Legado da epidemia de Zika vírus: o impacto da associação causal para além da ciência de laboratório

Monique Batista de Oliveira Marco Akerman Sobre os autores

Resumo

Passados mais de quatro anos da epidemia de Zika vírus, tem-se a tarefa de continuar a investigar o seu legado. Aqui, descreve-se o impacto da associação causal entre o Zika vírus e as alterações observadas em fetos e bebês, uma busca que marcou a pauta dos cientistas e da imprensa entre 2015 e 2017. Por meio dos estudos Sociais de Ciência e Tecnologia, que vê o fato científico como coproduzido pela ciência e pela sociedade, realizamos 17 entrevistas semiestruturadas entre cientistas, gestores, professionais de saúde e famílias de crianças em oito cidades brasileiras. Vê-se que a causalidade teve impacto parcial e dúbio na organização dos serviços - com a sobreposição entre vigilância e atenção, gerando, inicialmente, assimetrias no Sistema Único de Saúde. Entre as famílias e profissionais de saúde, nota-se demandas por pesquisas de intervenções e de cuidado, consideradas como não sendo prioridade entre os cientistas. Já entre os pesquisadores, observa-se distanciamento entre estudo e enfrentamento, com o social sendo constituído por demandas não integradas ao campo científico. Para que demandas sociais encontrem fluxo no fazer científico, sugere-se para crises futuras de saúde pública a multiplicação do número de perguntas da ciência e a maior diversidade dos desenhos de pesquisa.

Palavras-chave:
Epidemias; Zika Vírus; Saúde Pública; Dissensos e disputas; Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia

Introdução

No Brasil, o vírus Zika mobilizou a comunidade científica desde sua identificação no território, em abril de 2015; e, principalmente, quando foi creditado como responsável -pelas alterações do sistema nervoso observadas em bebês em novembro daquele ano, com a característica principal sendo a microcefalia - diminuição do perímetro cefálico - (ou “cabeça pequena”, como referido popularmente no momento) (Oliveira, 2021OLIVEIRA, M. A relação de causalidade entre Zika vírus e síndrome congênita: análise de uma controvérsia em meio a uma crise de saúde pública. 2021. 420 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.), aspecto caracterizado por desenvolvimento considerado inadequado do cérebro (Zika, 2019ZIKA. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2019. Disponível em: Disponível em: https://portal.fiocruz.br/zika . Acesso em: 16 set. 2022.
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). No período analisado, a relação causal entre o Zika e essas alterações em fetos e bebês foi divulgada pelo governo brasileiro com evidências preliminares - como a coincidência entre os primeiros meses de gestação e de maior circulação do Zika no Nordeste do país, bem como a presença do vírus no líquido amniótico em duas gestantes e em um natimorto (Brasil, 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia. Brasília, DF, 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.saude.am.gov.br/docs/zika/PROTOCOLO_VIGILANCIA_MICROCEFALIA_V1.pdf . Acesso em: 13 ago. 2020.
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).

Com o tempo, a relação causal entre o vírus Zika e a condição observada foi consolidada na ciência por testes in vitro em animais, bem como por estudos de caso-controle e de coorte (Araújo et al., 2018ARAÚJO, T. V. B. et al. Association between microcephaly, Zika virus infection, and other risk factors in Brazil: final report of a case-control study. The Lancet Infectious Diseases, [S. l.], v. 18, n. 3, p. 328-336, 2018. DOI: 10.1016/S1473-3099(17)30727-2.
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; Brasil et al., 2016BRASIL, P. et al. Zika Virus Infection in Pregnant Women in Rio de Janeiro-Preliminary Report. Obstetrical & Gynecological Survey, Alphen aan den Rijn, v. 71, n. 6, p. 331-333, 2016. DOI: 10.1097/01.ogx.0000483239.08585.8d.
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; Cugola et al., 2016CUGOLA, F. R. et al. The Brazilian Zika virus strain causes birth defects in experimental models. Nature, Berlim, 2016. DOI: 10.1038/nature18296.
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). Também o espectro do desfecho ficou mais complexo que a microcefalia, com alterações variadas no que posteriormente resultou na descrição da Síndrome Congênita, associada à infecção pelo Vírus Zika (SCZ)11A descrição da SCZ consta na Classificação Internacional de Doenças (CID 10), com código de P35.4, conforme nota técnica do Ministério da Saúde: <http://plataforma.saude.gov.br/anomalias-congenitas/nota-tecnica-17-2022.pdf>. Acesso em: 16 set. 2022.. Passado o período mais crítico da emergência, ainda assim o envolvimento de um arbovírus em alterações congênitas levou a Fundação Oswaldo Cruz a caracterizar o período como uma das “maiores emergências de saúde pública da história do Brasil” (Zika, 2019ZIKA. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2019. Disponível em: Disponível em: https://portal.fiocruz.br/zika . Acesso em: 16 set. 2022.
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).

Apesar da importância da relação causal, o período também foi marcado por vários outros fenômenos relevantes para a investigação científica. O intuito deste artigo é explorar o impacto dessa relação para os envolvidos na epidemia, por meio de análise qualitativa. Mais precisamente, investiga-se a centralidade, dada à relação causal na agenda científica e aponta-se para a menor prioridade dada para estudos de intervenção. São entrevistados, assim, cientistas que estiveram à frente do estabelecimento da relação de causalidade em instituições de pesquisa (principalmente sanitaristas, epidemiologistas e virologistas), mas também profissionais de saúde e famílias dos bebês afetados pela epidemia na época. Para isso, temos como marco teórico os Estudos Sociais de Ciência, Tecnologia e Sociedade (ESCT), área que entende o fato científico como uma coprodução entre ciência e sociedade - o que significa conceber a epidemia de Zika não só pelos estudos científicos, mas pela atuação e escolha dos envolvidos.

