A saúde das mulheres negras: atuação da psicologia na atenção básica

The health of black women: the performance of psychology in primary care

Victoria Andrade dos Santos Camila Barreto Bonfim Jeane Saskya Campos Tavares Kátia Jane Chaves Bernardo Daniela Maria Barreto Martins Sobre os autores

Resumo

Este artigo objetiva analisar como as psicólogas atuantes na atenção básica percebem a influência dos efeitos psicossociais do racismo e do sexismo em suas práticas e no processo de saúde e cuidado prestado às mulheres negras. Trata-se de pesquisa qualitativa de caráter descritivo e exploratório, seguindo a perspectiva da psicologia social crítica. Foi realizado um levantamento teórico-metodológico sobre os temas relevantes, assim como a produção do instrumento de coleta de dados e entrevistas semiestruturadas. Participaram do estudo oito psicólogas que atendem o público feminino e trabalham na rede de atenção básica da cidade de Salvador (BA). Os dados foram analisados pelo método hermenêutico-dialético. Nota-se que a maioria das percepções foi associada à questão biologizante da raça/cor e à noção de cuidado voltado à visão universalista do sujeito, o que implicou a ausência de ações direcionadas à promoção da saúde de mulheres negras. Contudo, observou-se a percepção interseccional e o letramento racial nos relatos de três das participantes, o que possibilitou o desenvolvimento de tentativas de práticas antirracistas e antissexistas. Conclui-se que ainda se faz necessário explorar ações da psicologia que visem à promoção da saúde de mulheres negras e que possam associar a teoria com a prática.

Palavras-chave:
População Negra; Psicologia; Atenção Básica; Racismo; Sexismo

Abstract

This article aims to analyze how psychologists who work in primary care, perceive the influence of the psychosocial effects of racism and sexism in their practices and in the health and care process provided to black women. This is a qualitative research with a descriptive and exploratory character, following the critical social psychology framework. A theoretical-methodological survey was carried out about the main subjects, as well as the production of the data collection instrument and the semi-structured interviews. The study included eight psychologists who serve the female public and work in the primary care network in the municipality of Salvador (BA). Data were analyzed by the hermeneutic-dialectical method. Most perceptions were associated with the biologizing issue of race/color and the notion of care aimed at the universalist view of the subject, which implied the absence of actions aimed at promoting the health of black women. However, the intersectional perception and racial literacy were observed in the reports of three of the participants, which enabled the development of attempts at anti-racist and anti-sexist practices. In conclusion, exploring psychology actions aimed at promoting the health of black women and that can associate theory with practice is still necessary.

Keywords:
Black Population; Psychology; Primary Care; Racism; Sexism

Introdução

A psicologia, ao se estabelecer enquanto ciência e profissão, também foi influenciada por teorias e práticas associadas à medicina legal e ao saber psiquiátrico do século XIX, o que ajudou a validar cientificamente o padrão de normalidade baseado em características higienistas, sem considerar a realidade brasileira (CFP, 2017CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações raciais: referências técnicas para atuação de psicólogas(os). Brasília, DF, 2017.). Em consequência disso, essa área do conhecimento foi responsável por reproduzir teorias e práticas eugênicas que reverberam até os dias atuais quando se pensa em saúde e cuidado da população negra.

O racismo é compreendido, segundo Munanga (2015MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.), como uma ideologia que consiste em considerar características morais e intelectuais de um determinado grupo como efeito direto de seus aspectos físicos e/ou biológicos. Esta noção de pretensa superioridade ou inferioridade com base no conceito de raça, construída ao longo passado de colonização, justifica a hierarquia racial e a contínua posição de desvantagem social das populações racializadas no Brasil.

A despeito de sua inexistência biológica, “raça” é entendida contemporaneamente como uma categoria sociológica que reflete o funcionamento político e econômico das sociedades. E, como se refere às relações sociais, tem caráter fluido e instável, gerando diferentes interpretações, principalmente quando associada às dimensões de gênero, classe e território (Schucman; Gonçalves, 2020SCHUCMAN, L. V.; GONÇALVES, M. Raça e subjetividade: do campo social ao clínico. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, p. 109-123, 2020. DOI: 10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.109-123
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).

