Resumo
Este estudo analisou a implementação da Política de Saúde Bucal no Brasil de 2003 a 2014, caracterizando cenários, ações institucionais do poder executivo nos componentes do sistema de saúde em três governos. Realizou-se análise documental das tomadas de decisão da Coordenação Geral de Saúde Bucal do Ministério da Saúde através de documentos de setores estratégicos do governo disponíveis nos sítios da internet, como portal da transparência e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Este estudo apontou crescimento na oferta e cobertura potencial de serviços públicos odontológicos entre 2003 e 2006 e certa manutenção nos períodos 2007-2010 e 2011-2014. Houve ampliação do financiamento nominal, infraestrutura e recursos humanos. Os recursos repassados para estados e municípios passaram de 83,4 milhões em 2003 para 916 milhões em 2014, aumento de 10,9 vezes no período. O uso dos serviços odontológicos no SUS entre 2003-2008 manteve-se constante em torno de 30%. Houve aumento do uso dos serviços odontológicos privados (64,4% em 2003, 69,6% em 2008 e 74,3% em 2013). O componente do modelo de atenção foi o menos abordado nos três governos, constituindo-se em lacuna com repercussões nos resultados requerendo adoção de medidas futuras por parte dos gestores.
Política de saúde; Saúde bucal; Assistência odontológica; Serviços de saúde
Introdução
No Brasil, a partir de 2003, observou-se uma mudança na resposta do Estado em relação à política de saúde bucal, que saiu de uma posição secundária, passando a assumir uma de destaque e priorização na agenda governamental11. Machado CV, Baptista TWF, Nogueira CO. Políticas de saúde no Brasil nos anos 2000: a agenda federal de prioridades. Cad Saude Publica 2011; 27(3):521-532.. A Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), denominada Brasil Sorridente, publicada em 2004 e ainda em vigor, tem como principais eixos: a reorganização da atenção básica, especialmente por meio das Equipes de Saúde Bucal da Estratégia Saúde da Família (ESB/ESF); a organização da atenção especializada, através da implantação de Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) e Laboratórios Regionais de Próteses Dentárias (LRPD); a promoção e a proteção da saúde, através da educação em saúde, a realização de procedimentos coletivos e a fluoretação das águas de abastecimento público; e a vigilância em saúde bucal, na perspectiva do monitoramento das tendências, por meio da realização de estudos epidemiológicos periódicos22. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Coordenação Geral de Saúde Bucal. 2004. [acessado 2015 fev 20]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/cisb/doc/politica_nacional.pdf
http://conselho.saude.gov.br/web_comisso... . Em janeiro de 2014, os 10 anos do Brasil Sorridente foram comemorados no 32o Congresso Internacional de Odontologia de São Paulo (CIOSP), principal congresso nacional e de negócios de todo o setor odontológico no Brasil.
Os estudos publicados analisam alguns destes eixos, especialmente a implementação da saúde bucal na ESF33. Baldani MH, Fadel CB, Possamai T, Queiroz MGS. A inclusão da odontologia no Programa Saúde da Família no Estado do Paraná, Brasil. Cad Saude Publica 2005; 21(4):1026-1035.
4. Pereira CRS, Patrício AAR, Araújo FAC, Lucena EES, Lima KC, Roncalli AG. Impacto da Estratégia Saúde da Família com equipe de saúde bucal sobre a utilização de serviços odontológicos. Cad Saude Publica 2009; 25(5):985-996.-55. Pereira CRS, Roncalli AG, Cangussu MCT, Noro LRA, Patrício AAR, Lima, K.C. Impacto da Estratégia Saúde da Família sobre indicadores de saúde bucal: análise em municípios do Nordeste brasileiro com mais de 100 mil habitantes. Cad Saude Publica 2012; 28(3):449-462. e também dos CEO66. Figueiredo N, Goes PSA. Construção da atenção secundária em saúde bucal: um estudo sobre os Centros de Especialidades Odontológicas em Pernambuco, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(2):259-267.
