo Zika-V (SCZV). A alteração na cabeça, visível ao olhar do outro, é um dos estigmas mais centrais da síndrome congênita pelo Zika-V (Moreira ., 2022MOREIRA, M. C. N. et al. Stigmas of congenital Zika syndrome: family perspectives. Cad. Saúde Pública, v. 38, n. 4, p. e00104221, 2022.). Mas o que escapa aos olhos e atinge diversos sistemas e funções do organismo das crianças – criando múltiplas dependências e necessidades de suportes e tecnologias vitais – remete ao seu entendimento como mais uma condição crônica, complexa e rara de saúde, cujas necessidades também são complexas (Moreira et al.,2019MOREIRA, M. C. N. et al. Adoecimentos raros e o diálogo associativo: ressignificações para experiências morais. Ciênc. saúde coletiva, v. 24, n. 10, p. 3673-3682, 2019.; 2017MOREIRA, M. C. N. et al. Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cad Saúde Pública, v. 33, e00189516, 2017.; Moreira; Mendes; Nascimento, 2018MOREIRA, M. C. N.; MENDES, C. H. F.; NASCIMENTO, M. Zika, protagonismo feminino e cuidado: ensaiando zonas de contato. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 22, n. 66, p. 697-708., 2018).

O nascimento, configurado existência, de crianças com necessidades complexas de saúde, se encontra com um cenário de desigualdades persistentes não enfrentadas pelo Estado brasileiro. Portanto, não há democracia em epidemias e pandemias, mas, como fatos sociais totais (Silva; Matos; Quadros, 2017SILVA, A. C.; MATOS, S. S.; QUADROS, M. T. Economia política do zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Anthropológicas, v. 28, n. 1, p. 223-246, 2017.; Santos; Pontes; Coimbra Jr., 2020SANTOS, R. V.; PONTES, A. L.; COIMBRA JR., C. Um “fato social total”: Covid-19 e povos indígenas no Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 10, p. e00268220, 2020.), revelam imbricamentos entre condições sanitárias, econômicas, de estruturas de discriminação remetidas a raça, gênero, classe e território, que podem ser enunciadas à luz de violências estruturais. A violência entendida como negligência ou “abandonos”, ou “jogos de empurra”, por parte do Estado e seus agentes, quando analisamos os fenômenos sanitários, com foco aqui na epidemia do Zika-V que o Brasil viveu entre os anos de 2015 e 2017. Ela foi responsável por acometer a população em um mesmo período de circulação de um vetor prevalente entre nós – o Aedes aegypti – que também carreava dengue e chikungunya.

Esses “jogos de empurra” ganham a conotação de abandono, da não disponibilização de serviços e atenção às necessidades mínimas para garantir qualidade de vida, comparecendo como expressão êmica para filhos e filhas vivendo com microcefalia. As expressões vêm carregadas de emoções e performances que já anunciam a necessidade de lutar para conseguir, ou aconselhadas pelas trabalhadoras de serviço social a essa busca “por justiça”, “por direitos” e Souza-Lima (2013SOUZA-LIMA, A. C. de. Apresentação In: VIANNA, A. (org.). O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 11-13., p. 11) nos alerta para a polissemia da palavra direito, que:

[...] contém, dentre outros sentidos, o do conjunto de normas de conduta instituídas que balizam as relações sociais, marcando o certo e o errado, o bem (de uns) e o mal (de outros). No seu plural o termo, aponta também (juntamente com deveres) para o sistema de obrigações e prerrogativas que traduz de modo prescritivo tais normas no plano individual e coletivo.

Estão em jogo o universo das crenças dos sujeitos de que se tem direitos aos direitos. Interpela-se em suas construções sobre quem tem direitos e quais são as agências e agentes desses direitos. Souza-Lima (2013SOUZA-LIMA, A. C. de. Apresentação In: VIANNA, A. (org.). O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 11-13.) destaca, ainda, que os direitos se configuram como categoria de mediação / comunicação entre esferas sociais. E nesse conjunto as:

[...] emoções, sentimentos e afetos circulam e entrelaçam-se em instituições como a Polícia, o Legislativo, ou instâncias do Judiciário, em suma com o que também os atores sociais concretos chamam de Estado, aqui não apenas tomado enquanto conceito científico, mas também categoria dos pesquisados falados e articulados via luta pelos direitos (p. 12).

No plano do direito, enunciam-se atores genéricos como crianças, adolescentes, mulheres, cidadãos. Essa generalidade precisa de especificações, quando as violências ativas do Estado matam, ou quando, ao deixar de cumprir o que lhe cabe, também extermina por ausência de acesso à saúde com exames, medicamentos, tratamentos. A exuberância de ações que compõem processos de judicialização da saúde opera como indicativo disso que Viana (2013) nomeia como gramáticas.

