Resumo
A pandemia de covid-19 agravou as situações de renda, fome, desemprego e informalidade provocados pela Reforma Trabalhista de 2017 e pelo desmonte de políticas sociais, levando muitos trabalhadores ao ramo da entrega de comida sem direitos ou garantias de proteção. Este trabalho procurou investigar as condições de trabalho e o impacto na saúde e qualidade de vida de entregadores de comida de Curitiba/PR, de acordo com as categorias de entrega, durante a pandemia de covid-19. Foi realizada pesquisa de campo em 10 points de entrega, seguindo a lógica da saturação de discursos, com o auxílio de instrumento de pesquisa com perguntas semiestruturadas. Paradoxalmente, apesar da menção a vários aspectos negativos das condições de trabalho, a qualidade de vida foi percebida como positiva por grande parte dos entregadores, sendo associada à possiblidade de trabalho e retorno financeiro. Os aspectos negativos das condições de trabalho e seus impactos na saúde e qualidade de vida foram sentidos com mais intensidade por entregadores de aplicativo. Esses achados trazem a necessidade de aprofundamento da discussão das condições de trabalho nos novos arranjos contemporâneos e precarizados e seus impactos na saúde dos trabalhadores, a partir de diferentes contextos e categorias de trabalhadores.
Palavras-chave:
Precarização do Trabalho; Gamificação; Entregadores de Comida; Covid-19; Qualidade de Vida
Introdução
A pandemia de covid-19 no Brasil impôs o isolamento social e aumentou os índices de desemprego, informalidade e precarização do trabalho (Antunes, 2020ANTUNES, R. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo, 2020.). Nesse cenário, muitos trabalhadores desempregados ou de outros ramos da informalidade migraram para atividades de entregas (Brasil, 2020BRASIL. Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10282.htm >. Acesso em: 20 mar. 2022.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a... ).
A precarização do trabalho é um processo estrutural que consiste na perda de direitos consolidados, no qual o trabalhador se dispõe permanentemente ao capital. Esse processo surge após a eliminação da sindicalização e do modo de produção taylorista-fordista, caracterizado pela estabilidade, como forma de aumentar a produtividade dos trabalhadores e, dessa forma, aumentar a acumulação de capital (Antunes, 2011ANTUNES, R. Os modos de ser da informalidade: rumo a uma nova era da precarização estrutural do trabalho? Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 107, p. 405-419, 2011.).
Quando ocorre por meio de plataformas digitais, a precarização do trabalho é conhecida como plataformização do trabalho e tem entre suas origens a utilização de novas tecnologias de informação (TIC) por parte de grandes empresas. Nesse sentido, o “empreendedor” das plataformas digitais se torna, consequentemente, um trabalhador explorado por estas e por si mesmo (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021ABÍLIO, L. C.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, v. 23, n. 57, p. 26-56, 2021. DOI: 10.1590/15174522-116484.
https://doi.org/10.1590/15174522-116484... ).
As condições de trabalho dos entregadores plataformizados são amplamente estudadas e divulgadas, entretanto as de categorias de entregadores de comida que não trabalham em plataformas foram pouco exploradas pelos estudos, pois ainda têm trajetória recente. Nessas categorias, enquadram-se motofretistas, entregadores que trabalham para empresas que terceirizam as entregas fora das plataformas ou mesmo aqueles que trabalham de forma autônoma para estabelecimentos por meio de taxas diárias. Assim, pouco se sabe sobre as condições de trabalho e seus impactos na saúde e qualidade de vida dessas categorias. Dessa forma, o trabalho foi norteado pela seguinte pergunta de pesquisa: qual o impacto das condições de trabalho sobre a saúde e qualidade de vida percebidas pelas diferentes categorias de entregadores de comida?
Tendo em vista esse panorama do aumento da precarização do trabalho e o seu agravamento durante a pandemia, busca-se entender as condições de trabalho e analisar como elas impactam na percepção da qualidade de vida e saúde de diferentes grupos de entregadores de comida durante o período da pandemia de covid-19.
Métodos
A pesquisa ancorou-se na perspectiva hermenêutico-dialética como base epistemológica em todas as suas etapas, desde a construção do delineamento junto aos atores envolvidos, até a elaboração de núcleos de sentido (Minayo, 2014MINAYO, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.), destacados em negrito na seção “Sentidos da precarização”.
Para auxílio no delineamento da pesquisa relativo ao cenário geral, aos grupos e locais a serem investigados, bem como ao instrumento de pesquisa, formou-se parceria junto ao Sindicato de Motofretistas de Curitiba e Região Metropolitana (Sintramotos), ao Movimento de Entregadores Antifascistas de Curitiba e à Bicicletaria Cultural de Curitiba, que realiza um trabalho de acolhimento dos cicloentregadores.
A partir do diálogo com o sindicato, foi definida a inclusão não somente de entregadores de plataformas de aplicativo (plataformizados), mas também de entregadores de empresas terceirizadas, autônomos e motofretistas, incluindo-se somente os que trabalham com entregas de comida.
Após a definição do grupo de participantes da pesquisa, foi construído um instrumento semiestruturado contendo 50 perguntas para levantar informações básicas sobre questões socioeconômicas, características do trabalho, rotinas de alimentação, saúde, sono, segurança alimentar, satisfação com o trabalho, acesso a serviços de saúde e covid-19 como estratégia para a coleta de dados.
A estratégia de campo dividiu-se em duas etapas. A primeira consistiu na testagem do instrumento com os entregadores indicados pelo Sintramotos. Após devolutiva positiva deste último e dos entregadores, o instrumento de pesquisa foi mantido e as entrevistas inclusas na pesquisa.
A segunda etapa, constituída pelo trabalho de campo, foi iniciada no fim de agosto de 2021 e terminou em abril de 2022. Primeiramente as entrevistas foram realizadas em quatro pontos de espera diferentes, ou points, como referido pelo grupo; os seis points seguintes foram elencados como os primeiros grupos de entregadores. Portanto, a pesquisa incluiu o total de 10 points de entrega (cinco em frente a shopping centers, dois com entrega terceirizada, dois com entrega autônoma e um no próprio sindicato). Todos apresentaram grande número e heterogeneidade de entregadores, sendo por isso elencados.