7. Chaves SCL, Cruz DN, Barros SG, Figueiredo AL. Avaliação da oferta e utilização de especialidades odontológicas em serviços públicos de atenção secundária na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(1):143-154.-88. Goes PSA, Figueiredo N, Neves JC, Silveira FMM, Costa JFR, Pucca Junior GA, Rosales MS. Avaliação da atenção secundária em saúde bucal: uma investigação nos centros de especialidades do Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(Supl.):s81-s89., e evidenciam a persistência das desigualdades regionais99. Antunes JLF e Narvai PC. Políticas de saúde bucal no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Rev Saude Publica 2010; 44(2):360-365.,1010. Baldani MH, Antunes JLF. Inequalities in access and utilization of dental services: a cross-sectional study in an area covered by the Family Health Strategy. Cad Saude Publica 2011; 27(2):272-283.. Os resultados dos estudos apontam para desafios no financiamento1111. Pucca-Jr GA, Lucena EHG, Cawahisa PT. Financing national policy on oral health in Brazil in the context of the Unified Health System. Brazilian Oral Research 2010; 24(Supl. 1):26- 32.,1212. Kornis GEM, Maia LS, Fortuna RFP. Evolução do financiamento da atenção à saúde bucal no SUS: uma análise do processo de reorganização assistencial frente aos incentivos federais. Physis Rev Saude Col 2011; 21(1):197-215., na implementação das ações coletivas1313. Carvalho LAC, Scabar LF, Souza DS, Narvai PC. Procedimentos coletivos de saúde bucal: gênese, apogeu e ocaso. Saude Soc. 2009; 18(3):490-499. e também para a importância do governo local no fazer da política de saúde bucal1414. Chaves SCL, Vieira-da-Silva L. Atenção à saúde bucal e a descentralização da saúde no Brasil: estudo de dois casos exemplares no Estado da Bahia. Cad Saude Publica 2007; 23(5):1119-1131.
15. Soares CL, Paim JS. Aspectos críticos para implementação da política de saúde bucal no município de Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(5):966-974.
16. Cunha BAT, Marques RAA, Castro CGJ, Narvai PC. Saúde bucal em Diadema: da odontologia escolar à estratégia saúde da família. Saude Soc. 2011; 20(4):1033-1045.-1717. Aquilante AG, Aciole GG. Oral health care after the National Policy on Oral Health - “Smiling Brazil”: a case study. Cien Saude Colet 2015; 20(1):239-248..
A maioria das investigações revisadas apresenta uma abordagem quantitativa, focada na descrição e análise de indicadores de cobertura e utilização dos serviços de saúde e do estado de saúde e outras variáveis associadas33. Baldani MH, Fadel CB, Possamai T, Queiroz MGS. A inclusão da odontologia no Programa Saúde da Família no Estado do Paraná, Brasil. Cad Saude Publica 2005; 21(4):1026-1035.,44. Pereira CRS, Patrício AAR, Araújo FAC, Lucena EES, Lima KC, Roncalli AG. Impacto da Estratégia Saúde da Família com equipe de saúde bucal sobre a utilização de serviços odontológicos. Cad Saude Publica 2009; 25(5):985-996.,66. Figueiredo N, Goes PSA. Construção da atenção secundária em saúde bucal: um estudo sobre os Centros de Especialidades Odontológicas em Pernambuco, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(2):259-267.,77. Chaves SCL, Cruz DN, Barros SG, Figueiredo AL. Avaliação da oferta e utilização de especialidades odontológicas em serviços públicos de atenção secundária na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(1):143-154.. Os diferentes períodos de governo, com o mapeamento dos atores governamentais e das decisões emanadas do Poder Executivo, ainda não estão sistematizados.
O presente estudo analisou as mudanças da política de saúde bucal no Brasil no período entre 2003 e 2014, descrevendo os cenários deste espaço nos diferentes governos, caracterizando o quadro epidemiológico, o mercado de trabalho e a formação profissional, além dos dados de utilização de serviços odontológicos públicos e privados. Por fim, foram identificadas as principais propostas e ações institucionais do poder executivo na Política Nacional de Saúde Bucal em cada período de governo entre 2003 e 2014.