O sexismo, por sua vez, se refere à crença no direito de dominação inerente de um sexo perante o outro e na ideologia opressora que privilegia determinados gênero e orientação sexual diante de outros (Lorde, 2019LORDE, A. Não existe hierarquia de opressão. In: HOLLANDA, H. B. D. (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 235-237.). Para Scott (1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.), gênero é entendido como uma forma primária da relação de poder, e seu termo destaca aspectos referentes ao contexto normativo da feminilidade. Zanello, Fiuza e Costa (2015ZANELLO, V.; FIUZA, G.; COSTA, H. S. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal: revista de psicologia, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 238-246, 2015. DOI: 10.1590/1984-0292/1483
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) argumentam que o conceito de gênero contrapõe o determinismo biológico, mas faz referência a uma performance de caráter social e cultural.

Tanto o racismo quanto o sexismo têm implicações diretas no pensamento ideológico social no mundo. Com isso, ser negra e mulher no Brasil, para Gonzalez (2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.), é ser objeto de tripla discriminação, na medida em que os estereótipos produzidos pelo racismo e pelo sexismo a colocam no nível mais elevado da opressão, limitando suas possibilidades de ascensão socioeconômica.

A interseccionalidade é considerada por Akotirene (2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019.), em concordância com Crenshaw (2004CRENSHAW, K. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. Brasília, DF: Unifem, 2004.), uma ferramenta analítica para a compreensão ampla das interações sociais, que possibilita a análise de que o racismo, o sexismo e as opressões de classes apresentam uma relação intrínseca e operam de forma conjunta, sendo aspectos que podem reverberar na vulnerabilização da saúde das mulheres negras.

As repercussões das operações de raça/cor e gênero podem se transformar em sujeições e sofrimentos de caráter físico e psíquico, assim como precarizações, privação de direitos e preconceitos nos serviços de saúde. Essas experiências podem ser compreendidas como geradoras de eventos traumáticos e/ou microagressões, que podem desencadear diversos sintomas prejudiciais à saúde das mulheres negras (Martins; Lima; Santos, 2020MARTINS, T. V.; LIMA, T. J. S. D.; SANTOS, W. S. O efeito das microagressões raciais de gênero na saúde mental de mulheres negras. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, p. 2793-2802, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020257.29182018
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; Mata; Pelisoli, 2016MATA, V. P. D.; PELISOLI, C. L. Expressões do racismo como fator desencadeante de estresse agudo e pós-traumático. Revista Brasileira de Psicologia, Salvador, v. 3, n. 1, p. 126-140, 2016.; Schucman; Gonçalves, 2020SCHUCMAN, L. V.; GONÇALVES, M. Raça e subjetividade: do campo social ao clínico. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, p. 109-123, 2020. DOI: 10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.109-123
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; Silva, 2005SILVA, M. L. D. Racismo e os efeitos na saúde mental. In: BATISTA, L. E.; KALCKMANN, S. (Org.). Seminário saúde da população negra - Estado de São Paulo 2004. São Paulo: Instituto de Saúde, 2005. p. 53-101.).

Diante disso, para pensar o cuidado em saúde destinado às mulheres negras, faz-se necessário ressaltar a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) como um equipamento político e social na garantia dos direitos dessa população, haja vista não apenas a expressão quantitativa do público feminino negro que frequenta os serviços, mas também devido à sua importância na estrutura e no desenvolvimento da sociedade brasileira.

No modelo de organização do SUS, o nível da atenção básica (AB), conforme Bastos e Araújo (2020BASTOS, M. C. C.; ARAÚJO, E. M. D. Atenção Básica e saúde da população negra. In: CORDEIRO, R. C.; OLIVEIRA, W. L. G. D.; VICENTINI, F. (Org.). Saúde da população negra e indígena. Cruz das Almas: EDUFRB, 2020. p. 81-106.), é o local estratégico para se compreender o contexto territorial, bem como conhecer de maneira mais detalhada as situações de saúde e adoecimento da população. Compete à AB entender as condições de vulnerabilidade, garantir o cuidado integral, reconhecer as questões raciais, culturais e seus impactos na saúde da comunidade em que se localiza.

O trabalho da psicologia neste nível de atenção pode ser considerado fundamental para auxiliar no entendimento dos efeitos psicossociais no processo de saúde-doença-cuidado que se insere no cotidiano da população. A função da psicologia na AB é promover a participação comunitária no seu autocuidado e, ainda, se inserir como ponto de intersecção entre usuários e a equipe de saúde (CFP, 2019CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na atenção básica à saúde. Brasília, DF, 2019.).