Na segunda etapa, foram realizadas entrevistas em profundidade, visitas sequenciais, observação participante e construção de diário de campo (Foot Whyte, 2005FOOT WHYTE, W. Sociedade de esquina [Street corner society]: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.) em cada um dos points selecionados, que se concentraram na região central de Curitiba e em alguns de seus bairros adjacentes (Batel, Água Verde e Portão). Saturando-se a possibilidade de diferentes discursos oriundos de um mesmo perfil de entregadores em um mesmo point, partia-se para outro.
Após gravação e leitura em profundidade, os discursos foram organizados no software NVivo (QSR International Pty Ltd. Version 10, 2012) e codificados (Minayo, 2014MINAYO, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.). A construção das categorias se baseou nos temas que apareciam nos discursos, as subcategorias definiram-se a partir da percepção dos entregadores sobre a temática e os núcleos de sentido foram definidos de forma indutiva após análise dessas percepções. A análise estatística descritiva foi realizada em Microsoft Excel.
Em relação às características socioeconômicas dos diferentes grupos de entregadores, utilizaram-se faixas etárias e médias de renda, como observado em outros estudos (Abílio et al., 2020ABÍLIO, L. C. et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 3, 2020. Edição especial: dossiê covid-19. DOI: 10.33239/rjtdh.v.74
https://doi.org/10.33239/rjtdh.v.74... ; Manzano; Krein, 2020MANZANO, M.; KREIN, A. A pandemia e o trabalho de motorista e de entregadores por aplicativo no Brasil. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp, 8 jul. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.economia.unicamp.br/covid19/a-pandemia-e-o-trabalho-de-motoristas-e-de-entregadores-por-aplicativo-no-brasil >. Acesso em: 20 jul. 2020.
https://www.economia.unicamp.br/covid19/... ).
As condições de trabalho levantadas dizem respeito à forma de trabalho (terceirizada, por aplicativos, de forma direta), meio de entrega (bicicleta ou motocicleta), plataforma atendida, vínculo empregatício, outros trabalhos performados, horas trabalhadas por dia e dias trabalhados por semana, tempo e condições de descanso, uso de banheiro, alimentação e abrigo. Uma vez que não foi encontrada uma conceituação clara sobre o termo, o levantamento das condições de trabalho foi realizado com base nos aspectos levantados em outros estudos do mesmo campo (Abílio et al., 2020ABÍLIO, L. C. et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 3, 2020. Edição especial: dossiê covid-19. DOI: 10.33239/rjtdh.v.74
https://doi.org/10.33239/rjtdh.v.74... ; Greggo et al, 2022GREGGO, J. P. et al. Percepção de motoristas de Uber sobre condições de trabalho e saúde no contexto da Covid-19. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 132, p. 93-106, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213206
https://doi.org/10.1590/0103-11042022132... ; Manzano; Krein, 2020MANZANO, M.; KREIN, A. A pandemia e o trabalho de motorista e de entregadores por aplicativo no Brasil. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp, 8 jul. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.economia.unicamp.br/covid19/a-pandemia-e-o-trabalho-de-motoristas-e-de-entregadores-por-aplicativo-no-brasil >. Acesso em: 20 jul. 2020.
https://www.economia.unicamp.br/covid19/... ; Tarrão; Santos; Lourenço, 2022TARRÃO, M. Y.; SANTOS, B. O.; LOURENÇO, B. H. “Trabalho com fome entregando comida todos os dias”: precarização do trabalho e alimentação entre entregadores de aplicativo na pandemia de covid-19. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, v. 29, p. 1-11, 2022. DOI: 10.20396/san.v29i00.8670704
https://doi.org/10.20396/san.v29i00.8670... ).
Por último, como parâmetro de análise da qualidade de vida dos entregadores, foram utilizadas as concepções encontradas em seus próprios discursos, e não outros conceitos ou bases teóricas. Para captar essas concepções, eles foram convidados a refletir sobre a sua qualidade de vida por meio da questão “Como você avalia a sua qualidade de vida?”, a partir da qual escolhiam uma das opções da escala de Likert (péssima, ruim, razoável, boa e ótima) e em seguida eram convidados a justificar a resposta. A escala de Likert também foi utilizada para medir a satisfação com as condições de trabalho (totalmente insatisfeito, insatisfeito, satisfeito, totalmente satisfeito), seguida de pergunta aberta para justificar a opção escolhida.
Perfil socioeconômico geral e principais características das condições de trabalho dos entregadores
Foram entrevistados 94 entregadores - 68 motociclistas (72,3%) e 26 ciclistas (27,7%) - e, desse total, realizadas 74 entrevistas em profundidade. O Quadro 1 revela as principais diferenças entre as categorias utilizadas neste trabalho.
Com base em estudos anteriores (Abílio et al., 2020ABÍLIO, L. C. et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 3, 2020. Edição especial: dossiê covid-19. DOI: 10.33239/rjtdh.v.74
https://doi.org/10.33239/rjtdh.v.74... ; Manzano; Krein, 2020MANZANO, M.; KREIN, A. A pandemia e o trabalho de motorista e de entregadores por aplicativo no Brasil. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp, 8 jul. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.economia.unicamp.br/covid19/a-pandemia-e-o-trabalho-de-motoristas-e-de-entregadores-por-aplicativo-no-brasil >. Acesso em: 20 jul. 2020.
https://www.economia.unicamp.br/covid19/... ), as principais diferenciações consideradas entre as categorias e modalidades de entrega dizem respeito à presença de contrato formal, realização de curso no Departamento Estadual de Trânsito (Detran), pagamento de taxas a esse órgão e tipo de vínculo com o estabelecimento. Como será discutido a seguir, essas diferenciações determinam as condições de trabalho em que os entregadores permanecem a maior parte do tempo.
A Tabela 1 revela as principais características socioeconômicas.
A quase totalidade foi constituída por homens (92; 98%) e apenas duas mulheres (2%), com 35 anos em média, ganho médio de R$2.584, estando a maior parte dos entregadores na faixa salarial de até R$3.000.11Esses valores não incluem gastos com combustível e manutenção de motocicletas e bicicletas, que podem levar a um valor líquido bem menor. Entregadores formais relataram remuneração mensal, autônomos relataram receber quinzenalmente ou mensalmente e entregadores de aplicativo recebem semanalmente. A maioria (70%) afirmou não ter outro trabalho além das entregas, o que sinaliza a dependência da atividade como única fonte de renda para esses entregadores. O grupo entrevistado é constituído por mais brancos do que negros, os entregadores de aplicativo compõem as categorias mais jovens e motofretistas a categoria mais velha.
