Violência doméstica contra mulheres rurais: práticas de cuidado desenvolvidas por agentes comunitários de saúde

Domestic violence against rural women: care practices developed by community health workers

Jaqueline Arboit Marta Cocco da Costa Ethel Bastos da Silva Isabel Cristina dos Santos Colomé Monique Prestes Sobre os autores

Resumo

A violência contra as mulheres é considerada um problema de saúde pública. No cenário rural, se torna ainda mais grave, haja vista um histórico de singularidades e isolamento das mulheres. Este estudo buscou conhecer as práticas de cuidado desenvolvidas por agentes comunitários de saúde na atenção às mulheres em situação de violência doméstica residentes em áreas rurais. Trata-se de uma investigação exploratório-descritiva, de abordagem qualitativa, da qual participaram 13 agentes comunitárias de saúde. A produção de dados ocorreu através da técnica de grupo focal e de entrevistas semiestruturadas. Para a análise dos dados empregou-se a análise de conteúdo. Os resultados revelaram que essas profissionais de saúde utilizavam práticas de cuidado relacionais, como o diálogo, a escuta ativa e o vínculo, bem como aquelas relativas ao próprio contexto e ao serviço de saúde, como as orientações e o trabalho em equipe. As agentes comunitárias de saúde encontravam possibilidades de identificar e intervir nas situações de violência doméstica contra mulheres rurais. Contudo, necessitavam de qualificação, apoio multiprofissional e intersetorial para que pudessem responder de modo eficaz às demandas biopsicossociais dessa população específica.

Palavras-chave:
Violência contra a Mulher; Violência Doméstica; Agentes Comunitários de Saúde; Atenção Primária à Saúde; População Rural

Abstract

Violence against women is regarded as a public health problem. This scenario becomes even more serious in rural areas, considering a background of singularities and isolation of women. This study sought to know the care practices developed by community health workers in the care of women in situations of domestic violence and living in rural areas. This is an exploratory-descriptive research, with a qualitative approach, in which 13 community health workers participated. The production of data was done through a focal group and semi-structured interviews. Content analysis was used to analyze the data. The results showed that these health professionals used relational care practices, such as dialogue, active listening and bonding, as well as those relating to the context itself and the health service, such as guidance and teamwork. The community health workers found possibilities to identify and intervene in situations of domestic violence against rural women. Nevertheless, they needed training and multidisciplinary and intersectoral support, so they could effectively meet the biopsychosocial needs of this specific population.

Keywords:
Violence against Women; Domestic Violence; Community Health Workers; Primary Health Care; Rural Population

Introdução

A violência contra as mulheres é um problema social e de saúde pública, que leva à violação dos direitos humanos das mulheres (Rodriguez-Borrego; Vaquero-Abellan; Rosa, 2012RODRIGUEZ-BORREGO, M. A.; VAQUERO-ABELLAN, M.; ROSA, L. B. A cross-sectional study of factors underlying the risk of female nurses’ suffering abuse by their partners. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 20, n. 1, p. 11-18, 2012.). Dentre os diferentes tipos de violência contra essa população, destaca-se a violência doméstica, conduta desumana e agravante que se apresenta na esfera microssocial e que vem sendo adotada dentro de inúmeros domicílios do Brasil (Oliveira, 2012OLIVEIRA, E. R. Violência doméstica e familiar contra a mulher: um cenário de subjugação do gênero feminino. Revista do Laboratório de Estudos da Violência e Segurança - LEVS, Marília, v. 9, p. 150-165, 2012.), como apontam os dados do Mapa da Violência, segundo o qual 41% das mortes de mulheres no Brasil aconteceram dentro do domicílio, e em 68,8% dos casos de atendimentos a mulheres que sofreram violência essa agressão ocorreu em seu próprio domicílio (Waiselfisz, 2012WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2012 - Atualização: homicídios de mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, 2012. 27 p. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1Wu8oaK >. Acesso em: 29 maio 2018.
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).

Nessa direção, adota-se nesta investigação o conceito de violência doméstica e familiar proposto pela Lei Maria da Penha, a qual é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações em nível mundial, para o enfrentamento da violência contra as mulheres (Brasil, 2006BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Seção 1, p. 1.). De acordo com essa lei, constituem formas de violência doméstica contra as mulheres: a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Tais formas de violência doméstica podem ocorrer tanto no espaço doméstico e familiar quanto a partir de qualquer relação íntima de afeto, podendo o agressor conviver ou ter convivido com a mulher, independentemente de coabitação (Brasil, 2006BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Seção 1, p. 1.).

Em se tratando do cenário rural, a violência contra as mulheres se torna ainda mais grave, haja vista um histórico de singularidades, anonimato e isolamento das mulheres, além da distância geográfica em relação à área urbana (Costa; Lopes, 2012COSTA, M. C.; LOPES, M. J. M. Elementos de integralidade nas práticas profissionais de saúde a mulheres rurais vítimas de violência. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 46, n. 5, p. 1087-1094, 2012.). Nesse sentido, também se destacam as dificuldades de acesso geográfico e funcional dessas mulheres aos serviços de atendimento, que, em sua maioria, estão localizados na área urbana. A soma desses fatores concorre para o aumento da invisibilidade da problemática da violência contra as mulheres ao se particularizar o meio rural.

