Pesquisadores das ciências sociais e humanas (CHS) vêm apontando, há muito tempo, a existência de graves inadequações nas resoluções sobre ética em pesquisa. A Resolução 466/12 foi elaborada consoante a racionalidade biomédica. A ampliação indevida para todas as áreas do conhecimento vem acarretando consequências importantes como a não aprovação ou o atraso na realização de pesquisas das CHS.
A discussão sobre ética em pesquisa se processa no campo científico que, consoante Bourdieu (2003), é um espaço social marcado por relações de poder específicas. O que está em jogo é a hegemonia biomédica, positivista, que se sobrepõe às demais tradições de pesquisa. Disso deriva a definição do padrão ideal de ciência, com seus efeitos materiais e simbólicos, fazendo com que se desdobrem nesse campo importantes disputas, dentre elas, a definição de diretrizes adequadas aos distintos paradigmas. Tendo isso em vista, como elaborar diretrizes sobre ética em pesquisa que identificando as disputas nele presentes, respeitem as diferenças, sem discriminar enfoques, sobretudo pelo fato de não se adequarem ao modelo ou paradigma hegemônico? Esse é um dos grandes desafios que se colocam à missão de elaborar diretrizes éticas para pesquisas em CHS, em especial aquelas que focalizam a saúde, haja vista seu caráter complexo como fenômeno biossocial.
Configura-se, portanto, como problema central: se à primeira vista, podemos concordar com os princípios estabelecidos como soberanos: autonomia, beneficência, justiça, não maleficência e equidade, o modo como estes são transformados em procedimentos demanda adequação aos fundamentos das CHS. Trata-se de um desafio situado no plano ontológico que, por sua complexidade, exige respeito à alteridade e diálogo interdisciplinar. Ilustrando apenas com um dos princípios aludidos, a concepção de autonomia não é ponto consensual uma vez que implica em concepções prévias sobre o que se entende por ser humano, individuo, pessoa.
Além disso, quando se consideram esses princípios é necessário acessar tanto o valor social quanto o rigor científico da pesquisa. O predomínio da pesquisa biomédica levou à falta de reconhecimento do valor social da pesquisa em CHS, não apenas para a melhoria da saúde no sentido amplo, mas também ao ampliar a capacidade de reflexão crítica dos usuários e dos profissionais de saúde. Todas as pesquisas se beneficiam da crítica ética e científica. Essa crítica, entretanto, é construtiva apenas se formulada dentro do paradigma filosófico no qual a pesquisa se fundamenta. Portanto, a comunidade científica, incluindo os membros dos comitês de ética em pesquisa, precisam compreender e respeitar a diversidade das tradições científicas e filosóficas.
A resolução 466/12 avança, é fato, ao reconhecer que as CHS têm especificidades, que justificam a necessidade de uma resolução específica. Para elaborar essa resolução, a Comissão Nacional de ética em Pesquisa (CONEP) organizou um Grupo de Trabalho (GT), que é composto por 18 associações nacionais de pesquisa e pós-graduação, abrangendo quase todos os domínios disciplinares das CHS; o Fórum de CHS; o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Saúde. Esse processo culminou com a recente apresentação de uma Minuta de resolução específica ainda em discussão e que entrará em consulta pública em breve.
Neste número, organizado por duas pesquisadoras integrantes do GT CHS CONEP, recuperam-se aspectos centrais discutidos durante as reuniões desse GT. Todos os textos analisam a complexidade e os desafios de elaborar diretrizes éticas voltadas a pesquisas nas CHS , o que poderá colaborar para o aumento do conhecimento e do respeito pela pesquisa em CHS, que é essencial para a revisão ética justa.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Set 2015