Resumo
Conhecer e sintetizar as expectativas e recomendações sobre a assistência odontológica como direito à saúde bucal para as pessoas com deficiência (PcD) é essencial para auxiliar tomadores de decisão. Realizou-se uma revisão integrativa, com busca nas bases PubMed, Embase, Lilacs e BVS, de artigos publicados até 30 de agosto de 2021. Técnicas de mineração de termos foram adotadas, via plataforma Rayyan. A análise de conteúdo teve por referência a teoria de welfare state. Dezesseis artigos foram incluídos. A ampliação do acesso foi uma necessidade compartilhada por todos os estudos. As principais expectativas e recomendações foram: garantia de direito civil e a reorientação do modelo de atenção em saúde bucal (modelo liberal); necessidade de qualificação profissional, atendimento odontológico sistemático e gratuito, integração entre os serviços, trabalho multiprofissional e garantia de financiamento (modelo conservador); qualificação da infraestrutura e da força de trabalho; e articulação sistêmica entre os níveis assistenciais (modelo social-democrata). Observou-se um cenário de proposições complexo e, por vezes, contraditório, sujeito a indicações com pouco potencial de mudança, especialmente se não forem considerados os desafios contemporâneos decorrentes das crises econômicas e do Estado de bem-estar social que implicam graves constrangimentos aos modelos de proteção social e aos direitos das PcD.
Palavras-chaves:
Políticas Públicas; Diretrizes; Saúde Bucal; Pessoa com Deficiência
Introdução
A partir da disseminação dos estudos sobre a deficiência, na década de 1960, cresceu o movimento de reivindicação de direitos e a luta das pessoas com deficiência (PcD), para serem reconhecidas como sujeitos protagonistas de suas vidas (De Loureiro Maior, 2018DE LOUREIRO MAIOR, I. M. M. Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, Brasília, DF, v. 13, n. 2, 2018.; Diniz; Barbosa; Santos, 2009DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 6, n. 11, 2009. DOI: 10.1590/S1806-64452009000200004
https://doi.org/10.1590/S1806-6445200900... ). Um exemplo disso foi a aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pela Organização das Nações Unidas, em 2006, a qual mencionava a participação desta população como parâmetro para a formulação de políticas e ações direcionadas a ela (Diniz; Barbosa; Santos, 2009DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 6, n. 11, 2009. DOI: 10.1590/S1806-64452009000200004
https://doi.org/10.1590/S1806-6445200900... ).
Na teoria, o termo “deficiência” também passou a assumir novos significados, saindo de uma concepção incapacitante do indivíduo (modelo médico da deficiência), para assumir um modelo social, colocando o indivíduo em posição de agente da sociedade, que compartilha aquilo que tem a oferecer (Diniz; Barbosa; Santos, 2009DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 6, n. 11, 2009. DOI: 10.1590/S1806-64452009000200004
https://doi.org/10.1590/S1806-6445200900... ; Merry; Edwards, 2002MERRY, A. J.; EDWARDS, D. M. Disability part 1: The Disability Discrimination Act (1995) - Implications for dentists. British Dental Journal, London, v. 193, n. 4, 2002. DOI: 10.1038/sj.bdj.4801522
https://doi.org/10.1038/sj.bdj.4801522... ; Mota; Bousquat, 2021MOTA, P. H. S.; BOUSQUAT, A. Deficiência: palavras, modelos e exclusão. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 45, n. 130, 2021.).
As PcD ocupam um espaço importante em cada território e a singularidade no olhar e na assistência devem ser consideradas, pois esta realidade impacta os indicadores de saúde e de desenvolvimento sustentável, razão suficiente para que o segmento social dessa população tenha seus direitos e necessidades específicas incluídas na agenda política de todos os países (De Loureiro Maior, 2018DE LOUREIRO MAIOR, I. M. M. Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, Brasília, DF, v. 13, n. 2, 2018.). Na Grã-Bretanha, existem cerca de 8,5 milhões de PcD, das quais cerca de 6,5 milhões estão em idade ativa (Merry; Edwards, 2002MERRY, A. J.; EDWARDS, D. M. Disability part 1: The Disability Discrimination Act (1995) - Implications for dentists. British Dental Journal, London, v. 193, n. 4, 2002. DOI: 10.1038/sj.bdj.4801522
https://doi.org/10.1038/sj.bdj.4801522... ). Nos Estados Unidos, o censo 2000 informou que havia 47,9 milhões de PcD, representando cerca de 19,3% da população (Glassman; Subar, 2008GLASSMAN, P.; SUBAR, P. Improving and maintaining oral health for people with special needs. Dental Clinics of North America, Amsterdam, v. 52, n. 2, p. 447-461, 2008. DOI: 10.1016/j.cden.2007.11.002
https://doi.org/10.1016/j.cden.2007.11.0... ). No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que as PcD representavam 8,4% da população, ou 17,3 milhões de pessoas.