A Tabela 2 revela condições de trabalho caracterizadas por informalidade e precarização.
Como se pode observar na Tabela 2, os motofretistas entrevistados concentram mais entregadores com a maior faixa salarial, acima de R$3.000, em relação às demais categorias e modalidades. Essa categoria tem classificação formal na Classificação Brasileira de Ocupações22Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTitulo.jsf>. Acesso em: 4 abr. 2023. (5191-10) e várias exigências em relação à rotina de trabalho, dentre as quais estão obter licença especial na Carteira Nacional de Habilitação e ter motocicleta com características determinadas (caixa fixa e placa vermelha), além de usar paramentação pessoal específica contendo equipamentos de proteção individual (EPI) e pagar taxas obrigatórias ao Detran (Brasil, 2022aBRASIL. Lei n. 14.297, de 5 de janeiro de 2022. Dispõe sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela covid-19. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 6 jan. 2022a. Disponível em: <Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14297.htm >. Acesso em: 5 julho de 2022.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a... , 2022bBRASIL. Ministério da Infraestrutura. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução Contran nº 943, de 28 de março de 2022. Estabelece requisitos mínimos de segurança para o transporte remunerado de passageiros (mototáxi) e de cargas (motofrete) em motocicleta e motoneta, e dá outras providênciasDiário Oficial da União , Brasília, DF, 1 abr. 2022b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/40Z5k9H >. Acesso em: 4 abr. 2023.
https://bit.ly/40Z5k9H... ).
A Tabela 2 mostra que, apesar dos motofretistas apresentarem a maior concentração de trabalhadores formais (contrato com carteira assinada), ainda há uma porcentagem que trabalha sem registro, de forma direta para o estabelecimento ou por aplicativo - eles foram enquadrados como motofretistas por ainda se vincularem legalmente à categoria. Em face da desvalorização dessa categoria por conta do crescimento das entregas por aplicativos, fato evidenciado pelos discursos, alguns ainda complementam a sua jornada com entregas por aplicativo em turnos diferentes.
Outro diferencial desse grupo é uma jornada mais previsível do que as outras categorias, com ganhos e horários fixos, refeições nas empresas ou restaurantes em que trabalham, bem como acesso a banheiros, abrigo dentro dos estabelecimentos e horários definidos para descanso.
Já em relação aos motoentregadores terceirizados, as condições de trabalho são mais variáveis. Essa categoria, cuja idade média é 33 anos, trabalha para empresas que terceirizam as entregas para restaurantes, não tendo vínculo com os estabelecimentos em si. É constituída por oito empregados formais, nove informais e três com registro de microempreendedor individual (MEI), que são contratados, porém devem arcar com o pagamento de seus próprios benefícios. Após o recrutamento, são direcionados para restaurantes, alguns de forma semanal, outros de forma mensal. Em restaurantes com maior número de entregadores, operam sob a forma de rodízio, sendo o volume de horas acordado entre a empresa e o restaurante, geralmente por períodos. Não recebem valor mensal fixo, mas uma porcentagem de cada taxa de entrega realizada em seu turno, e pagam uma taxa fixa diária para permanecer no local.
De acordo com os terceirizados entrevistados, a vantagem de trabalhar nesta modalidade em relação às outras categorias é a possibilidade de entregas “garantidas”, o trabalho fixo e o possível vínculo com o estabelecimento. Alguns permitem uso da cozinha para acondicionar e esquentar marmitas ou até mesmo fornecem refeições, permissão para utilização do banheiro, acesso à água e, em alguns casos, abrigo de chuva. Além disso, utilizam sistema de rodízio, que garante determinado número de entregas. Entretanto, esses “benefícios” são opcionais e não constam nos contratos estabelecidos entre as empresas terceirizadas e os restaurantes, que por sua vez, podem oferecer ou não algumas dessas opções. As condições de trabalho dessa categoria, portanto, são mais variáveis em relação aos motoentregadores, porém mais previsíveis se comparadas com as dos entregadores de aplicativo.
Essa variabilidade ocorre há mais de duas décadas, com redução dos segmentos trabalhistas mais estáveis e a reintegração ocorreu com situações de trabalho frágeis, sob regimes de terceirizações (Franco; Druck; Seligmann-Silva, 2010FRANCO, T; DRUCK, G; SELIGMANN-SILVA, E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional , São Paulo, v. 35, n. 122, p. 229-248, 2010. DOI: 10.1590/S0303-76572010000200006
https://doi.org/10.1590/S0303-7657201000... ), portanto esta categoria também se encontra sujeita à precarização do trabalho.
Em relação aos entregadores autônomos, as condições de trabalho apresentam mais aspectos fixos, porém não há direitos e garantias. A remuneração é feita por taxas diárias pagas pelos restaurantes sem a mediação de terceiros (valores fixos por dia) mais o valor integral da taxa de entrega. Não há contrato formal, e o número de horas é acordado entre trabalhador e restaurante. As oportunidades geralmente são divulgadas de maneira informal em grupos de redes sociais dos próprios entregadores, nos quais eles podem avaliar as melhores propostas, denunciar abusos e indicar boas oportunidades.
Os aspectos fixos envolvem vínculo com os estabelecimentos, fornecimento de água, banheiro, comida e abrigo. Apesar da renda mensal média ser menor, o recebimento integral da taxa de entrega (que não acontece para terceirizados), a ausência de exigências formais (que ocorre para motofretistas) e as entregas garantidas se tornam convidativas e representam uma alternativa aos aplicativos, que exigem tempo de entrega e não envolvem os benefícios. Como forma de ajuda mútua, os autônomos relataram a ocorrência de denúncias e alertas dos locais que oferecem condições de entregas ruins em grupos de aplicativos de mensagens.