Entre 2014 e 2018, mais de 800 mil novas ações envolvendo a saúde pública ingressaram nos tribunais brasileiros, na maior parte, pedidos de medicamentos contra o Estado (Ferraz, 2019FERRAZ, O. L. M. Para equacionar a judicialização da saúde no Brasil. Revista Direito GV, v. 15, n. 3, e1934, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2317-6172201934>. Acesso em: 1º maio 2022.). Esse caminho de ideias, prevalente em nosso acervo de pesquisa, e presente em outros tantos geradores de pesquisas em “cenas de zika” (Silva; Matos; Quadros, 2017; Scott; Lyra, 2020bSCOTT, R.; LIRA, L. C.; MATOS, S. S.; SOUZA, F. M. Itinerário terapêuticos, cuidados e atendimento na construção de ideias sobre maternidade e infância no contexto da Zika. Interface - comunicação, saúde e educação, v. 22, n. 66, p. 673-684, 2018.), ganham configurações recorrentes : (1) de uma busca de pares que compartilhem essa experiência e que se encontram nas salas de espera dos serviços, e organizam grupos de WhatsApp para trocas e apoios; (2) da organização de associações onde mulheres com capitais de escolaridade ou de vocalização de luta se tornam lideranças carismáticas, compartilhando também essa maternidade cruzada pela SCZV em seus filhos e filhas; (3) das ações individuais contra o Estado reivindicando acesso e garantias de direitos – educação, saúde, serviços, bens de cuidado como fraldas, medicamentos, fórmulas nutricionais – com mediação de profissionais de saúde e do serviço social, nas instituições de saúde com a elaboração de laudos consubstanciados.

Destacamos aqui a tensão entre os planos de direitos de crianças à saúde – e atualmente à educação agora em idade escolar – e um Estado que se configura como, supostamente, ausente, embora institua regulações que inviabilizam os planos de cuidados, subsistência e vida das crianças. Essa ausência denunciada – ou presença corretiva e culpabilizante da população atingida, ou ainda normativas que tornam inviáveis benefícios para composição de renda – é lida pelos autores deste artigo como um conjunto de violências simbólicas que tomam a forma de negligência, culpabilização e abandono.

Uma pergunta orienta este artigo: como a epidemia de zika pode ser interpretada à luz da discussão sobre sofrimento social na relação com os agentes de Estado?

Artesanatos metodológicos ou sobre conversas em grupo

Como nos lembra Gondim (2003GONDIM, S. M. G. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paideia, v. 12, n. 24, p. 149-161, 2003., p. 151), a “unidade de análise do grupo focal [...] é o próprio grupo. Se uma opinião é esboçada, mesmo não sendo compartilhada por todos, para efeito de análise e interpretação dos resultados, ela é referida como do grupo”. Assumimos a perspectiva de grupo focal exploratório, dedicado à produção de conteúdo, gerador de hipóteses entrelaçadas às perspectivas teóricas, podendo contribuir com outros planos de ideias, interpretações, necessidades e expectativas.

O componente interacional é um destaque na escolha pelo grupo focal, já que o que está em jogo é a intersubjetividade. Mas há algo que circula e pode construir um plano do comum, a partir de um encontro com objetivos delimitados e cujo perfil dos participantes evoca ao menos algum aspecto identitário compartilhado: no caso dois grupos com familiares e dois com profissionais. Os grupos focais de profissionais eram formados por enfermeiras e assistentes sociais em Feira de Santana, e por enfermeiras, médica e nutricionista em Natal. Dois pesquisadores coordenaram os grupos realizados, em agosto de 2018, uma mulher de Feira de Santana-BA e um homem, do Rio de Janeiro-RJ, respectivamente, enfermeira e assistente social. Ou seja, três anos após a declaração da epidemia pelo Estado brasileiro e pela OMS. Tais municípios são marcados por uma geografia da precarização (Peiter ., 2020PEITER, P. C. et al. Zika epidemic and microcephaly in Brazil: Challenges for access to health care and promotion in three epidemic areas. PLoS One, v. 15, n. 7, e0235010, 2020.).

Buscou-se a síntese das principais ideias, categorias próprias dos grupos, em diálogo com o referencial teórico da Antropologia do Estado, reconhecendo que as tensões nesse campo se atualizam nas expressões dos e das participantes, para localizar pontos de vista com que constroem seus argumentos. Nesse percurso de argumentos e falas – gravado, transcrito, autorizado por assinaturas de TCLE e com aprovação ética, acionaram-se as seguintes perguntas: como a microcefalia e as manifestações da epidemia do Zika-V são enunciadas por mulheres e homens nordestinos e nordestinas que com ela se relacionaram, pela posição de pais e mães ou de profissionais da saúde? Quando esse processo social é interpretado, quais as lentes comparecem para explicar doença, saúde e prevenção? Como o Estado e seus agentes, incluindo profissionais de saúde, mas também da justiça, seguridade, documentos, benefícios, são enunciados e se enunciam? Qual o entendimento de justiça é construído nesse acervo?

