Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos brasileiros: contexto, organização e acesso à atenção integral no Sistema Único de Saúde

Márcia Cristina Rodrigues Fausto Patty Fidelis de Almeida Aylene Bousquat Juliana Gagno Lima Adriano Maia dos Santos Helena Seidl Maria Helena Magalhães de Mendonça Lucas Manoel da Silva Cabral Ligia Giovanella Sobre os autores

Resumo

A despeito da diversidade socioespacial, localidades rurais remotas têm em comum pequenos povoados dispersos em um vasto território, populações isoladas e longas distâncias em relação aos centros urbanos. O objetivo do estudo é analisar as especificidades da organização e do acesso à atenção primária à saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS) em municípios rurais remotos (MRR) brasileiros. Para tanto, realizou-se um estudo de abordagem qualitativa, com base em estudo de casos múltiplos em 27 MRR. Foi feita uma análise de conteúdo temática de 211 entrevistas semiestruturadas com gestores e profissionais de saúde, e uma triangulação de informações para explorar e reconhecer as formas de organização, estratégias e desafios para o acesso à saúde. Os resultados indicam que: as características dos contextos rurais remotos condicionam a provisão da APS; há diferenças nas formas de ofertar ações de saúde e maiores falhas de cobertura assistencial nas áreas mais rarefeitas e remotas dos municípios; existem contradições entre o financiamento da APS nacional e as características dos territórios marcado por rarefação populacional e longas distâncias; e a escassez da força de trabalho é um desafio comum nos municípios estudados. É necessário, portanto, considerar as características territoriais, sociais e de acesso aos serviços de saúde para a proposição de políticas públicas que atendam às necessidades dos MRR.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Organização de Serviços de Saúde; Saúde Rural; Acesso aos Serviços de Saúde

Introdução

A histórica concentração de bens e serviços em centros urbanos economicamente mais desenvolvidos confere enormes dificuldades de acesso para populações que vivem em áreas rurais remotas (Carneiro; Sandroni, 2019CARNEIRO, M. J.; SANDRONI, L. Tipologias e significados do “rural”: uma leitura crítica. In: LEITE, S. P.; BRUNO, R. (Org.). O rural brasileiro na perspectiva do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2019. p. 43-58.; Castilho; Gonçalves, 2018CASTILHO, E. A. de; GONÇALVES, H. Problemas de saúde e a zona rural. Revista de Saúde Pública , São Paulo, v. 52, supl. 1, 1s, 2018. DOI: 10.11606/S1518-8787.20180520supl1ed
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; Garnelo et al., 2020GARNELO, L. et al. Barriers to access and organization of primary health care services for rural riverside populations in the Amazon. International Journal for Equity in Health, London, v. 19, n. 1, p. 54, 2020. DOI: 10.1186/s12939-020-01171-x
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; ILO, 2015ILO - INTERNATIONAL LABOUR OFFICE. Global evidence on inequities in rural health protection: new data on rural deficits in health coverage for 174 countries. Geneva, 2015.). Tornar os serviços de saúde acessíveis e oportunos em pequenas comunidades dispersas em vasto território implica enfrentar dificuldades para a atração e fixação da força de trabalho, alto custo com transportes e carência na oferta de serviços, dados os desafios para atender a critérios de economia de escala (Almeida et al., 2021ALMEIDA, P. F. de. et al. Provision of specialized care in remote rural municipalities of the brazilian semi-arid region. Rural and Remote Health, Townsville, v. 21, n. 4, p. 6652, 2021. DOI: 10.22605/RRH6652
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; Carneiro; Pessoa; Teixeira, 2017CARNEIRO, F. F.; PESSOA, V. M.; TEIXEIRA, A. C. de A. (Org.). Campo, floresta e águas: práticas e saberes em saúde. Brasília, DF: Editora UnB, 2017.; ILO, 2015ILO - INTERNATIONAL LABOUR OFFICE. Global evidence on inequities in rural health protection: new data on rural deficits in health coverage for 174 countries. Geneva, 2015.; Pessoa; Almeida; Carneiro, 2018PESSOA, V. M.; ALMEIDA, M. M.; CARNEIRO, F. F. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 302-314, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S120
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; Savassi et al., 2018SAVASSI, L. C. M. et al. (Org.). Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.; Wakerman et al., 2008WAKERMAN, J. et al. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Services Research, London, v. 8, p. 276, 2008. DOI: 10.1186/1472-6963-8-276
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). Uma das consequências desta lógica na organização da oferta de serviços de saúde é que os usuários residentes em áreas tipicamente rurais e remotas precisam percorrer longas distâncias até os centros de referência (AIHW, 2005AIHW - AUSTRALIAN INSTITUTE OF HEALTH AND WELFARE. Rural, regional and remote health: indicators of health. Canberra, 2005.; Almeida et al., 2021ALMEIDA, P. F. de. et al. Provision of specialized care in remote rural municipalities of the brazilian semi-arid region. Rural and Remote Health, Townsville, v. 21, n. 4, p. 6652, 2021. DOI: 10.22605/RRH6652
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; Strasser; Kam; Regalado, 2016STRASSER, R.; KAM, S. M.; REGALADO, S. M. Rural Health Care access and policy in developing countries. Annual Review of Public Health, Palo Alto, v. 37, p. 395-412, 2016. DOI: 10.1146/annurev-publhealth-032315-021507
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) ou dependem de uma visita itinerante, com acompanhamentos irregulares, nem sempre em tempo oportuno para resolver suas necessidades em saúde (Franco; Lima; Giovanella, 2021FRANCO, C. M.; LIMA, J. G.; GIOVANELLA, L. Atenção primária à saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 37, n. 7, e00310520, 2021. DOI: 10.1590/0102-311X00310520
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; Wakerman; Humphreys, 2011WAKERMAN, J.; HUMPHREYS, J. S. Sustainable primary health care services in rural and remote areas: innovation and evidence. Australian Journal of Rural Health , Armidale, v. 19, n. 3, p. 118-124, 2011. DOI: 10.1111/j.1440-1584.2010.01180.x
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).