Na literatura científica, no entanto, observam-se lacunas na discussão da psicologia referente ao tema da saúde e do cuidado destinado às mulheres negras. Martins, Lima e Santos (2020MARTINS, T. V.; LIMA, T. J. S. D.; SANTOS, W. S. O efeito das microagressões raciais de gênero na saúde mental de mulheres negras. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, p. 2793-2802, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020257.29182018
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) apontam que, frequentemente, as pesquisas ainda denominam os sujeitos negros enquanto um grupo monolítico, assim como se mostram incipientes os trabalhos que abordam o tema das relações raciais associado à saúde mental no Brasil. Damasceno e Zanello (2018DAMASCENO, M. G.; ZANELLO, V. M. L. Saúde mental e racismo contra negros: produção bibliográfica brasileira dos últimos quinze anos. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, DF, v. 38, n. 3, p. 450-464, 2018. DOI: 10.1590/1982-37030003262017
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) destacam que os profissionais de psicologia ainda ignoram as dimensões políticas e sociais como causadoras de sofrimento e não percebem a relação dessas questões com os fenômenos étnico-raciais.

Além disso, Prestes (2018PRESTES, C. R. D. S. Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e bem viver. 2018. 206 f. Tese (Doutorado em Ciências - Psicologia Social)-Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.) analisa a falta de discussão nas pesquisas sobre as estratégias de promoção de saúde e de intervenções de cuidado para as mulheres negras. Em concordância com Werneck (2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. DOI: 10.1590/S0104-129020162610
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), tal escassez ou insuficiência demonstra a não consolidação do estudo sobre a saúde das mulheres negras como área temática e de pesquisa, devido ao pequeno grau de penetração nas instituições acadêmicas a respeito do debate racial e de gênero de modo interseccional.

Considerando essas lacunas, o objetivo geral deste artigo é analisar como psicólogas atuantes na atenção básica no município de Salvador (BA) percebem a influência dos efeitos psicossociais do racismo e sexismo em suas práticas e no processo de saúde e cuidado prestado às mulheres negras.

Método

Este artigo faz parte do projeto “Múltiplos referenciais da Psicologia na construção do cuidado no contexto da Atenção Básica: um estudo junto às Unidades Básicas de Saúde e/ou Unidades de Saúde da Família no município de Salvador (BA)”, pertencente ao Grupo de Estudos Multirreferenciais do Cuidado (Gecuid), da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). O projeto guarda-chuva tem o propósito de mapear e analisar práticas multirreferenciais da psicologia na construção do cuidado nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e/ou Unidades de Saúde da Família (USFs) em Salvador (BA).

Trata-se de pesquisa qualitativa do tipo descritiva e de caráter exploratório, por se comprometer em descrever e explorar uma determinada realidade social, compreendendo seus fenômenos de uma forma mais ampla (Minayo, 2014MINAYO, M. C. D. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.). Além disso, este estudo utiliza a abordagem teórico-metodológico da psicologia social crítica, que trabalha com a perspectiva da psicologia sócio-histórica (Bock, 2007BOCK, A. M. B. A psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. In: BOCK, A. M. B. A; GONÇALVES, M. D. G. M; FURTADO, O. (Org.). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007. p.15-35.).

Participaram da pesquisa, oito psicólogas atuantes nas USFs e UBSs dos Distritos Sanitários de Salvador (BA). Como critérios de inclusão foram consideradas as psicólogas cadastradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), que aceitassem voluntariamente participar da pesquisa e que trabalhassem especificamente com o público feminino. Para preservar a identidade das participantes, os nomes adotados no trabalho são homenagens a autoras da área de psicologia.

Os resultados sociodemográficos indicaram que o perfil profissiográfico da psicologia na AB do município de Salvador (BA) é de profissionais do sexo feminino, negras (maioria autodeclarada de raça/cor parda), com média de idade de 40 anos, casadas e de religião católica. A maioria é formada em instituições públicas e tem como titulação mais alta a especialização. Na AB, atuam há mais de 10 anos, a maior parte atende o público feminino.

Como instrumento de coleta de dados, foi utilizado o roteiro de entrevista semiestruturado (Minayo, 2014MINAYO, M. C. D. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.). No procedimento de produção de dados, a pesquisa foi organizada em três fases. Na primeira, foi realizado o levantamento teórico-metodológico sobre os temas relevantes para contemplar os objetivos da pesquisa, assim como a construção do instrumento para a coleta dos dados. Na segunda fase, após a aprovação do comitê de ética, iniciou-se o processo de contato com as psicólogas. Por fim, na terceira fase, ocorreu a coleta e análise dos dados.