A discussão que segue propõe-se a tecer sínteses dialogadas entre categorias êmicas, expressões recorrentes ou elucidativas, que interpretadas pelos pesquisadores, ganhará reflexividade crítica com recurso às perguntas anteriormente postas.

A artesania realizada com os acervos, na imersão qualitativa, não busca avaliar, julgar ou responsabilizar agentes, personalizando vozes ou posições. Ao organizarmos em seções separadas as perspectivas de familiares e de profissionais, destacamos pontos de vista distintos, ainda que por vezes convergentes, na busca por respostas frente ao Estado.

Esta pesquisa refere-se ao estudo “Promoção da saúde no contexto da epidemia de zika: atores e cenários nos processos decisórios”, financiada pelo Consórcio Zikalliance (CEP/ENSP n. 67311617.8.0000.5240).

“Já que é um direito, tem que vir pra aqui também”: o direito, o Estado, seus agentes e seus jogos na perspectiva das famílias

As “experiências de marginalização” (Williams, 1998WILLIAMS, M. Voice, trust, and memory: marginalized groups and the failings of liberal representation. Princeton: Princeton University Press. 1998., p. 15) são centrais para grupos / pessoas no diálogo com suas marcas de pertencimento em planos de desigualdades sociais. Ao refletir criticamente sobre elas, alcançamos referências, pares, lugares coletivizados, que amparam suas “perspectivas” (Young, 2000YOUNG, I. M. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University, 2000., p. 137) no olhar e voz sobre o mundo.

Em Feira de Santana, quatro mães participaram, e em Natal, três mães e dois pais. Em Feira de Santana, uma das mães indica que a filha faleceu, e teria na época do grupo, em 2018, completado dois anos. Essa é a idade das crianças apresentadas pelas outras três mães com filhos/filhas vivos/vivas. A crítica ao Estado, nas queixas, denúncias do que “falta” e “deixa a cabeça pior” buscar um especialista e não conseguir. O termo “qualidade de vida” é acionado.

O grupo abre em elaborações críticas ao SUS, ao que “falta” aos filhos com micro “neuro, hospital direcionado, ou uma clínica direcionada pra parte de terapia ocupacional, ecoterapia”. Interessante um diálogo com o que o Estado deixa de oferecer e o contraponto “benefício x pagar particular x o valor não cobre”. A ideia de que o “particular é um absurdo de caro. E aí um exemplo, o benefício que as crianças têm, não é suficiente”. A noção de que o benefício é das crianças, mas não consegue servir aos seus tratamentos, recoloca o Estado na função de garantia de direitos. Em Feira de Santana: “terapia ocupacional, um mês é 480 reais”; “você recebe um benefício de um salário mínimo [comprar] remédio; no Sistema Único de Saúde, nas farmácias você não encontra sempre [...]; “[comprar] espessante, porque tem dificuldade de engolir [...] pra você conseguir pela rede pública é uma maior burocracia, manda pra um, joga pra outro”; “o benefício que a gente tem não dá pra suprir as necessidades que a gente tem”. Em Natal: “porque quem tem o benefício não pode trabalhar, nem a mãe nem o pai, aí como que a gente vai sobreviver só com salário dentro de casa para comprar medicamento para criança? [...]”.

Na busca de redes para acessar direitos, na conversa com outras mães, informa-se que não se conseguem “fraldas gratuitas” em Feira de Santana, mas em Salvador sim: “Então, já que é um direito, tem que vir pra aqui também”. As crianças nascidas com SCZV se encontram na categoria de crianças com condições crônicas, raras e complexas de saúde, evocadas também como crianças com necessidades especiais de saúde, crianças com dependências tecnológicas, ou até mesmo com deficiências (Moreira ., 2022MOREIRA, M. C. N. et al. Stigmas of congenital Zika syndrome: family perspectives. Cad. Saúde Pública, v. 38, n. 4, p. e00104221, 2022.). Recuperar essa localização clínica remete às necessidades de saúde e às barreiras ao acesso aos inúmeros especialistas fundamentais para estimulação neuropsicomotora, ausentes na rede próxima e quando encontrados estão dispersos, com inúmeras cargas para o deslocamento (Pinto ., 2021PINTO, M. et al. Gasto catastrófico na síndrome congênita do vírus Zika: resultados de um estudo transversal com cuidadores de crianças no Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 11, p. e00007021, 2021.).

Em Feira de Santana, a peregrinação por cuidados especializados foi enfaticamente apontada. A dispersão desses tratamentos em lugares distintos – públicos, privados, filantrópicos, como APAE, de universidades – é recorrente. E nessa época ainda em fase pré-escolar, sem registro de creches. Observa-se também uma capacidade de avaliar empiricamente a qualidade do serviço, que pode “ser pequeno, um espaço que é pra adulto e criança na mesma sala que faz. Tem o profissional qualificado que faz, mas eles botam mais estudantes pra fazer, que às vezes não sabem nem pegar na criança direito”.