Cabe frisar que não se trata de um estudo de percepção, mas uma investigação que concebe a ciência como formada por diversos elementos, o que inclui humanos, não humanos, discursos e a priorização de determinadas perspectivas; por essa razão, a ciência torna-se também um fato político. Como ciência, entende-se a pesquisa científica feita durante a epidemia de Zika, com centralidade na atuação de laboratórios de virologia e desenhos de estudo epidemiológicos, bem como foco na tentativa do estabelecimento da relação de causalidade entre o Zika e as alterações em bebês observadas em 2015. O objetivo aqui é inserir essa ciência na sociedade, o que não lhe atribui demérito, tampouco a ênfase dada para o aspecto social da constituição do fato científico instala nela uma denúncia ou um problema a ser resolvido. Tal destaque tem o intuito de enfatizar que o resultado de uma investigação científica é um emaranhado de diferentes elementos, e não uma materialidade ou verdade que resiste a temporalidades ou cujo impacto social se justifica por si mesmo (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994.; Latour; Woolgar, 1997LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.).

Entende-se que a pesquisa feita durante a epidemia está inserida na coletividade e deve partilhar problemas e perguntas, constituindo um mundo comum. Tal problemática do campo da ESCT é colocada porque não é raro que a ciência constitua-se como um mundo à parte, com problemas que concernem mais ao campo científico do que a sociedade como um todo (Callon, 1986; Felt, 2017FELT, U. (ORG.). The handbook of science and technology studies. 4. ed. Cambridge: MIT Press, 2017.; Jasanoff, 2004JASANOFF, S. Ordering knowledge, ordering society. In: JASANOFF, S. States of Knowledge. The co-production of science and social Order. London: Routledge, 2004. p. 13-45.; Latour, 2012LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução a teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA, 2012.; Sismondo, 2010SISMONDO, S. An introduction to science and technology studies. 2. ed. Oxford: Blackwell Publishing, 2010.). Isso já foi muito problematizado por um autor não pertencente ao campo das ESCT, Pierre Bourdieu, para quem o campo científico possui microcosmos relativamente autônomos, capazes de refratar questões externas. Dependendo do capital científico dos pesquisadores e das instituições as quais pertencem, argumenta o autor, determinados agentes podem pautar quais tópicos mais importam na ciência (Bourdieu, 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do conhecimento científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004.). Diante dessa perspectiva, uma das questões dessa investigação - no que tange ao desfecho complexo observado em bebês na época - é a centralidade dada à investigação para a causalidade, prioridade para a ciência, e também da unicausalidade, uma vez que se procurava por um agente etiológico que fosse responsável pelo desfecho.

A ideia de unicausalidade na saúde tem uma história confundida com a microbiologia. Ações nesse campo se orientam por doenças específicas, com causas também específicas - efeito de uma racionalidade resultante da importância dada à procura da causa biológica desenvolvida a partir do século XIX (Czeresnia; Maciel; Oviedo, 2013CZERESNIA, D.; MACIEL, E. M. G. S.; OVIEDO, R. A. M. Os sentidos da saúde e da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013.). Nas formas clássicas de se pensar a causalidade na filosofia da ciência, por exemplo, a perspectiva é multicausal. Se retomarmos Aristóteles (1984)ARISTÓTELES. Os Pensadores: Aristóteles - Metafísica (Livro I e II); Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984., a causa era multifacetada, recebia vários nomes, e não tinha o pressuposto de uma narrativa universal. Pensava-se em causa formal, causa material, causa eficiente e causa final. Essa narrativa de várias causas juntava desde a origem do objeto até sua finalidade e tinha em suas variadas definições o objetivo de explicar fenômenos em sua completude. Tais perspectivas variadas, contudo, foram sendo perdidas com o afastamento da ciência da metafísica. A ciência, desde o século XVI, investiu num empreendimento de se separar das grandes explicações, limitando-se a objetos restritos - mas observa-se que não se abriu mão de um efeito de totalidade, em que a ideia de racionalidade se confunde com a compreensão de movimentos constantes observados (Novello, 2010NOVELLO, M. O que é cosmologia: a revolução do pensamento cosmológico. São Paulo: Zahar, 2010.).

Para alguns autores, há algo de elementarmente reducionista na ciência, porque a explicação científica tem como intuito a produção de familiaridades, de modo que seu efeito seja reduzir o que é desconhecido, não necessariamente provendo explicações (Salmon et al, 1999SALMON, M. H. et al (Org.). Introduction to the philosophy of science. Indianapolis: Hackett Publishing, 1999.). Outro ponto é que a ciência, ao tradicionalmente intentar afastar-se de valores sociais, optando por uma perspectiva neutra, também pode ter reduzido a sua capacidade de explicação - na medida em que, na tentativa de purificação dos dados, acaba por selecionar micro contextos (Lacey, 2009LACEY, H. O lugar da ciência no mundo dos valores e da experiência humana. Scientiae Studia, São Paulo, v. 7, n. 4, p. 681-701, 2009. DOI: 10.1590/S1678-31662009000400010.
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).

