Implicações bioéticas para o licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil

Bioethical implications in the environmental licensing of large enterprises in Brazil

Resumo

O processo de licenciamento ambiental de refinarias de petróleo no Brasil tem sido criticado pela ausência do cuidado com relação aos efeitos decorrentes do empreendimento sobre a saúde. Por isso, este trabalho busca identificar ferramentas da bioética que contribuam para a proteção da saúde nesse processo. Amparado numa revisão integrativa da literatura científica e no método desconstrutivo proposto por Derrida, justifica-se a pertinência e legitimidade do uso da bioética para fundamentar a relação entre as consequências para a saúde dos indivíduos, populações e dos ecossistemas e a conflituosidade envolvida. Conclui-se que a bioética pode contribuir como ferramenta teórica e prática por meio da descrição, avaliação dos conflitos e dilemas morais envolvendo a licença para implantação de processos produtivos, servindo para processos de crítica, justificação e de estabelecimento de medidas moralmente aceitáveis para a proteção da saúde humana e dos demais seres vivos do ecossistema.

Palavras-chave:
Bioética; Licenciamento; Saúde Coletiva; Saúde Ambiental

Abstract

Brazilian oil refineries’ environmental licensing process have been criticised for lack of healthcare aspects. Therefore, this paper aims to identify elements of bioethics that contribute to healthcare in this process. Based on an integrative review of scientific literature and on the deconstructive method proposed by Derrida, the relevance and legitimacy of bioethics to justify the relationship between morality and the consequences for individual’s, populations’s and ecosystems’s health is justified. We conclude that bioethics may contribute as a theoretical and practical tool to solve conflicts by describing existing struggles and moral dilemmas, through processes of criticism and justification and the establishment of morally acceptable measures for the protection of humans and environmental health.

Keywords:
Bioethics; Licensure; Public Health; Environmental Health

Introdução

Este trabalho tem como objeto de análise o licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil - ilustrado pela emissão do termo de referência (TR) por parte dos órgãos ambientais, pela elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA), por parte dos empreendimentos, e pelas audiências públicas que antecedem a decisão pela implantação ou não dos processos produtivos relacionados - e a problemática da ausência de elementos para a proteção da saúde na dimensão socioeconômica. Tal objeto se encontra inscrito em fenômenos específicos: (1) o desenvolvimento da globalização e de sua frente econômica hegemônica - o capitalismo global; (2) o desenvolvimento econômico local; (3) os impactos sobre a saúde e o ambiente produzidos por processos produtivos poluidores que geram situações de riscos de vida. Considera-se tal tema, assim como os fenômenos nos quais está inscrito, como objeto legítimo da bioética, pelos motivos a seguir descritos.

Em primeiro lugar, porque a bioética pode ser entendida como ética aplicada às ações humanas que acarretam transformações reconhecidas como significativas e irreversíveis no mundo vital. Nesse sentido, a implantação de grandes empreendimentos nos territórios, por um lado, afeta o ambiente, seja na fase de implantação - momento das construções de obras de infraestrutura - quanto na fase de operação - pela emissão de poluentes ambientais que contaminam o ar, a água e o solo; por outro, afeta a vida e a saúde das pessoas que vivem nesses locais, pela desapropriação e remoção de moradias, por mudanças sociais e culturais relacionadas a processos migratórios, por questões relativas à ocupação desordenada do território como a favelização, pela exposição humana a poluentes ambientais, por gerar formas de competição por acesso a serviços públicos assistenciais locais, e, por fim, por gerar sobrecarga e escassez nos sistemas locais de saúde (Schramm, 2009SCHRAMM, F. R. Ética aplicada, bioética e ética ambiental, relações possíveis: o caso da bioética global. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 511-630, 2009.).

Em segundo lugar porque a bioética visa à análise e à compreensão da moralidade das ações dos agentes morais sobre pacientes morais. Compreende-se que as transformações relativas ao processo de implantação, operação e desinstalação de processos produtivos nos territórios partem da decisão de determinado agente, o Estado, e têm consequências sobre os pacientes morais (os que sofrem com os efeitos da decisão) representados pelos moradores, trabalhadores e profissionais que atuam nas políticas assistenciais locais. Esses não são somente susceptíveis e vulneráveis a possíveis consequências derivantes da ação do Estado, mas concretamente e vulnerados. Dessa forma, se os impactos na saúde e no ambiente podem atingir, em princípio, qualquer pessoa nas áreas de influência dos empreendimentos, as consequências negativas são concentradas, de fato, sobre indivíduos específicos que trabalham no processo produtivo, os que moram ao redor e os profissionais de saúde que se responsabilizam pelo cuidado em saúde (Schramm, 2002SCHRAMM, F. R. A bioética, seu desenvolvimento e importância para as Ciências da Vida e da Saúde. Revista Brasileira de Cancerologia, Rio de Janeiro, v. 48. n. 4, p. 609-615, 2002.).