Nessa direção, estudos nacionais e internacionais têm apontado diferentes formas de violência doméstica que as mulheres rurais vivenciam, como a violência física, psicológica, moral, sexual (Ahmad et al., 2016AHMAD, J. et al. Gender-based violence in rural Uttar Pradesh, India: prevalence and association with reproductive health behaviors. Journal of Interpersonal Violence, Thousand Oaks, v. 31, n. 19, p. 3111-3128, 2016.; Arboit et al., 2015ARBOIT, J. et al. Domestic violence against rural women: gender interface in community health agents’ conception. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 14, n. 2, p. 1067-1074, 2015.), sobrecarga de trabalho e privação de liberdade por parte do marido e/ou companheiro (Arboit et al., 2015ARBOIT, J. et al. Domestic violence against rural women: gender interface in community health agents’ conception. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 14, n. 2, p. 1067-1074, 2015.). A submissão das mulheres rurais e a consequente suscetibilidade destas à violência doméstica se dão especialmente pela pobreza, pela cultura patriarcal e por papéis de gênero estritamente definidos (Kelmendi, 2015KELMENDI, K. Domestic violence against women in Kosovo: a qualitative study of women’s experiences. Journal of Interpersonal Violence, Thousand Oaks, v. 30, n. 4, p. 680-702, 2015.).

Nesse contexto, parte-se do pressuposto de que os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) são fundamentais e estratégicos para a detecção de situações de violência contra as mulheres, porque apresentam, em tese, uma ampla cobertura e uma relação relativamente próxima destas em seu território, sendo um serviço potencialmente capaz de reconhecer e acolher mulheres que vivenciam a violência (Schraiber et al., 2002SCHRAIBER, L. B. et al. Violência contra a mulher: estudo em uma unidade de atenção primária à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 470-477, 2002.), principalmente, aquelas residentes em áreas rurais.

Dentre os profissionais de saúde que estão envolvidos no processo de enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres, destaca-se o agente comunitário de saúde (ACS), o qual faz parte da equipe da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Pelo fato de habitar a mesma área de abrangência em que trabalha, esse profissional apresenta possibilidades de conhecer a dinâmica familiar, podendo, em muitos casos, identificar situações de violência doméstica contra as mulheres, a partir da própria observação ou também pela relação de vínculo estabelecida com os usuários (Fonseca et al., 2009FONSECA, R. M. G. S. et al. Violência doméstica contra a mulher na visão do agente comunitário de saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 17, n. 6, p. 974-980, 2009.). Dessa forma, são atores fundamentais no processo de identificação de situações de violência doméstica contra as mulheres residentes no meio rural.

Assim, o desenvolvimento deste estudo justifica-se pelo reconhecimento do crescimento exponencial da violência, de sua relevância como problema de saúde pública no Brasil e de sua “invisibilidade” no meio rural - em particular, da violência doméstica contra as mulheres (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Análise situacional da violência contra mulheres rurais e as interfaces intersetoriais: a problemática em municípios do sul do Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2012.). Considera-se que, embora o fenômeno da violência doméstica contra as mulheres tenha se constituído como importante objeto de investigação nas pesquisas na área da saúde, é necessário que o olhar dos pesquisadores seja direcionado para a produção científica do conhecimento sobre o problema no cenário rural, tendo em vista suas especificidades.

Diante disso, este estudo possui como objeto a prática de cuidado dos ACS na atenção às mulheres em situação de violência doméstica residentes em áreas rurais. Parte de elementos conceituais de práticas de cuidado, visto que, normalmente, o cuidado em saúde aparece com um sentido já consagrado no senso comum, ou seja, o de um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de certo tratamento. Em uma perspectiva teórica mais ampliada, que se afina com este estudo, o cuidado é a “interação entre dois ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade” (Ayres, 2009AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: CEPESC, 2009., p. 35).

Parte-se do princípio de que conhecer as práticas de cuidado dos ACS diante desse problema trará subsídios para a implementação e para o fortalecimento de ações interdisciplinares e integrais voltadas às mulheres rurais em situação de violência doméstica, com vistas à melhoria da qualidade de vida e saúde dessa população. Ainda poderá nortear o planejamento de políticas públicas direcionadas para as necessidades singulares dessas mulheres, em consonância com as diretrizes e os princípios do Sistema Único de Saúde.

Ante a problemática exposta, desenvolveu-se um estudo orientado pela seguinte questão de pesquisa: Quais as práticas de cuidado desenvolvidas por ACS na atenção às mulheres em situação de violência doméstica residentes em áreas rurais?

Para respondê-la, objetivou-se conhecer as práticas de cuidado desenvolvidas por ACS na atenção às mulheres em situação de violência doméstica residentes em áreas rurais.