Apesar das diferenças entre os países centrais e periféricos, o acesso tem sido considerado um dos principais temas a serem enfrentados na atenção à saúde em áreas rurais remotas. Populações rurais têm menor acesso aos cuidados em saúde, além de piores condições e indicadores de saúde, ao mesmo tempo que utilizam menos serviços de assistência médica, quando comparados às populações urbanas (Reid et al., 2014REID, S. et al. ‘What brings us together’: the values and principles of rural medical education. In: CHATER, A. B. et al. (Ed.). WONCA Rural Medical Education Guidebook. Bangkok: WONCA, 2014. p. 1-13.).

No Brasil, a grande extensão territorial e as desigualdades nas condições de vida condicionam exposições diferenciadas a riscos e agravos em saúde, mais desfavoráveis às populações rurais, cujas particularidades culturais, sociais e ambientais permanecem pouco conhecidas. São escassas as iniciativas de políticas públicas que consideram as especificidades de contextos desta natureza. No campo da saúde, a expansão dos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) nos últimos 20 anos favoreceu o acesso à saúde, inclusive nos menores e mais remotos municípios brasileiros. Entre 2013 e 2019, constatou-se o aumento do número de pessoas cobertas pela Estratégia Saúde da Família (ESF), com maior incremento em domicílios localizados em áreas rurais e naqueles onde reside a parcela mais pobre da população (Giovanella et al., 2021GIOVANELLA, L. et al. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 26, supl. 1, p. 2543-2556, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232021266.1.43952020
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).

É relevante enfatizar que, ao longo de 30 anos de existência do Sistema Único de Saúde (SUS), além da expansão da cobertura, um conjunto de ações foi empreendido para a qualificação e melhoria do acesso à APS, entre as quais o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), Programa Mais Médicos (PMM) e o Requalifica UBS. A convergência dessas iniciativas contribuiu para a melhoria da APS em todo o país (Giovanella et al., 2016GIOVANELLA, L. et al. A provisão emergencial de médicos pelo Programa Mais Médicos e a qualidade da estrutura das unidades básicas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 21, n. 9, p. 2697-2708, 2016. DOI: 10.1590/1413-81232015219.16052016
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). Os efeitos do PMM resultaram no aumento da oferta de médicos na APS, além da redução na escassez e diminuição das desigualdades na distribuição desse profissional (Girardi et al., 2016GIRARDI, S. N. et al. Impacto do Programa Mais Médicos na redução da escassez de médicos em Atenção Primária à Saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 21, n. 9, p. 2675-2684, 2016. DOI: 10.1590/1413-81232015219.16032016
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; Medina et al., 2018MEDINA, M. G. et al. Programa Mais Médicos: mapeamento e análise da produção acadêmica no período 2013-2016 no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 346-360, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S124
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). Em 2019, o PMM foi extinto e substituído pelo Programa Médicos pelo Brasil (PMB), centrado no provimento emergencial de médicos (Giovanella et al., 2019GIOVANELLA, L. et al. Médicos pelo Brasil: caminho para a privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde?. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 35, n. 10, e00178619, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00178619.
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).

Não obstante, nas áreas rurais do país, persistem desigualdades sociais e produção de iniquidades, em grande medida, resultantes das debilidades da ação pública em reconhecer a alteridade comunitária e incluir os atores sociais do espaço rural na formulação de políticas voltadas para si e seu território (Carneiro; Sandroni, 2019CARNEIRO, M. J.; SANDRONI, L. Tipologias e significados do “rural”: uma leitura crítica. In: LEITE, S. P.; BRUNO, R. (Org.). O rural brasileiro na perspectiva do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2019. p. 43-58.). As singularidades dos contextos rurais, muitas vezes, são interpretadas e justificadas como obstáculos para o desenvolvimento local, ao invés de assumidas como potência para a produção de estratégias que correspondam às particularidades nos modos de organização da vida social (Garnelo, 2019GARNELO, L. Especificidades e desafios das políticas públicas de saúde na Amazônia. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 35, n. 12, e00220519, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00220519
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).

O objetivo deste estudo é analisar as especificidades da organização e do acesso aos serviços de APS no SUS em municípios rurais remotos (MRR) do Brasil. Discutem-se as formas de organização e os desafios enfrentados na gestão e na provisão de ações em saúde, considerando as diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), vis-à-vis as singularidades de contextos com grande extensão territorial, dispersão populacional, isolamento e longas distâncias percorridas para obter acesso a bens e serviços.

Método

Este artigo discute parte dos resultados da pesquisa “Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil”, cujo objetivo foi analisar as singularidades da organização e do uso dos serviços de APS nos territórios rurais remotos brasileiros. O estudo partiu da caracterização dos 323 MRR segundo classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que foram tipificados em seis áreas com dinâmicas socioespaciais peculiares: Semiárido, Matopiba, Vetor Centro-Oeste, Norte de Minas, Norte Águas e Norte Estrada. Apenas 10 MRR não foram incluídos, porque não apresentaram correspondência com os agrupamentos propostos, aspectos apresentados em profundidade em Bousquat et al. (2022BOUSQUAT, A. et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 56, p. 73, 2022. DOI: 10.11606/s1518-8787.2022056003914
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).

