Resumo
Tensões em diferentes campos perpassam a formulação de políticas públicas sobre drogas. Na Justiça/Segurança pública, controvérsias entre os paradigmas do proibicionismo e antiproibicionismo; no campo da Saúde/Assistência social, os paradigmas asilar e psicossocial norteiam, de forma divergente, práticas em saúde mental/álcool e outras drogas. O objetivo do artigo é analisar, à luz destes paradigmas, modelos que influenciaram as Políticas Públicas sobre Drogas no Executivo Federal brasileiro. Trata-se de pesquisa documental, cuja fonte são normativos publicados entre 2000-2016 e categorias analíticas: os modelos hegemônicos, as influências na organização dos serviços e a intersetorialidade. Foram analisados 22 documentos. Concluiu-se que, na saúde, a abordagem às drogas apresentou incremento e relevância a partir dos anos 2000, a redução de danos emergiu como estratégia norteadora do cuidado, um paradigma ético, clínico e político, transversal no diálogo com os campos. Identificou-se protagonismo promissor de outros setores, alinhados às novas tendências internacionais e ao antiproibicionismo, mas persistem divergências quanto ao modelo de atenção psicossocial e internação em comunidades terapêuticas.
Redução de danos; Políticas públicas; Álcool e outras drogas; Intersetorialidade
Introdução
O uso prejudicial de drogas (UPD) é problema de saúde pública multifatorial envolvendo as dimensões biológicas, psíquicas, sociais, culturais, constituindo-se como um desafio para a implementação de políticas integradas e abrangentes. De magnitude mundial expressiva, estima-se que 246 milhões de pessoas no mundo usem substâncias psicoativas (SPA), o que corresponde à prevalência global de 5,2% em 201311. United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). World Drug Report [Internet]. Nova York: United Nations; 2015. [cited 2016 Jul 27]. Available from: http://www.unodc.org/documents/wdr2015/World_Drug_Report_2015.pdf
http://www.unodc.org/documents/wdr2015/W... . No âmbito da formulação de políticas públicas sobre drogas existem tensões em diversos setores. No setor da justiça e da segurança pública dois paradigmas, o do proibicionismo e o do antiproibicionismo, se encontram em disputa. Já no campo da saúde e assistência social, os paradigmas asilar, psicossocial e de Redução de danos (RD) sustentam as práticas em saúde mental/álcool e outras drogas22. Amarante P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. 20ª edição. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. O proibicionismo ou “Guerra às Drogas” tem como objetivo maior o combate ao tráfico e a criminalização de usuários e traficantes, visando um mundo livre de drogas. Está associado ao discurso antidrogas, fruto de vários tratados internacionais cujo compromisso era a prevenção do consumo e a repressão da produção e da oferta. Já o “antiproibicionismo” tem como debate principal a descriminalização e a legalização das drogas; compreende que o uso de drogas não deve ser considerado crime e às pessoas que fazem uso prejudicial de SPA deve ser ofertado tratamento e cuidado e não reclusão em ambiente prisional33. Bottini PC. Crime de porte de drogas para uso próprio e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Viva Rio; 2015..
No setor saúde, a característica básica da abordagem “asilar” é a ênfase no caráter orgânico, com a aposta central nos medicamentos como ferramenta para a cura. O indivíduo ocupa um lugar passivo em seu tratamento, sendo considerado doente, justificando, com isso, seu isolamento do meio familiar e social mais amplo. A instituição típica desse paradigma é o hospital psiquiátrico que possui somente a internação como modelo.
No modelo “psicossocial”, o desenvolvimento das práticas é decorrente de movimentos sociais e de diversos campos teóricos. As considerações desse modelo, num primeiro momento, sobre a psicose, em particular, e sobre outras formas de sofrimento, como as associadas ao uso prejudicial de drogas, são marcadas por considerações que vão além da noção de doença. Por isso, os recursos usados na atenção também precisam ir além dos medicamentos. Parte-se da contextualização de um dado fenômeno, com base na fenomenologia de Husserl, citado por Basaglia44. Basaglia F. Corpo e instituição - considerações antropológicas e psicopatológicas em Psiquiatria institucional. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond; 2006. p. 73-90., quando se propõe colocar a doença entre parênteses para ver o sujeito do processo do adoecimento com seus determinantes econômicos, sociais e políticos. O cuidado se dá na perspectiva de Redes de Atenção territorializadas, sendo a integralidade considerada tanto em relação ao ambiente, quanto ao ato terapêutico com o indivíduo, no qual seus efeitos não visam à supressão sintomática e a necessária abstinência e sim à redução de riscos e danos. Esse modelo de cuidado centra-se no respeito às diferenças, à defesa da vida e ao direito à liberdade e à dignidade da pessoa, cujo objetivo é inclusão e reinserção social, e a toxicomania ou a dependência de drogas é vista como resultante do encontro de uma pessoa com uma droga em um dado momento sociocultural, numa tríade indivíduo-droga-contexto55. Zinberg NE. Drug, set and setting. New Haven: Yale University; 1984.. Seus princípios são a desinstitucionalização; a liberdade; a autonomia e a cidadania, tendo a interdisciplinaridade e a intersetorialidade como práticas da clínica ampliada66. Bokany V. Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça: proximidades e opiniões. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2015..