Em terceiro lugar, porque, em sua origem, a palavra ethos significa “guarida” ou “morada” e possui proximidade semântica com o oikos ou “casa”. Entendida como tematização do ethos (Maliandi, 2004MALIANDI, R. Ética: conceptos y problemas. Buenos Aires: Biblos, 2004. p.158.), a ética tem em seu espectro de preocupação e de atuação a finalidade da proteção de sujeitos suscetíveis e vulnerados (Schramm, 2010SCHRAMM, F. R. A bioética como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder. Revista Bioética, Brasília, DF, v.18. n.3, p.519-35, 2010.); por isso, mantém relação com a proteção da saúde no processo de licenciamento ambiental. Tem-se, portanto, um objeto legítimo, mas pouco tratado no campo da bioética. Dessa forma, o objetivo é indicar ferramentas da bioética que contribuam para a implicação da proteção da saúde no licenciamento ambiental brasileiro.

Método

Realizou-se revisão integrada da literatura científica, que consiste na construção de uma análise da literatura a respeito de discussões sobre métodos e resultados de pesquisas, assim como reflexões sobre a realização de futuros estudos (Souza; Silva; Carvalho, 2010SOUZA, M. T.; SILVA, M. D.; CARVALHO, R. Revisão integrativa: o que é e como fazer? Einstein (São Paulo), São Paulo, v. 8, n. 1, p.102-106, 2010.). Para isso, foram estabelecidas as seguintes etapas: (1) estruturação da pergunta de pesquisa - quais ferramentas da bioética contribuem para a implicação da proteção da saúde no licenciamento ambiental; (2) busca de evidências nas bases de dados SciELO (Scientific Eletronic Library Online), BVS - Biblioteca Virtual em Saúde e Redalyc - Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal, por meio do recurso de busca (licenciamento OR licensure OR concesión de Licencias) AND (bioética OR bioethics OR bioetica) AND (saúde coletiva OR public Health OR salud pública); e (3) aplicação de critérios de inclusão - artigos indexados, publicados no período 1990 a 2016, nos idiomas português, inglês e espanhol; conteúdo relevante para a pesquisa nos resumos; e critérios de exclusão - artigos incompletos, artigos cujos conteúdos não atendessem ao delineamento da pesquisa.

Com a perspectiva de justificar a pertinência e a legitimidade da bioética para fundamentar a relação entre a moralidade envolvida no processo de licenciamento ambiental e as consequências para a saúde dos indivíduos, populações e dos ecossistemas, utiliza-se o método desconstrutivo, como apresentado por Derrida, que busca deixar evidente no texto aquilo que buscava comandá-lo de fora (Derrida, 2001DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 12.).

Resultados

No processo inicial de busca, foram identificados 71 artigos. Quando aplicados os critérios de inclusão e exclusão, selecionou-se nove. No Quadro 1, está o resumo da revisão integrada da literatura cientifica com artigos localizados nas bases de dados SciELO, Lilacs e Redalyc, no período de 1990-2016, conforme base de dados, título, objetivos e resultados relativos a elementos da bioética da proteção que contribuem para a implicação da proteção da saúde no licenciamento de grandes empreendimentos no Brasil.

Quadro 1
Artigos localizados nas bases de dados SciELO, Lilacs e Redalyc, no período de 1990 a 2016, conforme base de dados, título, objetivos e resultados relativos a elementos da bioética da proteção que contribuem para a implicação da proteção da saúde no licenciamento de grandes empreendimentos no Brasil

Em artigo publicado em 1995, Schramm revê a pertinência de uma ética natural que considere a complexidade do campo da saúde, e considera que a intervenção humana sobre o ambiente tem potência sobre a vida. Diante disso, o princípio da qualidade de vida torna-se ferramenta fundamental nas questões relativas ao estar junto, à equidade, à justiça, ao bem-estar geral. Questiona a supremacia da ciência, propondo o diálogo pela transformação do conhecimento científico em senso comum comprometido com as normas e os valores das sociedades e pela tradução do senso comum em questões para a investigação científica (Schramm, 1995SCHRAMM, F. R. A terceira margem da saúde: a ética “natural”. História, Ciências, Saúde-Maguinhos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 54-68, 1995.).

