Resumo
Ações governamentais de implantação de projetos de desenvolvimento nos territórios indígenas, cujo modelo explorador está vinculado à expectativa de suposto progresso econômico e social, vêm afetando as perspectivas de futuro dos povos em diversos países e no Brasil. O estudo analisou os processos socioambientais de vulnerabilização do povo Pipipã, localizados no município de Floresta, Pernambuco, decorrentes da transposição do rio São Francisco. A pesquisa foi realizada na perspectiva da determinação social da saúde e propõe o movimento dialético, no intuito de promover os diálogos necessários para a devida compreensão da complexidade dos problemas de saúde. Os procedimentos metodológicos se pautaram na técnica qualitativa de coleta e análise de dados. As estratégias de pesquisa utilizadas no estudo foram análise de documentos, entrevistas e observação participante, que favoreceram a compreensão dos processos sociais destrutivos determinados pela transposição do São Francisco e das percepções do povo Pipipã sobre a relação com a saúde e a doença. A pesquisa evidenciou que, em função da transposição do São Francisco, os Pipipã foram vulnerabilizados material e simbolicamente, e novas territorialidades e vulnerabilidades foram estabelecidas compulsoriamente, encontrando-se, portanto, a etnia ameaçada em seus processos de reprodução social.
Palavras-chave:
Índios no Nordeste; Pipipã; Saúde Indígena; Projeto de Desenvolvimento; Saúde e Ambiente
Introdução
As condições de vida são construídas coletivamente, e nesse mesmo processo surgem relações sociais e de poder que determinam as formas como o conjunto de bens, necessários à reprodução social, é distribuído (Breilh, 2006BREILH, J. Bases para uma epidemiologia contra-hegemônica. In: BREILH, J. (Org.). Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 191-218.). Aspectos e maneiras que influenciam a determinação social da saúde, de acordo com Breilh (2006BREILH, J. Bases para uma epidemiologia contra-hegemônica. In: BREILH, J. (Org.). Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 191-218.), ocorrem na forma de processos que vão adquirindo formatos e movimentos próprios, conforme os condicionantes sociais. A dinâmica dos processos que determinam a saúde - por exemplo, os modos de conviver das populações nos territórios, as relações sociais e com o ambiente, as condições e processos de trabalho, a qualidade da moradia, a educação, o lazer, entre outros - poderá conceber processos sociais caracterizados como destrutivos ou protetores. Estes processos podem “favorecer ou não a produção da saúde e a vida individual ou coletiva” (Breilh, 2006BREILH, J. Bases para uma epidemiologia contra-hegemônica. In: BREILH, J. (Org.). Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 191-218., p. 203).
Os processos de saúde e doença estão relacionados aos modos de convivência dos indivíduos, sendo a saúde, segundo Breilh (2006BREILH, J. Bases para uma epidemiologia contra-hegemônica. In: BREILH, J. (Org.). Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 191-218.) e Nogueira (2010NOGUEIRA, R. P. Repensando a determinação social da saúde. In: NOGUEIRA, R. P. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de janeiro: Cebes , 2010. p. 7-12, p. 8), um “fenômeno complexo, eminentemente humano e não um fato biológico-natural”. A reprodução social da saúde articula processos sócio-históricos de produção e reprodução social ao longo do qual surgem tensões e conflitos que motivam ações de reparação e transformação, em conformidade com Samaja (2000SAMAJA, J. Modelos culturais de saúde-doença-cuidado. In: SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. v. 2. p. 37-51.).
Os modos de convivência dos povos indígenas têm sido afetados pela implantação de megaprojetos desenvolvimentistas desde a década de 1970, introduzindo processos de vulnerabilização em seus territórios. A vulnerabilização é compreendida aqui como decorrente de um contexto de injustiça ambiental e consiste em processo no qual grupos sociais são afetados do ponto de vista material e simbólico, desenvolvendo agravos à saúde decorrentes da implantação dos empreendimentos nos territórios onde habitam povos e comunidades tradicionais (Acselrad; Melo; Bezerra, 2009ACSELRAD, H.; MELO, C. C. A.; BEZERRA, G. N. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.; Porto, 2011PORTO, M. F. S. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 93, p. 31-58, 2011.).
A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas destaca situações distintas de tensão social em decorrência da exploração dos bens naturais nos territórios indígenas (Brasil, 2002BRASIL. Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e integra a Política Nacional de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 fev. 2002. Seção 1, p. 46. Acesso em: 12/01/2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2BeuYjT >.
https://bit.ly/2BeuYjT... ). Estas situações ameaçam os meios de vida e trabalho e a organização social dos povos indígenas, desconstruindo todo o esforço coletivo dos povos em ocupar, usar, controlar e se identificar com o ambiente, em países como Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Chile e também no Brasil (Brasil, 2002BRASIL. Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e integra a Política Nacional de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 fev. 2002. Seção 1, p. 46. Acesso em: 12/01/2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2BeuYjT >.
https://bit.ly/2BeuYjT... ; Oliveira; Cohn, 2014OLIVEIRA, J. P.; COHN, C. Belo Monte e a questão indígena. Brasília, DF: Associação Brasileira de Antropologia, 2014.).
Compreende-se territorialidade indígena como o esforço coletivo desses povos para realizar seus projetos de vida ocupando o território, controlando-o e usando-o de forma sustentável, transformando-o em seu próprio, construindo a identidade territorial. A diversidade de expressões configura-se como aspecto fundamental da territorialidade, o que “produz um leque amplo de tipos de territórios, cada um com suas particularidades socioculturais” (Little, 2002LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Série Antropologia, Brasília, DF, n. 322, 2002., p. 4).
Por iniciativa governamental, foi criado no Brasil o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), incluindo grandes projetos de infraestrutura, visando prover condições logísticas para a produção de commodities no Brasil. Em julho de 2003, o governo federal anunciou o projeto da transposição do rio São Francisco, que se inseriu como parte do Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 (Barros, 2014BARROS, J. N. O desencantamento das águas no Sertão: crenças, descrenças e mobilização social no Projeto de Transposição do Rio São Francisco. 2014. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.). O projeto, no Nordeste brasileiro, foi regulamentado por meio da Resolução nº 47/2005, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, como Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (Silva, 2012SILVA, F. A. Impactos materiais e imateriais da transposição do rio São Francisco na comunidade de Uri. 2012. Dissertação (Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental) - Universidade do Estado da Bahia, Paulo Afonso, 2012.). No semiárido - Submédio São Francisco -, em Pernambuco, a implantação do projeto da transposição do São Francisco foi iniciada em 2007.