Tais referências norteiam disputas nos campos da saúde, assistência social, segurança e justiça e podem ser refletidas em três modelos/abordagens aos usuários de drogas segundo Marlatt77. Marllatt GA. Redução de danos: estratégias para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artmed; 1999.:
1. No modelo moral/criminal o uso de algumas drogas é definido como ilícito é e por isso passível de punição. Remete a políticas proibicionistas e redução da oferta, na ideia moral do prazer associado ao pecado e o indivíduo não sendo capaz de discernir o certo do errado, podendo ser submetido a medidas de suspensão de direitos individuais. Faz-se aqui a associação entre Justiça e Saúde, por meio de práticas como a Justiça Terapêutica e internações compulsórias determinadas por juízes, mas que estão previstas em Lei da Saúde, como na lei 10.21688. Brasil. Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 9 abr., que sofreu inúmeras modificações desde o projeto de Lei nº 3657-B, da Câmara dos Deputados, de 1989 . Para tal modelo a única meta é a abstinência total.
2. O modelo de doença77. Marllatt GA. Redução de danos: estratégias para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artmed; 1999. vê a dependência de drogas como uma doença biológica que merece tratamento e reabilitação. O foco está no indivíduo e remete a uma abordagem de redução da demanda; seus dispositivos incluiriam as experiências de Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Modelo Minnesotta. Tais abordagens não se preocupam com um mundo livre de drogas, pois partem do princípio de que apenas alguns indivíduos desenvolvem a dependência. Porém, pode-se incorrer no risco de associação ao modelo moral, quando se relaciona ao sujeito da doença a ideia de incapacidade da razão em detrimento do prazer. A única meta aceitável a partir de tal concepção é a abstinência total, inclusive como condição para o tratamento, pois o indivíduo precisa aceitar que tem uma doença incurável, progressiva e fatal e por isso não pode estar em contato com a substância à qual seria alérgico99. Ramôa M. A desinstitucionalização da Clínica na Reforma Psiquiátrica: um estudo sobre o projeto CAPSad [tese]. Rio de Janeiro: PUC; 2005..
3. O modelo da RD é entendido como uma estratégia norteadora do cuidado, um paradigma ético, clínico e político1010. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 1.028, de 1 de julho de 2005. Determina que as ações que visam à redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência, sejam reguladas por esta Portaria. Diário Oficial da União 2005; 2 jul.,1111. Brasil. Ministério da Saude (MS). Portaria no 2.197, de 14 de outubro de 2004. Redefine e amplia a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2004; 15 nov.. Segundo Marlatt77. Marllatt GA. Redução de danos: estratégias para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artmed; 1999., a RD parte de pressupostos filosóficos do Pragmatismo e dos Direitos Humanos; rompe com a ideia de uso abusivo de drogas, afirma que o mesmo pode ou não ser prejudicial. Torna-se uma estratégia também para pessoas que não desejam ou não conseguem diminuir/cessar o uso de drogas, bem como para os demais usuários com dificuldade para acessar serviços de saúde ou aderir ao cuidado integral à saúde. Tem como princípio o respeito à autonomia dos sujeitos na perspectiva de um cuidado ampliado de saúde que se contrapõe às práticas de recolhimento dos usuários em abrigos ou para a internação compulsória. Marlatt77. Marllatt GA. Redução de danos: estratégias para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artmed; 1999. aponta a RD como uma alternativa da saúde pública aos modelos moral/criminal e de doença, que se sustentam em princípios e pressupostos diferenciados da RD.
Os primeiro e o segundo modelos têm sintonia com o paradigma proibicionista enquanto o terceiro tem a ver com o paradigma antiproibicionista. Percebe-se certa aproximação entre os modelos de políticas públicas apresentados por Marlatt77. Marllatt GA. Redução de danos: estratégias para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artmed; 1999. e os paradigmas asilar e psicossocial, que foram problematizados por autores do campo da Reforma Psiquiátrica e que podem manter as políticas públicas sustentadas em uma lógica que aprisiona, reprime e isola o sujeito que faz uso de drogas a um modelo pautado na ideia de exclusão como forma de tratamento e de suposto cuidado e um outro modelo que se sustenta na relação entre as drogas e os contextos e promove rompimento com estigmas, que é o modelo da RD e psicossocial.