Em 1997, Silva e Schramm (1997SILVA, E. R.; SCHRAMM, F. R. A questão ecológica: entre a ciência e a ideologia/utopia de uma época. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.355-382, 1997.) analisam a problemática ambiental no contexto da racionalidade científica, em que o conflito entre a relação homem/meio natural fica evidente e faz surgir movimentos sociais que denunciam os impactos ambientais produzidos pelo modelo tecnoindustrial, altamente poluidor, consumidor dos recursos naturais e gerador de desordem global da biosfera. Coloca-se em evidência a necessidade de uma ética de solidariedade implicada com o diálogo, a regulação, o agir, a inclusão, com o reconhecimento do conflito, com a corresponsabilidade frente o avanço da tecnociência.

Schramm e Kottow (2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, Miguel. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.) caracterizam os problemas morais em saúde pública e consideram que o principialismo - corrente particular, originária dos Estados Unidos da América, que forneceu um modelo bioético para as práticas biomédicas, cujo âmago são os princípios de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça - não é adequado para esse campo por não se cumprir efetivamente o princípio da justiça em que as intervenções devem promover a redução da desigualdade. Assim, propõem o princípio da proteção, que seria mais adequado aos propósitos bioéticos em saúde pública, na qual a proteção deve ser direcionada aos sujeitos que de fato necessitam dela, por meio da implementação de políticas públicas, moralmente corretas e eficazes do ponto de vista técnico.

Em 2002, um artigo tratou de caracterizar o desenvolvimento da bioética e seu potencial para lidar com os problemas ligados à pesquisa com seres humanos. Apresenta a bioética lato sensu como uma ética planetária que se preocupa com a responsabilidade pelos danos produzidos pela ação humano sobre o ambiente (Schramm, 2002SCHRAMM, F. R. A bioética, seu desenvolvimento e importância para as Ciências da Vida e da Saúde. Revista Brasileira de Cancerologia, Rio de Janeiro, v. 48. n. 4, p. 609-615, 2002.).

Pontes e Schramm (2004PONTES, C. A.A; SCHRAMM, F. R. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p.1319-1327, 2004.) estudaram a bioética da proteção e o papel do Estado no que se refere ao acesso desigual à água potável como problema de saúde pública. Os autores consideram que a bioética contribui para a responsabilização do Estado como agente protetor estratégico na construção de uma sociedade justa e equânime, comprometida com a proteção da saúde de seus membros, bem como com a promoção de seus legítimos projetos de desenvolvimento pessoal.

Schramm (2009SCHRAMM, F. R. Ética aplicada, bioética e ética ambiental, relações possíveis: o caso da bioética global. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 511-630, 2009.) realizou análise da problemática de ética aplicada, bioética e ética ambiental, identificando que o denominador comum entre elas está na referência de cada uma à ética e ao ethos, assim como pelos métodos comuns para construir seus objetos específicos; ou seja: (1) a descrição e compreensão (no duplo sentido de “representar” e “apresentar”) dos conflitos existentes no ethos; e (2) a prescrição e a proscrição de comportamentos humanos.

Assumpção e Schramm (2012ASSUMPÇÃO, E. L. A.; SCHRAMM, F. R.S. Elementos para uma análise bioética das transformações urbanas recentes no Rio de Janeiro sob a ótica da globalização. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 20. n. 1, p. 106-18, 2012.) estudaram as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro relativas a grandes eventos mundiais - Olimpíadas e Copa do Mundo - à luz dos elementos para uma análise bioética. Trata-se de importante contribuição ao apontar o Estado como agente produtor de vulneração no contexto da globalização econômica e do processo civilizatório que produz gentrificação sob o discurso de revitalização ambiental, expulsando pessoas de seus locais de vida e trabalho para dar lugar a interesses de uma elite globalizada.

Esses autores evidenciam que há uma ética de resistência por parte de grupos humanos vulnerados pelo Estado, e que a bioética tem elementos que contribuem para o fortalecimento da luta desses grupos que se reúnem para interagir nos movimentos sociais. Por isso, a bioética precisa voltar, cada vez mais, seu foco analítico para processos de produção de subjetividade, autonomia e resistência desses movimentos.

Schramm (2014SCHRAMM, F. R. Dialética entre liberalismo, paternalismo de Estado e biopolítica. Análise conceitual, implicações bioéticas e democráticas. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22. n. 1, p. 10-17, 2014.) analisou os conceitos de liberalismo, paternalismo, biopolítica e bioética, estabelecendo relações dialéticas entre si e abrindo espaços para formas de resistência às ameaças à qualidade de vida de pessoas e populações resultantes de ações questionáveis. Nesse estudo, a bioética é justamente vista como forma de resistência que inclui a análise de macroproblemas e conflitos coletivos por meio da desconstrução teórica prévia de categorias, uma crítica ética e uma oposição política concreta a uma anexação não justificada da bioética à biopolítica, quando, de fato, é possível considerar a bioética como forma de resistência à biopolítica. Trata-se de alternativa libertadora frente às práticas de biopolítica por mediar questões normativas envolvidas pelas relações da vida orgânica (zoe), da vida prática (bíos) e dessas com a política (polis), propiciando o empoderamento dos cidadãos.