Este estudo analisou os processos socioambientais de vulnerabilização do povo Pipipã decorrentes da implantação das obras da transposição do rio São Francisco na perspectiva da determinação social da saúde (Almeida-Filho; 2010ALMEIDA FILHO, N. A problemática teórica da determinação social da saúde. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da saúde e a reforma sanitária. Rio de janeiro: Cebes, 2010. p. 13-36.; Breilh, 2006BREILH, J. Bases para uma epidemiologia contra-hegemônica. In: BREILH, J. (Org.). Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 191-218.; Samaja, 1998SAMAJA, J. Epistemologia e epidemiologia; notas preliminares sobre a noção de ciência. In: ALMEIDA FILHO, N. et al. (Org.). Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz , 1998. p. 23-36. (Epidemiológica series, n. 2). Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Msoq5F >. Acesso em: 17 ago. 2018.
https://bit.ly/2Msoq5F... , 2000SAMAJA, J. Modelos culturais de saúde-doença-cuidado. In: SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. v. 2. p. 37-51.).
Estratégias metodológicas
Estudo de caso de caráter analítico, utilizando a técnica qualitativa de coleta e análise de dados. Os dados primários foram obtidos com a realização de observação participante e de 27 entrevistas semiestruturadas, realizadas até o alcançe de respostas semelhantes (saturação das respostas). O estudo foi realizado no período de 2014 a 2017, no município de Floresta, semiárido de Pernambuco. A sede do município situa-se a 433 km de Recife. Foi em Floresta que se iniciou o Eixo Leste da transposição do rio São Francisco, sendo a área indígena diretamente afetada pelo projeto, onde ocorreram os contatos diretos entre as estruturas físicas do empreendimento: canais, reservatórios, estações de bombeamento, entre outros (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (Rima): projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional. Brasília, DF, 2004.).
A população do estudo totaliza 1.362 pessoas, conforme informações referentes ao ano de 2012 do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. O território Pipipã foi considerado diretamente afetado pela transposição, mas para a definição da amostra, foram consideradas as aldeias cortadas pelo canal, num total de três: Tabuleiro do Porco, Caraíbas e Pedra Tinideira. As amostras foram do tipo “intencionais” e coletadas nas três aldeias. O objetivo de escolher as unidades de estudo específicas foi dispor daquelas que “gerem os dados mais relevantes e fartos”, de acordo com o objeto de estudo (Yin, 2016YIN, R. K. Métodos de pesquisa: pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Bookman , 2016. , p. 79).
Coleta e a análise dos dados
Observação participante
Utilizou-se a categoria “participante como observador”, conforme definido por Minayo (2011MINAYO, M. C. S. O desafio da pesquisa social. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 9-29.), ou seja, restrita ao tempo de pesquisa. Buscou-se, com a observação participante, construir o conhecimento a partir da relação com “sujeitos envolvidos nos processos sociais”, que incluem pesquisador e pesquisados (Alves, 2011ALVES, A. Sobre os termos da pesquisa: a observação participante. In: ALVES, A. Treinando a observação participante: juventude, linguagem e cotidiano. Recife: Editora UFPE, 2011. v. 1. p. 27-62., p. 28). Conhecemos as lideranças das aldeias por meio dos caciques (existem dois na etnia) que indicaram alguns indivíduos para nos acompanhar pelas aldeias durante o trabalho de campo. Participamos das festas e das conversas familiares, visitamos as aldeias afetadas diretamente e as que foram cortadas pelo canal, assim como as plantas nativas, consideradas sagradas e usadas na medicina tradicional, nos rituais, na culinária e na arte indígena Pipipã. Participamos do ritual do “Aricuri na Serra Negra”, do Toré. A denominação “Aricuri” é própria dos Pipipã, outras etnias no Nordeste denominam o ritual de “Ouricuri”. Conhecemos os vários toantes (pequenos cantos), realizamos a caminhada pela Serra Negra, conhecendo pontos estratégicos e simbólicos para os indígenas. Registramos as informações em diário de campo.
Análise documental
Foram analisadas as informações contidas em diferentes fontes, tais como sites e documentos oficiais, entre os quais o Programa de Apoio às Comunidades Indígenas do Ministério da Integração Nacional (MI), objetivando compreender os processos sócio-históricos dos Pipipã e acerca do empreendimento. Também foram consultados relatórios da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Sesai e redes e organizações sociais e outros estudos científicos que trataram do tema.
Entrevistas individuais
Foram realizadas conforme Yin (2015YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2015. ), do tipo semiestruturadas, combinando perguntas fechadas e abertas. Utilizou-se um roteiro-guia dos temas abordados, que incluíam, entre outras questões: aspectos gerais acerca da etnia e do território, a percepção dos Pipipã sobre a implantação das obras da transposição e os processos sociais decorrentes. Os sujeitos privilegiados da pesquisa foram os Pipipã, que habitam território diretamente afetado pela transposição do rio São Francisco. Realizamos entrevistas nas três aldeias cortadas pelo canal: Caraíbas, Tabuleiro do Porco e Pedra Tinideira, também denominada Baixa dos Caibros. Tivemos permissão para registrar por escrito e em áudio.
Análise dos dados
Foi realizada análise descritiva como técnica aplicada para o tratamento dos dados coletados com a observação participante. O formato para relatar os resultados foi do tipo narrativo, constituído por sentenças completas e citações. As questões-chave foram organizadas por meio de uma descrição resumida, seguida por citações dos participantes. Quanto aos documentos oficiais, inicialmente foram coletados considerando o objeto de estudo, em seguida com a leitura cuidadosa no intuito de identificar as categorias de análise. A análise de discurso foi aplicada aos dados das entrevistas semiestruturadas (falas) e baseou-se no modelo de condensação de significados proposto por Kvale (1996KVALE, S. Interviews: an introduction to qualitative research interviewing. London: Sage Publications, 1996.).