As políticas públicas têm se mostrado pouco integradas e com barreiras de acesso, acentuando as inequidades para as pessoas que fazem UPD e que se encontram em extrema vulnerabilidade social. A ampliação e a reorientação de políticas públicas que priorizem acesso e tratamento no âmbito de uma rede de cuidado humanizada e intersetorial, com práticas orientadas por valores e princípios de participação, de intersetorialidade e de equidade, fundamentos do Sistema de Saúde Brasileiro (SUS) e do movimento internacional da promoção da saúde (PS)1212. Albuquerque TIP, Sá RMPF, Araújo Júnior JLAC. Perspectivas e desafios da Política Nacional de Promoção da Saúde: para qual arena política aponta a gestão? Cien Saude Colet 2016; 21(6):1695-706. mostram-se promissoras e vêm conquistando espaços no campo das drogas no Brasil. O objetivo do artigo é analisar à luz dos paradigmas existentes os modelos e as abordagens que permearam o desenvolvimento das Políticas Públicas sobre Drogas no Brasil no âmbito do poder Executivo Federal no século XXI.
Metodologia
Trata-se de pesquisa documental que teve como fonte de dados, as políticas, os decretos e as demais normativas publicados entre 2000-2016. A escolha deste período justificou-se por estar este século marcado pelo destaque dado à temática das drogas em diversos setores governamentais e da sociedade, com mudanças na configuração de políticas e atores públicos envolvidos com o acirramento de conflitos entre os mesmos e por haver uma vasta publicação nacional a ser explorada. A pesquisa documental permite acrescentar a dimensão de tempo à compreensão do social relacionada às fases do ciclo das políticas neste período1313. Cellard A. A Análise Documental. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires AP, organizadores. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodologicos. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2010. p. 295-316.. Dessa forma, procurou-se conhecer, caracterizar, analisar e elaborar sínteses sobre documentos escritos e publicados pelas diversas instâncias do Executivo Federal, relativos às políticas direcionadas às drogas no Brasil. Realizou-se buscas eletrônicas do tema para identificar normativas de interesse utilizando as bases “SAUDE LEGIS e SENAD”1414. Saúde Legis. Sistema de Legislação da Saúde. [acessado 2016 Jul 27]. Disponível em: http://portal2.saude.gov.br/saudelegis/LEG_NORMA_PESQ_CONSULTA.CFM
http://portal2.saude.gov.br/saudelegis/L... , com seleção do material por pares, pelos autores.
A sistematização dos documentos foi organizada considerando o ano de publicação (temporalidade), os setores governamentais protagonistas envolvidos (atores) e sua relação com a temática da droga. Foram excluídos os documentos não normatizados em portarias ou leis/decretos. Como categoria analítica foi realizada a identificação da tipologia dos modelos segundo Marlatt77. Marllatt GA. Redução de danos: estratégias para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artmed; 1999. e suas respectivas influências na organização dos serviços de saúde (Quadro 1). Analisou-se ainda, a perspectiva da intersetorialidade, categoria relevante se considerado à complexidade da abordagem ao UPD, a compreensão ampliada de saúde e de seus determinantes, dilemas que necessitam abordagens sistêmicas e integradas entre os setores. Analisou-se nos normativos a dimensão da intersetorialidade classificadas em três tipos: inexistente; incipiente e robusta (Quadro 2).
Resultados
Do total de 22 documentos identificados acerca do tema, foram selecionados 18 para a presente análise que atenderam aos critérios de elegibilidade. Embora com os normativos distribuídos ao longo do período estudado, houve um incremento a partir de 2009 (Quadro 1). Os setores governamentais envolvidos foram o Ministério da Saúde (MS), Presidência da República, Gabinete da Segurança Institucional (Secretaria Nacional sobre Drogas - SENAD; Conselho Nacional sobre Drogas - CONAD e Casa Civil); Ministério da Justiça (SENAD). A maioria dos documentos (n = 10) foi publicada pela Saúde, 07 pela Presidência da República e 01 pela Justiça.
Sobre a tipologia dos modelos/abordagens, houve uma predominância do modelo da RD e/ou modelo de atenção psicossocial/antiproibicionista, com 08 documentos; seguido do modelo de doença/asilar com 06 documentos. Identificou-se apenas 02 documentos no modelo moral/criminal/proibicionista (nos anos 2002 e 2006) e 02 normativos compostos por mais de um tipo de modelo, nesses casos expondo ainda mais uma disputa de modelos.