Por último, as condições de trabalho percebidas como mais críticas são vividas pelos entregadores plataformizados, que formam o grupo mais jovem - 51% estão na faixa etária entre 19 e 29 anos e 48% na faixa entre 30 e 39 anos. Nas faixas mais velhas esse percentual diminui progressivamente. Mais da metade dos entregadores plataformizados (60%) concluiu o ensino médio, porém 26% concluíram apenas o ensino fundamental. Essa é a maior taxa dentre todos os grupos, o que sinaliza o baixo nível instrucional dessa categoria.
O fato de nenhuma das condições do trabalho ser previsível - desde o número de horas e o valor ganho, até aspectos vitais como acesso a alimentação, água, abrigo e banheiro - o torna o mais crítico. Para cicloentregadores, principalmente os plataformizados, essas condições são mais inseguras devido às longas distâncias percorridas de suas residências até os points de entrega, somadas ao percurso das entregas e níveis de dificuldades enfrentados no trajeto - apenas um entregador mora até 5 km do point de entrega, 10 moram até 10 km e seis moram a mais de 20 km de distância -, o que causa grande desgaste físico. Ganham menos do que motoentregadores de aplicativo, porém mais do que os autônomos, que trabalham menos horas e são a categoria com os menores salários. Cicloentregadores de aplicativo formam a categoria mais vulnerável em termos de enfrentamento de adversidades como esforço físico e segurança, principalmente quando são negros.
Notaram-se também diferenças nas condições vividas por entregadores negros em relação aos brancos, que podem ser visualizadas na Tabela 3.
Como se pode observar na Tabela 3, e de forma geral, entregadores negros ganham em média 13% a menos que brancos. Os números em destaque revelam maior informalidade e média salarial menor em quase todas as modalidades, mesmo quando o número de horas e dias trabalhados permaneceu semelhante ou foi superior. Destaca-se também a maior ocupação de negros nas posições mais vulneráveis, cujas condições de trabalho são mais adoecedoras, como é o caso de motoentregadores de aplicativo. Consequentemente, ocupam menos posições nas categorias em que as condições de trabalho são mais previsíveis, como é o caso de motofretistas, terceirizados e autônomos e mesmo quando as ocupam, ganham menos.
Essa diferença demarca exposição de entregadores negros a condições ainda mais precarizadas que as tipicamente enfrentadas nesse tipo de trabalho, confirmando inclusive tendências observadas em outras pesquisas, que mostram o grande percentual de entregadores negros e periféricos como cicloentregadores de aplicativo (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica: desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. 2020. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, 2020. DOI: 10.25091/s01013300202000030008.
https://doi.org/10.25091/s01013300202000... ).
Segundo Abílio (2020ABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica: desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. 2020. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, 2020. DOI: 10.25091/s01013300202000030008.
https://doi.org/10.25091/s01013300202000... ), a bicicleta é o primeiro veículo de entrega de jovens negros, periféricos e com baixa formação educacional. Nesta pesquisa observa-se que os cicloentregadores plataformizados negros de fato são o grupo mais vulnerável, que não enxerga possibilidades de crescimento na atividade e utilizam a bicicleta por não poderem adquirir motocicletas. Já os cicloentregadores brancos, de aplicativo ou autônomos, são em sua maioria mais jovens e têm outros vínculos de trabalho e/ou vêm de famílias de classe média. Enxergam o trabalho de entregas como uma atividade física saudável, mas passageira, ou ainda passível de evolução por meio da compra de uma motocicleta.
Quando se observa a categorização por cor, os negros, ciclo ou motoentregadores de todas as categorias consideradas neste estudo, apresentam ainda alguns dados preocupantes. Todos os entregadores brancos que testaram positivo para covid-19 conseguiram se afastar, mesmo quando estavam apenas com suspeita de ter a doença. Por outro lado, menos da metade dos oito entregadores negros com esse diagnóstico conseguiu se afastar. Além disso observou-se maior dificuldade no acesso a serviços de saúde por parte de entregadores negros, que, apesar de terem mais diagnósticos de doenças crônicas (10), acessam menos serviços de saúde públicos ou privados.
Essas dificuldades podem se dever à menor renda desse grupo e ao fato de sua principal modalidade de entregas ocorrer via aplicativo, o que impossibilita o afastamento não remunerado, no caso do covid-19, e a frequência aos serviços de saúde, devido à necessidade de disponibilizar um grande volume de horas para receber as chamadas e tentar aumentar a renda, que é inferior a de entregadores brancos, por exemplo.
Os sentidos da precarização
A seguir serão aprofundados os núcleos de sentido apreendidos por meio dos discursos, que podem ser visualizados no Quadro 2. Os critérios utilizados para identificação das falas dos entrevistados, que se encontram em parênteses após os trechos selecionados, se referem à categoria, modalidade de entrega e sequência da entrevista realizada.
Percepções sobre os principais aspectos das condições de trabalho dos discursos dos entregadores de comida
O primeiro núcleo de sentido diz respeito ao racismo estrutural presente nas condições trabalho de entregadores negros, que os obriga a trabalhar mais e se expor a maiores situações de riscos, de assédio e de racismo. Os entregadores negros foram os únicos a relatarem situações de assédio de clientes, além de situações de preconceito, nas entregas realizadas: “Uma vez eu estava sem a foto de perfil e a pessoa começou a ser racista porque achou que eu era negra, ela falou muita coisa ruim” (C_AppAut2).
Dentre os cicloentregadores entrevistados, se compararmos a remuneração de jovens negros e brancos de até 30 anos, os primeiros ganham 54% a menos. De acordo com Abilio (2020ABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica: desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. 2020. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, 2020. DOI: 10.25091/s01013300202000030008.
https://doi.org/10.25091/s01013300202000... ), o acesso de entregadores negros, principalmente jovens, se amplia quando as condições de uma ocupação “são ainda mais precarizadas e mal remuneradas”.
O segundo núcleo de sentido diz respeito às condições de trabalho das três primeiras categorias (motoentregadores profissionalizados, terceirizados e autônomos), que apresentam condições de trabalho mais previsíveis, ainda que motofretistas sofram menos precarizações, o que influencia a percepção sobre a qualidade de vida no trabalho. Em vista disso, o segundo núcleo de sentido relaciona nível de formalidade e vínculo com as condições de trabalho: quanto maior o nível de formalidade e/ou vínculo com estabelecimentos, com condições de trabalho pré-definidas, maior a percepção de estabilidade e previsibilidade do trabalho, mesmo que os salários sejam baixos: “Não trabalho pelo app porque não compensa, é melhor trabalhar pela taxa diária [de forma autônoma] em lugares bons que dão almoço, procuro trabalhar em lugares bons” (M_Aut1).