O plano de análise incluiu a matriz de dados da reprodução social e saúde e foi elaborado de acordo com Samaja (2000SAMAJA, J. Modelos culturais de saúde-doença-cuidado. In: SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. v. 2. p. 37-51.). As categorias centrais do estudo foram as seguintes: (1) biocomunal: condições materiais de vida (terra, acesso a água e agravos); (2) autoconsciência e conduta: organização social e política, simbolismo da paisagem/cosmologia, relações entre diferentes sistemas terapêuticos, medicina tradicional indígena; (3) tecnoeconômica: os meios de vida e de trabalho, mudança de agricultor autônomo para subemprego em grandes empreendimentos; (4) política: Programa Básico Ambiental Indígena do MI (PBA 12); e (5) ecológica: transformações ambientais no território indígena com a transposição. O nível de ancoragem do estudo foi o da comunidade, ou seja, o território ocupado pelos Pipipã, onde a organização social e as relações de produção ocorrem no nível comunal (Samaja, 2000SAMAJA, J. Modelos culturais de saúde-doença-cuidado. In: SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. v. 2. p. 37-51.).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Aggeu Magalhães (CEP IAM/Fiocruz) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), e o ingresso na área indígena foi autorizado pela Funai.22Caae: 13474513.4.0000.5190. Parecer nº 1.406.919, de 14 de fevereiro de 2016.
Resultados e discussão
Os Pipipã: processos sócio-históricos
Conhecidos como “índios da Serra Negra”, os Pipipã habitam um território que se encontra em processo de regularização fundiária com 10 aldeias. O processo demarcatório do território Pipipã teve início em 2005. Com a transposição do São Francisco, a Procuradoria da República em Serra Talhada (PE) moveu uma ação contra a Funai, julgada favorável aos índios pela 6ª Câmara. Em 20 de abril de 2017 foi publicado o Despacho Funai nº 3, em atendimento à sentença proferida em Ação Civil Pública (0000232-02-2013.7.4.058303). A instituição reconheceu os estudos de identificação e delimitação da terra Pipipã com superfície aproximada de 63.322 hectares ocupando os municípios de Floresta, Inajá, Tacaratu e Petrolândia (Funai, 2017FUNAI - FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Despacho Funai nº 3, de 20 de abril de 2017. Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Recife, v. 94, n. 120, 29 jun. 2017.).
O nome “Pipipã” remete aos ancestrais, habitantes da Serra Negra, que com 1.065 metros de altitude e ocupando uma área de 1.100 hectares é considerada, pelos índios “Pipipã”, um lugar sagrado, onde se concentram os Encantados de Luz (espíritos dos ancestrais). A área onde se situa a Serra Negra foi declarada Floresta Protetora da União pelo Decreto Federal nº 28.348, de 7 de junho de 1950, e com o Decreto nº 87.591, de 20 de setembro de 1982, foi criada a Reserva Biológica Serra Negra (Almeida et al., 2010ALMEIDA, A. W. B. et al. (Coord.). Nova cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Brasil: povo indígena Pipipã. Manaus: UEA Edições, 2010. ; Arcanjo, 2003ARCANJO, J. A. Toré e identidade étnica. 2003. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.). Trata-se de uma região rica em olhos d’água, concentrando no seu entorno muitas fazendas de posseiros.
A referência mais antiga aos “índios da Serra Negra” data de 1713, quando o capitão-geral da Capitania de Pernambuco comunicou ao capitão-mor João de Oliveira Neves que, na Ribeira do Pajeú, havia grupos indígenas revoltados, dentre os quais “os Pipipãos”, denominação da época. Os “Pipipãos” eram considerados índios “brabos” e, em termos de população, os mais numerosos na Serra Negra (Arcanjo, 2003ARCANJO, J. A. Toré e identidade étnica. 2003. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.; Frescarollo, 1883FRESCAROLLO, V. Informações sobre os índios bárbaros dos sertões de Pernambuco. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, n. 46, p. 103-119, 1883.). Nas palavras de Oliveira (2011OLIVEIRA, J. P. Trama histórica e mobilizações indígenas atuais: uma antropologia dos registros numéricos no Nordeste. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. p. 653-682., p. 664), “em razão dos seus costumes, os índios brabos se diferenciavam totalmente dos demais brasileiros, pois não obedeciam autoridades nacionais”.
Em seu estudo, Pompa (2011POMPA, C. História de um desaparecimento anunciado: as aldeias missionárias do São Francisco, séculos XVIII-XIX. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2011. p. 267-292.) verificou que o processo de fundação das aldeias jesuíticas e capuchinhas no Submédio São Francisco ocorreu no final da década de 1660, e as ações missionárias realizadas pelos capuchinhos franceses na região ocorreram no período de 1670 a 1702. A partir desta fase as aldeias ficaram, por um curto tempo, sob os cuidados dos missionários carmelitas e depois, em 1709, dos capuchinhos italianos.
Conforme estabelecido pelo governo colonial, segundo a citada autora, as aldeias no Submédio São Francisco deveriam ser instaladas bem próximas dos currais e dos engenhos de açúcar. Esta aproximação pareceu estratégica para despertar mais cobiça nos proprietários circunvizinhos, vislumbrando a possibilidade de tomar posse e propriedade de mais terras (Pompa, 2011POMPA, C. História de um desaparecimento anunciado: as aldeias missionárias do São Francisco, séculos XVIII-XIX. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2011. p. 267-292.). Além disso, a boa fertilidade do solo e a expansão do comércio na região contribuíram para os avanços sobre os terrenos das aldeias indígenas (Valle, 2011VALLE, S. M. O processo de destruição das aldeias na segunda metade do século XIX. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2011. p. 295-325.).
Na segunda metade do século XIX se iniciou o processo de extinção oficial das aldeias indígenas em Pernambuco. Porém, entre os anos 1741 e 1745 as aldeias capuchinhas do Submédio São Francisco já apresentavam sinais de extinção. Portanto, entre outras questões, a ambição pela posse e propriedade da terra determinaram conflitos entre índios aldeados e proprietários ocupantes das terras próximas às aldeias indígenas (Pompa, 2011POMPA, C. História de um desaparecimento anunciado: as aldeias missionárias do São Francisco, séculos XVIII-XIX. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2011. p. 267-292.; Valle, 2011VALLE, S. M. O processo de destruição das aldeias na segunda metade do século XIX. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2011. p. 295-325.). As terras nas aldeias indígenas em Pernambuco foram usurpadas pelos proprietários vizinhos e extintas pelo governo imperial entre os anos 1853 e 1870, segundo Valle (2011VALLE, S. M. O processo de destruição das aldeias na segunda metade do século XIX. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2011. p. 295-325.), e os registros históricos evidenciam que as violências empregadas contra os índios, no processo de usurpação, foram empreendidas tanto pelo poder público quanto pelo privado. O processo de demarcação das terras das aldeias caracterizou-se por práticas violentas e sutis do governo imperial, entre outras, na forma do Decreto nº 426, de 1845, da legislação sobre a terra (a Lei de Terras nº 601, de 1850) e da criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1860. Subordinadas às questões de demarcação e legitimação de terras estavam “a catequese e a civilização dos indígenas” do Brasil (Valle, 2011VALLE, S. M. O processo de destruição das aldeias na segunda metade do século XIX. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2011. p. 295-325., p. 307).