Existe uma extensa literatura demonstrando que as PcD são propensas a terem mais doenças bucais, dentes perdidos e dificuldade em obter atendimento odontológico do que outros membros da população em geral (Glassman; Subar, 2008GLASSMAN, P.; SUBAR, P. Improving and maintaining oral health for people with special needs. Dental Clinics of North America, Amsterdam, v. 52, n. 2, p. 447-461, 2008. DOI: 10.1016/j.cden.2007.11.002
https://doi.org/10.1016/j.cden.2007.11.0... ). Na pesquisa odontológica, vários estudos sobre esse tipo de assistência destinada às PcD têm sido publicados desde a década de 1970, destacando-se: investigações sobre os cuidados orais (Van Grunsven, 1976VAN GRUNSVVEN, M. F. Dental care for the mentally retarded. Ned Tydschr Tandheelkd, v. 14, n. 83, 1976.), a percepção de pais e dentistas sobre o tratamento odontológico (Davies; Holloway; Worthington, 1988DAVIES, K. W.; HOLLOWAY, P. J.; WORTHINGTON, H. V. Dental treatment for mentally handicapped adults in general practice: parents’ and dentists’ views. Community Dental Health, London, v. 5, n. 4. p. 381-387, 1988.), o uso/atendimento de serviços odontológicos (Waldman, 1989WALDMAN, H. B. Special pediatric population groups and their use of dental services. ASDC Journal of Dentistry for Children, Chicago, v. 56, n. 3, p. 211-215, 1989.; Van Grunsven; Cardoso, 1995VAN GRUNSVVEN, M. F.; CARDOSO, E. B. T. Atendimento Odontológico em Crianças Especiais. Revista da APCD, São Paulo, 1995.) e a situação do atendimento odontológico enquanto uma política pública, em diferentes países (Haddad; Tagle; Passos, 2016HADDAD, A. S.; TAGLE, E. L.; PASSOS, V. A. B. Momento atual da Odontologia para pessoas com deficiência na América Latina: situação do Chile e Brasil. Revista da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas, São Paulo, v. 70, n. 2, p. 132-140, 2016.).
A elevação da consciência sobre a necessidade da implementação de políticas públicas efetivas e duradouras de inclusão das PcD (Monteiro et al., 2018MONTEIRO, L. P. A. et al. O conhecimento de deficientes visuais em relação à saúde bucal. Revista Ciência Plural, Natal, v. 4, n. 1, 2018. DOI: 10.21680/2446-7286.2018v4n1ID14476
https://doi.org/10.21680/2446-7286.2018v... ) tem ajudado a colocar demandas pela aprovação de dispositivos normativos que assegurem os direitos da PcD no centro do debate. Alguns exemplos são a Lei dos Americanos com Deficiência, nos EUA (Surabian, 2016SURABIAN, S. R. Americans with disabilities act. its importance in special care dentistry. Dental Clinics of North America , Amsterdam, v. 60, n. 3, p. 627-647, 2016. DOI: 10.1016/j.cden.2016.02.008
https://doi.org/10.1016/j.cden.2016.02.0... ), a Lei de Discriminação de Deficiência, no Reino Unido (Qureshi; Scambler, 2008QURESHI, B.; SCAMBLER, S. The Disability Discrimination Act and Access: practical suggestions. Dental update, London, v 35, n. 9, p. 6, 2008. DOI: 10.12968/denu.2008.35.9.627
https://doi.org/10.12968/denu.2008.35.9.... ), a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência e a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, ambas no Brasil. Essas políticas podem ser mais ou menos abrangentes, a depender do modelo de proteção social adotado em cada país. Conforme o modelo, as propostas de financiamento, estrutura de serviços e de cobertura das ações, entre outros aspectos, variam. Assim, cabe a todos a responsabilidade de reconhecer às PcD os mesmos direitos assegurados aos que não se encontram nesta condição (Monteiro et al., 2018MONTEIRO, L. P. A. et al. O conhecimento de deficientes visuais em relação à saúde bucal. Revista Ciência Plural, Natal, v. 4, n. 1, 2018. DOI: 10.21680/2446-7286.2018v4n1ID14476
https://doi.org/10.21680/2446-7286.2018v... ).
A necessidade de garantia de direitos para as PcD é objeto de estudo da literatura científica, especialmente numa perspectiva de universalização de direitos, inclusão de diferenças e promoção da saúde (De Paula; Maior, 2008DE PAULA, A. R.; MAIOR, I. M. M. L. Um mundo de todos e para todos: universalização de direitos e direito à diferença. Revista de Direitos Humanos, Brasília, DF, v. 1, p. 34-39, 2008.; Carvalho; Almeida, 2012CARVALHO, L.; ALMEIDA, P. Direitos humanos e pessoas com deficiência: da exclusão à inclusão, da proteção à promoção - Inclusive - Inclusão e Cidadania. Revista Internacional de Direito e Cidadania, João Pessoa, v. 12, 2012.). No entanto, nenhum estudo sumarizou as expectativas/recomendações de pesquisadores a respeito da assistência odontológica para PcD como parte do direito à saúde bucal. Uma revisão sobre essas expectativas/recomendações poderia auxiliar tomadores de decisão na compreensão das possibilidades/limites decorrentes dos respectivos modelos de proteção social, que determinam o desenho dos sistemas de saúde adotados em cada país e das propostas de implementação de estratégias voltadas à expansão do acesso e elevação da qualidade da atenção à saúde bucal às PcD. Além disso, poderia ajudar no reconhecimento da importância da participação social na luta pela garantia dos direitos dessa população.