É comum a referência aos mediadores, que qualificamos como atores não-humanos – que se tornam pilares de uma estrutura de vida e direitos: o cartão do passe-livre, o carro, a van para tratamento fora do domicílio (TFD), o valor de um salário mínimo que se refere ao Benefício de Prestação Continuada, medicamentos, suplementos alimentares, sondas, cadeiras de rodas, próteses e órteses. Esses configuram redes com os humanos ativando performances de cuidado, expectativas de como comportar-se, reivindicar, aprendizados coletivos, que influenciam as cenas de cuidado (Mol, 2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. New York: Routledge, 2008.).

Outro arranjo de redes de redes, diz respeito aos mecanismos de solidariedade de cuidado, baseado na ajuda (Guimarães; Vieira, 2020GUIMARÃES, N. A.; VIEIRA, P. P. F. As “ajudas”: o cuidado que não diz seu nome. Estudos Avançados, v. 34, n. 98, p. 7-24, 2020.). Tais arranjos operam em redes informais e de proximidade que se criam, por exemplo, morando em uma zona rural do interior, ao contar com deslocamento até Feira de Santana através de um transporte “alternativo”, que não aceita o passe, mas o “dono do transporte” diz que não é para ser cobrada a passagem da mãe com a criança, “acaba indo até duas pessoas num carro [...] porque tem a cadeirinha”; “se for de ônibus tem que esperar até seis horas porque o ônibus leva mais gente”; “Eu prefiro ir no ônibus do que remarcar. Eu fico esperando lá mesmo”; “tem ficar lá até à tarde porque tem pegar outras pessoas pra poder vir”.

Destaca-se a busca de justificativa das faltas, falhas e jogos dos agentes do Estado – incorporadas por vezes por algumas mães – de justificar as falhas no direito, invertendo o jogo de quem está no centro da cena pela fragilidade que lhe constitui “É tanto que eles tão tentando, porque são caros”. Nesse caso, “tentando” e “ser caro” constroem um argumento que abona a falha estrutural de uma política que tem que operar, que não é um favor. Isso acontece com o TFD, com relatos, de “carros específicos para microcefalia, pra pegar a gente em casa, leva pra Salvador, volta e traz a gente também”. Destacamos que essa operação metonímica de falar da “microcefalia” como se fosse falar da criança é expressão corrente, equivalente ao que ocorre nas estruturas de despersonalização condizentes com a operação do estigma, de tomar a marca como central, diferenciadora da criança (Moreira ., 2022MOREIRA, M. C. N. et al. Stigmas of congenital Zika syndrome: family perspectives. Cad. Saúde Pública, v. 38, n. 4, p. e00104221, 2022.).

Toma-se a microcefalia para nomear a criança em sua existência completa, reduzem-se as mulheres às “mães”, “mãezinhas”. A enfermeira “colocada no caminho, não me deixa esquecer de mim”. O Estado e suas agências ganham camadas que busca compensar as margens da macropolítica. Essa macropolítica é também uma biopolítica que enuncia quem interessa e quem deve ser esquecido. Mas na agência da enfermeira, a justificativa para a mulher, mãe da criança com microcefalia, para se cuidar é de novo remeter a uma operação metonímica de tomar o todo da existência da mulher, por uma das suas inúmeras possibilidades de existir: “Olha, não esqueça de você. Porque ela precisa de você, então você tem que tá firme”. O argumento se restringe a alguém em situação de dependência dela. Vejam, isso não é “a” enfermeira, mas essa cena evoca elementos poderosos da estrutura do patriarcado que generifica o cuidado e incrementa as desigualdades de gênero, com toques de culpabilização.

Por outro lado, recolocar o cuidado como ética e política significa reconhecer a dependência e a interdependência como constitutivas do humano. Em um Estado que não assume o cuidado como política, “perder” a mãe por doença ou morte, significa produzir abandono, e até morte. Quem é deixado nas margens do Estado está marcado por uma política ativa de precarização e vulnerabilização. Nessa cadeia “tem outros filhos também, aí você vai pra ela, aí quando vê tem os outros, aí vem casa, vem marido, você acaba vivendo pra última escala”, o cuidado se configura como produção e reafirmação de opressões, assimetrias e esquecimentos.