Com a extinção oficial das aldeias, conforme Silva (2011SILVA, E. História indígena em Pernambuco: para uma compreensão das mobilizações indígenas recentes a partir de leituras de fontes documentais do Século XIX. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, v. 64, p. 1-30, 2011., p. 7), os indivíduos que habitavam os antigos aldeamentos passaram a ser chamadas de “caboclos”, condição muitas vezes assumida para “esconder a identidade indígena diante das inúmeras perseguições de fazendeiros, invasores dos territórios indígenas e até autoridades”. Segundo Silva (2011SILVA, E. História indígena em Pernambuco: para uma compreensão das mobilizações indígenas recentes a partir de leituras de fontes documentais do Século XIX. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, v. 64, p. 1-30, 2011.), ao longo do século XIX esses índios chamados de “caboclos” continuadamente reivindicaram seus direitos e denunciaram perseguições e violências. Esses indígenas colocaram em questão crenças e afirmações sobre o desaparecimento dos povos indígenas e conquistaram considerável visibilidade política nos últimos anos.
Organização sociopolítica e cultural
A organização sociopolítica e cultural dos Pipipã se constitui basicamente pela vida social, cosmologia (representada pela mitologia, pelos conhecimentos tradicionais, pelo uso de extratos vegetais e pelos hábitos cotidianos), Conselho de Saúde e Conselho de Professores Indígenas (Baniwá, 2006BANIWÁ, G. S. L. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1abn5m9 >. Acesso em: 1º out. 2016.
https://bit.ly/1abn5m9... ). O controle do poder político e administrativo, na etnia Pipipã, centraliza-se nos dois caciques e no Conselho de Lideranças, constituído pelo cacique, pajé e pelas lideranças das aldeias. O pajé cuida especificamente dos “poderes da tradição”, da cura e dos costumes do povo, segundo Arcanjo (2003ARCANJO, J. A. Toré e identidade étnica. 2003. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003., p. 57). Há cinco escolas indígenas, sendo uma de ensino médio, localizada na aldeia Travessão do Ouro, e as outras de educação infantil, situadas nas aldeias Caraíbas e Faveleira, e todos os professores são indígenas. Os representantes da etnia são todos indicados pela comunidade, conforme Almeida et al. (2010ALMEIDA FILHO, N. A problemática teórica da determinação social da saúde. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da saúde e a reforma sanitária. Rio de janeiro: Cebes, 2010. p. 13-36.).
Da terra os Pipipã colhem a força, a ciência - na concepção deles, a terra é a mãe. A fala seguinte expressou a importância e a relação dos Pipipã com a terra: Da terra brota tudo, pra gente ela é uma mãe, a gente colhe a força, a ciência, colhe tudo (E6). Na medicina tradicional e na culinária Pipipã destacam-se o uso de plantas sagradas, como: a imburana de cheiro e de cambão, o ouricuri, a juremeira, o umbuzeiro, a aroeira, o espinhaço de cobra, o pau-ferro, o pau-d’alho, entre outras. Entre as tradições marcantes da etnia, destacamos o ritual do Aricuri, o Segredo, a Mesa da Jurema e o Toré. O Aricuri, ritual sagrado no qual os índios vão buscar fortalecimento espiritual, se realiza anualmente na Serra Negra, durante 10 dias, todo mês de outubro, e somente pessoas convidadas podem participar do ritual. No Segredo, cuja participação é exclusiva dos homens, eles fazem orações e reforço espiritual pra quem está no terreiro. Na Mesa da Jurema, os Pipipã chamam os antepassados para curar as doenças do corpo e da alma, cantam os toantes, dançam o Toré e bebe-se o vinho da Jurema.
O Toré, entre os Pipipã, é percebido como um momento de conexão com os encantados de luz: No Toré a gente se fortalece espiritualmente, fica mais animado, a gente tem muitos toantes (E3). A dança do Toré acontece geralmente a cada 15 dias e há quatro terreiros, espaços para dançar o Toré no território.
A chegada da transposição
O rio São Francisco, por conter a principal bacia hidrográfica na região semiárida do Sertão nordestino, tem sido o “alvo histórico de inúmeros projetos de aproveitamento de recursos hídricos, plantio e criação” (Scott, 2013SCOTT, P. Projetos de desenvolvimento no rio São Francisco: administrando vocações e desigualdades. Campos, Curitiba, v. 14, n. 1-2, p. 15-36, 2013., p. 16). Realizar um projeto de infraestrutura hídrica (a transposição do São Francisco) para levar água ao Sertão e combater a seca se configurou como solução política para a questão da restrição grave do acesso à água na região Nordeste (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (Rima): projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional. Brasília, DF, 2004.). Essa solução foi criticada pelos movimentos sociais, pela Igreja Católica Romana e pelas comunidades locais, como camponeses, quilombolas e povos indígenas (incluindo os Pipipã), que disseram não à transposição e sim à revitalização do rio São Francisco. A revitalização ampla é constituída de ações programadas pelo governo federal para a bacia do rio São Francisco, incluindo a recuperação ambiental de áreas degradadas, a preservação de ecossistemas relevantes pouco degradados e a promoção do desenvolvimento sociocultural das populações locais (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (Rima): projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional. Brasília, DF, 2004.). A revitalização do São Francisco ainda não se concretizou, no décimo ano da transposição.