Com destaque no início da série temporal estudada, a Lei 1021688. Brasil. Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 9 abr., de 2001, foi um marco da Reforma Psiquiátrica, por legislar sobre o novo modelo de atenção em saúde mental (psicossocial), com serviços de base territorial de portas abertas em substituição aos manicômios psiquiátricos. Essa lei, embora não abordasse especificamente a temática das drogas, definiu 3 tipos de internações: 1) voluntária, solicitada pelo paciente; 2) involuntária, pedida por terceiro; e a 3) compulsória, “aquela determinada pela Justiça”. Somente em 2003, o tema das drogas, seu uso prejudicial, entrou na agenda da saúde de forma mais efetiva, com a publicação da “Política para atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas/MS”. Esta foi normatizada no ano seguinte (Portaria nº 2.197)1111. Brasil. Ministério da Saude (MS). Portaria no 2.197, de 14 de outubro de 2004. Redefine e amplia a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2004; 15 nov., em convergência à atenção psicossocial ao evitar a internação de usuários de álcool e outras drogas em hospitais psiquiátricos e reconhecer o UPD como grave problema de saúde pública, apresentando a RD como estratégia de intervenção prioritária, modelo que se fortaleceu de forma crescente nos anos seguintes. Em 2005, as ações de RD foram regulamentadas pela Portaria nº 1.028/MS1010. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 1.028, de 1 de julho de 2005. Determina que as ações que visam à redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência, sejam reguladas por esta Portaria. Diário Oficial da União 2005; 2 jul., apostando num modelo direcionando à oferta de cuidados que minimizassem as consequências adversas do UPD para o indivíduo e a sociedade; reduzindo riscos associados sem, necessariamente, intervir na oferta ou no consumo de drogas.
De forma convergente à tendência observada na Saúde, neste mesmo período outros setores experimentaram mudanças na abordagem às drogas rumo ao antiproibicionismo, expressas no realinhamento do título de políticas e setores governamentais afins: de Política Nacional Antidrogas (2002) para a Política Nacional sobre Drogas (2005)1515. Brasil. Resolução no 3/GSIPR/CH/CONAD, de 27 de outubro de 2005. Aprova a Política Nacional sobre Drogas. Diário Oficial da União 2005; 28 out.; de Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) e da Política Nacional Antidrogas (PNAD), com a expressão anti alterada para sobre drogas, expressam a construção de uma nova identidade na abordagem ao tema, movimento consolidado com o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). Um primeiro resultado desta mudança pode ser observado em 2006, com a Lei 11.3431616. Brasil. Presidência da República. Lei no 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD, prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 24 ago., que extinguiu a pena de prisão no caso de posse de substâncias ilícitas para uso próprio, mantendo, porém, a proibição do uso com sanções distinguindo o usuário do traficante e deu ênfase as ações de prevenção, tratamento e reinserção social. No entanto, essa lei deixou como lacuna a não discriminação de parâmetros precisos de diferenciação, como entre usuário e traficante, abrindo brechas para interpretações quanto ao tipo de usuário, o que na prática aumentou o encarceramento por porte de drogas33. Bottini PC. Crime de porte de drogas para uso próprio e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Viva Rio; 2015..
A Política Nacional sobre o Álcool1717. Brasil. Decreto no 6.117, de 22 de maio de 2007. Aprova a Política Nacional sobre o Álcool, dispõe sobre as medidas para redução do uso indevido de álcool e sua associação com a violência e criminalidade, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2007; 23 maio., embora focalizada, apresentou uma formulação inovadora por contemplar a integralidade de ações para a redução dos danos sociais, à saúde e à vida, associados ao consumo desta substância, bem como as situações de violência e criminalidade ligadas ao uso prejudicial do álcool, em uma abordagem intersetorial. Ampliando o escopo da atenção à saúde às pessoas com UPD, em 2010 o MS reconheceu a lacuna assistencial e lançou o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no SUS-PEAD1818. Brasil. Ministério da Saude (MS). Portaria no 1.190, de 4 de junho de 2009. Institui o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde - SUS (PEAD 2009-2010) e define suas diretrizes gerais, ações e metas. Diário Oficial da União 2009; 5 jun., em perspectiva intersetorial em seus distintos eixos de intervenção.
Na ampliação do modelo da RD na atenção à saúde, há que se ressaltar sua incorporação à Política Nacional de Atenção Básica1919. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da atenção básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União 2011; 24 out. (revista em 2011), ao recomendar tal estratégia nos cuidados primários e instituir uma nova modalidade de equipe de saúde da família, os Consultórios na Rua, para o cuidado à população em situação de rua e usuários de drogas. Como capilaridade deste modelo em outros setores, em 2016, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em colaboração do MJ/SENAD lançou o Caderno de Orientações Técnicas do SUAS2020. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Caderno de Orientações Técnicas: Atendimento no SUAS às famílias e aos indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social por violação de direitos associada ao consumo de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2016. no campo AD, no qual reconheceu a multicausalidade do consumo de drogas, as sérias consequências nas vidas das pessoas e suas famílias, as vulnerabilidades associadas ao uso de crack e a necessidade de integração territorializada em Redes (Saúde e Assistência Social).