A categoria empírica esquecimento ganha contornos de um esquecer-se de si própria, mas também comparece na figura ativa do Estado e em seus agentes, em que “o prefeito prometeu um anexo de atendimento pra gente. E até hoje nem representante nem prefeito nem ninguém, nem nada. Ele deu-se de esquecido”. Ou seja, a produção ativa das margens é a produção ativa do esquecimento. Por isso Boltansky (2015BOLTANSKY, L. A presença das pessoas ausentes. Parágrafo, v. 2, n. 3, p. 147-156, 2015.) nos serve como aporte crítico e analítico, segundo qual o Estado e seus agentes podem tanto matar intencionalmente os filhos pretos, das mães pretas, das periferias e quebradas, mas também podem deixar morrer “por esquecimento”. Daí, os movimentos associativos das mulheres, mães, de crianças com microcefalia, no Brasil, ganham contornos de enfrentamento da violência e abandono do Estado.

A atribuição da categoria êmica “culpa” é acionada em Natal, onde o grupo abre localizando a falta de saneamento e sua conexão não só com a epidemia de zika, mas de dengue e Chikungunya. Nesse caso, o outro ator não humano comparece acionado na localização do “culpado”; governo ou mosquito. “Eu culpo o mosquito? Culpo! Mas também culpo o governo em ter feito isso, entendeu? Então eu digo a você com toda a certeza, então pra não culpar eles e eles vão e dizem que é culpa do mosquito, que o mosquito já nasce assim”; “antes passava o carro do fumacê. Até mesmo a muriçoca morria. Se eles fizessem a parte deles também, porque eles pedem pra gente fazer a parte da gente, são muitos mosquitos”. Facilmente, ao deslocar para o mosquito, a culpa é deslocada para comportamentos individuais “do rapaz que acumula garrafas plásticas” em Feira de Santana.

Em Natal, o abandono do Estado configura des-cuido com quem “mora no final, mora perto da Maré. É interessante o acionamento da categoria “injusto” para qualificar essa relação entre direito / acesso / garantia a efetividade “A gente passa por tanta dificuldade e a gente acha injusto, tem que correr atrás da Justiça. E tem as mães que moram no interior, é muita coisa que elas vão atrás de justiça. [...]. Tem que ir na Justiça para poder conseguir uma coisa que tá escrito por lei, é muito sufocante”. As estratégias para enfrentar a injustiça podem significar omitir informações que impedem acesso aos benefícios. Assim um pai/avô critica a filha, mãe de uma criança com micro, sua neta, por não omitir porque “não tem a mentalidade correta”, e acabar revelando, que o avô ganhava um salário mínimo e “isso foi um problema passou três anos sem receber nada”.

O trecho anterior fala de aprendizagens e performances sobre como se comportar frente aos agentes do Estado para conseguir acessar direitos, e negociar a garantia de necessidades. Aqui o critério de justiça não é da ética impessoal e genérica, mas uma ética vinculada à necessidade. E a garantia pode remeter às práticas de judicialização. Cabe às famílias performarem o direito. Criarem estratégias, justificativas, acionarem repertórios emocionais para garantirem acesso a um direito que elas se qualificam como merecedoras, que, aqui, significa cumprir critérios intrínsecos a suas necessidades, e não naquilo que a impessoalidade do Estado e seus agentes.

“O seu bebê é um bebê que tem direitos”: o direito, o Estado, seus agentes e seus jogos na perspectiva de profissionais

O acervo dos profissionais aponta o contraste entre o aprendizado sobre a zika no decorrer do processo de trabalho e os dilemas de conduta relacionados à fragilidade das ações disponíveis. Se todo e qualquer diagnóstico constitui um marco inicial para o estabelecimento de um tratamento e resposta aos males, a epidemia de zika configura-se como diagnóstico imperfeito, seja porque a relação entre ser testado e ter os resultados não se concretiza – principalmente nas classes populares – assim como ter o diagnóstico é estar diante do “elefante na sala” (Kameda ., 2021KAMEDA, K.; KELLY, A. H.; LEZAUN, J.; LÖWY, I. Imperfect diagnosis: The truncated legacies of Zika testing. Social Studies of Science. August 2021. https://www.researchgate.net/publication/354252087). O diagnóstico remete às incertezas, e a interrupção da gravidez não é possível no plano legal de opções para as mulheres grávidas afetadas pela zika. O acervo reencontra esse campo de orientações às mulheres a não engravidarem:

[...] tinha pessoas que a gente orientava a não engravidar naquele período [...] dois anos sem poder engravidar por causa do risco mesmo que tava eminente [...] é uma arbovirose, a consequência mais gritante, que mais preocupa é a questão da síndrome mesmo, quando acomete as mulheres gestantes.

O mosquito e a epidemia de zika não são democráticas, relacionam-se com ambientes onde a proliferação dos casos articula-se com o descaso do Estado.

No acervo, foram flagrantes as dificuldades na implementação das respostas dos serviços frente às necessidades das crianças afetadas e suas famílias. Eram comuns sentimentos de grande ambivalência: resignação com a situação, e/ou engajamento/entrega pessoal. Imbricavam-se as esferas pessoal e profissional, e não raramente, a religiosidade acionada como norteador de ações e respostas às aflições. Os profissionais, dada essa imbricação emocional, por vezes não se viam como agentes desse Estado que não reconhece as aflições.