As entrevistas foram analisadas pelo método hermenêutico-dialético, o qual, conforme Minayo (2014MINAYO, M. C. D. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.), busca alcançar as práticas sociais críticas e reflexivas para análise de dados qualitativos.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Uneb (processo nº 4.337.113). Todas as participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Resultados e discussão

Os resultados apontaram as percepções atribuídas pelas psicólogas da AB relacionadas ao questionamento sobre como o racismo e o sexismo podem estar presentes na construção do cuidado para as mulheres negras no SUS. Essa discussão se faz necessária para identificar e avaliar o direcionamento das ações e do planejamento do trabalho, ou as suas ausências, ofertados para esse público. Duas categorias de análise serão apresentadas a seguir: (1) Cadê a cor que estava aqui (?): análise sobre as percepções dos efeitos psicossociais do racismo e do sexismo na saúde das mulheres negras; e (2) Práticas e ações de cuidado à saúde das mulheres negras na atenção básica.

Cadê a cor que estava aqui (?): análise sobre as percepções dos efeitos psicossociais do racismo e do sexismo na saúde das mulheres negras

Percepções sobre a pseudoneutralidade

A expressão “pseudoneutralidade” diz respeito à contradição das narrativas ao se perceber que há o reconhecimento do racismo como estrutural na sociedade, entretanto, sem associá-lo com os demais determinantes sociais da saúde para além das condições biológicas das mulheres negras. Desse modo, os resultados apontaram que a maioria das participantes deu maior destaque para o entendimento das questões de gênero e do sexismo em comparação com a compreensão racial, no processo de saúde-doença-cuidado.

A maioria sinalizou que as mulheres estão mais presentes nos serviços em consequência também da estrutura machista, que as responsabiliza pelo cuidado não só delas mesmas, mas também de filhos, pais e companheiros(as). Porém, não houve menção da questão racial como mediadora de um possível adoecimento, além do patológico, como podemos relacionar na fala da participante Ana:

Eu acho que a população de modo geral não busca baseado na cor, na raça/cor, apesar da gente saber que têm patologias que aparecem mais diante da raça/cor [...] a oferta de cuidado na unidade, a grande maioria tem hipertensão e diabetes, mas se a gente for pensar na raça/cor, a gente sabe que a anemia falciforme acontece majoritariamente na população negra, pardas e negras, e a gente não tem uma linha de cuidado ofertada para isso na atenção básica.

Além do equívoco sobre a doença falciforme, nesse depoimento se observa a problemática do discurso quando não há outra associação das questões raciais para além da visão patológica, de modo que a característica da doença é levada em consideração apenas pela expressão da raça/cor e quando, aparentemente, ocorre uma confusão na diferença entre “pardos e negros”.

Para Tavares e Kuratani (2019TAVARES, J. S. C.; KURATANI, S. M. D. A. Manejo clínico das repercussões do racismo entre mulheres que se “tornaram negras”. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, DF, v. 39, e184764, 2019. DOI: 10.1590/1982-), é comum que profissionais de psicologia não consigam identificar prontamente o sofrimento provocado pelo racismo nos relatos dos pacientes que procuram atendimento, devido à característica do racismo brasileiro e sua influência na ideologia do mito da democracia racial. Nesse sentido, Ana reproduz em sua fala a lógica do pensamento eugenista, proposto no século XX.

Na análise das entrevistas, outra argumentação frequente entre as participantes foi a da não reflexão das questões raciais nas práticas de saúde, em virtude do quantitativo populacional negro nas comunidades onde atuam, isto é, elas não abordam a negritude das mulheres com base na premissa de que estas já são o público em maior quantidade, logo, não caberia destacar a dimensão racial no cuidado, assim como podemos perceber na fala de Jaqueline:

O racismo não vejo tanto, porque a gente tá numa comunidade majoritariamente negra, parda. Não sinto nessa questão de violência doméstica um viés racista [...]. Porque, por exemplo, se você pegar a Política Nacional de Atenção à Pessoa Negra, ela vai falar de acolhimento, de você considerar as questões de etnia, e isso eu busco levar em consideração, mas eu falo de forma transversal porque eu não direciono pra isso [...]. A não ser no grupo, que é por outras questões. Porque no grupo a gente está direcionando, por exemplo, para estratégias de ansiedade [...] porque no meu atendimento, o meu referencial teórico é a psicanálise, então eu não tenho atendimentos muito diretivos.

Nessa narrativa, faz-se presente uma percepção que considera o cuidado às mulheres negras a partir de uma prática pontual e/ou diretiva. Tal perspectiva é aceita com frequência no contexto das práticas em psicologia, assim como da psicanálise brasileira, o que concorreu para que, historicamente, se mantivessem distantes da compreensão da realidade social, sem reconhecer os efeitos do racismo na subjetividade dos sujeitos negros. Predominam ainda os discursos que tratam os indivíduos como universais (Dimenstein, 2001DIMENSTEIN, M. O psicólogo e o compromisso social no contexto da saúde coletiva. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 57-63, 2001. DOI: 10.1590/S1413-73722001000200008
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; Schucman; Gonçalves, 2020SCHUCMAN, L. V.; GONÇALVES, M. Raça e subjetividade: do campo social ao clínico. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, p. 109-123, 2020. DOI: 10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.109-123
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).