Para o estudo qualitativo, procedeu-se ao estabelecimento de uma amostra intencional de MRR, estruturada a partir das seis áreas tipificadas na pesquisa, com inclusão de municípios com características socioeconômicas, demográficas e de saúde comuns e incomuns em cada área. Buscou-se garantir a inclusão de diferentes realidades municipais para proporcionar uma análise aprofundada, tanto dos constrangimentos para o sistema de saúde quanto das inúmeras estratégias da gestão local para enfrentar esta realidade. Com esse procedimento, selecionamos 27 MRR em seis áreas:

  1. (1) Norte Águas: área composta por municípios amazônicos cujos rios são a principal forma de interligação e locomoção intramunicipal e regional. Os municípios selecionados foram: Aveiro (PA), Prainha (PA), Curuá (PA), Melgaço (PA), Boa Vista do Ramos (AM), Maués (AM) e Vitória do Jari (AP);

  2. (2) Norte Estrada: área composta por municípios amazônicos que têm as rodovias expandidas em meio à floresta como principal meio de locomoção. Os MRR estudados foram: Jacareacanga (PA), Rurópolis (PA) e Assis Brasil (AC);

  3. (3) Semiárido: área marcada por escassez hídrica, sendo espaço de muitas contradições e elevada desigualdade social. Os MRR estudados foram: Pilão Arcado (BA), Morpará (BA), Ipupiara (BA) e Rio Grande do Piauí (PI);

  4. (4) Matopiba: agrega municípios que têm em comum o recente crescimento do agronegócio e consequentes mudanças no uso e ocupação do território. Os municípios selecionados foram: Avelino Lopes (PI), Júlio Borges (PI), Monte Alegre do Piauí (PI) e Redenção da Gurguéia (PI), Campos Lindos (TO), Formosa da Serra Negra (MA) e Tasso Fragoso (MA);

  5. (5) Norte de Minas: abarca municípios com o mais baixo desenvolvimento econômico dentro do estado de Minas Gerais, sudeste brasileiro. Os MRR estudados foram: Rubelita, Indaiabira e Bonito de Minas;

  6. (6) Vetor Centro-Oeste: é composto por territórios com histórica vocação agrícola, imbricados em modernos processos de produção globalizados. Os MRR estudados foram: Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), Nova Lacerda (MT) e Tabaporã (MT).

Embora se reconheçam as diferenças e as distintas formas de inserção socioespacial dos MRR, neste estudo interessa enfatizar as similitudes quanto à organização, aos desafios e às estratégias adotadas para favorecer o acesso aos serviços de APS em localidades rurais remotas. A investigação é norteada pelas seguintes questões: a organização dos serviços de APS está alinhada às características dos territórios? Quais são os desafios enfrentados pela gestão municipal para garantir o acesso à APS em áreas dispersas, rarefeitas e distantes? A hipótese do estudo é que as características de dispersão e rarefação populacional e as longas distâncias condicionam o modo de organização e o acesso aos serviços de saúde, nem sempre atendidos pelas diretrizes e pelo financiamento das políticas nacionais de APS.

Os resultados aqui apresentados fazem parte do estudo de casos múltiplos realizado nos 27 MRR distribuídos nos seis clusters, tendo como principal fonte de informação entrevistas realizadas in loco, orientadas por roteiros multidimensionais para a compreensão da organização e provisão de serviços de APS. Foram analisadas 211 entrevistas individuais realizadas com atores-chave: secretários municipais de saúde (26); coordenadores de atenção básica; médicos (51); enfermeiros (50); agentes comunitários de saúde (58). A Tabela 1 apresenta o perfil dos entrevistados. Em cada MRR, foram entrevistados profissionais de saúde de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) localizada na sede e outra, no interior. Na ausência de UBS no interior, a entrevista foi realizada com profissionais de referência para atender a população do interior na UBS da sede. As entrevistas tiveram um tempo médio de duração de 120 minutos. Os roteiros semiestruturados, disponíveis no site da pesquisa (https://apsmrr.ensp.fiocruz.br/), serviram de apoio ao entrevistador, sendo os entrevistados estimulados a responder aos temas abordados de forma espontânea. O trabalho de campo ocorreu entre maio e outubro de 2019. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra.

Tabela 1
Perfil dos entrevistados da pesquisa “Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos no Brasil”, 2019

As etapas da análise de conteúdo temática (Minayo, 1998MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.) foram: (1) leitura em profundidade das 211 entrevistas; (2) seleção, agrupamento e classificação de trechos com estruturas relevantes e ideias centrais (núcleos temáticos) em um quadro analítico, com base nas categorias previamente definidas nos roteiros de entrevista; (3) produção dos diversos corpus de comunicação, uma vez que o conjunto de informações foi heterogêneo e emergiu de diferentes grupos de representação de sujeitos (gestores e profissionais da APS) e clusters; (4) comparação entre os diferentes participantes da pesquisa no confronto de ideias e posicionamentos, tendo como referência o objetivo central do estudo.

O material explorado é amplo, sendo possível analisá-lo por múltiplos e variados espectros temáticos. Neste artigo são analisados dois temas - contexto rural remoto e modos de organização dos serviços de APS para favorecer o acesso -, que, desde a etapa de leitura em profundidade do material, apresentaram regularidade e transversalidade em relação ao conjunto de temas emergentes e às diversas realidades estudadas.