Discussão

Os artigos selecionados e descritos abordam aspectos teóricos, conceituais e práticos relacionados a elementos da bioética da proteção que contribuem para a implicação da proteção da saúde no licenciamento ambiental. Apesar de não tratarem de analisar, especificamente, o licenciamento ambiental, fica evidente que essa problemática está implicada com os problemas bioéticos abordados que são discutidos a seguir.

O capitalismo global, o desenvolvimento local e a questão ambiental

Inicialmente, cabe considerar que a implantação de grandes empreendimentos no Brasil deve ser compreendida em sua relação com a globalização econômica, inscrita nos aspectos dos avanços tecnológicos e biotecnológicos que intensificam as relações sociais numa dimensão mundial, assim como nos conflitos e, em princípio, nas possibilidades de encontrar pontos de convergência (Assumpção; Schramm, 2012ASSUMPÇÃO, E. L. A.; SCHRAMM, F. R.S. Elementos para uma análise bioética das transformações urbanas recentes no Rio de Janeiro sob a ótica da globalização. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 20. n. 1, p. 106-18, 2012.).

De modo semelhante, o processo de refino de petróleo situa-se na problemática ambiental por causa de seus impactos locais que se tornam globais, como, por exemplo, a produção de gases do efeito estufa, tanto pela emissão de poluentes industriais, quanto pela utilização massiva de automóveis. Por isso, insere-se no circuito complexo do capitalismo global em que a ampliação da infraestrutura para viabilizar processos produtivos representa uma perspectiva para a transfronteirização da política e da economia (Assumpção; Schramm, 2012ASSUMPÇÃO, E. L. A.; SCHRAMM, F. R.S. Elementos para uma análise bioética das transformações urbanas recentes no Rio de Janeiro sob a ótica da globalização. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 20. n. 1, p. 106-18, 2012.).

Lançando luz sobre o processo de dominação econômica, Assumpção e Schramm (2012ASSUMPÇÃO, E. L. A.; SCHRAMM, F. R.S. Elementos para uma análise bioética das transformações urbanas recentes no Rio de Janeiro sob a ótica da globalização. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 20. n. 1, p. 106-18, 2012.) contribuem para a reflexão sobre os processos decisórios no contexto da globalização, fenômeno que não se constitui por meio de acordos horizontais entre os envolvidos, mas se concretiza por meio de relações de poder verticais e hierárquicas e/ou conflitos efetivos.

Essas relações de poder remetem às elites globais e nacionais constitutivas de um poder supranacional ou um império em que há transferência de soberania dos Estados-nação para uma entidade superior marcada por grande tensão entre um lugar institucional e a série de instrumentos globais utilizado pelo capital, bem como por uma rede ou conjunto de relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social (Negri, 2003NEGRI, A. Cinco lições sobre império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 28.; 2006NEGRI, A. De volta. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 99.).

Para estabelecer essas relações de poder, faz-se uso do discurso de desenvolvimento econômico local útil ao poder incorporador do capitalismo global, que realiza cooptação dos agentes políticos para se adequarem à lógica mercadológica global (Assumpção; Schramm, 2012ASSUMPÇÃO, E. L. A.; SCHRAMM, F. R.S. Elementos para uma análise bioética das transformações urbanas recentes no Rio de Janeiro sob a ótica da globalização. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 20. n. 1, p. 106-18, 2012.).

Esse processo de cooptação é necessário à homogeneização que é antecedida pela adaptação ao poder, história e diversidade locais. As adaptações ocorrem à medida que esses três campos se tornam mercadorias, que, como tais, atendem à globalização econômica (Santos, 2005SANTOS, B. S. O processo de globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.). A globalização e as ciências sociais. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2005. p.25-94.).

Para Santos (2005SANTOS, B. S. O processo de globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.). A globalização e as ciências sociais. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2005. p.25-94.), a globalização é vasto campo de conflitos e se impõe como campo hegemônico, atuando sobre o consenso de seus membros mais influentes. Tal consenso lhe confere a dominação e a legitima como a única possível ou mais adequada, consolidando-se a partir da simultânea negação e afirmação do consenso. Santos (2000SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.) considera a globalização, de modo geral, perversa por aumentar de forma abissal as desigualdades locais.