Em relação aos entregadores plataformizados, destacou-se a compreensão da ausência de entendimento sobre o funcionamento de plataformas digitais, principalmente sobre valores a serem recebidos, fatores de bloqueio (mesmo quando a entrega foi concluída), suspensão e até mesmo baixo envio de entregas:
É… porque eles [plataforma] bloqueavam no dia assim, muito fácil. Tipo, o aplicativo era meio bugado assim […]. Não sei explicar direito, mas é, tipo, teve uma vez que eu peguei uma entrega no [restaurante], aí cheguei na casa do cliente, coloquei entregue, depois que eu entreguei o lanche. Daí, depois, eu fiquei bloqueado à toa, no dia. (C_App9)
Essa ausência de entendimento foi mais frequente entre os cicloentregadores de aplicativo, que demonstraram maior reconhecimento sobre a precarização a que estão submetidos devido ao maior desgaste físico, maior vulnerabilidade a roubos, condições externas desfavoráveis - chuva e calor excessivo, que podem diminuir o rendimento das entregas -, necessidade de grande deslocamento até os points de entrega e excesso de carga. O último ponto é relevante porque, como não há possibilidade de instalação de caixa fixa, muitas vezes carregam peso excessivo nas costas, principalmente quando entregam itens de supermercado.
Consequentemente, há a ausência de entendimento das regras de funcionamento das plataformas digitais. Esse quarto núcleo de sentido extraído dos discursos revela que muitos entregadores de aplicativo deixam de fazer intervalos, principalmente relacionados à alimentação, ou até mesmo tomar outros cuidados com a própria saúde.
Eu não paro pra descansar, não paro pra almoçar. Banheiro é entre as corridas. Tipo assim, a gente pega um shopping, já dá vontade ali mesmo, já faz ali. Toma água dentro do shopping também […]. Aí às vezes não dá pra segurar fazia na rua mesmo, no terreno baldio. Pra não ter que parar. Né? Quanto mais rápido pra mim melhor […]. Não quero perder tempo, porque tipo assim, é, a… bem na hora do almoço, tipo que seria então pra eu almoçar, é o horário que mais toca. E às vezes, é, tem promoção e tal […]. Só tomo um cafezão bem reforçado de manhã antes de sair e daí eu só vou comer de noite daí a hora que eu chego. (C_App10)
O desconhecimento das regras, que são determinadas pelas empresas, instaura um sentimento de insegurança em relação à plataforma, que passa a ser percebida como ameaça constante e pode ser interpretado como um tipo biopoder exercido pelas plataformas (Foucault, 2004FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2004.; Vidigal, 2021VIDIGAL, V. Circulando entre Neoliberalismo e a Necropolítica: o caso dos entregadores via plataformas na pandemia de COVID-19. Política & Sociedade, Florianópolis, 2021. DOI: 10.5007/2175-7984.2021.79277.
https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.7... ), uma forma de se instaurar a insegurança e o controle dos corpos dos entregadores, sempre dispostos a atender chamadas sob quaisquer condições adversas.
Demonstrando a ausência de qualquer benefício a entregadores de aplicativo, essa última fala também do processo de gamificação no qual há a inserção da lógica de videogames no trabalho para estimular os entregadores a manter seus aplicativos ligados e a não recusar chamadas, por meio inclusive de desafios, prêmios e avaliação de desempenho (Oliveira, 2021OLIVEIRA, R. C. Gamificação e trabalho uberizado nas empresas-aplicativo. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 61, n. 4, p. 1-10, 2021. DOI: 10.1590/S0034-759020210407
https://doi.org/10.1590/S0034-7590202104... ). Eles então aliam essa forma de funcionamento com os objetivos e metas de entregas e ganhos diários, mesmo que as condições de espera e das entregas sejam insalubres e perigosas.
O aspecto do cotidiano de trabalho que mais se torna sujeito a essa lógica de gamificação, portanto, diz respeito às possibilidades de alimentação durante o trabalho, pelas quais os entregadores de aplicativo são completamente responsáveis, em contraste com as outras categorias nas quais esse aspecto é garantido.
Em relação ao acesso à água, higiene e abrigo, entregadores de aplicativo de uma das plataformas teriam pontos de apoio à sua disposição, que também seriam responsáveis pelo fornecimento de álcool em gel e máscaras. Não existe, no entanto, uma lista divulgada desses pontos e os entregadores apenas tomam conhecimento no momento da entrega. Apenas quatro (11%) deles tinham conhecimento dessa possibilidade e nenhum havia utilizado o espaço, pois não fica próximo de seu point de entrega.
De forma geral, plataformizados acabam utilizando shoppings de forma predominante para uso de banheiro, água e carregamento de celulares, bem como para conseguir abrigo parcial embaixo das marquises, expostos às intempéries do ambiente externo. Somente uma pequena porcentagem de entregadores cadastrados consegue ficar em áreas específicas dentro de shoppings. Para entregadores autônomos, o espaço do restaurante se torna o seu próprio espaço de espera e ambiente de trabalho, com abrigo integral. Terceirizados também dispunham de abrigo parcial, principalmente em restaurantes com número de entregas muito grande, cujo esquema de rodízio exige uma quantidade considerável de entregadores à espera do lado de fora.
Para todos os entregadores de aplicativo e alguns terceirizados, a baixa remuneração é o principal fator de descontentamento e a principal reivindicação, mesmo com o aumento recente implantado por uma das plataformas, tendo em vista que 69% não têm outra fonte de renda e 61% possuem renda domiciliar total de até R$3.000, além do fato de a remuneração ser incerta. Somado a isso, o tempo despendido entre espera e entrega médio de 10,4 horas diárias impossibilita outras fontes de renda relevantes ou mesmo a busca de formação extra, estudos e frequência a cursos para a superação dessa situação.