A pesquisa “Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos no Brasil” do qual este estudo é parte foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, identificado pela CAAE 92280918.3.0000.5240 e pelo parecer de aprovação nº 2.832.559, com anuência dos municípios.

Resultados

Contexto rural remoto

Os MRR estão concentrados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, distribuídos em seis áreas com características socioespaciais singulares (Tabela 2). Os municípios com maior população encontram-se no Norte Águas e Norte Estradas, localizados na região Amazônica. As menores médias para densidade demográfica estão no Vetor Centro-Oeste e Norte Águas. Os MRR, em geral, apresentam Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) baixo, exceto no Vetor Centro-Oeste e Norte de Minas, onde o IDHM é médio. No período de realização do trabalho de campo, observava-se que a população beneficiária do Programa Bolsa Família era expressiva entre os MRR. Em novembro de 2021, este programa foi substituído pelo Programa Auxílio Brasil.

Tabela 2
Características socioeconômicas dos municípios rurais e remotos segundo áreas definidas na pesquisa, 2018/2019

Entre as muitas semelhanças, os MRR apresentam particularidades quanto aos meios de acesso, às características da população e às formas de uso dos territórios. Na maior parte deles, metade da população reside no interior, fora da sede municipal. A dispersão e rarefação de domicílios nos interiores é um fenômeno comum. De modo geral, são municípios mais vulneráveis do que a média nacional, quase todos classificados com IDHM muito baixo ou baixo, o que expressa maior vulnerabilidade socioeconômica.

Observaram-se diferenças marcantes nas condições de vida entre os que residem na “sede” (área concentrada) e os que residem em áreas do interior (área rarefeita) dos MRR. Os entrevistados assinalaram piores condições para as áreas do interior: irregularidades no abastecimento de água potável, inexistência de rede de esgotamento sanitário, ausência de banheiro na maioria das casas, coleta insuficiente e falta de local adequado para destino do lixo. Em geral, as principais fontes de renda da população apontadas são relacionadas à agricultura familiar, a atividades de extrativismo animal (caça/pesca) e mineral (garimpo), a benefícios sociais (Programa Bolsa Família) e ao emprego na administração pública. A oferta de empregos insuficiente e a baixa escolaridade foram consideradas uma constante pelos gestores.

Organização e acesso à Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde municipal

Entre os MRR, identificaram-se singularidades na forma de organização e acesso à APS, dadas as características geográficas e demográficas dos territórios, capacidade de gestão e de financiamento, disponibilidade de profissionais de saúde e infraestrutura das UBS. Os serviços de APS eram a principal fonte de acesso à saúde. Os gestores enfatizaram desafios para cumprir algumas das diretrizes previstas na PNAB vigente, no que tange à ESF. Equipes completas eram mais presentes nas UBS da sede, mas nas áreas rarefeitas a atuação das equipes enfrentava falhas de infraestrutura, alto custo de manutenção da UBS e dificuldades de deslocamento e para fixação dos profissionais, especialmente do médico.

E conseguimos pelo menos trazer a equipe para mais próximo da população, isso funcionou muito bem, a ideia daquela cobertura, de como seria, do médico ir na casa, aquilo ali é utopia. Em cidades maiores deve ser fácil, porque tem população para isso, a população está uma do lado da outra, certinha, agora para nós, em que você tem que caminhar uma hora… Então tentamos maximizar a coisa, e sempre entendemos, pelo menos na minha visão, vi que o PSF [Programa Saúde da Família] não foi feito para a população rural. (2MG6GM1)

Havia uma tendência a concentrar serviços na sede municipal, o que provocava grandes deslocamentos da população do interior em busca de atenção à saúde. Por outro lado, visando a mitigação de falhas de acesso nas áreas mais dispersas, em quase todos os municípios havia unidades de saúde não convencionais, desde unidades com presença apenas de um técnico de enfermagem, em alguns casos de sobreaviso 24 horas, ou apenas um ponto de apoio sem nenhuma infraestrutura para abrigar as equipes Saúde da Família (EqSF) ou equipes itinerantes que atuavam periodicamente nessas localidades.

A maior barreira que eu acho, primeiro as distâncias de algumas regiões, e a outra, como eu falei, é uma região onde a maioria da população está concentrada na zona rural, é justamente nos povoados que a gente tenta levar acesso […]. Abrir unidades para essa população a gente não consegue abrir, então a gente leva itinerante. (3MA24GM1)

As equipes Saúde da Família Ribeirinha (EqSFR) tendiam a atuar de forma mais permanente nos interiores, contudo, nem sempre fixadas nas localidades com populações adscritas, conforme previsto na PNAB.

O agente comunitário de saúde (ACS) era o profissional mais presente e acessível nas áreas rurais e, em muitos casos, o único representante do estado nas localidades mais remotas, exercendo papel crucial de aproximação entre o serviço de saúde e os cidadãos.

O recurso sou eu […] aqui dentro da comunidade eu sou delegada, sou psicóloga, sou professora e sou médica, entendeu? Se o menino tiver uma dor de dente, elas ligam para mim. Se é briga de família, me chamam […]. Eu sou a ponte para eles irem para a UBS. (4AM30ACS2)

A incompletude das EqSF, com falta principalmente de médico, impulsionou gestores a organizarem equipes só com ACS em localidades mais rarefeitas. Cabe ressaltar o vínculo dos ACS, majoritariamente concursados/estatutários, com implicações positivas para o exercício de sua prática, porém, com desafios relacionados à supervisão insuficiente, baixa integração com a equipe e necessidades de suporte (material, de transporte e de formação) para qualificação de seu processo de trabalho. No interior, os ACS tendiam a exercer práticas mais ampliadas em relação aos da sede municipal.