Este estudo tem por objetivo produzir uma síntese da literatura científica sobre as expectativas/recomendações a respeito da assistência odontológica como direito à saúde bucal para pessoas com deficiência.
Métodos
Foi realizada uma revisão integrativa da literatura, um tipo de estudo apropriado quando o interesse é produzir uma síntese sobre determinado problema de pesquisa (Whittemore; Knafl, 2005WHITTEMORE, R.; KNAFL, K. The integrative review: updated methodology. Journal of Advanced Nursing, Hoboken, v. 52, n. 5, p. 546-553, 2005.). Os seguintes passos foram seguidos: (1) identificação da pergunta de pesquisa; (2) seleção das palavras-chave e busca nas bases de dados bibliográficos de literatura científica; (3) exportação dos arquivos para a plataforma Rayyan; (4) remoção de duplicatas; (5) mineração de termos para determinar a inclusão e a exclusão de registros; (6) seleção dos registros para leitura na íntegra; (7) avaliação da relevância e qualidade metodológica; (8) seleção final dos artigos a serem incluídos no estudo; (9) extração dos dados; (10) interpretação e discussão dos resultados; e (11) síntese das informações e produção de conhecimento.
A pergunta norteadora da pesquisa foi “Qual o estado da ciência sobre expectativas/recomendações sobre assistência odontológica como direito à saúde bucal para pessoas com deficiência?”. A busca foi realizada nas seguintes bases de dados: National Library of Medicine (PubMed), Biblioteca Virtual da Saúde (BVS), Embase e Ovid Tools & Resources Portal (Ovid). As chaves de busca foram definidas a partir dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e do Medical Subject Headings (MesSH). Foram incluídos artigos em português, inglês e espanhol, publicados entre janeiro de 1975 e agosto de 2021. O ano de 1975 foi empregado em decorrência da aprovação da Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência pela Organização das Nações Unidas (ONU, 1975ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os direitos das pessoas deficientes e protocolo facultativo à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília, DF: Unicef, 1975. Disponível em: <Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia >. Acesso em: 13 nov. 2022.
https://www.unicef.org/brazil/convencao-... ). A expressão geral de busca utilizada foi adaptada para cada plataforma, conforme demonstrado na Quadro 1. Dois avaliadores independentes realizaram as buscas para identificação dos trabalhos.
Os registros identificados em cada base foram transferidos para a ferramenta Rayyan, que permite a mineração de termos para auxiliar o revisor na triagem de resumos para revisões de literatura. Outros recursos interessantes do Rayyan são: triagem independente e simultânea por dois ou mais usuários, remoção de duplicatas e referências de rotulagem, destacando palavras-chaves (Olofsson et al., 2017OLOFSSON, H. et al. Can abstract screening workload be reduced using text mining? User experiences of the tool Rayyan. Research Synthesis Methods, Hoboken, v. 8, n. 3, p. 275-280, 2017. DOI: 10.1002/jrsm.1237
https://doi.org/10.1002/jrsm.1237... ).
Após a transcrição de 1357 registros para a ferramenta Rayyan, 41 duplicatas foram removidas, resultando em 1316 publicações. Em seguida, 304 registros foram excluídos por não atender aos critérios de inclusão relativos aos idiomas e tipos de publicação elegíveis, resultando em 1012 trabalhos. Para identificar registros compatíveis com a pergunta norteadora, foi realizada a mineração de texto, conforme demonstrado no Fluxograma da Figura 1.
Com base no foco do estudo, houve concordância na inclusão de 29 títulos/resumos e na exclusão de 297 registros, obtendo-se um grau de concordância moderada (Kappa=0,537). Após a discussão das discordâncias, mais 19 registros foram incluídos para leitura na íntegra, totalizando 48 trabalhos. Os documentos foram examinados de acordo com sua relevância para o tema, clareza de apresentação, rigor do conteúdo e presença de referencial teórico. Destes, 15 foram incluídos no estudo. Com base nas referências das pesquisas incluídas, mais um documento foi escolhido, totalizando 16 trabalhos para extração de uma categoria analítica ligada às expectativas e/ou às recomendações dos autores sobre assistência odontológica, como direito à saúde bucal para pessoas com deficiência.