Do mesmo modo, esse discurso invisibiliza a compreensão sócio-histórica das repercussões do racismo e do sexismo que impactam a saúde das mulheres negras. Essas experiências vivenciadas repetidamente provocam processos físicos e psicológicos de sofrimento. O estado de tensão e o estresse cotidiano, tal qual as condições socioeconômicas, podem se associar aos sentimentos de angústia, medo, fobias, dentre outras questões que podem ser entendidas enquanto estratégias para uma política de apagamento social (Silva, 2005SILVA, M. L. D. Racismo e os efeitos na saúde mental. In: BATISTA, L. E.; KALCKMANN, S. (Org.). Seminário saúde da população negra - Estado de São Paulo 2004. São Paulo: Instituto de Saúde, 2005. p. 53-101.).

Dessa maneira, pensar o cuidado para as mulheres negras não significa trabalhar especificamente com a temática do racismo sem compreender seus desdobramentos, visto que é nas expressões das queixas e demandas que as vulnerabilidades sociais se apresentam, para além dos sintomas.

Outra forma de invisibilizar a questão racial no cuidado aparece na compreensão de que as diferentes maneiras de opressão podem ser consideradas de modo hierárquico e segmentado, como expresso na fala de Bader:

Eu tento focar o meu olhar para a vulnerabilidade que se apresenta naquele momento, que pode ser raça, que pode ser classe, pode ser falta de dinheiro, pode ser os dois relacionados, pode ser uma questão conjugal, a questão da violência. Então assim, esse cuidado não tem cor.

Destacando a expressão “o cuidado não tem cor” é possível ampliar a discussão a respeito de uma suposta neutralidade do cuidado, chegando a um entendimento de negação dos diferentes marcadores psicossociais que repercutem na condição de vida das mulheres negras, negando a expressão dos graves índices das taxas de morbimortalidade, precoces e evitáveis, impossibilitando, em concordância com Ayres (2009AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2009.), o reconhecimento da integralidade da saúde do sujeito.

Considerando-se a análise das entrevistas e da literatura, é necessário reconhecer que faltam elementos dentro da psicologia no trabalho na AB que possam contemplar de modo pertinente as dimensões raciais no cuidado com as mulheres negras. Possivelmente há um esforço em abordar a discussão teórica sobre racismo e sexismo, muito embora essas reflexões ainda não comuniquem uma percepção que de fato consiga estar ligada à construção do cuidado, sem produzir discursos que inviabilizam e estigmatizam o sofrimento.

Percepções interseccionais

Por outro lado, a menor parte das entrevistadas abordaram suas percepções sobre a saúde das mulheres negras na tentativa de considerar as dimensões de gênero e raça, de modo interseccional, como fundamentais para a estruturação do cuidado.

Trabalhar com a dimensão interseccional no cuidado favorece o entendimento de gênero de modo racializado, compreendendo que a experiência de ser mulher está relacionada à experiência de ser negra numa sociedade racista e machista e que nunca é resultado apenas da influência de uma dessas dimensões, segundo Gonzalez (2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.).

Três das praticantes trouxeram em seu discurso a influência do racismo institucional na reprodução do cuidado destinado às mulheres negras, o que interfere na dificuldade de acesso e na diferença de oferta de cuidado por parte dos profissionais, como apresentado na fala da participante Isildinha:

O não dito pode se tornar maldito, pois então, o não tratadas acaba se tornando maltratadas, de maneira geral, minhas colegas não efetuam diretamente o mau trato às pessoas negras, mas o não trato acaba, como consequência, virando mau trato.

Esse dado faz referência ao que Werneck (2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. DOI: 10.1590/S0104-129020162610
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) e Góes (2011) discutem sobre a associação entre o racismo e o sexismo na garantia do acesso universal e da equidade no cuidado à saúde das mulheres negras. Esses fenômenos não se mantêm apenas em comportamentos individuais, mas, anterior a isso, está enraizado na lógica estrutural dos serviços de saúde. Manifestam-se na falta de tratamento adequado ou eficiente, no diagnóstico tardio, nos maiores índices de morbimortalidade, assim como nas trajetórias de discriminação. Ter a compreensão desses processos pode evitar e/ou reduzir os danos provocados por esses fenômenos sociais no processo do cuidado.