A imagem da mãe que luta contra o Estado – que parece não se encarnar na ação dos profissionais que também o veem distante, aparece na luta na Justiça por um medicamento que “não podia comprar pela lei que não permite. E ela conseguiu através da justiça receber todo esse tratamento, ela é a única de Feira, pelo menos, com microcefalia. Porque ela luta mesmo, ela é bem ativa na justiça e conseguiu o direito de todo o tratamento da criança”. Nesse movimento, “a luta” conecta justiça/injustiça, legal/ilegal, frente a um Estado “insensível”.

É interessante que o Estado brasileiro, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde, reconheça que:

Passados esses anos, ainda existem desafios a serem enfrentados: [...]ampliação do acompanhamento do crescimento e desenvolvimento das crianças, com intuito de qualificar a rede assistencial para cuidar melhor das necessidades identificadas, acompanhamento e monitoramento das pesquisas em desenvolvimento, buscando ações e políticas preventivas de tratamento e recuperação, de forma intersetorial em articulação especialmente com as políticas de seguridade social. Para tanto, esta, ainda é uma agenda em aberto no sistema de saúde brasileiro e deve ser priorizada até que tenhamos condições de qualificar as políticas públicas para atender as diferentes necessidades de acesso no SUS (SVS, 2020, p. 1-2).

Ou seja, temos um diagnóstico de problemas, e ainda assim cabe perguntar o que impede que o diagnóstico de problemas se configure em ações efetivas? Ou ainda, como entre Estado, seus agentes e as pessoas que sofrem são enunciados e enfrentados os problemas?

Essa tensão entre o Estado e seus agentes se faz presente. A ideia de que o papel dos agentes locais, das competências profissionais, esbarra em um Estado que falha com seus deveres é uma tônica presente:

O objetivo da vigilância [é] cortar a cadeia de evolução, de transmissão da doença. E aí você tenta cortar a cadeia de transmissão da doença, mas ela já está. E aí você ouve esses relatos das pessoas que estão. Então o que é que estão fazendo, porque isso talvez não compita a mim enquanto vigilância, mas o que as autoridades estão fazendo pra barrar essa doença?

Essa pergunta lança para fora da comunidade, do escopo do profissional da vigilância em saúde, a responsabilidade, e fala da ausência de elos que conectem as autoridades do Estado e seus compromissos com saneamento básico. Ou seja, remete a “quem está acima”, na gestão municipal.

Há, outro lado, uma tendência a responsabilizar a população por seus males:

O pessoal acumula lixo dentro de casa, nos fundos das casas, entendeu? [...] não depende apenas só da boa vontade do gestor. Mas existe também a parte da educação da população [...] os determinantes sociais de saúde em relação a isso eles são fundamentais pra gente perceber essa relação do número de casos, notificações e a questão da precariedade, da característica da comunidade [...] as pessoas juntam lixo, lixo mesmo [...] famílias que fazem reciclagem e colhem papeis, garrafas pets, que recolhem materiais recicláveis. Então eles acumulam muitos materiais e isso é um agravante.

Em um conjunto de ideias no qual a contradição está presente, podemos pensar em um constructo de busca de justificativas, em que os moradores são responsáveis por “acumular lixo”, mas esses acumulam “lixo” porque são catadores e vivem da reciclagem. Cabe perguntar como o Estado e seus agentes podem organizar usinas de reciclagem, organizar um associativismo ao redor dessas práticas e colaborar para o saneamento, e não interromper uma ocupação legítima.

Na esfera emocional, a mobilização dialoga com uma “heroificação” das mães das crianças com microcefalia pelo empenho no cuidado dos filhos. Esse processo contribui para uma ausência de reflexões ou referências aos direitos reprodutivos e/ou interrupção da gravidez como opção/alternativa das mães que descobrem nos primeiros meses de gravidez as malformações do feto infectado pelo Zika-V. Tal ausência merece um olhar atento, principalmente quando se faz recorrente reconhecer o cenário de incertezas sobre os efeitos da zika e o futuro dos afetados, assim como a ausência de uma vacina.

Há uma preocupação em como o Estado assumirá essas crianças e suas necessidades, não somente de ações de saúde complexas, mas de seguridade social.

O desconhecimento daquilo que era novo, de conseguir amenizar essas dificuldades e a dor dessas famílias. Os profissionais criaram, da rede, do município, esse projeto Aconchego: equipe da vigilância foi mentora, a secretaria toda da rede abraçou [...] objetivo de amenizar as dores e socializar os problemas em comum daquelas famílias e foi criado o projeto Aconchego, que nós demos esse nome pelo fato de fazer esse Aconchego, esse nome pra aquelas mães, aí nesse espaço tratar a questão do empoderamento daquela família, trouxemos profissionais como do INSS pra informar, orientar sobre esses direitos, assistente social. O Ministério Público estava presente, representando [...].