A análise de conteúdo teve por referência a teoria de regimes de welfare state, na qual destacam-se três modelos de proteção social (Esping-Andersen, 1991ESPING-ANDERSEN, G. As três economias políticas do welfare state. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 24, 1991. DOI: 10.1590/S0102-64451991000200006
https://doi.org/10.1590/S0102-6445199100... ). O modelo liberal, no qual a assistência à saúde é regulada pelo mercado e depende da capacidade de pagamento do usuário. Dessa forma, o papel do Estado é limitado ao apoio de organizações filantrópicas que prestam assistência aos comprovadamente pobres. O modelo conservador, correspondente ao seguro social, no qual a assistência à saúde depende da vinculação formal ao mercado de trabalho (cidadania regulada), sendo financiado por contribuições provenientes de empregados e empregadores, com ou sem a participação estatal. Por fim, o modelo social-democrata, relativo à seguridade social, no qual a assistência à saúde usualmente não depende da capacidade de pagamento do usuário e é assumida como um direito do cidadão, sendo financiada por recursos do orçamento público, provenientes de impostos e outras contribuições (Esping-Andersen, 1991ESPING-ANDERSEN, G. As três economias políticas do welfare state. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 24, 1991. DOI: 10.1590/S0102-64451991000200006
https://doi.org/10.1590/S0102-6445199100... ).
Resultados
A Figura 1 apresenta o fluxograma de seleção das publicações. 16 trabalhos foram selecionados para extração dos dados. As expectativas/recomendações dos autores tiveram por referência nove países: EUA, Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Islândia, França, Inglaterra e Brasil. Elas foram apresentadas segundo os três tipos de modelo de proteção social mencionados e as características do acesso à atenção à saúde decorrentes deles (Quadro 2).
A maioria dos artigos incluídos (10/16) foram escritos por pesquisadores dos EUA, um país caracterizado pelo modelo liberal de proteção social, suas datas de publicação variaram entre 1988 e 2016. Entre as principais recomendações/expectativas levantadas, estavam: a defesa da garantia de proteção de direitos civis que seriam assegurados por um sistema de saúde seguro, acessível e orientado pela Atenção Primária à Saúde (APS); a aprovação de mecanismos legais de cumprimento destes direitos; apoio a agências de fomento à pesquisa sobre PcD; e a ampliação do financiamento dos programas públicos de atenção à saúde (incluindo a saúde bucal), para ampliação da oferta de serviços e do acesso à população. Propostas de reorientação do modelo de atenção à saúde bucal, numa perspectiva colaborativa para permitir a gestão clínica de casos, o matriciamento entre a equipe de saúde bucal e outros profissionais, e maior resolutividade foram mencionadas. Com apoio das entidades educacionais e do controle da categoria profissional, sugeriu-se a qualificação dos prestadores de serviços de saúde bucal às PcD, a fim de responder às necessidades específicas desse público-alvo. Acresce, ainda, a necessidade tanto da defesa das políticas públicas voltadas à PcD, a fim de atrair a atenção dos formuladores para as prioridades adequadas à cada contexto específico, quanto da formulação de diretrizes clínicas na perspectiva de reduzir injustiças e desigualdades sociais.
Dos seis registros restantes, dois eram recomendações/expectativas formuladas por pesquisadores oriundos de países caracterizados pelo modelo conservador de proteção social. Publicados em 1995 e 2019, os trabalhos destacavam a necessidade de educação profissional para os profissionais de saúde bucal (dentistas, auxiliares e técnicos em saúde bucal), tanto na perspectiva teórica quanto na prática; garantia de atendimento odontológico sistemático e gratuito; mecanismos de aprimoramento do processo de trabalho e qualificação do cuidado (organização dos serviços em Redes de Atenção à Saúde (RAS), integração entre os serviços, trabalho multiprofissional, garantia de financiamento das ações).
Os demais registros eram recomendações/expectativas propostas por pesquisadores oriundos de países caracterizados pelo modelo social-democrata de proteção social. Publicados entre 2002 e 2015, os principais aspectos levantados mencionavam a ampliação do acesso e da acessibilidade nos serviços de assistência odontológica à PcD; uma infraestrutura e força de trabalho que garantisse a qualidade da assistência prestada a essa população; articulação sistêmica entre os serviços de atenção primária e especializada, com uma abordagem centrada no usuário com deficiência; e a responsabilidade ético-profissional no cumprimento das leis relacionadas ao direito à saúde das PcD.
Apesar dos princípios de proteção social serem distintos, algumas recomendações/expectativas foram comuns independentemente do modelo adotado. São elas: a preocupação em garantir o acesso a todos com necessidade de assistência odontológica, por meio de uma rede integrada de serviços dotada de estrutura de equipamentos, insumos e uma força de trabalho multiprofissional adequadamente preparada e sustentada por sistemas de financiamento e pagamento das organizações e dos serviços de saúde, que assegurasse um ótimo nível de qualidade.