Já no final dos anos 1970, Bunge (1979BUNGE, M. Causality and modern science 3. ed. New York: Dover Publications, 1979.) em um famoso livro sobre causalidade, descrevia como a categoria tinha uma dimensão ontológica e epistemológica. Para chegar a essa proposição, o autor parte do debate antigo da filosofia da ciência (a partir de Locke, Hume e Kant) sobre a causalidade não ser um fato observável, mas uma categoria da razão: “uma construção mental”. Para esses filósofos, não é empiricamente observável que uma causa produza efeito, mas que algo chamado de causa seja associado a um efeito de forma invariável. Discordando dessa posição, Bunge propõe que a ideia de causalidade não seja vista por meio de categorias dicotômicas (como um fato em si ou como construção mental): a descrição de uma relação causal tem um estatuto epistemológico e ontológico e, portanto, é ontoepistemológica. Trata-se de um construto com lastro na realidade. Há uma interdependência da ideia de causalidade com fenômenos empíricos, mesmo podendo-se descrever apenas uma realidade aproximável (Bunge, 1979BUNGE, M. Causality and modern science 3. ed. New York: Dover Publications, 1979.).

Outros autores ressaltam que a causalidade tem um aspecto funcionalista. Por meio da relação causal, afirmam querer saber se um problema pode ser previsto ou não, bem como qual o risco de ele ser persistente. A causa também é uma via de explicação dos fenômenos, não só do passado, mas do que porventura pode ocorrer, de tal modo que é por meio da descrição da causa que podemos saber o que pode ser feito a respeito do problema (Illari; Russo, 2014ILLARI, P. M.; RUSSO, F. Causality: philosophical theory meets scientific practice. Oxford: Oxford University Press, 2014.). Assim, a busca pela causa diante do complexo desfecho em bebês, observado em 2015, mostra a necessidade da perspectiva científica de impor ordem ao caos da doença, com o pressuposto da busca por um curso de ação que possa ser efetivo em meio a direcionamentos diversos.

Contudo, a escolha de fazer uma relação causal pela busca de um agente etiológico implica custos e compromete o entendimento de condições complexas do ponto de vista social e biomédico (Singer; Clair, 2003SINGER, M.; CLAIR, S. Syndemics and Public Health: Reconceptualizing Disease in Bio-Social Context. Medical Anthropology Quarterly, Hoboken, v. 17, n. 4, p. 423-441, 2003. DOI: 10.1525/maq.2003.17.4.423.
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). Cabe, assim, que a comunidade científica esteja consciente dos custos envolvidos - uma avaliação que é também social e interdisciplinar; e, para esse ponto, essa pesquisa pretende fazer uma contribuição.

Métodos

Com base nos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia, a pesquisa apresentada aqui é parte de investigação feita para pesquisa de doutorado aprovada pelo Conep (Comitê Nacional de Ética em Pesquisa), com processo de número 01208718.9.0000.542 (Oliveira, 2021OLIVEIRA, M. A relação de causalidade entre Zika vírus e síndrome congênita: análise de uma controvérsia em meio a uma crise de saúde pública. 2021. 420 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.). A investigação consistiu em coletar relatos variados e materialidades sobre a associação causal entre o Zika e o desfecho da SCZ, sem estabilizar atores, no sentido de que, independente da especialidade ou profissão, todos os que estiveram associados à epidemia - com ações de impacto sobre o seu curso - tenham uma experiência posicionada acerca do tema, além de abordagem consistente com os ESCT (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994., 2012LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução a teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA, 2012.; Latour; Woolgar, 1997LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.). Na prática, utiliza-se uma variedade de abordagens para seguir o rastro da causalidade, com o cuidado de não retirar da amostra sujeitos que possam contribuir com uma experiência - sejam eles humanos ou não humanos, cientistas ou pessoas de fora da ciência profissional. Alguns apontamentos colocados aqui dialogam com etnografias escritas sobre o tema, em que embates com a prioridade da ciência e de familiares foram observados (Scott, 2020SCOTT, P. Sendo prioridade entre prioridades: Fortalecimento mútuo e desentendimentos na articulação de cuidados entre casa, serviços e áreas de conhecimento. In: SCOTT, P.; LIRA, L.; MATOS, S. (Org.). Práticas sociais no epicentro da epidemia de Zika. Recife: UFPE, 2020.; Simões, 2022SIMÕES, M. A. “Você é da saúde?”: Uma etnografia das relações biomédicas com médicos, cientistas, terapeutas e famílias na epidemia de Zika em Recife/PE (2016-2019). 2022. 146 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/44053/1/2022_MarianaAlvesSim%c3%b5es.pdf . Acesso em: 9 set. 2022.
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). Assim, na pesquisa para o doutorado, foram realizadas observações, pesquisas em documentos oficiais e artigos científicos, além de 50 entrevistas semiestruturadas realizadas em 2019 em oito estados brasileiros, são eles: Bahia (Salvador), Brasília (Distrito Federal), Pará (Ananindeua e Belém), Paraíba (Campina Grande), Pernambuco (Recife), Rio de Janeiro (Rio de Janeiro), Rio Grande do Norte (Natal) e São Paulo (Jundiaí, São Paulo, e Campinas).