Métodos

Considerando a coerência com o objeto de estudo, foi desenvolvida uma pesquisa descritiva de abordagem qualitativa. A abordagem qualitativa é empregada ao se investigar os significados, crenças, opiniões e valores em relação à questão de investigação (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.).

Elegeu-se como campo de estudo a Estratégia dos Agentes Comunitários de Saúde (EACS) e ESF de dois municípios situados na região noroeste do Rio Grande do sul. A escolha dos municípios deve-se ao fato de que um deles se caracteriza como de médio porte e representa um dos polos de referência em serviços de saúde de média complexidade para a região. A escolha do segundo município se justifica por este ser de pequeno porte, e por apresentar maior população na área rural do que na urbana, perfazendo um total de 51% da população residente na área rural (Arboit et al., 2015ARBOIT, J. et al. Domestic violence against rural women: gender interface in community health agents’ conception. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 14, n. 2, p. 1067-1074, 2015.).

Os participantes desta investigação foram 13 ACS que atuavam nas áreas rurais dos municípios que foram cenário do estudo. Como critérios de inclusão foram estabelecidos que esses profissionais deveriam possuir tempo de atuação mínimo de seis meses no serviço, e estar desenvolvendo suas atividades durante o período estabelecido para a coleta de dados. Os critérios de exclusão compreenderam: estar ausente do trabalho por licença de qualquer natureza (gestante, doença, adotante).

Considerando que os participantes desse estudo foram predominantemente do sexo feminino, e que a problemática da violência doméstica contra as mulheres tem suas raízes nas desigualdades de gênero, optou-se por fazer referência às participantes no feminino.

Para a coleta de dados utilizaram-se a técnica de grupo focal e entrevistas semiestruturadas. Nesse sentido, de modo a responder ao objetivo proposto pelo estudo, foram realizados dois grupos focais a partir de três sessões grupais com cada grupo de ACS. Para a operacionalização do grupo focal, a equipe de pesquisadores foi composta pela pesquisadora responsável, no papel de moderadora, e por duas assistentes de pesquisa no papel de observadoras (Westphal; Bogus; Faria, 1996WESTPHAL, M. F.; BOGUS, C. M.; FARIA, M. M. Grupos focais: experiências precursoras em programas educativos em saúde no Brasil. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, Washington, DC, v. 120, n. 6, p. 472-481, 1996.). A moderadora coordenou o grupo e realizou indagações de acordo com o objetivo da pesquisa. As observadoras, por sua vez, foram duas acadêmicas do curso de graduação em enfermagem, sendo responsáveis por registrar por escrito as observações gerais, as falas das participantes e os tópicos discutidos (observadora 1); por apreender e registrar as informações não verbais apresentadas pelas ACS, manusear os gravadores, distribuir os crachás e entregar e recolher o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (observadora 2).

As sessões grupais ocorreram nas dependências das Secretarias de Saúde dos municípios, tendo duração média de uma hora e meia. Para conduzir as discussões foi empregado um roteiro guia, contendo momentos-chave, os quais foram: abertura (apresentação, informações e contrato grupal); discussão; síntese; e encerramento. As sessões foram registradas mediante o recurso de gravação (áudio). Os encontros tiveram agendamento prévio de acordo com a disponibilidade de cada grupo de ACS, tendo como foco os seguintes temas: práticas de cuidado desenvolvidas por essas profissionais diante da violência doméstica contra as mulheres residentes em áreas rurais e fatores limitadores e potencializadores para a identificação e enfrentamento de situações de violência doméstica contra mulheres em sua área de atuação.

As sessões de grupo focal foram realizadas em salas agendadas previamente pela pesquisadora e disponibilizadas pelas Secretarias de Saúde dos municípios em estudo. Com base na literatura, optou-se por dispor as cadeiras em círculo, de modo a favorecer o processo de interação e comunicação entre a moderadora e as participantes (Dall’agnol; Trench, 1999DALL’AGNOL, C. M.; TRENCH, M. H. Grupos focais como estratégia metodológica em pesquisa na enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 5-25, 1999.). Destaca-se que, na primeira sessão grupal com cada grupo de ACS, à medida que elas chegavam às salas era confeccionado um crachá com o nome de cada participante e entregue o TCLE. Depois disso, a moderadora realizava a leitura do termo e fazia os esclarecimentos acerca da pesquisa. Assim, todas as ACS que concordaram em participar do estudo assinaram o TCLE em duas vias, ficando uma via com a participante e outra com a pesquisadora responsável. De modo a garantir o anonimato das participantes, seus depoimentos foram identificados a partir de códigos (ACS1, ACS2… ACS13).

Em cada grupo focal, as participantes do estudo foram as mesmas. Destaca-se que, em virtude da qualidade dos dados coletados, não foi necessário ampliar o número de sessões, que foram consideradas suficientes para atingir o objetivo proposto neste estudo.