Discussão
Nesta revisão integrativa, produziu-se uma síntese da literatura científica sobre as expectativas/recomendações a respeito da assistência odontológica como direito à saúde bucal para pessoas com deficiência no âmbito internacional. Para isso, técnicas de mineração de termos foram adotadas para identificar estudos que mencionavam explicitamente palavras como direitos, políticas em sua dupla acepção (policy e politics), gestão/administração, legislação/normas, entre outras similares. Com isso, as expectativas/recomendações tiveram origem em estudos que compartilhavam a defesa da assistência odontológica às PcD como um direito humano e um princípio de justiça social. Como a ciência pode ajudar tanto na perpetuação de injustiças, como na promoção de caminhos para emancipação social, é importante destacar o esforço/compromisso de pesquisadores de diferentes países com as causas das PcD. A despeito disso, observou-se, do ponto de vista dos direitos das pessoas com deficiência, um cenário de proposições complexo e por vezes contraditório, sujeito a indicações com poucas chances de mudar a qualidade da resposta, notadamente se não forem abordados os desafios contemporâneos decorrentes das crises econômicas e do Estado de bem-estar social que implicam severos constrangimentos aos modelos de proteção social.
Os resultados mostraram que as expectativas/recomendações dos pesquisadores em relação à extensão do direito à saúde e ao cardápio de ofertas assistenciais para as PcD variavam conforme o modelo de proteção social adotado no país de origem dos respectivos estudos. Características comuns também foram identificadas, independentemente do modelo adotado, como a defesa da ampliação do acesso das PcD à assistência odontológica e a qualificação das ações e serviços oferecidos.
No estudo em que o modelo de proteção social do país era orientado por uma perspectiva liberal, as recomendações e expectativas destacaram a necessidade de garantia dos direitos civis via mecanismos legislativos e a reorientação do modelo de atenção em saúde bucal, por meio de políticas públicas voltadas às PcD, como forma de reduzir desigualdades e injustiças. PcD e indivíduos de baixa renda eram elegíveis para um seguro de saúde administrado de forma descentralizada pelos governos estaduais, no qual as entidades assistenciais recebiam um pagamento por mês para prestar cuidados com base no número de pessoas cadastradas. No entanto, este mecanismo de financiamento tem despertado grande preocupação das PcD, em decorrência de situações sem garantia de cobertura. Pesquisadores têm alertado que esse mecanismo poderia colocar programas bem-sucedidos em risco (odontologia hospitalar), pois existiria uma carteira restrita de serviços autorizados para pagamento, e procedimentos mais específicos para determinadas situações não estariam contemplados. Na prática, haveria uma diminuição no reembolso das ações, gerando diminuição na oferta de serviços e de profissionais e aumento das necessidades não atendidas (Tegtmeier; Miller; Shub, 2016TEGTMEIER, C. H.; MILLER, D. J.; SHUB, J. L. The Impending Oral Health Crisis. The New York State Dental Journal, Albany, v. 82, n. 3, 2016.).
A defesa deste mecanismo de financiamento tende a impactar especialmente os segmentos da população que dependem do acesso à assistência odontológica contínua, como os mais vulneráveis, entre eles as PcD, razão pela qual pesquisadores de um dos estudos incluídos argumentam que é preciso investir na equidade como princípio norteador da política de saúde, em parcerias profissionais e grupos de interesses comunitários, e atrair os formuladores para enquadrar o modelo no contexto da justiça social (Tegtmeier; Miller; Shub, 2016TEGTMEIER, C. H.; MILLER, D. J.; SHUB, J. L. The Impending Oral Health Crisis. The New York State Dental Journal, Albany, v. 82, n. 3, 2016.).
Entretanto, este enquadramento não é uma questão trivial e exige enfrentar as ineficiências geradas pela falta de um sistema integrado, que possa promover uma combinação adequada entre cuidados médico-odontológicos pessoais e medidas de saúde pública, além de implementar mecanismos de financiamento e pagamento ajustados aos riscos de saúde e aos custos dos procedimentos (Chernichovsky; Leibowitz, 2010CHERNICHOVSKY, D.; LEIBOWITZ, A. A. Integrating public health and personal care in a reformed US health care system. American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 100, n. 2, 2010. DOI: 10.2105/AJPH.2008.156588
https://doi.org/10.2105/AJPH.2008.156588... ). Em sistemas de saúde não regulados, onde predomina a lógica do livre mercado, as PcD tendem a ser particularmente prejudicadas. Estudando os efeitos das reformas neoliberais na trajetória dos sistemas de saúde na Grécia e no Chile, analistas comentaram que as PcD podem ser vistas como “corpos caros” que consomem mais recursos e, por isso, deveriam ser responsabilizadas pela própria saúde, ignorando completamente os determinantes sociais da saúde e os princípios da justiça social (Sakellariou; Rotarou, 2017SAKELLARIOU, D.; ROTAROU, E. S. The effects of neoliberal policies on access to healthcare for people with disabilities. International Journal for Equity in Health, v. 16, n. 1, 2017. DOI: 10.1186/s12939-017-0699-3
https://doi.org/10.1186/s12939-017-0699-... ).