De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese), em maio de 2022, a renda domiciliar necessária para gastos com habitação, transporte, higiene e vestuário, além da alimentação, na cidade de Curitiba, era de R$5.495,52 (Dieese, 2022DIEESE - DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS ECONÔMICOS. Pelo segundo mês consecutivo, valor da cesta básica aumenta em todas as capitais. São Paulo: Dieese, 6 maio 2022. Nota à imprensa. Disponível em: <Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2022/202204cestabasica.pdf >. Acesso em 23 de junho de 2022.
https://www.dieese.org.br/analisecestaba... ). Tendo em vista o rendimento médio mensal de R$2.584 e que 44% do grupo é responsável pelo domicílio, entende-se que a remuneração por entregas, de forma geral, não garante a subsistência familiar.
Não são consideradas nessa taxa de entrega dos plataformizados, por exemplo, o deslocamento até o local de coleta ou mesmo a volta para o local de espera. Para motoentregadores de aplicativo isso gera gastos com combustível e para cicloentregadores, esforço físico. Para esses últimos a taxa se torna ainda mais injusta porque não leva em conta o relevo e as condições das vias públicas, muito menos o peso das entregas.
Os valores das taxas mínimas por quilometragem (plataformas) ou taxa diária (autônomos e terceirizados), tornam a rotina da maior parte dos entregadores de todas as categorias analisadas instável e insalubre, sendo mais desfavorável para plataformizados.
O alto risco de acidentes e a dificuldade no acesso à assitência de seguridade pública ou privada também são componentes cotidianos muito presentes nos discursos, seja pelos acidentes já sofridos e pelas mortes de colegas e amigos, seja pela possibilidade iminente de sofrer um acidente.
A contaminação por covid-19, no entanto, foi pouco citada como barreira para as entregas, como ocorreu em outras pesquisas com plataformizados (Piasna; Drahokoupil, 2021PIASNA, A.; DRAHOKOUPIL, J. Flexibility unbound: understanding the heterogeneity of preferences among food delivery platform workers. Socio-Economic Review, Oxford, v. 19, n. 4, p. 1397-1419, 2021. DOI: 10.1093/ser/mwab029
https://doi.org/10.1093/ser/mwab029... ), embora em países como o Equador a incidência de contaminação por covid-19 tenha sido maior do que no restante da população (Ortiz-Prado et al, 201ORTIZ-PRADO, A. R. et al. High prevalence of SARS-CoV-2 infection among food delivery riders: a case study from Quito, Ecuador. Science of the total Environment, Amsterdam, v. 770, p. 1-5, 2021. DOI: 10.1016/j.scitotenv.2021.145225
https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2021... ).
Em relação à contaminação por covid-19, de 78 entregadores que responderam a esse item, 20% (16) afirmaram ter recebido resultado positivo, 68% (53) disseram não ter contraído, 6% tiveram sintomas, mas não realizaram teste e 6% afirmaram não saber se contraíram o vírus. Dos 16 entregadores com resultado positivo, três não conseguiram se afastar e continuaram trabalhando. Essa situação foi relatada também em caso de acidentes:
Eu perdi o músculo [num acidente de trabalho] por causa de uma corridinha de seis reais. Nossa, eu quase morri aquele dia. As contas começaram a vir e eu não podia ficar afastado, daí fiquei em casa só duas semanas […]. Daí agora eu trabalho com dor. (M_App2)
Peguei covid duas vezes e não me afastei, tinha contas pra pagar. (M_App8)
Entregadores terceirizados e autônomos contaminados ou acidentados relataram também não ter recebido cobertura por afastamento, havendo dificuldade para afastamento devido à contaminação e adoecimento por covid-19. Além disso, muitos não dispõem das informações para solicitar esses benefícios ou não sabem como acessá-los, tanto nas empresas privadas como no setor público. Entregadores plataformizados inclusive relataram receio de pedir afastamento e depois receber poucas chamadas ou ser bloqueados. Nenhum dos benefícios citados cobre danos às motos, bicicletas, celulares e capacetes, instrumentos necessários ao trabalho: Oh, tô com uma bike estragada, duas. Eu não recebo uma, uma ajuda pra bike. Mecânica de bike, você não tem um incentivo (C_App1).
Por tal motivo, a percepção de desproteção e invisibilidade perante plataformas digitais, empresas terceirizadas, restaurantes e clientes é muito presente, principalmente em motoentregadores plataformizados, sujeitos a maiores riscos, tanto em relação ao poder público quanto ao setor privado, clientes e sociedade:
[Plataforma] dá álcool [em] gel e máscara e mais nada. Se roubarem alguma coisa é na nossa conta. Eles não pagam nada. Ninguém vê a gente, somos invisíveis. (M_App8)
No meu primeiro dia de entrega me acidentei, a [empresa] ligou perguntando se poderia fazer a entrega, não adianta reclamar porque se você reclama eles te bloqueiam e colocam outro no lugar. (M_App10)
O Estado deveria ajudar a regulamentar as questões de saúde, de comida dos entregadores. (M_App_reg1)
Vai passando os anos vai forçando o corpo, coluna, ciático, abala o psicológico, já fiz muita terapia e fisioterapia, sofri mais de 10 acidentes. Todo entregador deveria pagar um plano de saúde. (M_Aut1)
Nesse contexto, os entregadores são responsabilizados não somente pelos seus ganhos, mas também pelas suas perdas, principalmente os de aplicativo, pois as plataformas obrigam os trabalhadores a assumirem os riscos, o ritmo, a intensidade e a extensão da jornada de trabalho (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberização e juventude periférica: desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. 2020. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 3, 2020. DOI: 10.25091/s01013300202000030008.
https://doi.org/10.25091/s01013300202000... ). O espaço urbano inflexível a motociclistas e ciclistas, as precárias relações de trabalho, a alta densidade de trabalho, a pressão temporal e a falta de fornecimento de EPI por empresas, restaurantes, aplicativos e clientes geram a dificuldade de evitar riscos e praticar o autocuidado para a prevenção de acidentes ou mesmo de roubos (Diniz; Assunção; Lima, 2005DINIZ, E.; ASSUNÇÃO, A.; LIMA, F. Por que os motociclistas profissionais se acidentam? Riscos de acidentes e estratégias de prevenção. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 30, n. 111, p. 41-50, 2005. DOI: 10.1590/S0303-76572005000100006
https://doi.org/10.1590/S0303-7657200500... ).