A etapa apresentada aqui é uma seleção dessa investigação integral, com 17 depoimentos dos entrevistados sobre a associação causal e a relevância social dessa instituição, a partir da metodologia da história oral, que tem o seu uso justificado para apresentar fatos históricos não registrados, em documentações feitas a partir de entrevistas com sujeitos de um episódio comum (Lima, 2016LIMA, M. O uso da entrevista na pesquisa empírica. In: ABDAL, A. (Org.). Métodos de pesquisa em ciências sociais: bloco qualitativo. São Paulo: Sesc São Paulo/Cebrap, 2016. p. 72.; Queiroz, 1987QUEIROZ, M. I. P. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. Ciência e cultura, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 272-286, 1987.). Especificamente neste estudo, registra-se o impacto da relação causal e a experiência dos indivíduos com esse processo. Como a seleção foi feita com base em pesquisa prévia de mapeamento, a partir do marco teórico dos ESCT, a história oral é apresentada tendo em vista essa conexão e também os processos de estabilização da ciência, bem como das vozes e indagações que ficam pelo caminho.

Resultados

Os itens a seguir mostram entrevistas realizadas com: 1) cientistas envolvidos em estudos que intentavam descrever a relação de causalidade; 2) uma roda de conversa com famílias de crianças potencialmente afetadas com a SCZ; e 3) profissionais de saúde e profissional do Ministério da Saúde com envolvimento na gestão da assistência. Os achados foram selecionados de acordo com problematização feita a partir do impacto da pergunta de causalidade e sua relevância para o interesse público e para o enfrentamento da epidemia.

Cientistas

Os pesquisadores entrevistados - e envolvidos em estudos que tinham o objetivo de descrever a causa das alterações em bebês observadas - entendem que o impacto social da SCZ é muito maior que a causalidade, mas tendem a separar o papel da pesquisa da resolução do problema, que ficaria a cargo de outros atores. Entre os cientistas que tiveram pesquisas com foco na descrição da causalidade, há relatos que colocam em xeque a relevância da pergunta causal para a geração que estava enfrentando o problema. Um virologista de uma das unidades da Fiocruz no Nordeste, envolvido em estudos do estabelecimento da relação causal entre o Zika vírus e a SCZ, discorre sobre como a causalidade tinha pouquíssima relevância prática para as famílias que já lidavam com as consequências da epidemia.

Provar que Zika causa microcefalia, ok, mas pra uma mãe, qual o benefício? Ela está grávida, se for microcefálico, o que ela vai poder fazer? Ela vai ter uma vida sacrificada, as mães são muito novas, foi uma tragédia. A média de idade foi 19, tem mãe até de 13 (…) uma criança tendo um filho cheio de sequelas. (Entrevistado 1)

O mesmo cientista da Fiocruz descrito acima comenta que a ciência conseguiu “estudar sim”, mas “enfrentar não”. De acordo com ele, a constituição de políticas efetivas que mitiguem o problema não vieram na mesma velocidade que os estudos, embora a ciência brasileira tenha demonstrado autonomia na descrição da relação causal, ainda mais quando comparada à de países com mais recursos para a pesquisa. Do mesmo modo, também para o virologista cujos estudos, feitos na Bahia, identificaram a presença do vírus no território, o Zika “trouxe um impacto social muito grande”; impacto esse que as pesquisas científicas não conseguiram dar conta.

Outro virologista, envolvido em estudos da associação causal em uma universidade pública em São Paulo, problematiza o papel desse tipo de pesquisa para o enfrentamento de uma epidemia. O pesquisador discorre sobre o foco na causalidade que, a depender da situação, pode ser uma “farsa argumentativa”. Referindo-se à epidemia de Zika, ele cita um texto publicado na imprensa na época por um famoso biólogo, que dissera que pouco poderia ser feito sem que a relação causal fosse plenamente estabelecida. “Eu achei uma besteira porque (…) quando você tem a suspeita de algo, você tem que assumir risco total. Esse é o predicado mais ou menos óbvio da teoria do risco”. Para ele, a questão sobre a causalidade vem a reboque de intervenções que podem ser colocadas em curso. “Não é necessário saber a causalidade entre o Zika e a microcefalia para tomar algumas atitudes”, continua.

Os relatos acima são uma amostra de que há ressalvas quanto à centralidade da pergunta da relação causal para as diversas demandas em curso na epidemia, mesmo entre cientistas com envolvimento em estudos de laboratório com tal objetivo. Cabe frisar que nenhum dos entrevistados pontuou ser a pergunta causal irrelevante, mas que, quando se tratava da multiplicidade de demandas ocorridas no período, foram citados limites quanto a capacidade da descrição da causa mitigar tais adversidades. Exemplifica-se: na medida em que a descrição da causa coloca que um arbovírus (o Zika) está relacionado ao desenvolvimento da SCZ, houve dificuldades para a divulgação de informações sobre transmissão sexual, resultando em impacto nas medidas de prevenção. Campanhas da época são lembradas por pesquisadores entrevistados, como por essa professora da Universidade Federal de Pernambuco, que critica aspecto individualizante de campanhas que, segundo ela, tendem a retornar na totalidade o surto de arboviroses.