As recomendações e expectativas de estudos em países cuja proteção social era orientada por um modelo conservador destacaram a necessidade de qualificação profissional para os trabalhadores da saúde bucal, atendimento odontológico sistemático e gratuito, integração entre os serviços, trabalho multiprofissional e garantia de financiamento das ações. O contexto fazia referência aos países nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia) e à França, que compartilhavam uma base comum em relação à organização da atenção à saúde por meio de seguro social de caráter obrigatório. A cobertura universal era regulada pelo Estado, financiada por contribuições sociais relacionadas ao trabalho e por impostos, sendo o cuidado à saúde prestado por provedores públicos e privados. Entre as diferenças, destacavam-se variações quanto à participação dos seguros de saúde voluntários no financiamento da atenção à saúde e a extensão e o escopo das estratégias de saúde pública (Winkelmann; Gómez Rossi; Van Ginneken, 2022WINKELMANN, J.; GÓMEZ ROSSI, J.; VAN GINNEKEN, E. Oral health care in Europe: Financing, access and provision. Health Systems in Transition, Copenhagen, v. 4, n. 2, p. 1-176, 2022.).
Serviços integrados que exercem a coordenação dos cuidados tendem a aumentar a acessibilidade, especialmente se orientados por uma perspectiva de redes de saúde, pois elas melhoram o acesso ao tratamento e garantem a coordenação, continuidade e multidisciplinaridade da gestão do usuário num determinado território de saúde (Gondlach et al., 2019GONDLACH, C. et al. Evaluation of a care coordination initiative in improving access to dental care for persons with disability. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 16, n. 15, 2019. DOI: 10.3390/ijerph16152753
https://doi.org/10.3390/ijerph16152753... ). Integração e coordenação do cuidado são fundamentais para diminuir as barreiras de acesso aos serviços, em distintos níveis e dentro de um mesmo nível do sistema de saúde (Almeida et al., 2018ALMEIDA, P. F. et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. spe. 1, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S116
https://doi.org/10.1590/0103-11042018S11... ). Entretanto, o problema da integração de serviços é um desafio comum em muitos sistemas de saúde, notadamente naqueles em que provedores públicos e privados competem entre si. Geralmente, assistência odontológica e médica nesses sistemas operam em domínios separados (silos), com políticas de educação e de saúde paralelas sob diferentes culturas profissionais e modelos de financiamento (Winkelmann; Gómez Rossi; Van Ginneken, 2022WINKELMANN, J.; GÓMEZ ROSSI, J.; VAN GINNEKEN, E. Oral health care in Europe: Financing, access and provision. Health Systems in Transition, Copenhagen, v. 4, n. 2, p. 1-176, 2022.). Sem uma abordagem mais ampla que considere o estabelecimento de mecanismos regulatórios voltados à integração de serviços, e a implementação de estratégias de qualificação destinadas a fortalecer o trabalho multiprofissional e a coordenação do cuidado, dificilmente estes desafios serão endereçados em países cuja proteção social é orientada por um modelo conservador.
A garantia de financiamento das ações apareceu como uma expectativa e recomendação levantada pelos autores, no entanto, é preciso considerar que, a partir de 1970, reformas neoliberais foram implementadas para conter os gastos do Estado de bem-estar social, especialmente na área social, a fim de produzir crescimento econômico (Sakellariou; Rotarou, 2017SAKELLARIOU, D.; ROTAROU, E. S. The effects of neoliberal policies on access to healthcare for people with disabilities. International Journal for Equity in Health, v. 16, n. 1, 2017. DOI: 10.1186/s12939-017-0699-3
https://doi.org/10.1186/s12939-017-0699-... ; Steudler, 1986STEUDLER, F. The state and health in France. Social Science and Medicine, Amsterdam, v. 22, n. 2, 1986. DOI: 10.1016/0277-9536(86)90070-5
https://doi.org/10.1016/0277-9536(86)900... ). Na França e na Bélgica, entre outros países da União Europeia (UE), pagamentos diretos por serviços odontológicos têm representado a maior parte das fontes de financiamento, em decorrência da baixa cobertura por seguros de saúde de assistência odontológica de caráter público ou privado (Winkelmann; Gómez Rossi; Van Ginneken, 2022WINKELMANN, J.; GÓMEZ ROSSI, J.; VAN GINNEKEN, E. Oral health care in Europe: Financing, access and provision. Health Systems in Transition, Copenhagen, v. 4, n. 2, p. 1-176, 2022.). Por outro lado, nos países nórdicos, a prestação fora de consultórios privados geralmente inclui cuidados de saúde oral para estatutários, serviços preventivos e cuidados de emergência. A provisão pública é mais pronunciada na Suécia e na Finlândia, onde a maioria dos dentistas trabalha em clínicas odontológicas públicas ou centros de saúde municipais, cujo foco são crianças e adolescentes. Na Noruega, a assistência odontológica obrigatória é prestada por dentistas assalariados, em clínicas de saúde geridas pelas autoridades locais. O setor privado geralmente cuida dos adultos, que podem receber um reembolso do Estado, dependendo do serviço (Winkelmann; Gómez Rossi; Van Ginneken, 2022WINKELMANN, J.; GÓMEZ ROSSI, J.; VAN GINNEKEN, E. Oral health care in Europe: Financing, access and provision. Health Systems in Transition, Copenhagen, v. 4, n. 2, p. 1-176, 2022.). No modelo social-democrata, as principais recomendações e expectativas levantadas mencionaram a necessidade de ampliação do acesso à assistência odontológica, com infraestrutura e força de trabalho adequadamente dimensionadas, e maior articulação sistêmica entre os níveis assistenciais. No Brasil, um dos países reportados, a necessidade de ampliação de políticas inclusivas que assegurem maior acessibilidade aos serviços de saúde pelas PcD tem sido mencionada por outros pesquisadores como um fator importante que não vem sendo garantido, comprometendo o princípio da equidade (Castro et al., 2011CASTRO, S. S. et al. Acessibilidade aos serviços de saúde por pessoas com deficiência. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 45, n. 1, 2011. DOI: 10.1590/S0034-89102010005000048
https://doi.org/10.1590/S0034-8910201000... ; Condessa et al., 2020CONDESSA, A. M. et al. Atenção odontológica especializada para pessoas com deficiência no Brasil: perfil dos centros de especialidades odontológicas, 2014. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 29, n. 5, 2020. DOI: 10.1590/S1679-49742020000500001
https://doi.org/10.1590/S1679-4974202000... ). Como a expansão contínua do subsetor privado é subsidiada pelo Estado brasileiro, o subsetor público se torna subfinanciado (Paim et al. 2011PAIM, J. et al. The Brazilian health system: history, adcances and challenges. The Lancet, London, v. 377, n. 9779, p. 1778-1797, 2011. DOI: 10.1016/S0140-6736(11)60054-8
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(11)60... ), o que potencialmente compromete sua capacidade de investir na qualidade do cuidado e na ampliação do acesso aos serviços pelas PcD e população em geral. No Reino Unido, outro país analisado, os autores também mencionaram recomendações nos serviços, a fim de torná-los mais inclusivos e acessíveis, seja por meio de ajustes na sua estrutura física ou por alterações na política que orienta as práticas assistenciais (Merry; Edwards, 2002MERRY, A. J.; EDWARDS, D. M. Disability part 1: The Disability Discrimination Act (1995) - Implications for dentists. British Dental Journal, London, v. 193, n. 4, 2002. DOI: 10.1038/sj.bdj.4801522
https://doi.org/10.1038/sj.bdj.4801522... ; Qureshi; Scambler, 2008QURESHI, B.; SCAMBLER, S. The Disability Discrimination Act and Access: practical suggestions. Dental update, London, v 35, n. 9, p. 6, 2008. DOI: 10.12968/denu.2008.35.9.627
https://doi.org/10.12968/denu.2008.35.9.... ). Essas mudanças não são simples. Fatores como custo elevado, interrupção por tempo prolongado e falta de incentivos financeiros podem desencorajar os provedores de serviços. Uma comissão de direitos em relação à deficiência estabelecida pelo parlamento britânico tem atuado desde 1999 para monitorar, eliminar a discriminação e promover igualdade de oportunidades (Hurstfield et al., 2004HURSTFIELD, J. et al. Monitoring the Disability Discrimination Act (DDA) 1995 - Phase 3. Stratford upon Avon: Disability Rights Commission, 2004.). Em 2007, a comissão foi dissolvida e suas funções assumidas por uma comissão de igualdade e direitos humanos.
A necessidade de ampliação de acesso para redução da desigualdade apareceu como uma recomendação e uma expectativa comum a todos os modelos de proteção social. Ela exige maior disponibilidade de recursos (financiamento adequado) e de estratégias de gestão (investimento em APS como porta preferencial de acesso e integração de serviços) para organizar a rede de cuidados (Menicucci, 2019MENICUCCI, T. Política de saúde do Brasil: continuidades e inovações. In: ARRETCHE, M.; MARQUES, E.; FARIA, C. A. P. (Org.). As políticas da política: desigualdades e inclusão nos governos do PSDB e do PT. São Paulo: Unesp, 2019. p. 191-216). Na França, a lei declara que o Estado é responsável por medidas compensatórias para garantir a igualdade de acesso aos cuidados de saúde das PcD. No entanto, não existe um sistema dentro da odontologia francesa que garanta este direito. A resposta local para o problema foi organizar os serviços em redes de atenção, tendo a APS como coordenadora dos cuidados (Gondlach et al., 2019GONDLACH, C. et al. Evaluation of a care coordination initiative in improving access to dental care for persons with disability. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 16, n. 15, 2019. DOI: 10.3390/ijerph16152753
https://doi.org/10.3390/ijerph16152753... ). No Brasil, a APS é a forma de organização do modelo assistencial, de caráter integral e universal (Menicucci, 2019MENICUCCI, T. Política de saúde do Brasil: continuidades e inovações. In: ARRETCHE, M.; MARQUES, E.; FARIA, C. A. P. (Org.). As políticas da política: desigualdades e inclusão nos governos do PSDB e do PT. São Paulo: Unesp, 2019. p. 191-216). Algumas expectativas e recomendações levantadas por autores que estudam o acesso odontológico para PcD no modelo liberal destacam a necessidade de centralizar o cuidado na APS, de forma efetiva, eficiente, segura e com foco no usuário (Edelstein, 2007EDELSTEIN, B. L. Conceptual frameworks for understanding system capacity in the care of people with special health care needs. Pediatric Dentistry, Chicago, v. 7, n. 2, p. 108-116, 2007.).