Diante desse cenário complexo de inter-relações entre implantação de empreendimentos, globalização e desenvolvimento econômico local, deve-se analisar os atos humanos e os efeitos irreversíveis significativos sobre a biosfera (Schramm, 2009SCHRAMM, F. R. Ética aplicada, bioética e ética ambiental, relações possíveis: o caso da bioética global. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 511-630, 2009.; Schramm; Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, Miguel. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.).

Também importa imprimir à globalização uma ética diretamente voltada para a sobrevivência, em longo prazo, da espécie humana. Isso dar-se-á pela proteção da dignidade humana e da preservação e restabelecimento de um ambiente saudável (Schramm, 2009SCHRAMM, F. R. Ética aplicada, bioética e ética ambiental, relações possíveis: o caso da bioética global. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 511-630, 2009.). Desse modo, poderá se considerar a relação entre ethos e oikos, tendo em conta toda a problemática sobre os efeitos dos dispositivos biopolíticos e de biopoder, e sua avaliação moral e ponderação política (Schramm, 2010SCHRAMM, F. R. A bioética como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder. Revista Bioética, Brasília, DF, v.18. n.3, p.519-35, 2010.).

Licenciamento ambiental e as implicações bioéticas

O licenciamento ambiental implica responsabilidades tecnocientíficas por parte dos analistas ambientais (ao estabelecerem os parâmetros dos termos de referência) e dos especialistas (consultores) que elaboram os estudos de impacto ambiental, e responsabilidade política e social pela decisão de aprovar a introdução de situação de riscos nos territórios em que estão ecossistemas, seres vivos e pessoas que habitam os territórios (Silva et al. 2013SILVA, J. M.; et al. Desenvolvimento sustentável e saúde do trabalhador nos estudos de impacto ambiental de refinarias no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 687-700, 2013.; Silva et al., 2009SILVA, J. M. et al. A inter-relação saúde, trabalho e ambiente no licenciamento da refinaria do Nordeste. Tempus: Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 4, n. 4, p. 72-83, 2009.).

Os resultados evidenciam que o licenciamento ambiental se inscreve no campo das preocupações da bioética por ser uma intervenção sobre um território em que, de modo geral, vivem pessoas e outros seres vivos, que são, geralmente, afetados pelas transformações produzidas. A bioética da proteção tem sido considerada a ética aplicada às ações humanas referidas a fenômenos e processos vitais por meio de conceitos, argumentos e normas que valorizam e legitimam eticamente os atos humanos cujos efeitos afetam profunda e irreversivelmente, de maneira real ou potencial, os sistemas vitais, sendo questão crucial no licenciamento ambiental com a perspectiva de proteger a saúde coletiva e os ecossistemas (Schramm, 1995SCHRAMM, F. R. A terceira margem da saúde: a ética “natural”. História, Ciências, Saúde-Maguinhos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 54-68, 1995.; Silva; Schramm, 1997SILVA, E. R.; SCHRAMM, F. R. A questão ecológica: entre a ciência e a ideologia/utopia de uma época. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.355-382, 1997.; Schramm; Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, Miguel. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.).

A concepção de bioética mais adequada a esse contexto é a da proteção adotada por Pontes e Schramm (2004PONTES, C. A.A; SCHRAMM, F. R. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p.1319-1327, 2004.), por ser abrangente para dar conta do vastíssimo espectro de atuação humana sobre o mundo vivo e que pode afetar positiva ou negativamente os seres humanos, os seres vivos e os delicados equilíbrios autopoiéticos que caracterizam o meio ambiente.

A complexidade envolvendo as situações de riscos, os impactos à saúde e a produção de novas formas de adoecer e morrer, devido à introdução de processos produtivos poluentes, impõe compreender de forma crítica as consequências de uma ação, respondendo a questões filosóficas substantivas relativas à natureza da ética, ao valor da vida (Schramm; Kottow, 2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, Miguel. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.), incluindo as consequências das políticas públicas, em particular as de saúde (Silva et al., 2013SILVA, J. M.; et al. Desenvolvimento sustentável e saúde do trabalhador nos estudos de impacto ambiental de refinarias no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 687-700, 2013.; Silva; Gurgel; Augusto, 2016SILVA, J. M.; GURGEL, I. D. G.; AUGUSTO, L. G. S. Saúde, ecologia de saberes e estudos de impactos ambientais de refinarias no Brasil. Interface - comunicação, saúde e educação, Botucatu, v. 20. n. 56, p. 111-122, 2016.).