O Ministério entrou muito da coisa de prevenção individual. Você pega a propaganda do Ministério da época é assim: “Sábado é dia de faxina”. Aí a outra era assim: “ Se ele é um mosquito, ele não pode viver”, uma coisa assim. Aí a outra era, nem lembro, mas era nessa direção, mas essa sumiu. Aí tinha outra que era assim: “O mosquito não pode ser maior ou mais forte que uma nação”. E o foco era o tal do repelente. (Entrevistado 4)

Outra ressalva quanto a centralidade da pergunta causal na epidemia era o fato de tal questão apontar para o futuro em que poderia se desenvolver uma vacina; fato que pelo menos até 2022 não havia ocorrido. Enquanto se sabe que não há garantias para o desenvolvimento de um imunizante em todas as condições, questiona-se o volume de recursos destinados para o desenvolvimento de um imunizante. Para pesquisadora na Paraíba, não é culpa dos pesquisadores que mais estudos têm por foco a questão da causa. Segundo ela, não há verba para testar métodos eficazes na assistência, e o financiamento liberado teve por foco a caracterização da doença.

Na esteira dessa questão, outra reflexão citada em entrevistas era o fato de que, uma vez descrita a doença e a relação do Zika com o desfecho da SCZ, era como se o problema tivesse desaparecido. Para a pesquisadora da Paraíba já citada, cada cientista chegava no território para fazer pesquisa de acordo com seu enfoque e o problema das famílias não era realmente objeto. Segundo ela, há poucos estudos sobre intervenções assistenciais porque há quase nenhum olhar para perguntas de fora do meio científico, além de poucos recursos disponíveis para esse tipo de desenho de estudo. Por esse motivo, no caso do Zika, discorre a pesquisadora, protocolos foram “copiados” de outras condições para aumento da qualidade de vida e tratamento, portanto havia a necessidade de estudos específicos para a condição.

Crianças com condições associadas à SCZ chegam a tomar nove medicações diferentes e não se sabe exatamente qual substância ou conjunto de medicações são mais efetivos, relata a pesquisadora. Do mesmo modo, foi feito o kit de estimulação precoce - materiais distribuídos na atenção básica que poderiam conter colchonetes, bolas, rolos e brinquedos, com o intuito de contribuir para o desenvolvimento de crianças afetadas pela SCZ22O uso do kit no contexto da epidemia de Zika, bem como seu conteúdo, foi regulamentado pela Portaria no 3.502, de 19 de dezembro de 2017. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt3502_22_12_2017.html>. Acesso em: 21 set. 2022. -, mas sua eficácia não foi medida ou avaliada.

O impacto da epidemia de Zika ainda recai sobre familiares de crianças afetadas, principalmente a figura materna responsável pelo cuidado - aspecto problematizado por alguns cientistas. Para além das causas, há as consequências, salienta pesquisador da Fiocruz da Bahia. No contexto do Zika, ele cita um estudo que demonstrou que mães de crianças com deficiência têm taxa de mortalidade superior às demais. “Isso quer dizer que a energia que a mãe gasta para tratar essa criança de alguma forma reduz a sua própria vida”. Ele alerta que há uma gama de questões e de problemas, muitas vezes indiretos, que ainda precisam ser estudados no contexto da epidemia de Zika, com necessidade de um grande conjunto de dados e de muitos olhares para a compreensão.

As famílias

“Quando ele nasceu com os pés tortos e os bracinhos tortos, eu perguntei: doutora, por que ele está desse jeito?”, relata uma das mães em roda de conversa com 13 mães feita em casa de apoio em Campina Grande, na Paraíba, em 2019. Segundo a mãe, a médica respondeu que estava tudo normal e o que ela observava se devia ao fato do bebê ter acabado de nascer; depois, “tudo se ajeitava”. Ela foi para o quarto; e, no dia seguinte, avisou que as mãos e os pés dos bebês continuavam tortos. “Ela disse: tá certo mãe. Foi quando eu lembrei que eu tive Zika, com dois meses de gestação, eu nem sabia que eu estava grávida”. O relato demonstra a dificuldade das famílias em obter informações sobre o que estava acontecendo face ao surto de alterações em bebês ocorridos em 2015 e 2016 no Brasil. Enquanto cientistas tentavam compreender o repentino aumento observado nos serviços - em busca de uma causa para o ocorrido -, muitas mães recebiam informações desencontradas sobre o que acontecia de fato. Tais conflitos de informações ou com fluxos mediados pela imprensa também foram observados em outros trabalhos, como Diniz (2016DINIZ, D. Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.) e Simões (2022SIMÕES, M. A. “Você é da saúde?”: Uma etnografia das relações biomédicas com médicos, cientistas, terapeutas e famílias na epidemia de Zika em Recife/PE (2016-2019). 2022. 146 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/44053/1/2022_MarianaAlvesSim%c3%b5es.pdf . Acesso em: 9 set. 2022.
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).

A sensação demonstrada por essa mãe, de que as perguntas que tinha não eram respondidas, foi compartilhada por outras na roda de conversa feita em 2019. Segundo os relatos, o fluxo de informações científicas até elas era demorado, ou mediado pelo que saia na mídia, e não por profissionais de saúde aos quais eram vinculadas ou dos estudos científicos que participavam. Conforme a relação causal ia sendo divulgada na imprensa, a ansiedade das mães aumentava e a necessidade de ter um teste que mostrasse que, de fato, era Zika, aumentava. Aquelas que participaram de mutirões organizados por pesquisadores e profissionais de saúde, para que o diagnóstico dos bebês fosse fechado, reclamaram da falta de retorno dos testes que poderiam dizer se as alterações que viam nos seus filhos teve, de fato, o Zika vírus como causa.