De forma paradoxal ao fortalecimento do modelo da RD e da atenção psicossocial, evidenciando controversas e disputas, no final da década 2000, observou-se normativas que reforçam o modelo centrado na doença, especialmente por meio das Comunidades Terapêuticas (CT). Em 2009, a Lei nº 12.1012121. Brasil. Lei nº 12.101, de 27 de novembro de 2009. Dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social; regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social; altera a Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993; revoga dispositivos das Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 9.429, de 26 de dezembro de 1996, 9.732, de 11 de dezembro de 1998, 10.684, de 30 de maio de 2003, e da Medida Provisória no 2.187-13, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 30 nov. certificou as entidades beneficentes de assistência social, incluindo as CT. Em 2011, a Anvisa apresentou a Resolução da Diretoria Colegiada - RDC 292222. Anvisa. RDC 29, de 30 de junho de 2011. Dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativa. Diário Oficial da União 2011; 1 jul. que definiu os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de SPA em regime de residência, mas não as denomina de CT. Ainda em 2011, o MS instituiu a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento, transtorno mental e necessidades associadas ao uso de crack, álcool e outras drogas – RAPS (Portaria 3.088)2323. Brasil. Ministério da Saude (MS). Portaria no 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 24 dez. e incluiu as CT como um dos dispositivos dessa rede. Em 2012, o próprio MS instituiu esforço para regulamentar as CT nos moldes das Unidades de Acolhimento, lançando a Portaria 1312424. Brasil. Ministério da Saude (MS). Portaria 131, de 26 de janeiro de 2012. Institui incentivo financeiro de custeio destinado aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal para apoio ao custeio de Serviços de Atenção em Regime Residencial, incluídas as Comunidades Terapêuticas, voltados para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União 2012; 27 jan. que definiu critérios para credenciamento das CT no âmbito da RAPS. Um deles foi o respeito à orientação religiosa do residente. Em 2013, a Nota Técnica/MS2525. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nota técnica no 055/2013 - GRECS/GGTES/ANVISA. Esclarecimentos sobre artigos da RDC Anvisa no 29/2011 e sua aplicabilidade nas instituições conhecidas como Comunidades Terapêuticas e entidades afins. Brasília: Anvisa; 2013. trouxe esclarecimentos sobre a RDC 29 e a sua aplicabilidade nas CT, apresentando-as como instituições não governamentais, da sociedade civil, para lacunas assistenciais do SUS. Nessa tensão política, as CT passaram a ser financiadas pela SENAD, por meio do Ministério da Justiça, em 20142626. Brasil. Portaria nº 10, de 28 de fevereiro de 2014. Acrescenta modelo de relatório de fiscalização de comunidades terapêuticas como anexo à Portaria nº 70, de 18 de outubro de 2013. Diário Oficial da União 2014; 7 mar.. Em 2015, a Resolução nº 1/2015 do CONAD2727. Brasil. Resolução no 1/CONAD, de 19 de agosto de 2015. Regulamenta, no âmbito do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad, as entidades que realizam o acolhimento de pessoas, em caráter voluntário, com problemas associados ao uso nocivo ou dependência de substância psicoativa, caracterizadas como comunidades terapêuticas. Diário Oficial da União 2015; 20 ago. regulamentou, no âmbito do Sisnad, as entidades que realizavam o acolhimento de pessoas, em caráter voluntário, com problemas associados ao UPD, aí, sim, caracterizadas como CT. Estas não seriam estabelecimentos de saúde, mas entidades de interesse e apoio das políticas públicas de cuidados, atenção, tratamento, proteção, promoção e reinserção social, sendo, desta forma, vinculadas ao MJ e fiscalizadas pela SENAD. No entanto, em 2016, contrariando tal vinculação, a responsabilidade sobre as CT retornam à Saúde, com procedimentos do MS normatizando a certificação das entidades beneficentes de assistência social na área de saúde – CEBAS (Portaria 834)2828. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria 834, de 26 de abril de 2016. Redefine os procedimentos relativos à certificação das entidades beneficentes de assistência social na área de saúde. Diário Oficial da União 2016; 27 abr.. Essa definiu que as instituições reconhecidas na legislação, como serviços de atenção em regime residencial e transitório (incluídas as CT) prestadoras de serviços ao SUS, poderiam ser certificadas, desde que qualificadas como entidades de saúde e com prestação de serviços comprovada por declaração do gestor do SUS. Contudo, estabeleceu-se dualidade acerca do financiamento às CT, possível tanto pela SENAD/Justiça como pelo MS.
Em relação às políticas específicas acerca do crack, estas foram mais evidentes a partir de 2010, coincidindo com a profusão na mídia sobre a suposta epidemia do crack. Na perspectiva de intervenções integradas entre setores, foi lançado em 2010, o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas2929. Brasil. Decreto no 7.637, de 8 de dezembro de 2011. Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas. Diário Oficial da União 2011; 9 dez. que deu origem ao “Programa Crack é Possível Vencer” em 2011, este com investimento financeiro substancial e com ações que envolveram diretamente as políticas de saúde, assistência social e segurança pública e educação, trazendo como diretriz, a integração das ações dos eixos cuidado, autoridade e educação.