Em conformidade a essa perspectiva, pode-se afirmar que o licenciamento ambiental é momento estratégico para a proteção da saúde coletiva. Por ser um momento de conflito, exige diálogo aberto sobre as consequências das ações dos analistas ambientais e especialistas (agentes morais) que contribuem para a autorização das transformações produzidas pelos processos produtivos sobre a vida de populações, seres vivos e ecossistemas (pacientes morais) (Schramm, 2002SCHRAMM, F. R. A bioética, seu desenvolvimento e importância para as Ciências da Vida e da Saúde. Revista Brasileira de Cancerologia, Rio de Janeiro, v. 48. n. 4, p. 609-615, 2002.; Silva; Gurgel; Augusto, 2016SILVA, J. M.; GURGEL, I. D. G.; AUGUSTO, L. G. S. Saúde, ecologia de saberes e estudos de impactos ambientais de refinarias no Brasil. Interface - comunicação, saúde e educação, Botucatu, v. 20. n. 56, p. 111-122, 2016.).

A preocupação com a moralidade no licenciamento ambiental assemelha-se à da pesquisa em seres humanos. No entanto, os interesses mercadológicos exercem pressão maior sobre os agentes morais, ampliando as suspeitas de conflitos de interesses. Um exemplo disso é a contratação de consultoria para a elaboração dos EIA pelos próprios empreendedores (Zhouri, 2008ZHOURI, A. Justiça ambiental, diversidade cultural e accountability - desafios para a governança ambiental. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 68, p. 97-107, 2008.).

Fica a suspeita de que os interessados na implantação certamente não irão produzir provas contra si mesmos, indicando os impactos ambientais reais. Nos casos de empreendimentos públicos, o maior interessado tem sido o próprio Estado brasileiro, que tem a responsabilidade de proteger populações e grupos ameaçados, inclusive, pelos interesses mercadológicos.

A concepção de Estado protetor pressupõe que a este cabe o comprometimento com o o requisito de justiça sanitária, como o princípio de proteção, que deve ser exercido no sentido de cobrir as necessidades básicas para a construção de um ordenamento social justo e de proteger a qualidade de vida das populações (Pontes; Schramm, 2004PONTES, C. A.A; SCHRAMM, F. R. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p.1319-1327, 2004.).

Proteção é a perspectiva do licenciamento ambiental; no entanto, efetivar ações que promovam melhor qualidade de vida depende da qualidade dos EIA. Esses devem indicar os impactos reais e as respectivas medidas mitigadoras compensatórias a serem desenvolvidas (Silva; Gurgel; Augusto, 2016SILVA, J. M.; GURGEL, I. D. G.; AUGUSTO, L. G. S. Saúde, ecologia de saberes e estudos de impactos ambientais de refinarias no Brasil. Interface - comunicação, saúde e educação, Botucatu, v. 20. n. 56, p. 111-122, 2016.).

Nesse caso, aplica-se o princípio de proteção recomendado por Schramm e Kottow (2001SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, Miguel. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.). Este deve ser entendido como especificação do princípio de responsabilidade, como o mais adequado para abordar os problemas morais relacionados com a saúde pública.

Dessa maneira, a bioética da proteção apresenta-se como ética da responsabilidade social na qual o Estado se baseia para assumir obrigações sanitárias para com as populações humanas consideradas em seus contextos reais, que são, ao mesmo tempo, naturais, culturais, sociais e ecoambientais (Pontes; Schramm, 2004PONTES, C. A.A; SCHRAMM, F. R. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p.1319-1327, 2004.; Schramm, 2009SCHRAMM, F. R. Ética aplicada, bioética e ética ambiental, relações possíveis: o caso da bioética global. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 511-630, 2009.).

Nessa perspectiva, o princípio de proteção exige que seja especificado, claramente, aquilo que deve ser protegido, quem deve proteger o que e para quem a proteção está dirigida, tornando-se, portanto, operacional. Em particular, os grupos populacionais a serem protegidos em suas necessidades específicas devem ser esclarecidos sobre as medidas protetoras; caso contrário, estas só poderão ser percebidas como paternalistas e/ou arbitrárias, tornando-as, portanto, ineficazes (Schramm, 2014SCHRAMM, F. R. Dialética entre liberalismo, paternalismo de Estado e biopolítica. Análise conceitual, implicações bioéticas e democráticas. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22. n. 1, p. 10-17, 2014.).

Ademais, as informações produzidas pelos analistas ambientais e especialistas consultores não devem se reduzir a meandros de pesquisas realizadas para a elaboração dos EIA, com linguagem conhecida tão somente por profissionais atuantes no universo paradoxalmente fechado de instituições como fundações de apoio a universidades, agências ambientais e empresas privadas de gestão ambiental.