Uma avó de um casal de gêmeos lamenta que “perdeu tempo confiando” em médicos. Ela menciona ter ficado sabendo do Zika por uma mulher do “postinho”. Ao questionar os médicos sobre o que ouvira no posto de saúde e na imprensa, eles teriam dito que com gêmeos seria diferente. “Eles só adiavam e eu queria que indicasse para outro especialista, que era neurologista”. O relato dela aponta que médicos minimizavam as alterações observadas, frisando que ela não se preocupasse, até quando ela viu uma reportagem na televisão sobre os efeitos que observava nos netos, reclamou da falta de acompanhamento e ameaçou não mais comparecer nas consultas. “Foi quando uma assistente social bateu na minha porta”.

Uma das mães entrevistadas na Paraíba relembra que ouviu de médicos que o problema do filho existia porque ela tinha começado a tomar ácido fólico tardiamente durante a gravidez: “disseram que era uma formação que era necessário para a coluna; daí, a microcefalia”. Outra menciona que teve alergia e febre alta, mas não tem a confirmação laboratorial se foi Zika: “quando eu fui fazer o ultrassom aos 9 meses para saber se ele estava na posição, a médica me disse que ele parecia um menininho de 6 meses, mas não me disse o que era.

Ao mesmo tempo em que famílias relatam ansiedade por informações e para o retorno dos testes que fizeram; do ponto de vista prático, mencionam a descoberta da causa como uma informação sem tanta importância para suas rotinas - embora a relação causal tenha facilitado a entrada das crianças ao sistema de saúde e mediado acessos a benefícios sociais (Oliveira, 2021OLIVEIRA, M. A relação de causalidade entre Zika vírus e síndrome congênita: análise de uma controvérsia em meio a uma crise de saúde pública. 2021. 420 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.). Na conversa realizada na Paraíba, a causalidade e fatores associados à descrição formal dos casos, embora fossem relevantes para lidar com o sistema de saúde e outras demandas institucionais, não eram tão exigidas. Pois, no cotidiano, eram as possibilidades de intervenção e de cuidado que eram mais demandadas. “Eu nunca nem pesquisei o que é microcefalia, as pessoas é que me dizem, eu não tenho tempo pra isso”, disse uma das mães.

Profissionais da saúde: O impacto na assistência

No Ministério da Saúde, informar para as mães sobre o Zika sem ter nada a oferecer era uma questão colocada nos protocolos de assistência. “Por algum tempo, a gente chegou a ser contra teste durante a gestação”, diz profissional na gestão da assistência da pasta. A questão era complicada, pondera funcionária, porque o país não oferece a opção da interrupção da gestação, o benefício social era só para aquelas de renda muito baixa, e não para todas, não havia tratamento ou possibilidade de intervenção, apoio para o cuidador ou uma creche especializada, nem nada a ser feito, além de esperar o nascimento. “É quase como um pesadelo, né?”, pondera. Para quem estava na gestão da assistência do ministério, a relação com a causa e a centralidade dada à questão era menor, e mesmo com o envolvimento do Zika nas alterações em bebês sendo atestado por diversos estudos, ainda restaram muitas perguntas no ano de 2019.

Não mudava muito, o meu problema estava posto, independente da causa, né? Isso não quer dizer que a gente não investiu em pesquisa para ter mais certeza, né? Inclusive a gente tem algumas pesquisas ainda em andamento que vão nos trazer mais… evidências. Na verdade, até hoje acho que todo mundo que se envolveu nessa agenda tem muitas perguntas, né? Por que mais no Nordeste? Por que mais o Brasil, né? Acho que são perguntas que são incógnitas. (Entrevistado 12)

Já na organização dos serviços, a associação do Zika, com as alterações observadas em bebês, teve consequência imediata na gestão do atendimento de crianças com deficiência. Durante a situação de emergência, pela quantidade de crianças que chegavam e a necessidade de se chegar ao diagnóstico, foram criados serviços exclusivos para a demanda do Zika, o que gerou assimetrias nos serviços. Um hospital de referência em Salvador organizou um ambulatório para acompanhar as crianças que estavam com Síndrome Congênita pelo Zika Vírus. “A gente viu que elas estavam tendo dificuldade de acessar os serviços”, diz enfermeira entrevistada na Bahia. Foi uma iniciativa multidisciplinar dos profissionais que já atendiam. O ambulatório na época tinha neuropediatra, infecto pediatra, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, fonoaudióloga, psicóloga, nutricionista, dentista e odontólogo.

A diferenciação nos serviços, com um ambulatório específico para crianças potencialmente afetadas pelo Zika, acabou gerando ressentimento e reclamações daqueles pacientes que não tinham deficiência associada a uma causa específica. Pesquisadora da Universidade Federal da Bahia que acompanha gestantes em coorte relembra que ouviu relato emblemático de uma mãe em serviço de reabilitação que “queria que o seu filho tivesse tido Zika”. Do mesmo modo, coordenadora de associação de mães em Recife lamenta que aqueles que não se encaixavam na SCZ foram vítimas de um “descarte” em algumas instituições, embora também necessitassem do atendimento.