A implantação da megaobra da transposição do São Francisco tornou-se temática de interesse acadêmico, com produção de vários estudos científicos. O estudo de Baracho (2014BARACHO, L. M. S. Feridas da transposição do São Francisco: um olhar sobre comunidades quilombolas no Semiárido Pernambucano. 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) -Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2014.) revelou a violação de direitos das comunidades quilombolas de Salgueiro, em Pernambuco; a intervenção compulsória na vida dos camponeses assentados nas Vilas Produtivas Rurais de Salgueiro foi evidenciada no estudo de Domingues (2016DOMINGUES, R. C. A vulnerabilização camponesa no contexto da transposição do rio São Francisco: o desterro na vila produtiva rural baixio dos grandes (junco). 2016. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.); a desterritorialização de camponeses nos municípios de Sertânia, em Pernambuco, e de Monteiro, na Paraíba, e o pagamento de indenizações irrisórias foram resultados apontados no estudo de Bezerra (2016BEZERRA, V. C. R. Injustiça ambiental e saúde: a perspectiva dos agricultores familiares afetados pela transposição do rio São Francisco. 2016. (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.).
As obras para a construção do Eixo Leste da transposição foram verticalmente impostas pelo MI e iniciadas em 2007 no território dos Pipipã, em Floresta, com o governo assegurando a oferta de água para todos na região do semiárido (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (Rima): projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional. Brasília, DF, 2004.). Interrogados sobre ações de resistência à transposição do São Francisco no território, os Pipipã lançaram outro questionamento, conforme a fala: Como poderia empatar a transposição? Somos pequenos, quando eles vieram, [vieram] de uma vez. Não teve pergunta, não teve proposta nenhuma. Somos índios inocentes e o que resta é só saudade (E24). Além da preocupação em lidar com os novos processos de vulnerabilização material e simbólica que avançavam no território, outras fontes de tensão surgiam entre os Pipipã: o corte na terra começava a separar as famílias indígenas, a criação de caprinos fugia para o outro lado do canal, se perdia, morria de fome, de sede e o território ficou vulnerável para invasões de terceiros não indígenas.
Fragmentando o território
“Estupro” foi o termo utilizado por liderança política da etnia Pipipã para definir o ato de violação da terra sagrada provocado pelos tratores da transposição, que desrespeitou os direitos territoriais dos Pipipã de definir suas próprias prioridades de desenvolvimento, isto é, de definir seus projetos de vida (Scott, 2013SCOTT, P. Projetos de desenvolvimento no rio São Francisco: administrando vocações e desigualdades. Campos, Curitiba, v. 14, n. 1-2, p. 15-36, 2013.), que são reconhecidos na Constituição Federal (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.) e na Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2011OIT - ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e resolução referente à ação da OIT. Brasília, DF, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1VPaY9P >. Acesso em: 12 mar. 2013.
https://bit.ly/1VPaY9P... ). Sobre as marcas e sequelas que a megaobra desenvolvimentista deixa para o povo Pipipã, a liderança política expressou: Essa obra foi um estupro no território do povo Pipipã, e estuprar deixa marcas, deixa sequelas, deixa dores e é isso que essa obra monstruosa fez ao nosso território (E26).
A fragmentação do território para a implantação do Eixo Leste da transposição, que, segundo o estudo de Santos (2013SANTOS, M. Os grandes objetos: sistemas de ação e dinâmica espacial. In: SANTOS, M. (Org.). Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Edusp, 2013. p. 105-111., p. 106), se configura como um “grande objeto artificial fixado ao solo e produzido pelos homens”, destruiu bens naturais relacionados a flora, fauna, lagoas, poços, barreiros, serrotes, baixios (melhores terras para a agricultura). Foi prevista no Relatório de Impacto Ambiental da transposição (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (Rima): projeto de integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional. Brasília, DF, 2004.), inclusive com compromisso de realizar ações mitigadoras específicas, que não foram cumpridas ainda (no décimo ano da transposição). Conforme Zhouri (2011ZHOURI, A. As tensões do lugar: hidrelétricas, sujeitos e licenciamento ambiental. Belo Horizonte: UFMG, 2011.) e Scott (2009SCOTT, P. Negociações e resistências persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: Editora UFPE , 2009. p. 93-101. ), os grandes projetos geram processos de colisão entre as obras implantadas e atingem diretamente a vida das pessoas que habitam próximo aos locais escolhidos e que, na maioria das vezes, colhem os prejuízos da implantação do projeto. Desta forma, se instalam o sofrimento das pessoas, a insegurança, o medo, as tensões (Scott, 2009SCOTT, P. Negociações e resistências persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: Editora UFPE , 2009. p. 93-101. ).
As condições materiais de vida foram afetadas, no povo Pipipã, nos seguintes aspectos: (1) perda de número significativo de animais; (2) perda do pasto; (3) redução na produção de mel, pois o corte da terra atingiu o território das abelhas; (4) gastos financeiros para se deslocar para outros lugares, devido à perda das melhores terras que usavam para agricultura; (5) desaparecimento da caça; (6) perda das plantas sagradas usadas na medicina indígena, nos rituais e na alimentação humana e dos animais; e (7) perda das principais fontes de água (poços, barreiros, lagoas), que tinham grande importância no convívio dos índios com o semiárido e significados simbólicos para o povo Pipipã.
A destruição das plantas simbólicas atingiu a arte e os rituais do Toré, da Jurema e do Aricuri, conforme afirmado: Estragou o terreno, cortou nosso croá, ficou difícil pra gente, onde o canal passou levou tudo e nosso croá. Onde o canal passou levou a Jurema e o Toré também (E14). O croá é uma planta cuja fibra é usada na fabricação dos saiotes, do cocar, dos colares e do aió (espécie de bolsa para carregar diversos apetrechos durante o ritual do Toré). Muitas árvores simbólicas foram destruídas, como o umbuzeiro, usado na alimentação, e a juremeira, usada para fazer o vinho servido durante o ritual da Jurema (Arcanjo, 2003ARCANJO, J. A. Toré e identidade étnica. 2003. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.).
O desmatamento afetou as plantas nativas usadas na medicina indígena, conforme explicitado: Os pés de pau que fazia[m] medicamento, lambedor, aqui tinha muito isso, o bonome é bom, o chá de casca da aroeira para inflamação, o pé do umbuzeiro pra gente se alimentar. Outras plantas, como o marmeleiro, [foram] destruindo tudo (E14). A ação que determinou as perdas das plantas medicinais violou o artigo 2º da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, que recomenda a sustentabilidade ambiental nos territórios indígenas e reconhece o valor das práticas da medicina indígena por promover, proteger e recuperar a saúde pelo estímulo ao equilíbrio biopsicossocial (Brasil, 2002BRASIL. Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e integra a Política Nacional de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 fev. 2002. Seção 1, p. 46. Acesso em: 12/01/2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2BeuYjT >.
https://bit.ly/2BeuYjT... ).