Por estas razões, o fato de existir nas consultorias especialistas pesquisadores com a suposta isenção, determinação de fazer o bem, integridade de caráter e rigor científico, não garante a eticidade nem isenta qualquer cientista da suspeita (Schramm, 2002SCHRAMM, F. R. A bioética, seu desenvolvimento e importância para as Ciências da Vida e da Saúde. Revista Brasileira de Cancerologia, Rio de Janeiro, v. 48. n. 4, p. 609-615, 2002.). Um exemplo tem sido a ausência de aspectos importantes de proteção da saúde nos EIA no Brasil, o que implica suspeitar da não identificação de impactos, com vistas a favorecer a autorização de implantação, desconsiderando a produção de situação de riscos à saúde (Silva et al., 2013SILVA, J. M.; et al. Desenvolvimento sustentável e saúde do trabalhador nos estudos de impacto ambiental de refinarias no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 687-700, 2013.; Silva; Gurgel; Augusto, 2016SILVA, J. M.; GURGEL, I. D. G.; AUGUSTO, L. G. S. Saúde, ecologia de saberes e estudos de impactos ambientais de refinarias no Brasil. Interface - comunicação, saúde e educação, Botucatu, v. 20. n. 56, p. 111-122, 2016.).

Uma alternativa no sentido de qualificar os EIA seria o licenciamento ambiental integrado, em que os órgãos ambientais contariam com a participação de instituições de referência (universidades, centros de pesquisas, institutos) por meio de pareceres técnicos para a elaboração do termo de referência, assim como do pedido de anuência, após análise crítica dos EIA por órgãos colegiados de participação democrática, como os conselhos de saúde e os de meio ambiente.

Ressalta-se que os comitês de ética ligados ao Conselho Nacional de Saúde são locais virtuosos em que se faz uso de ferramentas cognitivas, normativas e protetoras da bioética. O sistema de avaliação constituído pelos comitês de ética em pesquisa da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, inspirado na bioética secular, representa-se como ferramenta legítima e, prima facie, eficazes para contribuir para a eticidade do licenciamento ambiental, no que se refere à saúde pública (Schramm, 2002SCHRAMM, F. R. A bioética, seu desenvolvimento e importância para as Ciências da Vida e da Saúde. Revista Brasileira de Cancerologia, Rio de Janeiro, v. 48. n. 4, p. 609-615, 2002.; 2010SCHRAMM, F. R. A bioética como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder. Revista Bioética, Brasília, DF, v.18. n.3, p.519-35, 2010., 2014SCHRAMM, F. R. Dialética entre liberalismo, paternalismo de Estado e biopolítica. Análise conceitual, implicações bioéticas e democráticas. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22. n. 1, p. 10-17, 2014.).

As ferramentas conceituais a serem utilizadas para a abordagem do licenciamento ambiental não devem ser aquelas do modelo principialista, baseado nos quatro princípios de “não maleficência”, “beneficência”, “autonomia” e “justiça” por se apresentarem como inadequadas no tratamento de problemas que ocorrem em contextos coletivos, como os da saúde pública ou da saúde global (Schramm, 1995SCHRAMM, F. R. A terceira margem da saúde: a ética “natural”. História, Ciências, Saúde-Maguinhos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 54-68, 1995.; Silva; Schramm, 1997SILVA, E. R.; SCHRAMM, F. R. A questão ecológica: entre a ciência e a ideologia/utopia de uma época. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.355-382, 1997.).

O reconhecimento dos conflitos é fundamental porque toda prática social se inscreve inevitavelmente na dialética entre conflitos e cooperação que molda as sociedades históricas. Por isso, a bioética serve como o saber prático que visa justamente dar conta das implicações morais, buscando entender, explicar a realidade dos conflitos e tentando estabelecer convergências para obter uma espécie de harmonia (Maliandi, 2004MALIANDI, R. Ética: conceptos y problemas. Buenos Aires: Biblos, 2004. p.158.).

Diante do conflito de interesses, em que o Estado brasileiro é o maior interessado na ampliação da infraestrutura por meio de grande obras de desenvolvimento, e em que se manifestam movimentos sociais de resistência aos empreendimentos nos locais-comunidades, defende-se, aqui, que a bioética da proteção, na sua dimensão lato sensu, representa uma forma virtuosa de resistência, do mesmo modo que se faz quanto às práticas de biopolítica que submetem o questionamento ético a supostas necessidades pragmáticas de um realismo político, considerado mais concreto, efetivo e legítimo em sua gestão dos corpos, das populações e da vida em geral, algumas vezes com o cinismo de um interesse público para justificar práticas moralmente injustas (Schramm, 2010SCHRAMM, F. R. A bioética como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder. Revista Bioética, Brasília, DF, v.18. n.3, p.519-35, 2010.).