A perspectiva intersetorial dos documentos foi melhor explorada no presente estudo com as tipologias sistematizadas no Quadro 2. Evidenciou-se que a maioria dos documentos abordou a intersetorialidade de forma ainda incipiente (08); 06 de forma robusta e apenas 03 inexistente, já sendo, portanto, uma dimensão relevante de análise de políticas públicas.
Esta categoria é relevante não apenas pela possibilidade de ampliar as alianças intersetoriais no desenvolvimento de projetos, mas também em compreender as competências necessárias para implementar as ações, lidar com disputas políticas e pessoais por espaços de poder, novas competências e habilidades para trabalhar com novos saberes e práticas, em uma leitura transversal sobre os problemas fundantes de uma política1212. Albuquerque TIP, Sá RMPF, Araújo Júnior JLAC. Perspectivas e desafios da Política Nacional de Promoção da Saúde: para qual arena política aponta a gestão? Cien Saude Colet 2016; 21(6):1695-706.. Segundo Buss e Carvalho3030. Buss PM, Carvalho AI. Desenvolvimento da promoção da saúde no Brasil nos últimos vinte anos (1988-2008). Cien Saude Colet 2009; 14(6):2305-2316., a intersetorialidade não pode se restringir às intencionalidades retóricas nem em frágeis acordos, devendo estar sistematizada em “programas concretos dirigidos a populações concretas (...) submetidas a procedimentos de avaliação que permitam dimensionar seus impactos sobre a saúde e a qualidade de vida”.
Cabe destacar que, em 2002, a Política Nacional Antidrogas3131. Brasil. Decreto no 4.345, de 26 de agosto de 2002. Institui a Política Nacional Antidrogas (PNAD). Diário Oficial da União 2002; 27 ago. apresentou, embora insipiente, uma perspectiva ampliada entre saúde e assistência social. Em 2005, com o realinhamento da política, a integração setorial se torna mais robusta. Com a Política Nacional sobre o Álcool1717. Brasil. Decreto no 6.117, de 22 de maio de 2007. Aprova a Política Nacional sobre o Álcool, dispõe sobre as medidas para redução do uso indevido de álcool e sua associação com a violência e criminalidade, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2007; 23 maio., em 2007, a intersetorialidade e a integralidade de ações têm maior visibilidade e em 2011, o Programa “Crack é possível vencer” fez uma indução à intersetorialidade ao propor o trabalho integrado por meio de Comitês intersetoriais.
Discussão
A formulação de políticas públicas relacionadas à temática das drogas no período estudado no Brasil não identificou uma tendência linear progressista rumo ao modelo da RD/psicossocial, embora tenha predominado nas normativas. Há alternância na ênfase da segurança pública e justiça, que reafirmam o paradigma da “guerra às drogas” e na abordagem as drogas como problema de saúde publica3232. Medina MG, Nery Filho A, Von Flach PM. Políticas de Prevenção e Cuidado ao Uusário de Substâncias Psicoativas (SPA). In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 479-500.. No entanto, em todos esses setores o modelo de RD vem ganhando protagonismo principalmente, a partir de 2005, com realinhamento da Política Nacional sobre Drogas3333. Brasil. Ministério da Justiça (MJ). Secretaria Nacional sobre Drogas (SENAD). Legislação e Políticas Públicas sobre Drogas. Brasilia: MJ; 2010..
O uso de práticas de RD como estratégia importante para a saúde e o modelo de atenção psicossocial, de forma diferenciada ao modelo de doença, tem beneficiado pessoas que usam drogas, suas famílias e a comunidade por serem intervenções que se baseiam num forte compromisso com a saúde pública e os direitos humanos3434. Internacional de Redução de Danos (IHRA). “Briefing: O que é Redução de Danos? Uma posição oficial da Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA)” [Internet]. Londres; 2010. [cited 2016 Jul 27]. Available from: www.ihra.net
www.ihra.net... , cujo foco principal de suas ações é a oferta de cuidado integral reduzindo prejuízos agregados em função do uso de drogas e prevenindo aqueles ainda não instalados, sem necessariamente interferir no uso das drogas. A RD torna-se, assim, uma estratégia norteadora do cuidado, um paradigma ético, clínico e político mostrando-se mais resolutiva para os usuários de crack e outras drogas. Esta terapêutica é considerada de “baixa exigência” por não exigir a abstinência como um requisito obrigatório. Ela não é negada, apenas não entra como a única alternativa de tratamento para uso prejudicial de drogas99. Ramôa M. A desinstitucionalização da Clínica na Reforma Psiquiátrica: um estudo sobre o projeto CAPSad [tese]. Rio de Janeiro: PUC; 2005..