De acordo com a tipologia da precarização do trabalho proposta por Franco e Druck (2009FRANCO, T.; DRUCK, G. O trabalho contemporâneo no Brasil: terceirização e precarização. In: SEMINÁRIO FUNDACENTRO, 2009, Salvador. Anais… Salvador: Fundacentro, 2009.), essas condições advêm da “intensificação do trabalho e terceirização”, que produz baixa remuneração, contratos instáveis e condições de trabalho e saúde frágeis, o que faz com que motofretistas, entregadores terceirizados e autônomos também sofram impactos na saúde e na qualidade de vida por conta das condições de trabalho enfrentadas.
A insegurança no trabalho, caracterizada pela ausência de treinamento e informações sobre riscos e medidas preventivas, também é gerada pelas empresas como forma de busca de maior produtividade a qualquer custo, resultando, por exemplo, em maior número de acidentes, de valor ainda subdimensionado (Franco; Druck, 2009FRANCO, T.; DRUCK, G. O trabalho contemporâneo no Brasil: terceirização e precarização. In: SEMINÁRIO FUNDACENTRO, 2009, Salvador. Anais… Salvador: Fundacentro, 2009.). Outras pesquisas já apontaram que este número de acidentes é maior em entregadores de comida do que em motociclistas de forma geral (Byun; Park; Jeong, 2020BYUN, J. H.; PARK, M. H.; JEONG, B. Y. Effects of age and violations on occupational accidents among motorcyclists performing food delivery. Work, Amsterdam, v. 65, n. 1, p. 53-61, 2020. DOI: 10.3233/WOR-193057
https://doi.org/10.3233/WOR-193057... ), fato evidenciado em relatório apresentado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Aplicativos, segundo o qual motoentregadores constituem entre 60% e 70% dos pacientes internados do setor de Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) (Ribeiro, 2022RIBEIRO, P. R. Motociclistas são 70% dos internados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas das Clínicas, diz médica na CPI dos Aplicativos. The Intercept Brasil, Rio de Janeiro, 12 dez. 2022 Disponível em: <Disponível em: https://theintercept.com/2022/12/12/entregadores-de-apps-sao-70-dos-internados-no-instituto-de-ortopedia-e-traumatologia-do-hospital-das-clinicas-diz-medica/ >. Acesso em: 10 jan. 2023.
https://theintercept.com/2022/12/12/entr... ).
Nesse sentido, a ausência de direitos desse grupo de trabalhadores é marcada duplamente pelo jogo de invisibilidade e estigma. Os entregadores entrevistados relatam que na maior parte do tempo se sentem invisíveis em suas necessidades: ao circular nas ruas e no trânsito são frequentemente desrespeitados - “ninguém vê a gente”. Porém, quando sofrem acidentes ou têm dificuldades na entrega, são tratados como subcidadãos, marcados pelo estigma e assédio que se estendem desde a discriminação racial até o preconceito de classe e contra a profissão em si, vista como uma “não profissão”:
A gente é invisível pra sociedade. Tem clientes muito mal-educados, manda a gente subir no apartamento, ir até a casa da pessoa, no condomínio, não paga gorjeta, atrasa nosso tempo de receber outra chamada. Depois fala que atrasou, que tá frio ou ruim, xinga a gente, diz que não vai dar código. Ontem uma moça ameaçou a não dar o código se eu não subisse [no apartamento da cliente para realizar a entrega]. (M_App8)
Alguns deles [empregadores de restaurantes] falam, né. “Eu não gosto do motoboy. Ô cambada de motoboy que eu odeio” […]. A gente é meio que descartado, sabe? (M_F2)
Consequentemente, essa percepção negativa sobre as condições laborais pouco altera o sentimento de satisfação relacionado às entregas ou mesmo com a qualidade de vida e a possibilidade de renda, pois tais condições são vistas como ônus do processo, um “mal necessário”. Do total de 92 entregadores que responderam à questão sobre qualidade de vida, 52% consideram sua qualidade de vida razoável, 38% boa e apenas 3,2% péssima. Em relação à satisfação com o trabalho, 61% mostraram-se satisfeitos, 17,4% insatisfeitos, 15,2% totalmente satisfeitos e 3,2% totalmente insatisfeitos. De forma surpreendente, uma parte dos trabalhadores manifesta estar satisfeito com o trabalho, mesmo que a qualidade de vida relatada seja regular ou ruim:
Minha qualidade de vida é regular porque antes eu não conseguia emprego de jeito nenhum e nem habilitação eu tinha […]. Agora eu tô sabendo o que que é ganhar mais que dois salários. Eu sempre trabalhei sem carteira registrada e sempre fui salário-mínimo. (M_App2)
Minha qualidade de vida na verdade é um lixo […] porque o ser humano não deve viver assim não, e eu não quero viver assim também […]. A satisfação [com o trabalho] tá 95% porque eu ganho uma grana boa sem ter um chefe chato enchendo o saco. (C_App2)
Essa situação revela dois paradoxos. No primeiro, a sensação de ter uma possibilidade de trabalho aparentemente “sem chefes” e o manejo do próprio tempo de trabalho foi apontada por grande parte dos entregadores como um fator positivo, apesar do descontentamento com o restante das condições de trabalho. Em outras palavras, grande parte dos entregadores associou a qualidade de vida a ter uma ocupação que permite obter a renda proporcionada pelas entregas, mesmo que as condições sejam percebidas como desfavoráveis. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a qualidade de vida pode ser definida como “a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive, e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (WHO, 1995WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Social Science & Medicine, Amsterdam, v. 41, n. 10, p. 1403-1410, 1995. DOI: 10.1016/0277-9536(95)00112-K
https://doi.org/10.1016/0277-9536(95)001... , p. 1405, tradução nossa). Levando-se em consideração essa definição, compreende-se que os entregadores excluem fatores alheios à obtenção de renda, inclusive saúde, alimentação ou estresse, como parte do seu entendimento sobre a qualidade de vida.