Na culinária indígena, as queixas se relacionaram às perdas das seguintes plantas nativas, de acordo com a narrativa: Destruiu o umbuzeiro, a macambira, o mandacaru, essas coisas assim. Com tudo isso o canal prejudicou muito (E20). A macambira representa uma alternativa para a alimentação de animais e do homem, considerada símbolo da sobrevivência do povo nordestino, vindo a salvar a vida de milhares de peregrinos durante os períodos prolongados de estiagem ocorridos no Nordeste (Gonçalves, 1997GONÇALVES, M. M. S. A macambira nos seus aspectos ecológicos e utilitários. 1997. Monografia (Especialização em Ensino de Ciências) - Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 1997.).
O corte na terra também modificou os pontos de referência, dificultando o acesso aos lugares e a mobilidade interna dos índios, determinando um contexto de insegurança no lugar. Essa situação impediu os índios de realizar atividades de lazer no cotidiano, como visitas aos familiares e amigos e deslocamento até a igreja aos domingos, conforme as narrativas: Eu, quando vou lá em Caraíbas, tenho pena. Tinha os pontos de referência que a gente passava, [es]tivesse onde [es]tivesse, quando a gente queria ir […]. Hoje está tudo esbagaçado […] É muito triste (E24). Em conformidade com Santos (2013SANTOS, M. Os grandes objetos: sistemas de ação e dinâmica espacial. In: SANTOS, M. (Org.). Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Edusp, 2013. p. 105-111., p. 106), no início da história humana a “configuração territorial era representada apenas pelo conjunto de complexos naturais”, mas, à medida que a “história vai se fazendo[,] a configuração territorial é dada pelas obras dos homens”, por exemplo, casas, portos, depósitos, fábricas, hidrelétricas, assim como a transposição das águas do Velho Chico, como também é conhecido o rio São Francisco, entre outras.
Desta forma, se produz uma “configuração territorial que cada vez mais é o resultado de uma produção histórica e tende a uma negação da natureza natural”, substituindo-a por uma “natureza inteiramente humanizada” (Santos, 2013SANTOS, M. Os grandes objetos: sistemas de ação e dinâmica espacial. In: SANTOS, M. (Org.). Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Edusp, 2013. p. 105-111., p. 106). A transposição substituiu a natureza (os pontos de referência naturais) por um grande objeto artificial totalmente humanizado, vulnerabilizando simbólica e materialmente os Pipipã.
A imposição de um novo modelo de desenvolvimento no território Pipipã afetou diretamente os meios de vida e de trabalho dos índios, e a categoria de agricultor autônomo de subsistência foi transformada na de trabalhador em uma megaobra nas aldeias cortadas pelo canal do Eixo Leste. As empresas contratadas disponibilizaram 10% das vagas para empregar temporariamente trabalhadores indígenas nas atividades que envolviam escavações e vigilância. De acordo com os estudos de Baracho (2014BARACHO, L. M. S. Feridas da transposição do São Francisco: um olhar sobre comunidades quilombolas no Semiárido Pernambucano. 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) -Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2014.) e Rigotto e Teixeira (2009RIGOTTO, R. M.; TEIXEIRA, A. C. A. Desenvolvimento e sustentabilidade socioambiental no campo, na cidade e na floresta. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE AMBIENTAL, 1., 2009, Brasília. Cadernos de Texto… Brasília: Abrasco, 2009. p. 78-83.), esses trabalhadores, que são invisibilizados pelas megaobras desenvolvimentistas, são colocados num contexto de difícil escolha entre a falta de opções de trabalho e geração de renda e o emprego nesses novos empreendimentos.
O PBA 12 e a insuficiência
O Programa de Apoio aos Povos Indígenas, parte integrante do Projeto Básico Ambiental do Projeto de Integração do rio São Francisco (PBA 12), foi elaborado no intuito de mitigar os impactos na área diretamente afetada, no município Floresta. Objetivou promover ações relacionadas à implantação de infraestrutura, regularização fundiária e capacitação em organização social e gestão produtiva que proporcionassem ao povo Pipipã melhores condições de vida e autonomia socioeconômica e ambiental (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Programa 12 de apoio aos povos indígenas. Brasília, DF, 2011.).
Segundo os moradores, a construção das casas de alvenaria, em substituição às de taipa, foi a única promessa cumprida pelo MI, mas nenhuma casa foi entregue oficialmente aos índios. Esta ação do Estado acabou recebendo críticas do povo Pipipã: Eu critico quem fez esse acordo. Não tinha que estar trocando benefícios não, parece que retornamos ao tempo da colonização. A obrigação do governo é dar os benefícios (E26). A construção de infraestruturas habitacionais, mesmo considerada uma prática colonial pelos índios, fez parte de meta estabelecida no PBA 12 indígena e configurou o primeiro processo protetor (Breilh, 2006BREILH, J. Bases para uma epidemiologia contra-hegemônica. In: BREILH, J. (Org.). Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 191-218.), no contexto da implantação das obras da transposição.
A promessa do PBA 12 de apoiar a aceleração da demarcação da terra indígena não foi ainda cumprida pelo MI, e uma das condicionantes foi que o processo de demarcação deveria ocorrer simultaneamente às obras da transposição, conforme a fala:
Em uma das audiências no Ministério Publico, no Supremo Tribunal Federal (STF), que julgaram as condicionantes de instalação dos canteiros de obras da transposição, uma das condicionantes foi que o processo de demarcação deveria andar lado a lado com as obras da transposição, e isso não ocorreu. (E26)
As promessas vinculadas à demarcação da terra indígena e ao acesso a água para consumo humano foram consideradas, pelos Pipipã as mais inclusivas e significativas, pois concretizariam o sonho da regularização do território e da produção da saúde no semiárido. Scott (2009SCOTT, P. Negociações e resistências persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: Editora UFPE , 2009. p. 93-101. ) afirmou, em estudo realizado com agricultores na barragem de Itaparica em contexto de descaso planejado, que a ação de negação dos benefícios prometidos às populações, pelo Estado, configura uma violência administrada contra povos e comunidades que habitam as áreas de implantação e implementação dessas megaobras desenvolvimentistas. A fala do trabalhador indígena revelou o nível de violência administrada pelo MI: até agora estamos sem benefícios da transposição, a não ser pelo trabalho, em nome de querer o bem pra todos (E10). A ausência de benefícios para os povos e comunidades não deixou de se enquadrar em outra situação, também percebida por Scott (2009), de descaso planejado.