Acho terrível um descarte. Parece que você não tem mais uso. E quem tinha microcefalia também, mas não era do Zika, ainda hoje não tem apoios, não tem emergência. Se for de outro vetor, ou de outra causa, vai para a fila como qualquer outra criança (…) Ainda hoje, quem não tem Zika, entra numa fila sem fim para pessoas com deficiência. (Entrevistado 16)

Na Secretária de Vigilância de Pernambuco, um profissional exprimiu que essa diferença nos serviços foi de fato um problema, porque os dados da vigilância começaram a se misturar com os da assistência, embora os serviços tivessem lógicas completamente diferentes. “Um caso notificado para a vigilância é uma coisa, e para a assistência é outro (…) se você começa a formar uma rede para essas crianças, outras redes vão aparecer que também precisam de apoio”. No Ministério da Saúde, houve percepção que, com a atenção dada aos casos, estava se criando uma “elite do Zika”, termo citado por profissional da gestão da assistência do Ministério da Saúde em Brasília. O fato observado aqui também foi problematizado por outros autores, que deram ao fenômeno o nome de “prioridades entre prioridades” (Scott, 2020SCOTT, P. Sendo prioridade entre prioridades: Fortalecimento mútuo e desentendimentos na articulação de cuidados entre casa, serviços e áreas de conhecimento. In: SCOTT, P.; LIRA, L.; MATOS, S. (Org.). Práticas sociais no epicentro da epidemia de Zika. Recife: UFPE, 2020.). Com essa percepção, foi feito um esforço de regionalização dos serviços - tanto para uma maior integração de diferentes casos, quanto para que as mães conseguissem acessar o que era necessário perto de suas residências. Era preciso observar onde o vírus circulava e fazer um esforço ativo de pensar o fortalecimento do SUS, portanto o trabalho teve de ser interdisciplinar, juntando várias áreas do Governo Federal. Profissional da pasta admite ter sido um desafio pensar pesquisa, assistência e vigilância juntas. “Isso é uma limitação no ponto de vista da saúde pública (…) acho que a gente tem fragilidades na conformação desses campos de conhecimento e isso reflete no nosso processo de trabalho.”

No que concerne à relação da assistência com a ciência, fisioterapeuta de hospital de referência em Salvador levanta uma outra questão, sobre o conhecimento publicado nos artigos científicos, que ou não chega a ser aplicado na rotina dos atendimentos ou tem sua aplicação dificultada depois da implementação de alguns processos. Alterações oftalmológicas, vistas posteriormente, demoraram a ser incluídas como critérios estabelecidos de caso. Outra questão não tratada pela ciência é que o desfecho e desenvolvimento das crianças divergem muito entre si. Há desde as crianças que “não mudam de postura e fica na que você colocou” até as que andam e falam, continua o profissional. Tal relato reforça reflexões também relatadas por cientistas em item anterior, sobre a falta de estudos de intervenção.

Discussão

Os depoimentos mostram a amplitude de acontecimentos, fenômenos e perguntas que ocorreram no período em que alterações do sistema nervoso foram observadas em bebês e fetos no Brasil. Tais questões estão além da pergunta de causalidade e demandam também da ciência a atenção a outras questões; entre elas, o foco em estudos de intervenção. Enquanto o campo científico tem relativa autonomia para pressões externas, o que pode ser benéfico em alguns casos; para outros, há distanciamento do fenômeno e questões postas por sujeitos não diretamente ligados à ciência ou a seus centros de produção hegemônica. Tal questão também foi apontada por outros trabalhos: uma etnografia feita com famílias em Recife se debruçou, por exemplo, sobre a relação entre famílias e a biomedicina, com conclusões que mostraram demandas para que a criança fosse vista como um sujeito integrado em seu contexto (Simões, 2022SIMÕES, M. A. “Você é da saúde?”: Uma etnografia das relações biomédicas com médicos, cientistas, terapeutas e famílias na epidemia de Zika em Recife/PE (2016-2019). 2022. 146 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/44053/1/2022_MarianaAlvesSim%c3%b5es.pdf . Acesso em: 9 set. 2022.
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).

Como demonstrado, mesmo os cientistas envolvidos na descrição da relação causal relatam tal distanciamento entre o estudo que fazem e o enfrentamento. Apesar da causalidade ser um enfoque relevante para os cientistas - e também, em alguns casos, para a sociedade -, a questão não dá conta de todo o fenômeno. A demanda por estudos de intervenção e para aqueles que apontem para uma maior amplitude do desfecho, bem como uma maior interlocução entre cientistas e famílias afetadas e suas necessidades, são questões apontadas pela investigação. Da mesma forma, mesmo que a causalidade não tenha tido um impacto, pelo menos até 2022, no sentido da produção de uma vacina, a pergunta causal tem consequências para além de suas intencionalidades mais imediatas, como demonstrado na consequência na organização dos serviços, com uma sobreposição entre vigilância e atendimento no início da epidemia - com prioridade para o atendimento de crianças do Zika, gerando assimetrias no Sistema Único de Saúde -, uma lição que fica do Zika para futuras epidemias.

Observa-se nessa investigação como o campo social não está separado de materialidades e também faz demandas científicas - não há uma sociedade isolada da ciência com questões que só a política pode lidar, também há demandas por investigações do fazer científico. Tal fato exemplifica o que o campo das ESCT tem ressaltado: o caráter híbrido das questões contemporâneas (formadas por conexões sociais, coletivas, materiais, científicas e discursivas). Esse chamado, contudo, não tem feito parte dos desenhos de pesquisa, os quais denotam preferência por perguntas produzidas internamente no campo científico, sem um diálogo mais amplo com os demais atores envolvidos - de modo que eles também sejam formuladores de perguntas e não somente objetos de investigação.