Uma ameaça permanente aos direitos das PcD diz respeito às reformas neoliberais. Elas modificaram profundamente os sistemas de saúde em todo o mundo, a partir da década de 1970 e, mais recentemente, em 2008, com a crise financeira global, vários países implementaram programas de ajuste estrutural impactando em diversos setores, entre eles a saúde (Sakellariou; Rotarou, 2017SAKELLARIOU, D.; ROTAROU, E. S. The effects of neoliberal policies on access to healthcare for people with disabilities. International Journal for Equity in Health, v. 16, n. 1, 2017. DOI: 10.1186/s12939-017-0699-3
https://doi.org/10.1186/s12939-017-0699-... ). Um efeito direto destas reformas na saúde, foi a elevação de desigualdade de acesso a serviços e a ampliação de iniquidades socioeconômicas. Desta forma, as PcD podem ser particularmente prejudicadas devido às suas crescentes necessidades de saúde, o que pode reforçar sua estigmatização (Gondlach et al., 2019GONDLACH, C. et al. Evaluation of a care coordination initiative in improving access to dental care for persons with disability. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 16, n. 15, 2019. DOI: 10.3390/ijerph16152753
https://doi.org/10.3390/ijerph16152753... ; Sakellariou; Rotarou, 2017SAKELLARIOU, D.; ROTAROU, E. S. The effects of neoliberal policies on access to healthcare for people with disabilities. International Journal for Equity in Health, v. 16, n. 1, 2017. DOI: 10.1186/s12939-017-0699-3
https://doi.org/10.1186/s12939-017-0699-... ).
Considerações finais
Este trabalho buscou produzir uma síntese da literatura sobre as expectativas/recomendações dos pesquisadores, em relação à assistência odontológica como um direito à saúde bucal para as PcD. Foram destacados aspectos distintos e comuns, mostrando que tais recomendações têm alcances e limites ligados ao modelo de proteção social adotado nos países onde os estudos foram publicados. No entanto, esta análise não abordou o efeito das políticas de saúde, em especial de saúde bucal, sobre a assistência odontológica às PcD, como, por exemplo, mecanismo de redução de desigualdades de acesso à saúde em países com iguais ou distintos modelos de proteção social. Tampouco foram consideradas possíveis áreas de sombreamento que existem entre diferentes modelos mistos, caracterizados pela diversidade de arranjos entre entes privados sob graus variados de regulação pelo ente público (organizações sociais, parcerias público-privadas), sugerindo a necessidade de estudos nesta linha. Apesar de a ciência ter o papel de subsidiar mudanças estruturais, nem sempre ela é considerada, tendo em vista que a decisão está sujeita a múltiplas determinações do contexto político-social e das distintas conjunturas de cada momento. Outra limitação diz respeito a não inclusão da literatura cinzenta, como leis e atos normativos que orientam a assistência odontológica às PcD nos países com diferentes modelos de proteção social.
Com base nesta revisão, concluiu-se que a ampliação do acesso é uma necessidade compartilhada por todos os estudos incluídos, independentemente do modelo de proteção social adotado. No modelo liberal, as principais expectativas e recomendações foram: a garantia de direito civil e a reorientação do modelo de atenção em saúde bucal. No modelo conservador destacaram-se a necessidade de qualificação profissional para os trabalhadores da saúde bucal, atendimento odontológico sistemático e gratuito, integração entre os serviços, trabalho multiprofissional e garantia de financiamento das ações. No modelo social-democrata reivindicou-se a qualificação da infraestrutura e da força de trabalho, além da articulação sistêmica entre os níveis assistenciais. Observou-se um cenário de proposições complexo e, por vezes, contraditório, sujeito a indicações com pouco potencial para mudar a qualidade da resposta, principalmente se não forem considerados os desafios contemporâneos decorrentes das crises econômicas e do Estado de bem-estar social, que implicam graves constrangimentos aos modelos de proteção social e aos direitos das PcD.
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- 1Este trabalho foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Jul 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
06 Dez 2023 - Aceito
08 Dez 2023