A partir da noção interseccional, apenas a participante Maria discutiu elementos referentes ao sofrimento causado pelas repercussões do racismo a que as mulheres negras podem estar expostas, no que se refere aos dados sobre violências:

Em relação ao racismo, eu sinto que tem um quê de menos importância desses corpos, então tanto na história de vida quando você percebe que as mulheres, aquelas histórias que às vezes são muito pesadas e foram muito grave, que passaram despercebidas.

Essa fala relaciona-se com o pensamento de Nogueira (1998NOGUEIRA, I. B. Significações do corpo negro. 1998. 143 f. Tese (Doutorado em Psicologia)-Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.), ao compreender que o corpo da mulher negra está encoberto de crenças e sentimentos que se constituem no social, cumprindo uma função ideológica. A autora entende que o corpo da pessoa negra é herdeiro de um passado histórico que ressoa até os dias atuais. Dessa forma, o corpo da mulher negra está para além de sua característica biológica. Ele é afetado pela religião, idade, grupo familiar, cultura e outras intervenções sociais que produzem efeitos psicossociais na sua subjetividade.

Nessa categoria de análise, observa-se que foi menos frequente a tentativa de percepção interseccional para o cuidado com as mulheres negras na AB. Por isso, é fundamental evidenciar percepções que tenham um posicionamento equânime, embora os dados demonstrem que alguns avanços ainda precisam ser realizados.

Ressaltamos que o cuidado em saúde para o público feminino negro pode ser elaborado para além das histórias de sofrimento. Devido à influência do mito da democracia racial, muitas mulheres negras ainda não compreendem como o racismo repercute no seu processo de saúde. Com isso, sugere-se o desenvolvimento de ações que favoreçam consciência racial positiva por meio da concepção interseccional do cuidado, a fim de desenvolver a autonomia, destacando histórias “insubmissas” e de potencialidades, pois ser uma mulher negra não é apenas discutir sobre dores e mazelas.

Práticas e ações de cuidado à saúde das mulheres negras na atenção básica

Práticas de igualdade sem equidade

Com a finalidade de compreender as práticas direcionadas às mulheres negras dentro das possibilidades de atuação na AB, observou-se que a maioria das profissionais de psicologia não conseguiu reconhecer a questão racial do público que, segundo as entrevistadas, constitui a maioria do serviço. Desse modo, conforme os resultados desta pesquisa, nota-se a ausência de correlação e análise das repercussões do racismo e do sexismo como determinantes da saúde na prática da psicologia na AB.

Na análise dos dados, todas as entrevistadas trouxeram elementos do seu fazer na AB condizentes com o que é previsto na referência técnica de atuação (CFP, 2019CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na atenção básica à saúde. Brasília, DF, 2019.), como acolhimento dentro e fora da unidade, priorizar atendimentos grupais e matriciamento.

Contudo, a maioria das narrativas das participantes faz referência ao não reconhecimento do racismo e do sexismo como mediadores das questões que acarretam a busca do cuidado das mulheres negras na AB, visto que as queixas e os sintomas partem de um lugar socialmente construído e esse fato não deve ser naturalizado.

Dessa forma, percebe-se que há uma dificuldade para a maioria das participantes alinhar o que é preconizado nas políticas públicas com as ações organizadas no serviço. É o não reconhecimento das diferenças, e uma conduta que trata o sujeito enquanto universal, como pode ser observado na fala da participante Mary:

A maioria são mulheres negras, geralmente, como eu falei. Vem por alguma comorbidade, geralmente é paciente hipertenso, diabético ou as questões de saúde mental,? Ansiedade, muito choroso, perdeu alguém da família, tem alguém envolvido com o tráfico. O meu trabalho é da mesma forma para todos os grupos.

Nesse dado, nota-se a ausência da compreensão de que o racismo é vivenciado nas diversas experiências do cotidiano das populações negras, que apresentam desfechos diferentes ao se considerar a realidade racial em comparação à questão de gênero. O desenvolvimento de sintomas como ansiedade e o luto complicado se relaciona com a experiência da exposição violenta, muitas vezes precoce, a eventos traumáticos. Portanto, não compreender tais questões colabora para a reprodução de uma prática descontextualizada da realidade brasileira.

Na análise sobre a formação das participantes, a maioria informou que é pós-graduada (residência em saúde da família e/ou mestrado). Quando perguntadas sobre o debate racial e de gênero na formação, todas responderam que as questões de gênero e sexismo foram contempladas. Já sobre a temática racial, apenas duas responderam que tinham alguma familiaridade, não em razão da graduação, mais sim por terem estudado por conta própria ou por meio da educação permanente ofertada nos serviços.