Os agentes desse Estado “ausente” se configuram em uma ação cujo ponto de partida é o desconhecimento e o enfrentamento do sofrimento, e o chamado “empoderamento pela troca”. Essa ação não opera somente no plano das mães e seus possíveis sofrimentos, mas também compõe uma articulação entre agentes, produzindo uma rede que não estava no papel, na promulgação de uma lei.

Em Natal, a percepção sobre os territórios de atuação é a de um quadro geral de carências, com falta de saneamento básico, o que torna o ambiente mais propício à proliferação de vetores como o Aedes aegypti. Somam-se, o baixo nível de renda das famílias assistidas com média de um a dois salários mínimos e ocupada em serviços informais, e precários.

Em Feira de Santana, os principais problemas de saúde relatados são as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e as situações relacionadas ao viver com as deficiências, na qual as crianças com microcefalia estão inseridas. A rede de atenção é considerada insuficiente, gerando dependência de atendimentos de alta complexidade da capital Salvador. O TFD é limitado, gerando insuficiência no atendimento mais delicado – pelas crises convulsivas, instabilidades dos casos de crianças com microcefalia, e as agendas de carros e ônibus restritas “utilizando o serviço diariamente, nós temos em torno de 150 pacientes [...] e temos dois ônibus grandes, um micro-ônibus, duas ambulâncias, dois carros pequenos e um carro específico pra microcefalia”.

O deslocamento para os serviços distantes, é qualificado como crítico, e leva à reflexão que

[...] se a gente tivesse ofertado esse serviço aqui, seria muito mais fácil [...] E com as crianças que têm a síndrome isso acontece muito. A gente que faz o acompanhamento, pelo endereço que eles fornecem, muitas vezes os profissionais vão e [os endereços] não conferem. Não, mora em tal município, só vem pra fazer consulta [...] Aí no final você acaba descobrindo que é casa do tio, que é a casa do parente, do amigo e você não vai poder negar a assistência por causa disso.

As famílias aprendem e cultivam uma performance alimentada pelo próprio sistema de saúde. A ausência de uma Casa de Parto em muitos municípios do interior obriga as mulheres a se deslocarem para municípios maiores, para terem seus bebês, e nesse itinerário não é incomum recorrerem a endereços de parentes residentes nesses municípios para obtenção do acesso.

Essa perspectiva de necessidades complexas geradas pelo Zika-V na vida das crianças e famílias faz convergir a ideia de que:

O maior desafio que o município tá buscando é conseguir fazer um centro de atendimento, um ambulatório especializado para o atendimento das crianças com a síndrome associada ao Zika. Então lá teria pediatra, enfermagem, fisioterapia, teria os exames, teria infectologia. Enfim, teria tudo em um ambiente só. Porque uma dificuldade enfrentada por essas famílias é o deslocamento pra vários serviços, tanto a questão de tempo, a questão de logística, a questão financeira.

A perspectiva de tempos diferentes de cuidado e reconhecimento comparecem como semelhanças na localização de um Estado cujas agências de atribuição dos benefícios como BPC, não são ágeis:

[...] barreiras a superar pelas mães que buscam o auxílio. O setor saúde funciona como um mediador desse fluxo [...] há uma maior informação no sentido desse direito especificamente pras crianças de microcefalia. Então houve uma maior disseminação mesmo, falar: “Ó, tem uma prioridade”. E a questão hoje da dificuldade é que quando você vai fazer o agendamento do INSS [...] você só faz o agendamento pela internet ou telefone, que por telefone ficou realmente inviável. [...]perícia é uma questão rapidinha pra se sair o benefício. A nossa dificuldade hoje é do agendamento, pra iniciar o atendimento. Não há ainda uma questão de se dizer assim, são pessoas que vão ter prioridade pra agendamento. O INSS não faz.

Ou seja, a saúde busca distinguir, reconhecer, agilizar, e o INSS mantém o fluxo impessoal operando.

Essa situação nos remete à preocupação com trajetórias de inclusão e acesso dessas crianças a creches e escolas, que lhes permitissem seguir a vida. No entanto, o cenário de incertezas impossibilita prever como o desenvolvimento da criança se daria:

[...] consequências que eles podem, além dessas, deixar pra geração do futuro [...] não estávamos preparados, não conhecíamos a doença, mas agora a gente já sabe mais ou menos o que ela causa, a gente tem que amenizar o sofrimento pra essas famílias, pra essas crianças, tentar prolongar e dar uma qualidade de vida pra essas pessoas, mas o que a gente enquanto seres sociais e qual a nossa responsabilização pra a essa geração que vai vir. Então do que adianta dispender tantos estudos, tantas pesquisas se eu não tô tendo um retorno.