A entrevista semiestruturada foi utilizada de modo a integralizar os dados obtidos através da técnica de grupo focal. Para as entrevistas empregou-se um roteiro guia, dividido em duas partes: a primeira estava relacionada aos dados sociodemográficos e laborais das ACS, e continha questões fechadas; e a segunda parte que era composta por questões abertas referentes ao objeto do estudo. As entrevistas foram realizadas com as 13 participantes do estudo em horários definidos com elas de modo prévio, de acordo com a disponibilidade de cada participante, em caráter individual e gravadas com o consentimento delas - a fim de registrar os depoimentos em sua totalidade, assegurando material fidedigno para análise. A coleta dos dados ocorreu no período de julho a agosto de 2013.

O material empírico obtido nas sessões de grupo focal e entrevistas semiestruturadas foi analisado mediante a análise de conteúdo temática, a qual se encontra operacionalmente dividida em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.).

Este estudo foi realizado em consonância com as normas da Resolução nº 466/2012 (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 jun. 2013. Seção 1, p. 59-62.) para o desenvolvimento de pesquisas com seres humanos, sendo respeitados os princípios éticos da autonomia, da beneficência, não maleficência e justiça. O estudo foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) sob o Protocolo nº 17149313.7.0000.5346.

Resultados

Em relação às características sociodemográficas e laborais, a idade das participantes variou de 31 a 52 anos, com média de 43 anos. Quanto ao estado civil, 10 profissionais eram casadas ou possuíam companheiro e três eram solteiras. No que se refere ao nível de escolaridade, 11 ACS possuíam segundo grau completo; uma, o primeiro grau completo; e uma, o primeiro grau incompleto.

O tempo de atuação como ACS variou de 3,5 anos a 17 anos, com média de 10,77 anos. Com relação ao número de famílias atendidas por cada ACS, este variou de 58 a 200 famílias, com média de 143,39 famílias.

As discussões advindas da análise das falas das participantes foram desmembradas em três categorias temáticas: “Experiências das ACS com mulheres rurais em situação de violência”, “Práticas de cuidado relacionais direcionadas às mulheres rurais em situação de violência doméstica” e “Práticas de cuidado do contexto e dos serviços de saúde direcionadas às mulheres rurais em situação de violência doméstica”.

Experiências das ACS com mulheres rurais em situação de violência

A primeira categoria temática busca apresentar relatos das ACS acerca dos tipos de violência doméstica vivenciadas por mulheres residentes em áreas rurais, bem como ações desenvolvidas perante essas situações.

As falas revelaram diversas situações de violência doméstica contra as mulheres que vivem nas áreas rurais em que as ACS atuam. Dentre as quais, a violência física, verbal, emocional, a sobrecarga de trabalho e a dependência financeira em relação ao marido e/ou companheiro, como explicitamos a seguir:

eu conheço uma mulher que sofre muito com o marido, porque ele é alcoólatra e fica violento […] aí bate nela, fecha ela pro lado de fora [da casa] […] às vezes ela tem que passar a noite no galpão. (ACS9)

Agressão por palavras […] isso é uma coisa que magoa muito. (ACS12)

a escravidão do trabalho eu acho que é uma violência, porque não é justo a mulher ter que fazer tudo sozinha e o marido só ganhar as coisas prontas. (ACS1)

As mulheres rurais não têm condições de se manterem sozinhas, não tem uma renda pra elas, então se submetem ao marido. (ACS5)

Essas situações de violência foram identificadas quando houve o relato das próprias mulheres, de seus vizinhos ou durante as visitas domiciliares realizadas pelas ACS.

A gente se depara bastante com isso [referindo-se à violência doméstica contra a mulher rural] […] a gente chega na visita e a mulher está triste, abatida, nervosa […] aí no primeiro momento ela não quer se abrir, daí a gente vai conversando e ela acaba contando. (ACS5)

A gente sabe de alguns casos […] ouve comentários dos vizinhos que escutam os gritos […] porque as mulheres tentam disfarçar (ACS2)

Cheguei uma vez na casa de uma mulher que eu fui fazer a visita e ela disse “fui deitar na cama e tinha um martelo e caiu o martelo no olho” […] dali uns dias fui lá de novo, o outro olho machucado (ACS2).

As ACS relataram também algumas ações tomadas diante das situações de violência identificadas, dentre as quais a comunicação do fato à coordenação da equipe de ACS, orientações às mulheres para que busquem seus direitos e o acionamento da polícia. Ainda relataram uma situação exitosa, na qual o marido que agredia a mulher era alcoólatra e após a internação mudou suas atitudes.

a única coisa que posso fazer é passar para a coordenação. (ACS3)

A gente tenta ajudar para que ela consiga dar a volta por cima e ficar de boa com a família […] caso não dê, a gente pede para ir atrás dos seus direitos. (ACS10)

Teve uma situação que eu liguei para a polícia, mas geralmente lá [no meio rural] as mulheres não procuram ajuda, ficam em silêncio, tentam esconder (ACS7)

a maioria dos casos de violência contra a mulher do interior [referindo-se ao meio rural] é motivada pela bebida […] já aconteceu um caso que a gente conseguiu internar o marido para fazer um tratamento […] nos primeiros momentos não foi fácil, ele não queria fazer o tratamento, daí depois ele concordou […] hoje ele é outra pessoa, tranquilo, feliz. (ACS11)

Práticas de cuidado relacionais direcionadas às mulheres rurais em situação de violência doméstica

A segunda categoria temática busca identificar as práticas de cuidado relacionais empregadas pelas ACS em seu cotidiano de trabalho voltadas às mulheres em situação de violência doméstica residentes em áreas rurais.