Logo, entende-se que essa ausência do debate racial na formação dos profissionais de saúde e, especialmente, na psicologia produz uma prática que não contempla as questões relacionadas à saúde das mulheres negras. Esse dado corresponde ao que Gouveia e Zanello (2019GOUVEIA, M.; ZANELLO, V. Psicoterapia, raça e racismo no contexto brasileiro: experiências e percepções de mulheres negras. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 24, e42738, 2019. DOI: 10.4025/psicolestud.v24i0.42738
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) afirmam, que ainda se estuda uma “psicologia colonizada”. Segundo as autoras, ainda se pratica o racismo na psicologia por omissão, quando os sofrimentos não são percebidos pela sua relação com as demandas sociais.

No que tange à atuação para o debate das questões raciais na AB, a participante Ana trouxe a questão de que essa temática ficava a cargo de um médico que trabalhava em sua unidade, o qual, nas palavras dela, “levantava a bandeira disso[...] treinava a equipe”, porém, com a saída dele, essa discussão acabou se perdendo, e a questão só era explorada a partir da demanda do paciente. Ela diz: “Então a gente fica muito do paciente que chega, mas não de organizar e ofertar o cuidado, baseado nos indicadores”.

Dessa maneira, é importante considerar que a discussão racial nas práticas de saúde não deve ser atribuída ao sentido pejorativo da militância. É imprescindível a desvinculação da ideia de que apenas pessoas negras podem falar sobre tal assunto. É necessário que a gestão dos serviços ponha em prática as políticas públicas para que essas temáticas sejam trabalhadas e que a saúde integral seja garantida.

Práticas antirracistas e antissexistas

Embora com menor frequência, também foram citadas ações que buscavam problematizar queixas e demandas relatadas pelas mulheres negras no serviço. Esta categoria propõe apresentar narrativas que conseguiram conciliar a análise do racismo e do sexismo na elaboração do cuidado para as mulheres negras na AB.

Sobre as ações no serviço, apenas as participantes Sílvia e Isildinha narraram vivências que puderam ser consideradas tentativas de práticas antirracista e antissexista. Para o público feminino, Sílvia relatou que, na unidade onde atua, há um grupo para mulheres adultas com diferentes perfis raciais e econômicos. As discussões são fundamentadas nas temáticas de gênero, raça, classe, casamento, filhos, ansiedade, dentre outros assuntos que surgem como demanda.

No relato de experiência de um atendimento multiprofissional, Sílvia exemplificou como é possível relacionar as dimensões psicossociais do adoecimento com uma prática que não seja culpabilizadora, analisando sua dimensão social e cultural:

Tem uma moça que eu estou acompanhando junto com a nutricionista, e os principais sofrimentos dela são com a autoimagem, por ela ter obesidade, ser negra e ter o cabelo crespo. Ela não gosta de absolutamente nada nela, e aí, nesses casos, eu percebo que trazer um pouco a coisa da psicoeducação também ajuda de você entender que não é à toa que você não gosta do seu cabelo, do formato da sua boca, da cor da sua pele [...]. Tem todo um aparato aí estrutural do racismo que faz com que você também se sinta desse jeito, das vivências que você teve.

Conforme Davis (2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.) e Gonzalez (2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.), o racismo, o sexismo e as desigualdades de classe são fenômenos que estruturam a sociedade e são resultados da exploração e dominação colonial ao longo dos séculos de escravização dos povos não brancos. As autoras consideram que esses fenômenos são indissociáveis e, quando articulados, produzem efeitos violentos para as mulheres negras.

Assim, as práticas antirracistas e antissexistas condizem com ações que reconheçam as desigualdades sociais como fontes de vulnerabilidades simbólicas e materiais, que contraponham a referência da mulher universal e favoreçam um atendimento seguro, sem reproduções violentas.

De acordo com Prestes (2018PRESTES, C. R. D. S. Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e bem viver. 2018. 206 f. Tese (Doutorado em Ciências - Psicologia Social)-Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.), é necessário que as práticas possam romper o discurso culpabilizador, hegemônico da branquitude e heteronormativo, deslocando e alterando os conteúdos do centro para as margens, adotando uma postura horizontal e acolhedora, por meio do diálogo com diferentes grupos sociais, pela incorporação de novos conhecimentos e considerando a noção de cuidado em rede.