Um exemplo de como aplicar uma bioética de resistência é a análise crítica dos EIA, nos aspectos socioantropológicos, por meio da operação de desconstrução dos conceitos que materializam os conteúdos e de sua reconstrução à luz da bioética da proteção, produzindo-se medidas mitigadoras e compensatórias direcionadas a propiciar resistência aos efeitos nocivos sobre a saúde e o ambiente, reconstruindo formas de resistência em nome daquilo que não pode estar sujeito à desconstrução: a justiça. A desconstrução é um método analítico e interpretativo dos conflitos morais inscritos na biopolítica, mas também ferramenta que justifica práticas bioéticas questionadoras da biopolítica e do biopoder (Schramm, 2010SCHRAMM, F. R. A bioética como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder. Revista Bioética, Brasília, DF, v.18. n.3, p.519-35, 2010.).

Nesse sentido, pode-se produzir ferramentas de resistência que contribuem para o fortalecimento do controle social mediante a cooptação e manipulação do Estado, a exemplo do que ocorre nas audiências públicas previstas no licenciamento ambiental (Zhouri, 2008ZHOURI, A. Justiça ambiental, diversidade cultural e accountability - desafios para a governança ambiental. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 68, p. 97-107, 2008.). A perspectiva é de que as audiências públicas sejam, de fato, dispositivos de poder deslocados e restituídos ao uso comum de participação democrática e produção de diálogo aberto para a justiça social.

Segundo Schramm (2014SCHRAMM, F. R. Dialética entre liberalismo, paternalismo de Estado e biopolítica. Análise conceitual, implicações bioéticas e democráticas. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22. n. 1, p. 10-17, 2014.), a bioética representa, além de um questionamento e uma crítica, uma resistência à biopolítica e a seu reducionismo ao biológico. Segundo o autor, há inter-relações que incluem os interesses da economia e da gestão pública. A bioética possibilita uma síntese prática no processo de “empoderamento” ou “libertação”, entendidos como resultado existencial do exercício concreto da cidadania, representado pela democracia participativa.

No momento de decidir sobre a implantação de um processo produtivo, que transforma as dimensões da vida ao autorizar a construção das obras por mera decisão política sem levar em conta a vida de seres humanos, dos outros seres vivos e de todo ecossistema, essa alienação é uma forma de manifestação da biopolítica sobre a vida. E, desse modo, cabe à bioética se estabelecer como forma de resistência à biopolítica e ao biopoder; ou seja, uma alternativa, mediando em prol do empowerment dos cidadãos (Schramm, 2014SCHRAMM, F. R. Dialética entre liberalismo, paternalismo de Estado e biopolítica. Análise conceitual, implicações bioéticas e democráticas. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22. n. 1, p. 10-17, 2014.).

Conclusão

Amparado numa revisão integrativa de literatura, foram identificados entre os elementos da bioética aqueles voltados à proteção, que envolve outras dimensões éticas: responsabilidade, solidariedade e resistência. O método utilizado da desconstrução como método analítico e interpretativo de conflitos contribui para o estabelecimento dos meios de proteção da saúde no processo de licenciamento ambiental no Brasil.

Nesse sentido, foram estabelecidas relações que caracterizam o licenciamento ambiental como vinculado a uma moralidade que implica transformações complexas nos territórios onde habitam populações e outros seres vivos dos ecossistemas, e que se inscrevem no campo da bioética da proteção lato sensu, sendo pertinente a adoção de práticas que visem a melhor qualidade de vida e empoderamento dos cidadãos, frente às ameaças de introdução de situação de nocividades à saúde e de danos ambientais irreversíveis.

O tema não é esgotado, sendo necessários novos estudos - teóricos e empíricos - sobre outros aspectos da bioética, como ferramentas de proteção da saúde nas situações de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos.

Reconhece-se as limitações do método, principalmente quanto ao recurso de busca utilizando o termo licenciamento, no entanto a problemática envolvida está implicada com os problemas bioéticos - ética ambiental, bioética global, ética natural, biopoder, biopolítica, globalização, movimentos sociais.

Conclui-se que, no contexto do processo de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil, a bioética pode contribuir como ferramenta teórica e prática para mediar os conflitos morais existentes, realizando a descrição pormenorizada dos conflitos e de dilemas, a crítica, a justificação e a proposição de medidas moralmente aceitáveis para a proteção da vida.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2017
  • Revisado
    17 Maio 2017
  • Aceito
    17 Ago 2017
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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