Tensões evidenciadas na presente análise têm como foco o modelo de doença abordado pelas CT para dependentes de drogas. Esse modelo tenta romper com a concepção de falha de caráter atribuída até então aos dependentes de álcool, a partir da concepção de doença, pois na sociedade do século XVIII comportamentos classificados como vício eram considerados sinais de fraqueza e de falha moral99. Ramôa M. A desinstitucionalização da Clínica na Reforma Psiquiátrica: um estudo sobre o projeto CAPSad [tese]. Rio de Janeiro: PUC; 2005.. O Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP)3535. Conselho Federal de Psicologia. Relatório da 4a Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. [Internet]. Brasilia: CFP; 2011. [cited 2016 Jul 27]. Available from: Disponível em http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/03/2a_Edixo_relatorio_inspecao_VERSxO_FINAL.pdf
http://site.cfp.org.br/wp-content/upload... apresentou posicionamento contrário às práticas implementadas por estas entidades diante da identificação de várias violações de direitos humanos3535. Conselho Federal de Psicologia. Relatório da 4a Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. [Internet]. Brasilia: CFP; 2011. [cited 2016 Jul 27]. Available from: Disponível em http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/03/2a_Edixo_relatorio_inspecao_VERSxO_FINAL.pdf
http://site.cfp.org.br/wp-content/upload... . A partir dos documentos da “Saúde Mental em Dados 12” do MS3636. Brasil. Ministério da Saude (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde Mental em Dados. Brasília: MS; 2015. e do Censo de Comunidades terapêuticas3737. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Centro de Ecologia. Censo das Comunidades Terapêuticas, 2011. - Pesquisa Google [Internet]. 2011. [cited 2016 Jul 27]. Available from: https://www.google.com.br/search?q=SENAD%2C+CPDA%2FHCPA%2FLABGEO%2FUFRGS+%E2%80%93+Censo+das+Comunidades+Terap%C3%AAuticas%2C+2011.&ie=utf-8&oe=utf-8&client=firefox-b-ab&gfe_rd=cr&ei=awqZV7zWOO2p8wemyK64Bw#q=Censo+das+Comunidades+Terap%C3%AAuticas%2C+2011.
https://www.google.com.br/search?q=SENAD... observou-se que os dispositivos de base comunitária como os Centros de Atenção Psicossocial para AD (CAPS-AD) tiveram menor investimento do que as CT. Em 2011 existiam 277 CAPS-AD em comparação a 1179 CT.
No campo jurídico, mesmo a partir da lei 11.3431616. Brasil. Presidência da República. Lei no 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD, prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 24 ago. que supostamente fez distinção entre usuários de drogas e traficantes, não há descriminalização, nem despenalização de qualquer droga; porte para uso continua sendo crime, porém não prevê mais a pena de privação de liberdade (prisão), mas sim o cumprimento de penas alternativas: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo3838. Brasil. Ministério da Justiça. Atuação policial na proteção dos direitos humanos de pessoas em situação de vulnerabilidade: cartilha [Internet]. 2013 [cited 2016 Jul 25]. Available from: https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/seguranca-publica/cartilhas/a_cartilha_policial_2013.pdf
https://www.justica.gov.br/central-de-co... . Apesar dessa Lei, houve um aumento da taxa de encarceramento do País por porte de drogas. Dados do InfoPen (2013) informam 574.027 pessoas presas, sendo 146.276 devido ao tráfico de entorpecentes referente ao Art. 33 da Lei nº 11.3431616. Brasil. Presidência da República. Lei no 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD, prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 24 ago. com crescimento de aproximadamente 317,9%, passando de 74 para 300,96%3939. Conectas. Mapa das Prisões. [Internet]. Conectas; 2014. [cited 2016 Jun 28]. Available from: Disponível em http://www.conectas.org/pt/noticia/25378-mapa-das-prisoes#.
http://www.conectas.org/pt/noticia/25378... .
Neste artigo discutimos o processo normativo das políticas sobre drogas no Brasil no âmbito do SUS. O caráter incremental da política na direção da atenção psicossocial de base comunitária, proteção dos direitos individuais dos usuários e abordagem multidisciplinar e intersetorial é bem destacado. Não foi aqui realizada a análise do processo decisório e sim o delineamento das tendências em curso no debate e o conflito de ideias.
Entretanto, cabe ressaltar que diversas tradições teóricas orientam a análise de processos decisórios em políticas públicas. São relevantes as ações de especialistas governamentais, de instituições de ensino e pesquisa e de grupos de defesa de setores sociais vulneráveis, como na forma de coalizões de defesa. Além disso, em contraposição, grupos de veto desempenham papel importante para os desfechos e as trajetórias das políticas. Estudos de caráter multidisciplinar têm sido utilizados para investigar mecanismos pelos quais informações são transmitidas a governos e que afetam seus processos decisórios4040. Ribeiro JM, Inglez-Dias A. Ribeiro JM, Inglez-Dias A. Policy analysis and governance innovations in the federal government. In: Policy Analysis in Brazil. Bristol: Policy Press; 2013. p. 13-26. e as políticas orientadas a drogas são bastante sensíveis a fluxos de informação por especialistas e grupos de interesses neste formato.