A determinação social de agravos físicos e mentais
A transposição do rio São Francisco produziu nova reconfiguração territorial desfavorável à saúde e determinou processos sociais que culminaram em agravos físicos e mentais nos moradores das aldeias cortadas pelo canal do Eixo leste (Almeida Filho, 2010ALMEIDA FILHO, N. A problemática teórica da determinação social da saúde. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da saúde e a reforma sanitária. Rio de janeiro: Cebes, 2010. p. 13-36.; Brasil, 2002BRASIL. Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e integra a Política Nacional de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 fev. 2002. Seção 1, p. 46. Acesso em: 12/01/2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2BeuYjT >.
https://bit.ly/2BeuYjT... ; Breilh, 2006BREILH, J. Bases para uma epidemiologia contra-hegemônica. In: BREILH, J. (Org.). Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 191-218.; Nogueira, 2010NOGUEIRA, R. P. Repensando a determinação social da saúde. In: NOGUEIRA, R. P. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de janeiro: Cebes , 2010. p. 7-12; Samaja, 1998SAMAJA, J. Epistemologia e epidemiologia; notas preliminares sobre a noção de ciência. In: ALMEIDA FILHO, N. et al. (Org.). Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz , 1998. p. 23-36. (Epidemiológica series, n. 2). Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Msoq5F >. Acesso em: 17 ago. 2018.
https://bit.ly/2Msoq5F... ). Esta atuação administrada pelo Ministério da Integração Nacional contrariou, também, a Política Nacional de Promoção da Saúde nos territórios indígenas, que recomenda a priorização de ações de produção da saúde orientadas a partir da sustentabilidade no semiárido.
Outro processo determinante de agravos físicos e mentais nos Pipipã se referiu à ineficiência do PBA 12, que não cumpriu as promessas feitas a esse povo. Esse processo social remete ao estudo de Scott (2009SCOTT, P. Negociações e resistências persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: Editora UFPE , 2009. p. 93-101. , p. 9) realizado em outro contexto histórico de implantação de grande empreendimento, em que o autor denominou a “violência administrada” na implantação da megaobra, que mais prejudicou que beneficiou as populações, como no caso dos Pipipã.
Nas palavras de Samaja (1998SAMAJA, J. Epistemologia e epidemiologia; notas preliminares sobre a noção de ciência. In: ALMEIDA FILHO, N. et al. (Org.). Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz , 1998. p. 23-36. (Epidemiológica series, n. 2). Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Msoq5F >. Acesso em: 17 ago. 2018.
https://bit.ly/2Msoq5F... , p. 32), os processos de saúde e de doença são concebidos como componente de um sistema de processos reais (materiais) e simbólicos (culturais), e são afetados quando algum desses processos é “interrompido, violado, bloqueado, falhado, perturbado e que os processos encarregados de reequilibrá-los ou não existem ou não estão operando como deveriam”. E a presença do “grande objeto artificial fixado ao solo”, em conformidade com Santos (2013SANTOS, M. Os grandes objetos: sistemas de ação e dinâmica espacial. In: SANTOS, M. (Org.). Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Edusp, 2013. p. 105-111., p. 105), foi percebida como inter-relacionada e interdependente com a produção de doenças e não de saúde, conforme a narrativa:
a transposição já foi a maior doença que já passou por aqui, a gente vai ficar como? Por isso eu acho que é uma pena, a gente passa nos lugares […]. Não existe doença mais grave do que essa, por isso, acho, minha filha, que é uma pena. (E24)
Conforme as memórias narradas, os processos de adoecimento mais observados nas aldeias foram os mentais, com destaque para a depressão.
Outros processos relatados foram ansiedade, tensão, tristeza, cotidiano de insegurança e de medo, estresse, crises hipertensivas, alergias agudas e crônicas devido à poeira constante e excessiva nas aldeias (decorrente do descumprimento de acordos da transposição de molhar a terra nas proximidades das aldeias) e agravamento de quadros respiratórios pré-existentes. Além disso, registrou-se um caso de acidente vascular cerebral com êxito letal, conforme a fala:
venho percebendo pessoas tristes, com depressão. Meu pai mesmo… Quando ele passava no canal, ele se benzia de ver tantas coisas destruídas. Logo que começou o canal ele teve um AVC e veio a falecer. Ele caçava, tirava mel, tirava macambira, xiquexique. Não só afetou a saúde dele, mas a de muitas pessoas. (E20)
A partir da implantação das obras houve aumento significativo do uso de medicamentos ansiolíticos e antidepressivos, particularmente entre os moradores mais idosos, nas aldeias cortadas pelo canal, onde a farmácia natural foi destruída pela megaobra.
Santos (1988SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988., p. 16), ao refletir sobre a criação de um meio geográfico artificial pelos homens (que avança velozmente no campo), citou que este é construído com “restos da natureza primitiva crescentemente encobertos pelas obras dos homens”. Segundo o autor, a paisagem natural vai “sendo substituída e os artefatos tomam, sobre a superfície da terra, um lugar cada vez mais amplo”. Ainda de acordo com Santos (1988SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988., p. 16), tudo isso se dá num contexto de vida em que as “condições ambientais são ultrajadas, com surgimento de agravos físicos e mentais nas populações, onde se deixou de entreter a natureza amiga e criou-se a natureza hostil”.
Outra questão inter-relacionada e interdependente com o contexto de implantação do “grande objeto” (Santos, 2013SANTOS, M. Os grandes objetos: sistemas de ação e dinâmica espacial. In: SANTOS, M. (Org.). Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Edusp, 2013. p. 105-111.) narrada pelos índios se relacionou ao medo de serem atropelados pelos caminhões da transposição, num território até então totalmente tranquilo. Referiram que os caminhões trafegavam em alta velocidade, inclusive com notificação de caso de atropelamento. A velocidade excessiva dos caminhões da transposição trafegando nas aldeias remete ao estudo de Santos (2013SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988., p.105), que indicou que “os fluxos [de tráfego] são cada vez mais diversos, mais amplos, mais numerosos e mais rápidos”, tanto no campo quanto na cidade.