Ele [o ACS] verifica se está tendo a medicação, se a receita está perto de vencer ou não. Se a receita está perto, ele orienta a vir na consulta para renovar. Os agentes aqui têm um papel muito importante, porque levam a medicação até a casa do paciente. […] No rural também. E até de aferir pressão também, tem as agentes que são técnicas de enfermagem, aí elas aferem pressão também, na zona rural. (2MG5MED1)

Havia forte presença de médicos do PMM entre os 27 MRR. No momento da realização do estudo, apenas três municípios não dispunham de profissionais do programa. Observou-se que o fim do PMM acarretou aumento da vacância de médicos nas equipes. Em alguns casos, não havia qualquer outro médico no município. Nestes casos, comumente, os enfermeiros realizavam os primeiros atendimentos na UBS.

Majoritariamente, os médicos entrevistados atuavam havia menos de um ano na equipe e tinham vínculo com o PMM. Entre os enfermeiros, predominou até três anos de atuação na equipe e vínculo por contrato temporário e estatutário. Os salários eram muito variados e discrepantes entre os médicos e os enfermeiros. Em um dos municípios o salário de médicos podia alcançar R$ 40.000,00 para atuação conjugada nos pequenos hospitais em períodos contínuos de 15 dias. Gestores foram unânimes em reconhecer que a impossibilidade de remunerar os médicos segundo valores de mercado foi atenuada pelo PMM.

O Mais Médicos ajudou muito. Pela questão de conseguir ter médico em área que nenhum médico ficava, então conseguia manter um cubano durante três anos numa localidade que outros médicos não ficariam, a não ser por um salário exorbitante que o município não daria conta de pagar. Então, assim, ajudou os municípios nesse sentido, porque conseguiu levar assistência para lugares remotos. (2MG7RGM1)

A elevada rotatividade dos profissionais da APS foi correlacionada a diferentes fatores. Entre os enfermeiros, estava associada aos contratos temporários, altamente subjugados à ingerência da política local. Contudo, gestores mencionaram maior disponibilidade de enfermeiros, nascidos ou residentes no município ou na região, e menos resistentes às características locais. Entre os médicos, a rotatividade era atribuída ao baixo ou nenhum vínculo com o lugar. Os médicos mencionaram como principais problemas para sua fixação: opções limitadas de lazer e de infraestrutura municipal, distância da família e da capital do estado, e dificuldades para acessibilidade às áreas rurais.

Gestores reconheceram que o PMM favoreceu a ampliação da cobertura assistencial, melhorias nos processos de trabalho, aumento da oferta de práticas em saúde, consolidação das UBS como serviço de busca regular e redução da procura por serviços de pronto atendimento. Entretanto, mesmo com médicos do PMM, permaneciam entraves para a atenção nos interiores, onde a indisponibilidade de profissionais de saúde gerava restrição e intermitência de serviços ofertados.

A territorialização e os critérios de vinculação, conforme estabelecidos na PNAB 2017, foram considerados conflitantes com os contextos de rarefação populacional. Para adaptar os pressupostos de cobertura assistencial à realidade local, as EqSF tinham diferentes modos de atuação: médicos atuavam nas UBS por turnos corridos conjugados com pequenos hospitais ou unidades mistas; ACS com territorialização mais fluida, por vezes em áreas não contíguas a depender da dispersão da população no território; equipes de Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde (EACS); e eqSFR, sem médico e atuando de forma itinerante.

As unidades precisam ser mais próximas, porém temos um problema na nossa região, que são as distâncias. Eu não posso colocar uma UBS em cada comunidade, não vou ter 114 UBS e não vou ter como manter 114 unidades. Então o nosso grande problema é a dispersão territorial. (4PA12GM2)

Os múltiplos e conjugados arranjos organizacionais para a provisão da APS eram reflexo da inversa relação entre dispersão territorial e disponibilidade de serviços de saúde. Tais características amplificavam os desafios para constituir serviços de APS do tipo porta aberta, fonte de cuidado regular, contínuo e integral. Assim, os gestores buscavam alternativas organizacionais não previstas na PNAB para mitigar obstáculos de acesso: pontos de apoio com técnico de enfermagem; EqSF atuando de sobreaviso 24 horas; pequenos hospitais ou serviços de pronto-atendimento estruturados em centros de saúde funcionando 24 horas; e práticas ampliadas executadas por trabalhadores da enfermagem e ACS.

Equipes que dispunham de algum tipo de transporte (carros, lanchas, unidades básicas fluviais, motocicletas) conseguiam ofertar ações de saúde para populações residentes em áreas isoladas. Entretanto, o custo com transporte era alto e gerava indiscutível sobrecarga financeira para a gestão municipal. Por vezes, a manutenção dos meios de transporte, tão necessários para viabilizar o acesso dentro do município e na região de referência, tornava-se insustentável e a oferta de serviços era interrompida.