Em instituições governamentais onde setores políticos e especialistas compartilham as arenas decisórias com lideranças e grupos de interesses ativos, Kingdom4141. Kingdom J. Agendas, alternatives and public policies. 2nd ed. Boston: Longman; 2011. identifica fluxos decisórios em que atuam agentes empreendedores, os quais perante determinadas janelas de oportunidades e condições favoráveis de opinião pública podem estabelecer uma articulação conjuntural virtuosa capaz de produzir a inovação e a mudança política. Estudo recente promoveu uma importante atualização destas tradições teóricas para o caso brasileiro em termos de conceitos e métodos4242. Vaitsman J, Lobato L, Andrade G. Professionalization of policy analysis in Brazil. In: Lobato L, Ribeiro JM, Vaitsman J, editors. Policy Analysis in Brazil. Bristol: Policy Press; 2013. p. 13-26. e que podem orientar uma vigorosa agenda de pesquisas sobre políticas de drogas no Brasil.
Em termos conjunturais, alguns eventos no plano jurídico podem afetar a trajetória da política aqui analisada. Atualmente, se encontra no Supremo Tribunal Federal o debate da descriminalização das drogas, com o Recurso Extraordinário nº 635659/2015 que ainda não foi aprovado em agosto de 2016. No entanto, encontra-se em cheque a Política do Ministério da Saúde para atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas, norteada pela RD, devido as mudanças dos dirigentes dos Ministérios da Justiça, da Saúde e do Desenvolvimento Social. Há sinais de uma perspectiva conservadora na área de políticas de drogas, a partir de 2016, retomando o paradigma da guerra às drogas centrado na repressão da oferta e com uma política de cuidado e tratamento às pessoas com UPD baseado no modelo de doença presente nas CT, em detrimento ao modelo psicossocial da RAPS4343. PBDB. Nota do PBPD - Nota da Plataforma Brasileira de Política de Drogas sobre a política de drogas no governo interino. [Internet]. 2016. [cited 2016 Jun 20]. Available from: http://pbpd.org.br/wordpress/?p=3959
http://pbpd.org.br/wordpress/?p=3959... . Cabe lembrar que o Estado brasileiro é laico e democrático e, por isso, não deverá, a pretexto de tratamento, impor crença religiosa a nenhum de seus cidadãos. Compete ao Estado respeitar e promover a cidadania dos usuários, recusando todas as propostas que violem seus direitos, como a internação compulsória e a restrição da liberdade como método de tratamento. As CT, apesar de fazerem parte da RAPS não compartilham dos mesmos critérios éticos e técnicos, pois não trabalham com a noção de território, com o conceito de saúde ampliada, nem com critérios de acolhimento pautados na lógica da RD.
Considerações finais
O Relatório global sobre Descriminalização de Drogas4444. Eastwood N, Fox E, Rosmarin A. A Quiet Revolution: drug decriminalisation across the globe. Geneva: World Health Organization; 2016., de 2016, aponta os danos provocados pela criminalização: aumento da população prisional, aumento de doenças infectocontagiosas e contribuição para o aumento do número de mortes relacionadas às drogas que, em 2013, chegou perto de 200 mil no mundo. Devido a esses danos, o paradigma do proibicionismo tem sido bem debatido em nível global. A RD, como medida de saúde pública tem sido considerada como a abordagem mais adequada ao problema das drogas com respeito aos direitos humanos. Nos últimos 15 anos, uma nova onda de países rumou em direção ao modelo descrimininalizatório das drogas sugerindo um reconhecimento em nível global das falhas da abordagem criminalizatória e reforçando uma vertente política em direção a uma guinada histórica de paradigma4444. Eastwood N, Fox E, Rosmarin A. A Quiet Revolution: drug decriminalisation across the globe. Geneva: World Health Organization; 2016.. Esta abertura tem ocorrido em vários países com penas mais brandas aos usuários de drogas visando economia de custos4444. Eastwood N, Fox E, Rosmarin A. A Quiet Revolution: drug decriminalisation across the globe. Geneva: World Health Organization; 2016.. A descriminalização tem consonância com o modelo de atenção psicossocial porque auxilia o encaminhamento dos usuários de drogas para tratamento, diminuindo muito a sua estigmatização e os protege do impacto devastador da condenação criminal.
Conclui-se que as políticas sobre drogas não deveriam ter como foco somente o seu uso ou na tentativa de eliminar a sua produção como direciona a política proibicionista, mas sim, em investir na educação com informação nítida sobre seus efeitos para que os sujeitos possam usar drogas sem causar maiores danos à sua vida, e para aqueles que fazem uso prejudicial, seja garantido acesso ao cuidado no modelo da atenção psicossocial, a partir da premissa da RD.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Maio 2017
Histórico
- Recebido
03 Jul 2016 - Revisado
12 Set 2016 - Aceito
01 Dez 2016