O segundo paradoxo refere-se à percepção favorável de qualidade de vida além dessa sensação de autonomia, o que envolve um balanço de todos os aspectos de trabalho vividos e leva em conta riscos de acidentes, saúde e alimentação. Essa percepção ocorre principalmente em entregadores que possuem outras fontes de renda, principalmente formais (Piasna; Drahokoupil, 2021PIASNA, A.; DRAHOKOUPIL, J. Flexibility unbound: understanding the heterogeneity of preferences among food delivery platform workers. Socio-Economic Review, Oxford, v. 19, n. 4, p. 1397-1419, 2021. DOI: 10.1093/ser/mwab029
https://doi.org/10.1093/ser/mwab029... ), mas aparece também em autônomos. Esses últimos, apesar da menor renda e da desproteção trabalhista, mostram-se mais satisfeitos com as condições de trabalho e demonstram menor percepção de riscos e inseguranças com isso, justamente por terem vínculo com restaurantes e clientes:
Você tá trabalhando pra quem você conhece, você tá trabalhando pra você, né? Você tem mais autonomia, realmente faz seus horários, trabalha sem pressão [referindo-se à pressão dos aplicativos]. Acho que talvez o principal ponto seja que seja mais justo, né? Que você cobre, você sabe o que você cobra, você sabe o que você tá cobrando, né? (C_AppAut1)33Fala de dois cicloentregadores autônomos.
O particular, ele paga melhor pro entregador eé um custo menor pra ele. (C_AppAut)2
Por isso, quanto maior a dependência das plataformas ou das empresas terceirizadas, mais desfavoráveis são as percepções das condições de trabalho em si, mesmo que a satisfação com a qualidade de vida seja favorável (Piasna; Drahokoupil, 2021PIASNA, A.; DRAHOKOUPIL, J. Flexibility unbound: understanding the heterogeneity of preferences among food delivery platform workers. Socio-Economic Review, Oxford, v. 19, n. 4, p. 1397-1419, 2021. DOI: 10.1093/ser/mwab029
https://doi.org/10.1093/ser/mwab029... ).
A precarização do emprego, que gera desde situações de trabalho frágeis para entregadores formais, até processos de incentivo à autoaceleração, metas inalcançáveis para bonificações e forte pressão de tempo para plataformizados, leva à precarização da saúde mental e física dos trabalhadores. O tempo social do trabalho encontra-se em contradição com o biorritmo dos entregadores, predispondo-os a acidentes e adoecimentos. A invisibilidade sentida por eles deve-se à fragilização do reconhecimento social advinda da naturalização da insegurança e da descartabilidade de grupos de pessoas (Franco; Druck; Seligmann-Silva, 2010FRANCO, T; DRUCK, G; SELIGMANN-SILVA, E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional , São Paulo, v. 35, n. 122, p. 229-248, 2010. DOI: 10.1590/S0303-76572010000200006
https://doi.org/10.1590/S0303-7657201000... ).
Por fim, a partir dos resultados e discussão apresentados, conclui-se que as condições de trabalho desses entregadores são desfavoráveis e caracterizam-se pela insegurança em relação às regras de funcionamento das plataformas, pelos valores baixos de taxa mínima de quilometragem e da taxa diária, pela informalização, pelo risco iminente de acidentes, pela reprodução do racismo estrutural contra entregadores negros, pela dificuldade de cuidado com a própria saúde e desvalorização das categorias profissionalizadas e pela responsabilização dos riscos envolvidos. Consequentemente, todas as categorias perceberam impactos na qualidade de vida devido à dinâmica da informalização, que, porém, parecem atingir entregadores de aplicativo com mais intensidade devido ao maior risco e imprevisibilidade, apesar da sensação de autonomia produzida pela atividade (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021ABÍLIO, L. C.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, v. 23, n. 57, p. 26-56, 2021. DOI: 10.1590/15174522-116484.
https://doi.org/10.1590/15174522-116484... ).
Considerações finais
Este texto buscou evidenciar o impacto das condições de trabalho de diferentes categorias de serviços de entrega na qualidade de vida dos entregadores. Conclui-se que as condições de trabalho são inadequadas para a maior parte das categorias, principalmente por conta de um balanço desfavorável entre possibilidades de alimentação, conhecimento das regras das plataformas, relação com clientes, empregadores e restaurantes, risco de acidentes, proteção em caso de acidentes e contaminação por covid-19. Além disso, os impactos atingem entregadores negros e entregadores de aplicativo com mais intensidade.
A relevância dos achados se situa justamente na relação entre esses aspectos e algumas diferenças entre as categorias de entrega, porém a situação dos entregadores plataformizados nitidamente se destaca. No entanto, devido à dinâmica da precarização do trabalho potencializada pela Reforma Trabalhista de 2017, outros entregadores também submetidos ao processo de uberização, como é o caso dos terceirizados, também sofrem o estigma e a invisibilização cotidianos, mas não são retratados em outros estudos com a mesma temática. Assim, são necessárias mais pesquisas que investiguem essas e outras condições de trabalho em cada uma destas categorias.
Por fim, a pesquisa mostrou que as condições de trabalho de entregadores de comida em geral causam desgaste físico e mental, dificultam o acesso a direitos e não asseguram a sobrevivência digna dos entregadores plataformizados ou terceirizados que trabalham de forma exclusiva na atividade, mesmo que a percepção da renda obtida com essa atividade seja positiva e o engajamento provocado pela estratégia de gamificação mantenha o vínculo e estímulo dos trabalhadores com as plataformas. Outro importante achado reside na percepção positiva de entregadores formais e autônomos sobre o trabalho em relação à previsibilidade e estabilidade provenientes do vínculo estabelecido com o estabelecimento, seja pelo contrato formal, seja pela proximidade, como fatores ligados à maior qualidade de vida no trabalho, mesmo que os salários não sejam adequados e estejam sujeitos à desproteção trabalhista. Esses dois paradoxos são impostos pelas condições de radicalização do neoliberalismo global e da necropolítica do Estado brasileiro, que atingem com mais força grupos de trabalhadores informais e precarizados.
Referências
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- 1Esses valores não incluem gastos com combustível e manutenção de motocicletas e bicicletas, que podem levar a um valor líquido bem menor. Entregadores formais relataram remuneração mensal, autônomos relataram receber quinzenalmente ou mensalmente e entregadores de aplicativo recebem semanalmente.
- 2Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTitulo.jsf>. Acesso em: 4 abr. 2023.
- 3Fala de dois cicloentregadores autônomos.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Jun 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
30 Mar 2023 - Revisado
16 Jan 2023 - Revisado
30 Mar 2023 - Aceito
02 Abr 2023