Outro processo determinante dos agravos físicos e mentais no povo Pipipã se referiu ao cumprimento compulsório do cronograma de explosões estabelecido e administrado pelo Ministério da Integração Nacional. As explosões para a escavação do canal do Eixo Leste lançaram pedras, provocaram rachaduras das casas, quebraram telhados e eletrodomésticos, causaram extrema poluição sonora, destruição das plantações, morte de animais, tensão e medo durante suas execuções, particularmente entre os idosos. As explosões vulnerabilizaram materialmente os moradores: Tem casas no território que abriram parede [na aldeia Tabuleiro do Porco] com as explosões… Tem escola também rachada e prejudicou a gente. A transposição prejudicou a gente e o pouco que a gente tinha, destruiu… (E16).
O estudo de Scott (2009SCOTT, P. Negociações e resistências persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: Editora UFPE , 2009. p. 93-101. ) também relatou processos de pauperização que se instalaram no dia a dia dos agricultores que habitavam a beira do São Francisco, e que de forma semelhante também afetou os indígenas Pipipã, pois tiveram que assumir os prejuízos com as rachaduras das casas provocadas pelas explosões.
As dimensões mais afetadas da reprodução social e saúde dos Pipipã foram a biocomunal e a autoconsciência e conduta. Conforme Samaja (2000SAMAJA, J. Modelos culturais de saúde-doença-cuidado. In: SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. v. 2. p. 37-51.), a dimensão biocomunal se refere ao modo como os membros da comunidade se renovam corporalmente e em suas interrelações, construindo o meio comunal onde se realizam como indivíduos, enquanto a autoconsciência e conduta se relacionam com a produção da cultura, de redes simbólicas mediadas pela linguagem e elaboração-transmissão de experiências de aprendizagem, em que emergem cultura, cosmologia e símbolos.
Considerações finais
Os povos indígenas são historicamente parte da diversidade sociocultural e ecológica da humanidade, e o modelo de ações administrado pelo MI na transposição do São Francisco configurou descuido ao vulnerabilizar material e simbolicamente esse povo em nome de desenvolvimento que não os beneficiou. Portanto, trata-se de temática merecedora de mais discussão e aprofundamento pelos governantes, por parte do DSEI, da Sesai e do Ministério da Saúde, e pela sociedade nacional.
A transposição do São Francisco destruiu ambientes favoráveis à saúde e à vida no semiárido, não promoveu a saúde no território Pipipã, determinou grandes transformações ambientais e nas relações e afetou diretamente meios tradicionais de vida e de trabalho. Portanto, uma série de recomendações de promoção da saúde contidas na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e na Política Nacional de Promoção da Saúde foi desconstruída, além das recomendações da Constituição Federal (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.) e da Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais (OIT, 2011OIT - ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e resolução referente à ação da OIT. Brasília, DF, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1VPaY9P >. Acesso em: 12 mar. 2013.
https://bit.ly/1VPaY9P... ).
O povo Pipipã reivindicou que todo projeto a ser desenvolvido no território indígena deveria ser realizado a partir de um acordo e da participação de todos os moradores, para que possam conhecer e compreender as ações governamentais propostas e então concordar ou não.
As ações governamentais administradas pelo Ministério da Integração Nacional na transposição do São Francisco, no território indígena, não foram e ainda não estão sendo fiscalizadas pelo Estado brasileiro, e isso contribuiu para a produção do descuido com o povo Pipipã.
As medidas mitigadoras impostas pelo projeto da transposição não beneficiaram a população em questão, além de terem sido ofertadas de forma equivocada, ou seja, intencionalmente confundidas com ações de outras políticas públicas ou benefícios em uso pelas populações locais, como no caso da construção de infraestruturas habitacionais. Novas territorialidades compulsórias foram impostas pela implantação da megaobra que resultaram na introdução de novas vulnerabilidades, isto é, ao cortar a terra Pipipã de uma ponta a outra, o território se tornou vulnerável a várias ações de grileiros, potencializando situações de invasões de terra e conflitos por terra e água.
Com a inauguração do Eixo Leste da transposição, reacende-se a ambição por mais posse e propriedade e concentração de terra e de poder, criando-se mais entraves para o processo de demarcação da terra Pipipã. Além disso, o estudo também apontou desafios de enfretamento para a Funai com relação à implementação da política de demarcação de territórios no contexto de implantação de grandes empreendimentos de infraestrutura em terras indígenas no Brasil.
Agradecimentos
Aos índios Pipipã, em especial a dona Carolina (falecida), pelas memórias de luta que nos herdou. Às instituições e aos técnicos da Sesai, pelo apoio para a realização deste trabalho. À Funai em Brasília e Pernambuco pela autorização de acesso à terra indígena e pelas informações disponibilizadas, em particular a Fátima Brito e Ivson Ferreira. Ao Conselho Distrital de Saúde Indígena de Pernambuco, pela autorização para a realização do estudo, e ao CNPq, pelo apoio no financiamento da pesquisa.
Referências
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- ALMEIDA FILHO, N. A problemática teórica da determinação social da saúde. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da saúde e a reforma sanitária. Rio de janeiro: Cebes, 2010. p. 13-36.
- ALVES, A. Sobre os termos da pesquisa: a observação participante. In: ALVES, A. Treinando a observação participante: juventude, linguagem e cotidiano. Recife: Editora UFPE, 2011. v. 1. p. 27-62.
- ARCANJO, J. A. Toré e identidade étnica. 2003. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
- BANIWÁ, G. S. L. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1abn5m9 >. Acesso em: 1º out. 2016.
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- 1Este texto faz parte de projeto de pesquisa maior em andamento, intitulado “Estudo ecossistêmico das populações vulnerabilizadas nos territórios de abrangência do projeto de transposição do rio São Francisco”, coordenado pelo Prof. Dr. André Monteiro Costa e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Chamada Universal: Edital MCT/CNPq nº 14/2013, processo 485403/2013-7).
- 2Caae: 13474513.4.0000.5190. Parecer nº 1.406.919, de 14 de fevereiro de 2016.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2018
Histórico
- Recebido
29 Maio 2017 - Revisado
23 Fev 2018 - Aceito
04 Jun 2018