Outra narrativa frequente foi sobre intervenções, geralmente de um profissional específico, isto é, práticas isoladas, que não são alinhadas com uma organização do serviço, como no exemplo da participante Isildinha:

Tem uma dinâmica que é a cabeça da pessoa, a gente fez o desenho da pessoa, às vezes na sala de espera, a gente apelida a cabeça dessa pessoa e diz que é uma pessoa moradora do bairro e o disparador é que vamos dizer quais são os pensamentos dessa pessoa [...]. Então, a primeira cabeça que foi feita pela equipe era de um youtuber, [...] mas ele era um menino de cabelo loiro e olhos azuis, bem emblemático. Aí eu lembro que eu questionei [...] “Por que não podia ser uma pessoa do bairro como várias equipes fazem?” [...] aí fiz uma cabeça de uma menina negra com cabelo cacheado, comprei uma peruca de cabelo cacheado, pintei de marrom, botei um brinco de tecido e tive que chegar com ela e dizer: a nossa personagem agora é Dandara.

Nessa análise, ressalta-se a importância do letramento racial para as tomadas de decisão na elaboração do cuidado para as mulheres negras, pois compreender raça e racismo oportuniza superar a concepção patologizante referente às questões de adoecimento pela lógica individual e isolada, bem como auxilia o entendimento das relações sociais no processo subjetivo (Schucman; Gonçalves, 2020SCHUCMAN, L. V.; GONÇALVES, M. Raça e subjetividade: do campo social ao clínico. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, p. 109-123, 2020. DOI: 10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.109-123
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).

Ser letrado racialmente indica a capacidade de traduzir e interpretar os códigos e as práticas racializadas da sociedade, como se apropriar do vocabulário racial que viabiliza a discussão sobre raça. O letramento racial é uma estratégia de orientação para usuários e profissionais de saúde no que diz respeito à identificação e resposta a questões raciais de maneira resolutiva, como a participante Isildinha conseguiu perceber (Tavares; Jesus Filho; Santana, 2020TAVARES, J. S. C.; JESUS FILHO, C. A. A. D.; SANTANA, E. F. D. S. D. Por uma política de saúde mental da população negra no SUS. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as), São Paulo, v. 12, p. 138-151, 2020. DOI: 10.31418/2177-2770.2020.v12.c3.p138-151
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).

Desse modo, consideramos imprescindível a análise interseccional e o letramento racial das situações de vulnerabilização social para o desenvolvimento de práticas antirracistas e antissexistas que possibilitem compreender as vivências de saúde das mulheres negras.

São atitudes que buscam proporcionar o fortalecimento de vínculos sociais, o desenvolvimento da identidade racial positiva, a escuta qualificada, os espaços de autocuidado e de orientação, e minimizar sentimentos de desesperança, desamparo e solidão. É (re)construir um referencial técnico e teórico que possa dialogar com outros saberes, com o objetivo da superação do racismo e do sexismo nas práticas de cuidado na AB.

Considerações finais

O objetivo desta pesquisa foi analisar como psicólogas atuantes na atenção básica percebem a influência dos efeitos psicossociais do racismo e do sexismo no processo de saúde e cuidado prestado às mulheres negras. Foi possível observar que as práticas interseccionais entre racismo e sexismo no processo de cuidado ainda se encontram em estágio inicial, havendo uma dissociação entre suas percepções e práticas, especialmente com relação à inclusão da raça/cor na compreensão de gênero, ocorrendo, consequentemente, uma falta de vinculação entre percepções e ações no processo de cuidado. Observa-se a presença de percepções associadas à raça como inerentes ao biológico e de ações que consideram as mulheres por uma perspectiva universal. Muito embora tenha sido possível inferir que a percepção de gênero que problematiza as teorias e técnicas tradicionais foi mais frequentemente contemplada.

Como limites do estudo, acredita-se que a pandemia da covid-19 interferiu na disponibilidade das participantes, tanto por conta da sobrecarga de demandas quanto pela disponibilidade de recursos tecnológicos, já que a pesquisa precisou ser adaptada para o formato virtual.

Como pontos relevantes deste estudo, destaca-se o esforço em trabalhar a perspectiva da interseccionalidade associada aos pressupostos da psicologia social crítica, além de discutir de modo racializado o cuidado para a saúde das mulheres negras na AB.

Por fim, ressaltamos a importância do letramento racial para um acolhimento equânime dentro do SUS, tanto no nível da gestão quanto no da assistência. Para isso, sugere-se investimento em educação permanente, atuação multiprofissional, ampliação de ações intersetoriais que trabalhem a racialidade do território, assim como ações que visem à superação do racismo institucional.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2022
  • Revisado
    08 Dez 2022
  • Aceito
    24 Jan 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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