As falas das ACS revelaram que essas profissionais utilizavam diferentes práticas de cuidado nas relações estabelecidas com as mulheres que viviam no contexto rural, as quais estavam suscetíveis a vivenciar situações de violência doméstica. Dentre esses dispositivos pode-se citar o diálogo, expresso a seguir nas falas das participantes:

o que facilita são as conversas. Você tem que chegar e escutar, dar muita atenção a elas [mulheres] […] precisam de alguém que as escute, converse com elas (ACS4)

eu tenho facilidade de conversar com as pessoas, porque a gente já tem experiência. Elas se sentem aliviadas quando conversam e desabafam comigo […] conversar é o que elas precisam (ACS1)

Na análise das falas das participantes também foi possível identificar que as visitas domiciliares constituem um espaço de grande relevância, em que as ACS podem construir uma relação de vínculo e confiança com as mulheres que residem em áreas rurais, o que tende a facilitar a identificação de situações de violência doméstica, como pode ser evidenciado pelas falas:

fazemos visitas domiciliares e a gente vê a diferença na mulher que sofre violência (ACS13)

o que facilita é com certeza a confiança que as mulheres adquirem em ti (ACS2)

o que facilita é a afinidade que a gente tem com as mulheres, o vínculo (ACS7)

Eu estou há doze anos trabalhando nessa área e as pessoas já têm um vínculo comigo, eles se abrem e eu escuto. (ACS5)

Destaca-se também a presença constante das ACS no espaço doméstico, a partir do acompanhamento do processo saúde/doença das famílias. As participantes consideravam que um fator que facilita o desenvolvimento do cuidado às mulheres que residem em contexto rural e que estão expostas a situações de violência doméstica é o convívio quase cotidiano dessas profissionais com o domicílio das mulheres. As descrições das falas elucidam esse fato:

O que facilita é com certeza o convívio com elas, o dia a dia (ACS3)

Aos poucos você começa a conhecer o cotidiano da família. A gente conhece o histórico das famílias […] como é a mulher, como ela se comporta, como é que ela não se comporta. (ACS5)

Práticas de cuidado do contexto e dos serviços de saúde direcionadas às mulheres rurais em situação de violência doméstica

A terceira categoria temática evidenciou as práticas do contexto e dos serviços de saúde desenvolvidas pelas ACS diante das situações de violência doméstica contra mulheres rurais. Dentre elas estão as orientações às mulheres, conforme consta nos relatos das profissionais:

às vezes você tenta dar um conselho e dizer que a mulher tem que pensar no que é melhor pra ela (ACS6)

Meu papel é ajudar as pessoas. Eu faço tudo o que eu posso para ajudar, para tentar levar mais informações […] se elas têm alguma dúvida, a gente tenta tirar. (ACS8)

As participantes do estudo esforçavam-se para dar informações e continuidade às suas práticas de cuidado a mulheres rurais em situação de violência, mas não se sentiam capazes de abordar sozinhas a questão, mencionando que o trabalho em equipe poderia tornar esse cuidado mais fácil de executar, o que é expresso na fala:

A violência contra as mulheres é um assunto bem difícil de trabalhar como agente comunitária de saúde. Faz 15 anos que trabalho, mas ainda não estou me sentindo apta para lidar com essas situações. […] mas com uma equipe facilitaria muito. (ACS 12)

Na mesma direção, uma das ACS relatou que, em relação à questão da violência doméstica contra mulheres que vivem em áreas rurais, sentia-se impotente, além de não ter o apoio adequado por parte de profissionais de outras áreas para o enfrentamento da problemática:

eu me sinto assim impotente, porque, se você não tem ajuda da enfermeira-chefe, da assistente social e dos outros profissionais, você faz o que está no teu alcance […] mas muita coisa você deixa de fazer por falta de ajuda. (ACS10)

Outra dificuldade relatada pelas ACS foi a falta de formação específica para realizar uma abordagem adequada em situações de violência doméstica nas suas respectivas áreas de atuação, como demonstram as falas a seguir:

nós teríamos que ter uma formação sobre a violência doméstica. Porque a dificuldade é fazer a abordagem da mulher vítima de violência. (ACS11).

como ACS eu me sinto com as mãos amarradas. Nós não temos uma formação para trabalhar com este problema […] temos livre acesso, falamos sobre tudo, sexo, álcool e drogas, mas, quanto à violência, a gente não sabe abordar. (ACS8)

Discussão

Os resultados revelam que as ACS reconhecem em seu cotidiano de trabalho mulheres rurais em situação de violência, seja pelo relato das mulheres, dos vizinhos ou durante visitas domiciliares. E a partir disso desenvolvem práticas de cuidado dessas mulheres, relacionadas tantos aos aspectos relacionais quanto aos do próprio serviço em que atuam.