A logística do nosso município é muito complicada, […] para montar uma campanha de vacinação, é um gasto. Para ir precisa de voadeira, de barco, ninguém vai vacinar e voltar. A equipe vai passar cinco a sete dias ali para dentro. Para colônia tem que ter carro ou moto, e com isso você gasta gelo, comida, diária de funcionário que precisa ser paga. (4PA13GM2)

Embora na maior parte dos municípios, frequentemente, a população do interior percorresse longas distâncias até a sede para acessar os serviços, não havia nenhum tipo de estrutura para acolher usuários em trânsito na sede municipal, o que poderia favorecer o acesso à APS. Esse tipo de recurso foi verificado somente em um município.

O uso de ferramentas de tecnologias da informação e comunicação (TIC) era restrito, embora fosse reconhecido o seu potencial para ampliar a capacidade resolutiva da APS. Era incipiente o uso dos recursos do Programa Nacional de Telessaúde, implantado há décadas no país, justificado pelas dificuldades de conectividade e baixa informatização das UBS.

[…] sim [a equipe utiliza o e-SUS AB]. Mas, você sabe né!! Naquele esquema do pendrive […] a gente digita aqui e uma vez por mês a pessoa vem, faz a coleta e leva para lá para transmitir para enviar. […] mas estamos esperando o PEC [Prontuário Eletrônico do Cidadão] e não conseguimos usar o Telessaúde porque a internet é precária aqui. (5AC11ENF1)

Dificuldades de acesso à atenção especializada (AE) multiplicavam-se. A maior parte da oferta pública e privada de AE encontrava-se fora dos MRR, frequentemente externa à própria região de saúde. Nesta perspectiva, atuavam em sinergia os problemas de fragmentação assistencial, de escassez de serviços especializados e as longas distâncias percorridas pelos usuários.

A gente encaminha para Secretaria de Saúde, faz o relatório especificando o que quer, aí, eles [usuários] fazem a consulta em Juazeiro e voltam. Quando é algo mais especializado ainda, eles vão bater em Salvador. […] aí daria em torno de mais de 700 km. (6BA1MED2)

Em todos os municípios havia algum tipo de serviço para atendimento às urgências, e por vezes partos, em funcionamento 24 horas, geralmente com infraestrutura precária, evidenciando a necessidade desses serviços em áreas de difícil acesso e, ao mesmo tempo, de políticas nacionais específicas.

Diante das debilidades do processo de regionalização e organização sistêmica da rede de atenção à saúde, os consórcios intermunicipais financiados pelos municípios, em alguns casos, eram descritos pelos gestores como estratégicos para provisão de especialidades. Era possível evitar longos deslocamentos dos usuários e reduzir a compra direta de serviços privados, mais onerosos. Por outro lado, a ausência de mecanismos de comunicação e coordenação entre prestadores AE e os serviços de APS implicava a fragmentação e descontinuidade assistencial.

Gestores indicaram fortemente haver ausência de compatibilidade entre o financiamento da saúde e as características dos territórios rurais remotos. Com exceção das UBS fluviais e equipes ribeirinhas, não há elementos de financiamento ou de modelo organizacional específicos para áreas remotas e rarefeitas. Por exemplo, mecanismos de financiamento não levam em consideração elementos de logística (transporte, pontos de apoio) fundamentais para a oferta de serviços nessas localidades.

Primeiro deles [desafios] é o subfinanciamento da saúde. […] e todas aquelas questões que eu coloquei durante a entrevista: compromisso dos profissionais com a atenção básica, barreiras geográficas. Ele [subfinanciamento] nos impede muito de realizar um trabalho da forma que nós desejamos. […] por mais que o município faça sua parte, mesmo assim não é suficiente. […] Então, a parte financeira ela diz muito de como a saúde vai se comportar. (4AM16GM2)

Diante da inadequação e insuficiência dos mecanismos de financiamento, a escassez de profissionais de saúde e o alto custo da manutenção das UBS e dos meios de transporte estavam no cerne dos problemas enfrentados para a provisão da APS em áreas remotas e rarefeitas.

Discussão

Os achados do estudo reforçam o que a literatura há décadas reporta sobre a ausência de políticas públicas nas áreas isoladas e rarefeitas do Brasil, recortes socioespaciais historicamente marcados por vazios assistenciais (Castilho; Gonçalves, 2018CASTILHO, E. A. de; GONÇALVES, H. Problemas de saúde e a zona rural. Revista de Saúde Pública , São Paulo, v. 52, supl. 1, 1s, 2018. DOI: 10.11606/S1518-8787.20180520supl1ed
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; Leite; Bruno, 2019LEITE S. P.; BRUNO, R. (Org.). O rural brasileiro na perspectiva do século XXI . Rio de Janeiro: Garamond , 2019.), ao mesmo tempo que apontam estratégias locais para enfrentar as dificuldades de acesso. De fato, ainda que a saúde rural seja um tema antigo, ainda é atual (Coimbra Jr., 2018COIMBRA JR., C. E. A. Saúde rural no Brasil: tema antigo mais que atual. Revista de Saúde Pública , São Paulo, v. 52, supl. 1, 2s, 2018. DOI: 10.11606/S1518-8787.2018052000supl1ap
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), pois permanece entre as questões que ocupam posição marginal nos projetos de desenvolvimento brasileiro, sendo um desafio a ser superado (Wanderley; Favareto, 2013WANDERLEY, M. N. B; FAVARETO, A. A singularidade do rural brasileiro: implicações para as tipologias territoriais e a elaboração de políticas públicas. In: MIRANDA, C.; SILVA, E. (Org.). Concepções de ruralidade contemporânea: as singularidades brasileiras. Brasília, DF: IICA, 2013. p. 413-464.). Não por acaso, grande parte dos MRR permanece como territórios opacos às políticas sociais abrangentes (Bousquat et al., 2022BOUSQUAT, A. et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 56, p. 73, 2022. DOI: 10.11606/s1518-8787.2022056003914
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), reunidos em áreas de baixa densidade econômica e presença de populações vulneráveis, com as quais se revelam inaceitáveis e persistentes iniquidades sociais. A geração de riquezas concentradas e a baixa capacidade de inclusão social somam-se às dificuldades para implementação de políticas públicas universais e equitativas, tornando os territórios rurais reféns de programas seletivos e assistencialistas, perpetuadores de mecanismos coercitivos e clientelistas (Leite; Bruno, 2019LEITE S. P.; BRUNO, R. (Org.). O rural brasileiro na perspectiva do século XXI . Rio de Janeiro: Garamond , 2019.).