Essas imagens de futuro, projetos de qualidade de vida a ser oferecida tornam-se incógnitas, que as pesquisas chamadas de “estudos” parecem não contemplar e responder.

Esses jogos de empurra, por processos de despersonalização das situações contribuem para uma nomeação dos diversos agentes envolvidos, mas que é na família que as consequências são sentidas:

[...] essa questão burocrática imobiliza, você agenda pra daqui a 3, 4 meses. Até lá a mãe tem que sair do emprego, às vezes o pai foi embora de casa, ela ficou sozinha dependendo da ajuda de outros pra sobreviver, na incerteza de se vai conseguir ou não o benefício [...] O Ministério Público do município acompanha, ele quer saber se todas as famílias que tão em situação aqui de microcefalia, se têm conseguido com rapidez acesso aos benefícios.

O grau de sofrimento envolvido e o desgaste geram uma sobrecarga no cuidado, e a mulher é a grande atingida por esse processo sucessivo de descuidos:

Acho que os primeiros casos de microcefalia a dificuldade era até mesmo os pais quererem registrar, os homens, no caso. Depois a questão de acompanhar, de ajudar, de se responsabilizar, porque se você for olhar a mãe, ela abdica no sentido mesmo de trabalho, de concepção mesmo de vida própria pra cuidar do bebê em detrimento de como todo mundo falou, é novo, é difícil e espanta.

Essa localização dos cuidados nos efeitos de generificação, assimetria e opressão, nos leva a pensar onde os jogos de empurra podem distribuir seus efeitos de descuido, nas cobranças dos agentes do Estado – Ministério Público por exemplo – e em que medida é sobre as famílias mais precarizadas que incidem julgamentos e moralidades, e menos apoios e suportes.

Considerações finais

Se abrimos recordando de seis, sete anos de um outrora não tão distante, é importante lembrar a possibilidade de uma nova epidemia de zika, sem que tenhamos deixado de ter bebês nascidos com a SCZV hoje, e nem nos recuperado da pandemia de Covid-19 em curso com quase 700 mil registros de óbitos no Brasil.

A sucessão de crises sanitárias desde a virada do século, além do sofrimento das perdas de vidas humanas e dramas familiares que suscita, ajuda a alimentar os processos de produção de desigualdade social, penalizando justamente aqueles que mais precisariam de apoio do Estado. Essas crises ocorrem num contexto de diminuição da capacidade de intervenção do Estado deliberadamente planejada e calculada pela imposição da agenda neoliberal. Em Estados como o brasileiro, historicamente assediado pelos interesses privados e marcado pelo desequilíbrio de forças e injustiças, essa situação é ainda mais aguda, suscitando a necessidade de luta permanente e sem tréguas em prol do estabelecimento da justiça social.

Nessa direção, o sofrimento das mães e famílias no contexto da epidemia de Zika-V deve ser interpretado não como algo individualizado ou subjetivo, mas traz à tona a ideia de um sofrimento social, ou como nos lembra Ceres Victora (2011VICTORA, C. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da Antropologia. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 5, n. 4, 2011. Disponível em: DOI: 10.3395/reciis.v5i4.764. Acesso em: 4 jun. 2023., p. 3):

[...] de um sofrimento intrinsecamente vinculado ao que gosto de me referir simplesmente como as políticas e economias da vida, verificadas em condições e configurações históricas e sociais específicas. É nesse sentido que se torna fundamental observar como os poderes políticos, econômicos e institucionais se entrelaçam na experiência pessoal e cotidiana e como as pessoas reagem aos eventos no dia a dia.

A ideia de jogos de empurra prevalece como uma metáfora de vários movimentos de desautorização, desinvestimento, respostas insuficientes ao cuidado necessário e gerador de sobrecargas e sofrimentos para as mulheres, a frente dos cuidados com seus filhos com micro. Os jogos de empurra configuram-se então como mais um fator de um cuidado não instituído como Política. As crianças afetadas pelo Zika-V se reúnem ao contingente das crianças com deficiências e necessidades complexas de saúde. As consequências dos jogos de empurra comprometem o plano dos direitos e demarcam uma trajetória de vidas em que lutar não é escolha, mas necessidade.

Mesmo os profissionais ocupando a função de agentes do Estado, muitas das vezes não se reconhecem como tal. E experienciam muitas proximidades com a população para a qual dirigem cuidados. A epidemia de zika foi um grande mobilizador social, em que famílias afetadas e profissionais que pouco sabiam, mas que pelo lugar de agentes de Estado e de conhecimento eram cobrados em respostas. Com essas considerações, cabe em futuras pesquisas compreender as emergências sanitárias a partir de um lugar de solidariedade mobilizada ou restrita.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2022
  • Aceito
    15 Set 2023
  • Revisado
    05 Jun 2023
  • Corrigido
    24 Maio 2024
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