O diálogo é apontado como um elemento-chave na relação entre as mulheres em situação de violência doméstica e as ACS, pois este permeia suas práticas de cuidado. É a partir da interação proporcionada pelo diálogo que o ACS tem a possibilidade de conhecer o processo saúde/doença das mulheres (Signorelli; Auad; Pereira, 2013SIGNORELLI, M.; AUAD, C. D.; PEREIRA, P. P. G. Violência doméstica contra mulheres e a atuação profissional na atenção primária à saúde: um estudo etnográfico em Matinhos, Paraná, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 6, p. 1230-1240, 2013.), detectando também possíveis situações de violência doméstica vivenciadas por esse grupo populacional.

A realização de visitas domiciliares de modo sistemático, por exemplo, permite que esses profissionais estabeleçam um diálogo pautado em maior espontaneidade e horizontalidade em comparação com outros profissionais (Signorelli; Auad; Pereira, 2013SIGNORELLI, M.; AUAD, C. D.; PEREIRA, P. P. G. Violência doméstica contra mulheres e a atuação profissional na atenção primária à saúde: um estudo etnográfico em Matinhos, Paraná, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 6, p. 1230-1240, 2013.). Pesquisa realizada com equipes de saúde da família apontou que a visita domiciliar se constitui como uma importante ferramenta para a identificação de casos de violência contra as mulheres (Silva; Padoin; Vianna, 2013SILVA, E. B.; PADOIN, S. M. M.; VIANNA, L. A. C. Violence against women: the limits and potentialities of care practice. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 26, n. 6, p. 608-613, 2013.). Neste espaço, os profissionais são capazes de detectar sinais e manifestações de diferentes tipos de violência, e abordar a mulher para que esta realize o relato da violência vivenciada (Silva, Padoin, Vianna, 2013SILVA, E. B.; PADOIN, S. M. M.; VIANNA, L. A. C. Violence against women: the limits and potentialities of care practice. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 26, n. 6, p. 608-613, 2013.).

Ainda em se tratando da visita domiciliária, uma das atividades abrangidas pela profissão do ACS, esta é compreendida como um modo singular que o serviço de saúde pode empregar para prestar assistência à população, potencializando a consolidação de relações de vínculo com ela (Bachilli; Scavassa; Spiri, 2008BACHILLI, R. G.; SCAVASSA, A. J.; SPIRI, W. C. A identidade do agente comunitário de saúde: uma abordagem fenomenológica. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 51-60, 2008.). Ao ser realizada na residência dos usuários, a visita domiciliária permite que o profissional em questão monitore o contexto de vida e o processo saúde/doença, bem como o de suas famílias, conhecendo também como se dá o relacionamento entre os membros do núcleo familiar (Cruz; Bourget, 2010CRUZ, M. M.; BOURGET, M. M. M. A visita domiciliária na Estratégia de Saúde da Família: conhecendo as percepções das famílias. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 605-613, 2010.).

Assim, tal atividade oferece subsídios ao ACS para identificar possíveis situações de violência doméstica contra as mulheres, em especial aquelas residentes em contexto rural, pois o acesso aos serviços de saúde torna-se mais difícil nesse cenário, sendo a visita domiciliária uma das formas que esses serviços utilizam para assistir essa população. Isso porque na visita domiciliar as ACS conseguem observar o comportamento das mulheres, lesões, bem como o relacionamento com o marido e/ou companheiro, o que pode levar a identificação de situações de violência.

Os recortes citados permitem inferir que a regularidade das visitas realizadas pelas ACS às famílias adstritas a territórios delimitados, bem como a escuta ativa, auxiliam na consolidação de relações de compromisso e corresponsabilidade com os usuários, favorecendo a melhoria de sua qualidade de vida e saúde. Por meio desse contexto de proximidade, aliado à uma formação que tem como eixo central estratégias de promoção à saúde, o ACS apresenta condições de identificar situações de violência contra as mulheres (Signorelli; Auad; Pereira, 2013SIGNORELLI, M.; AUAD, C. D.; PEREIRA, P. P. G. Violência doméstica contra mulheres e a atuação profissional na atenção primária à saúde: um estudo etnográfico em Matinhos, Paraná, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 6, p. 1230-1240, 2013.), também no espaço da ruralidade.

Nos relatos das participantes fica explícito que o convívio das ACS com as mulheres rurais, em seus domicílios, potencializa a consolidação do vínculo entre esses atores, o que favorece o relato da situação de violência pela mulher. Estudo revela que o ACS é o profissional que participa mais ativamente do processo de construção de relações de vínculo com as mulheres em situação de violência doméstica (Signorelli; Auad; Pereira, 2013SIGNORELLI, M.; AUAD, C. D.; PEREIRA, P. P. G. Violência doméstica contra mulheres e a atuação profissional na atenção primária à saúde: um estudo etnográfico em Matinhos, Paraná, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 6, p. 1230-1240, 2013.) pela proximidade com a realidade delas.