O contexto mostrou-se dimensão-chave para a análise das especificidades da organização e do acesso nos MRR. A dispersão populacional e as longas distâncias que separam pequenos povoados da sede municipal e do centro urbano de referência são circunstâncias que condicionam o acesso e o modo de ofertar serviços de APS.

Embora os contextos ruais remotos brasileiros sejam diversificados em seus aspectos socioespaciais, há um conjunto de questões que apresentam similitudes quando se trata da organização e oferta de serviços de saúde em localidades distantes dos centros urbanos. As limitações técnicas e financeiras que restringem o acesso à APS em áreas mais distantes e rarefeitas dos MRR são argumentos contundentes para a definição de políticas direcionadas a contextos tão singulares. As características do acesso geográfico não podem justificar o não acesso à saúde.

Considerar as particularidades dos MRR brasileiros envolve ampliação de investimentos em infraestrutura, insumos e equipamentos adequados nas UBS, além do uso de tecnologias comunicacionais que fomente maior articulação entre níveis assistenciais para promover o acesso ao cuidado oportuno e de qualidade à APS. Um aspecto reforçado neste estudo é o nexo entre garantia de transporte e acesso à saúde. Argumenta-se que, sobretudo para as populações que habitam os MRR, a ausência de políticas para provisão suficiente, contínua e oportuna de transporte sanitário alimenta o ciclo de iniquidades e compromete a assunção ao direito universal à saúde.

Cabe discutir o tema da provisão da força de trabalho na APS, em particular o êxito do PMM para o provimento de médicos. A recente experiência do PMM mostrou que políticas nacionais complexas que envolvem provisão, fixação e formação para a APS são capazes de enfrentar a histórica e persistente desassistência em áreas vulneráveis. Não obstante o deliberado desmonte ocorrido com a substituição pelo PMB, o PMM ainda se revela como uma importante intervenção na gestão da força de trabalho em saúde, com significativo peso para a atenção à saúde em áreas rurais remotas. Tal como no estudo de revisão de Medina et al. (2018MEDINA, M. G. et al. Programa Mais Médicos: mapeamento e análise da produção acadêmica no período 2013-2016 no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 346-360, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S124
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), o PMM contribuiu para maior equidade em saúde na cobertura e distribuição de médicos, acesso a serviços de saúde e desoneração dos MRR quanto aos gastos de provisão.

Em outros países, o enfrentamento da falta de serviços disponíveis para populações que vivem nestas localidades tem motivado a proposição de modelos assistenciais específicos (Wakerman; Humphreys, 2011WAKERMAN, J.; HUMPHREYS, J. S. Sustainable primary health care services in rural and remote areas: innovation and evidence. Australian Journal of Rural Health , Armidale, v. 19, n. 3, p. 118-124, 2011. DOI: 10.1111/j.1440-1584.2010.01180.x
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). O que se sabe, a partir da experiência internacional, é que, quanto mais dispersa a população e maiores as distâncias, maior a necessidade de se desenvolver serviços de APS integrados e abrangentes, a fim de maximizar a economia de escala, uso da força de trabalho de saúde e adequação das práticas às particularidades locais (Wakerman et al., 2008WAKERMAN, J. et al. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Services Research, London, v. 8, p. 276, 2008. DOI: 10.1186/1472-6963-8-276
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). Para isso, as características dos contextos rurais remotos precisam se expressar no financiamento, nos modelos de atenção, na lógica de organização dos serviços de APS e na rede regionalizada de atenção à saúde.

Modelos de serviços itinerantes para comunidades remotas são frequentes em diferentes países, com distintas conformações, visando melhores resultados em saúde e menores custos na assistência (Carey et al., 2018CAREY, T. A. et al. What principles should guide visiting primary health care services in rural and remote communities? Lessons from a systematic review. Australian Journal of Rural Health, Armidale, v. 26, n. 3, p. 146-156, 2018. DOI: 10.1111/ajr.12425
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; Wakerman et al., 2008WAKERMAN, J. et al. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Services Research, London, v. 8, p. 276, 2008. DOI: 10.1186/1472-6963-8-276
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). Contudo, nas experiências aqui analisadas, a frequência desses serviços era esporádica com descontinuidades. Ademais, para alcançar maior continuidade e coordenação das práticas de saúde, os modelos itinerantes precisam estar associados a outras formas de intervenção.