A pretensão por uma narrativa causal pode ser definida como a enunciação de que uma coisa aconteceu de um modo e não de outro (Ryan, 1977RYAN, Alan. Filosofia das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. ). Ou seja, há um fator excludente, pois restringe o fenômeno a um determinado conjunto de condições que devem ser descritas a partir do que os cientistas observam, pelo que elegem como hipótese, e pelas constrições metodológicas do desenho de pesquisa. Desse modo, é estabelecida a armadilha das relações de causalidade, porque, se para exprimir uma relação causal outros fenômenos são excluídos, essa relação puxa uma primazia para si que obscurece outras possibilidades.

Tal caráter híbrido e multifacetado das epidemias levou à concepção do termo sindemia para descrição de crises complexas de saúde pública, como a do Zika vírus. Com base em suas pesquisas com HIV, o antropólogo Merrill Singer (2003SINGER, M.; CLAIR, S. Syndemics and Public Health: Reconceptualizing Disease in Bio-Social Context. Medical Anthropology Quarterly, Hoboken, v. 17, n. 4, p. 423-441, 2003. DOI: 10.1525/maq.2003.17.4.423.
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) propôs o termo sindêmico para esse tipo de interação, que aponta para a interdependência de condições biomédicas e sociais em um espaço relacional, não hierárquico e sem distinções temporais. À semelhança do termo epidemia e pandemia, o sufixo de sindemia vem do grego “demos” (pessoas) e indica o espalhamento de doenças não só por variados agentes etiológicos que interagem entre si, mas por condições de vida e sociais que provocam o desfecho.

A aplicação do conceito de sindemia ao fenômeno da epidemia de Zika vírus foi proposta pelo próprio antropólogo que cunhou o termo (Singer, 2017SINGER, M. The spread of Zika and the potential for global arbovirus syndemics. Global Public Health , Abingdon, v. 12, n. 1, p. 1-18, 2017. DOI: 10.1080/17441692.2016.1225112.
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). Em artigo de 2017, Singer relata que o caráter complexo e ecológico do ciclo do Aedes aegypti e as evidências de coinfecções com outras arboviroses caracterizam o Zika como uma sindemia. O fenômeno é explicado, segundo ele, por uma dinâmica de saúde planetária, que pensa também questões globais de clima e de produção de pobreza. A proposta do evento Zika como sindêmico foi seguida também por outros autores; dentre eles, brasileiros (Diderichsen; Augusto; Perez, 2019DIDERICHSEN, F.; AUGUSTO, L. G. S.; PEREZ, B. Understanding social inequalities in Zika infection and its consequences: a model of pathways and policy entry-points. Global Public Health, Abingdon, v. 14, n. 5, p. 675-683, 2019. DOI: 10.1080/17441692.2018.1532528.
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).

Com a análise feita nesse trabalho, de fato observa-se que o conceito de sindemia é aplicável à SCZ. Contudo, cabe problematizar com mais ênfase o impacto que a causalidade e a procura por agentes etiológicos teve na epidemia de Zika. Na ideia de epidemia, está implícita a unicausalidade - um único agente etiológico é associado ao desfecho -; esse resultado, por sua vez, se difunde na medida do espalhamento desse agente, e isso garante um direcionamento simples para a solução do problema: combatendo-se o vírus, tem-se o fim da doença.

Cientistas entendem o aspecto complexo e social ligado ao desfecho da SCZ; contudo, a via adotada pela ciência que privilegiou a causalidade para a resolução do problema é a de encontrar o vírus, adotar medidas de prevenção associadas ao seu ciclo de vida, e pesquisar uma vacina. Enquanto o conceito de sindemia ajuda na problematização da ideia de unicausalidade de forma contundente - algo que não foi observado entre os entrevistados associados ao laboratório, que tendem a descrever outros fatores como secundários à ação do agente etiológico -, o conceito não substitui o efeito simbólico resolutivo provocado pela ideia de epidemia, em que um único agente pode ser combatido de tal modo que o problema seja resolvido. Em que pese alguns casos em que essa ideia se aplique, há que se considerar os casos em que não existe clareza e diálogo com a sociedade.

Observa-se, na pandemia de covid-19, algumas questões referentes a essa problemática, que podem ser exploradas em estudos futuros. Enquanto inicialmente a manifestação foi entendida como uma síndrome gripal; depois, notou-se a extensão dos sintomas observados. Pacientes passaram a relatar condições persistentes após o ciclo viral, o que culminou na chamada “covid longa”, com mais de 50 sintomas descritos (Lopez-Leon et al., 2021LOPEZ-LEON, S. et al. More than 50 long-term effects of COVID-19: a systematic review and meta-analysis. Scientific Reports, Berlim, v. 11, n. 1, 16144, 2021. DOI: 10.1038/s41598-021-95565-8.
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). Hipotetiza-se que a ideia de unicausalidade, com o vírus sendo o responsável por um conjunto tão amplo de sintomas em uma crise social extensa, pode ser problematizada para um melhor manejo dessas condições, bem como entende-se a necessidade de uma descrição que leve em consideração a complexidade do desfecho relatado.

Considerações finais

Por fim, considera-se necessária a inclusão de desenhos de pesquisa e de prioridades da ciência, com a incorporação de perguntas que multipliquem as possibilidades de ação. As questões que emanam do meio social não são somente políticas ou da arena dos cidadãos; como híbridas, são também científicas. Não se trata de substituir uma questão por outra, ou de colocar a ciência em uma posição de vilã em meio a dicotomias, mas de pensar uma reforma democrática de suas bases.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2022
  • Revisado
    23 Set 2022
  • Aceito
    01 Out 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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