O ACS assume o papel de mediador social, por meio do vínculo estabelecido com a população, haja vista que pode levar até a equipe do serviço de saúde as demandas identificadas (Filgueiras; Silva, 2011FILGUEIRAS, A. S.; SILVA, A. L. A. Agente comunitário de saúde: um novo ator no cenário da saúde do Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 899-915, 2011.). A partir de sua prática cotidiana e partindo dos pressupostos da integralidade, o ACS aproxima-se das mulheres de sua área de abrangência, e com o decorrer do tempo constrói uma relação pautada no vínculo, a partir da qual essas mulheres se sentem mais seguras para expor problemas e ameaças a que podem estar sujeitas (Carli et al., 2014CARLI, R. et al. Acolhimento e vínculo nas concepções e práticas dos agentes comunitários de saúde. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 626-632, 2014.), incluindo situações de violência no âmbito doméstico.

Reafirmando a relevância do vínculo para a atenção às mulheres em situação de violência, pesquisa mostra que este favorece o processo de diálogo entre as mulheres e os profissionais, o que reflete positivamente no atendimento e acompanhamento delas (Guerrero et al., 2013GUERRERO, P. et al. User embracement as a good practice in primary health care. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 132-140, 2013.).

No que se refere às orientações às mulheres em situação de violência, estudos apontam a importância de esclarecê-las acerca de seus direitos garantidos por dispositivos legais e sobre as opções de serviços para assistência e suporte que podem acionar (Chibber; Krishnan; Minkler, 2011CHIBBER, K. S.; KRISHNAN, S.; MINKLER, M. Physician practices in response to intimate partner violence in southern India: insights from a qualitative study. Women & Health, Abingdon, v. 51, n. 2, p. 168-185, 2011.; Signorelli; Auad; Pereira, 2013SIGNORELLI, M.; AUAD, C. D.; PEREIRA, P. P. G. Violência doméstica contra mulheres e a atuação profissional na atenção primária à saúde: um estudo etnográfico em Matinhos, Paraná, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 6, p. 1230-1240, 2013.).

Os resultados apontam que as ACS buscavam desenvolver diferentes formas de atuação no tocante à abordagem da violência contra as mulheres que habitam em contextos rurais. Isso se deve ao fato de que são inúmeros os desafios e particularidades em torno dessa problemática, indicando que o seu enfrentamento necessita de estratégias diferenciadas em relação à área urbana (Pitanguy; Barsted, 2011PITANGUY, J.; BARSTED, L. L. (Org.). O progresso das mulheres no Brasil 2003-2010. Rio de Janeiro: CEPIA; Brasília, DF: ONU Mulheres, 2011.). Assim, tendo em vista a resolutividade dos casos, uma das estratégias empregadas é o trabalho em equipe.

Partindo dos pressupostos da ESF como reorientadora do modelo assistencial, e considerando a complexidade da violência doméstica contra as mulheres em áreas rurais, o trabalho em equipe tende a proporcionar maior resolutividade dos casos. Em uma equipe, embora cada um dos profissionais que a integre possua competências, deveres e encargos individuais, existe uma interdependência entre estes visando ao alcance de objetivos compartilhados (Navarro; Guimarães; Garanhani, 2013NAVARRO, A. S. S.; GUIMARÃES, R. L. S.; GARANHANI, M. L. Teamwork and its meaning to professionals working in the family health strategy program. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 61-68, 2013.).

Os profissionais de saúde, dentre eles os ACS, entendem que a violência doméstica apresenta importantes repercussões para a vida das mulheres que a vivenciam, tendo consequências diretas para a área da saúde, haja vista os agravos ao processo saúde/doença das vítimas (Gomes; Erdmann, 2014GOMES, N. P.; ERDMANN, A. L. Conjugal violence in the perspective of “Family Health Strategy” professionals: a public health problem and the need to provide care for the women. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 22, n. 1, p. 1-9, 2014.). Reconhecendo, deste modo, que se torna imprescindível que profissionais de áreas diversas troquem conhecimentos, experiências e saberes acerca da violência doméstica contra as mulheres, buscando o desenvolvimento de ações que proporcionem um cuidado integral a essas mulheres (Gomes; Erdmann, 2014GOMES, N. P.; ERDMANN, A. L. Conjugal violence in the perspective of “Family Health Strategy” professionals: a public health problem and the need to provide care for the women. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 22, n. 1, p. 1-9, 2014.), especialmente as que vivem no meio rural, onde o acesso a uma rede de serviços é escasso. O ACS, portanto, necessita de apoio dos demais integrantes da equipe, como, por exemplo, do profissional enfermeiro, que pode realizar capacitações a fim de orientá-los para a identificação de situações de violência (Arboit et al., 2015ARBOIT, J. et al. Domestic violence against rural women: gender interface in community health agents’ conception. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 14, n. 2, p. 1067-1074, 2015.).