O uso de estratégias de TIC também é recomendado para ampliar o acesso e ofertar cuidados integrados e contínuos nas áreas rurais (D’Ambruoso et al., 2019D’AMBRUOSO, L. et al. Rethinking collaboration: developing a learning platform to address under-five mortality in Mpumalanga province, South Africa. Health Policy and Planning, Oxford, v. 34, n. 6, p. 418-429, 2019. DOI: 10.1093/heapol/czz047
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; Wakerman et al., 2008WAKERMAN, J. et al. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Services Research, London, v. 8, p. 276, 2008. DOI: 10.1186/1472-6963-8-276
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). Recursos de telessaúde podem ser potentes para fornecer serviços de saúde e treinamento em regiões rurais remotas, onde são limitados os recursos de transporte, estruturas de saúde e profissionais de saúde. Estudos realizados em contextos semelhantes apontam nesta mesma direção e enfatizam que stakeholders conscientes deste potencial implementaram iniciativas para melhorar a infraestrutura tecnológica e fornecer serviços educacionais e clínicos em localidades de difícil acesso (Strasser; Kam; Regalado, 2016STRASSER, R.; KAM, S. M.; REGALADO, S. M. Rural Health Care access and policy in developing countries. Annual Review of Public Health, Palo Alto, v. 37, p. 395-412, 2016. DOI: 10.1146/annurev-publhealth-032315-021507
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). Estes mecanismos devem ser incorporados na organização dos serviços de saúde, sem renunciar à integralidade e à continuidade assistencial, atributos essenciais para a garantia do direito à saúde em sistemas públicos universais.

Por fim, deve-se destacar que, desde 2017, a ESF vem perdendo centralidade na política nacional de saúde (Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. de. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020254.01842020
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; Mendes; Melo; Carnut, 2022MENDES, A.; MELO, M. A.; CARNUT, L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cadernos de Saúde Pública , v. 38, n. 2, e00164621, 2022. DOI: 10.1590/0102-311X00164621
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). Destaca-se a flexibilização em relação à presença do ACS e à carga horária dos médicos, ao rompimento da prioridade dada à ESF como modelo de organização da APS e ao processo de desfinanciamento produzido pelo novo modelo de alocação/transferências intergovernamentais (Previne Brasil). Cabe indagar se as proposições em curso na PNAB e a consequente desvirtuação do modelo ESF repercutirão em maior autonomia dos municípios para ampliação do direito à saúde integral, ou se aprofundarão ainda mais as desigualdades presentes nos contextos rurais remotos.

Considerações finais

Os resultados do estudo demonstram que o tema da organização e do acesso à APS é permeado por um conjunto de questões indissociáveis que precisam ser cotejadas ao se discutir políticas para o fortalecimento da APS e da atenção integral no SUS, em contextos marcados por grande extensão territorial, dispersão populacional, longas distâncias e multiculturalidade.

Os resultados também apontam que, sob os municípios rurais remotos, atuam desigualdades que afetam a organização e o acesso na APS, sendo necessária a adoção de padrões diferenciados de organização dos serviços, a fim de não ampliar as desigualdades sociais nestes territórios. Os serviços de saúde devem ser projetados para refletir as realidades das populações às quais se destinam.

É incontestável a necessidade de manutenção e aperfeiçoamento de políticas federais para provisão e formação da força de trabalho para APS nesses territórios. O exemplo do PMM evidenciou isso, uma vez que mudou a capacidade dos municípios manterem as equipes completas, inclusive em áreas rarefeitas e remotas. Entretanto, a provisão da força de trabalho na APS requer mais do que a presença de profissionais médicos nos serviços de saúde; demanda o fortalecimento do trabalho multiprofissional, compartilhado, altamente qualificado e com funções ampliadas, dadas as singularidades desses contextos. Requer também a adoção de estratégias organizativas apoiadas em soluções à distância que possibilitem ampliar recursos e promover cuidados oportunos, resolutivos e de qualidade em áreas de difícil acesso. Justamente por se tratar de MRR, é que as estratégias de telessaúde são tão necessárias e indispensáveis para favorecer esse acesso.

Em contextos com tantas singularidades, as especificidades geográficas, ambientais, sociais e culturais não podem ser tratadas como obstáculos para garantia do direito à saúde. Ao contrário, devem ser a base para a análise e o planejamento de políticas públicas, especialmente em um país marcado por um padrão de extrema desigualdade socioespacial. Este olhar minucioso para as características dos territórios deve conduzir a construção de políticas públicas, em nível micro e macro, que revertam em melhores condições de vida e saúde para os cidadãos.

Para o enfrentamento dos múltiplos desafios, são necessárias ações conjugadas e articuladas entre os três níveis de governo. Deve-se considerar a relação de dependência da maior parte dos municípios brasileiros, entre os quais muitos MRR, em relação ao repasse financeiro federal, no que diz respeito ao SUS e outras políticas públicas. Entretanto, não é razoável esperar que os municípios isoladamente cumpram a tarefa de garantir o cuidado integral e continuado - cujo acesso se inicia pela APS, mas não se restringe a ela -, pois exige um conjunto maior de recurso em saúde.

Por fim, ressalta-se a necessidade de aprofundar os estudos sobre a implementação de políticas de APS baseadas nas particularidades dos territórios rurais remotos, com orientação comunitária, integral e integrada no SUS.

Agradecimentos

Agradecemos o apoio do Programa de Políticas Públicas, Modelos de Atenção e Gestão de Saúde - PMA/VPPCB/Fiocruz na etapa de análise das entrevistas.

Agradecemos o apoio da Vice Direção de Pesquisa e Inovação da Ensp/Fiocruz para a tradução do artigo.

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  • PF Almeida, AM Santos, A Bousquat e L Giovanella agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2022
  • Revisado
    12 Jul 2022
  • Revisado
    11 Nov 2022
  • Revisado
    12 Dez 2022
  • Aceito
    21 Dez 2022
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