As dificuldades de acesso a serviços de saúde e de outros setores impostas às mulheres que vivem em contexto rural ainda representam um grande desafio, estando relacionadas, dentre outros elementos, à presença de um grande número de serviços especializados para assistência às mulheres em situação de violência em cidades de maior porte e ao afastamento geográfico em relação às áreas urbanas (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Mulheres do campo e da floresta: diretrizes e ações nacionais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011.). Nesse sentido, a figura da ACS no cenário em estudo acaba constituindo um dos principais contatos das mulheres em situação de violência doméstica com o campo da saúde e com os demais serviços de atendimento.

Alguns depoimentos demonstram que as ACS sentiam a necessidade de melhor formação para o manejo de situações de violência doméstica contra as mulheres que moram em áreas rurais. O debate desse tema ao longo do processo formativo dos profissionais bem como a constituição de espaços que permitam a qualificação no próprio serviço em que estes atuam integram um rol de possibilidades que tendem a melhorar o preparo dos profissionais para assistir as mulheres que vivenciam a violência doméstica, desde o reconhecimento da situação, até os encaminhamentos em nível intersetorial (Gomes; Erdmann, 2014GOMES, N. P.; ERDMANN, A. L. Conjugal violence in the perspective of “Family Health Strategy” professionals: a public health problem and the need to provide care for the women. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 22, n. 1, p. 1-9, 2014.; Lira; Silva; Trindade; 2012LIRA, C. E. P. R.; SILVA, P. P. A. C.; TRINDADE, R. F. C. Conduta dos agentes comunitários de saúde diante de casos de violência familiar. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 14, n. 4, p. 928-936, 2012.).

Reiterando a importância da formação dos profissionais, há evidências de que a inexistência de capacitação específica se caracteriza como a maior dificuldade para atuar perante as situações de violência contra as mulheres (Nascimento; Ribeiro; Souza, 2014NASCIMENTO, E. F. G. A.; RIBEIRO, A. P.; SOUZA, E. R. Perceptions and practices of Angolan health care professionals concerning intimate partner violence against women. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 6, p. 1229-1238, 2014.).

Diante dos achados, entende-se que as ACS em suas práticas de cuidado possuíam inúmeras potencialidades para agir no enfrentamento de situações de violência doméstica contra as mulheres que viviam em áreas rurais, haja vista as estratégias empregadas, como as orientações e o suporte no trabalho em equipe. No entanto, essas profissionais também encontravam limitações para além do seu campo de atuação, que fogem das dimensões biológicas e inserem-se no campo das relações e do contexto familiar/social.

Considerações finais

Ao investigar as práticas de cuidado desenvolvidas por ACS na atenção às mulheres em situação de violência doméstica residentes no meio rural, foi possível conhecer a sua multiplicidade, tais como o diálogo, o vínculo, as orientações e o trabalho em equipe. As ACS também relataram dificuldades que permeavam essas práticas de cuidado, dentre as quais se encontravam a falta de apoio de uma equipe multiprofissional e de formação específica para atuar com essa problemática.

De modo geral, as práticas de cuidado dos ACS na APS se direcionam para a dimensão expressivo/sensível desse cuidado, dada a própria formação desses profissionais, voltada para a promoção da saúde, cabendo-lhes também o papel de articulador e mobilizador social. Pois esses profissionais, pelo fato de residirem na mesma área que a população descrita, têm a possibilidade de obter informações acerca do cotidiano das mulheres e das famílias, assim como constituem o elo entre comunidade e equipe da ESF.

Nessa direção, entende-se que os ACS são profissionais cujo processo de trabalho privilegia o desenvolvimento de estratégias de identificação e intervenção no que se refere às situações de violência doméstica contra mulheres, em especial, as residentes no espaço rural, tendo em vista as dificuldades de acesso aos serviços de saúde e a demais instâncias de atendimento à violência.

Contudo, considerando que a violência doméstica é um problema complexo, os ACS necessitam de apoio multiprofissional e intersetorial para atender às demandas das mulheres rurais em situação de violência. Os resultados explicitam a necessidade de criar espaços de reflexão para profissionais das diferentes áreas, bem como para gestores acerca de suas práticas de cuidado cotidianas em relação à problemática em estudo, de modo que estes (re)constituam ou (res)signifiquem tais práticas.

Esta pesquisa tem as limitações inerentes a estudos qualitativos descritivos. Assim, ressalta-se que ainda existem inúmeras possibilidades de investigações a serem realizadas de modo a ampliar o desenvolvimento científico sobre a temática, haja vista sua complexidade e implicações para o processo saúde-doença-cuidado dessas mulheres. Por fim, aponta-se necessidade de criação e implementação de políticas públicas para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres que residem no meio rural, visando a uma atenção integral a essa população, que contemple os aspectos biopsicossociais de seu processo de saúde e adoecimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2016
  • Revisado
    20 Fev 2018
  • Aceito
    06 Mar 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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