Metodologia
Foi realizada uma análise documental sobre o desenvolvimento da política de saúde bucal no período de 2003 a 2014 no Brasil, adotando, para fins de comparação e análise, o modelo do ciclo da política pública1818. Kingdon J. Agendas, alternatives, and public policies. New York: Logman; 1995., especialmente na fase de implementação1919. Fisher F, Miller GJ, Sidney MS. Handbook of public policy analysis: theory, politics, and methods. Boca Raton: CRC Press; 2007. Part II policyprocess..
Foram identificados os atores governamentais e não governamentais. Os atores governamentais se referem aos que conformam a administração, incluindo o presidente e sua equipe, funcionários e cargos políticos em departamentos de governo. Os atores não governamentais são os grupos de interesse, como pesquisadores, sindicatos, corporações profissionais, associações de interesse público e empresários1818. Kingdon J. Agendas, alternatives, and public policies. New York: Logman; 1995.. Entre os atores não governamentais (associações e movimentos), identificou-se o Conselho Federal de Odontologia (CFO), a Associação Brasileira de Odontologia (ABO), a Associação Brasileira de Saúde Bucal Coletiva (Abrasbuco), a Federação Nacional de Odontologistas (FNO) e a Federação Interestadual dos Odontologistas (FIO). Este estudo se ateve às tomadas de decisão do ator governamental, a Coordenação Geral de Saúde Bucal do Ministério da Saúde (CGSB) no período estudado.
Para caracterização do cenário da saúde bucal (perfil epidemiológico, mercado de trabalho, oferta/disponibilidade de serviços públicos e utilização de serviços odontológicos públicos e privados) foram utilizados como fontes de dados principais os documentos produzidos por setores estratégicos do governo disponíveis nos sítios da internet, com publicações da área odontológica, como: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Ministério da Saúde (Sala de Gestão Estratégica e DATASUS), além do Conselho Federal de Odontologia (Quadro 1).
Para análise das tomadas de decisão da CGSB no período estudado (propostas, ações institucionais implementadas e resultados), apresentados no Quadro 2, foram pesquisados respectivamente: 1) Atas do Conselho Nacional de Saúde, onde as metas eram apresentadas e o site Ministério da Saúde (Diretoria da Atenção Básica/CGSB), 2) Portarias e normas publicadas no Diário Oficial da União e 3) Relatórios dos Inquéritos Epidemiológicos Nacionais (SB Brasil 2003 e SB Brasil 2010) e também séries históricas de produção ambulatorial obtidas no DATASUS/TABNET.
As propostas e as ações institucionais da agenda executiva nos três mandatos presidenciais analisados, governos Lula I (2003-2006), Lula II (2007-2010) e Dilma I (2010-2014), implementadas pela CGSB, foram categorizadas de acordo com os componentes do sistema de serviços de saúde, adaptado de Souza e Bahia2222. Souza LE, Bahia L. Componentes de um sistema de serviços de saúde: população, infra-estrutura, organização, prestação de serviços, financiamento e gestão. In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Med Book; 2013. p. 49-68., a saber: infraestrutura (estabelecimentos, equipamentos, medicamentos e conhecimento) e recursos humanos (os trabalhadores da saúde); financiamento (aporte financeiro ao programa no orçamento federal, bem como na Seguridade Social, seguro social e seguro privado); gestão e organização (organização dos serviços e redes e execução de ações e programas); e modelo de atenção (forma como é feita a prestação de serviços e os processos de trabalho dos profissionais de saúde, configurando modelos baseados no acolhimento, demanda ou nas necessidades da população) (Quadro 2).
Para análise do orçamento federal, foram pesquisadas as leis de orçamento anual e seus anexos, quanto aos recursos alocados para ações e atividades voltadas à saúde bucal, na função 010, relativa à saúde, disponíveis nos sítios www.orcamentofederal.gov.br e www.planalto.gov.br.
Foi calculado o crescimento percentual de equipes de saúde bucal na ESF e de Centros de Especialidades Odontológicas em cada período de governo a partir da diferença entre o número de equipes e centros especializados no primeiro e último ano de cada período de governo (Lula I, Lula II e Dilma I). A oferta foi considerada como disponibilidade de recursos e a cobertura das ESB foi avaliada como cobertura potencial, ou seja, a proporção da população que potencialmente é beneficiada pela intervenção2323. Vieira-da-Silva LM. Avaliação de Políticas e Programas de Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014. Temas em Saúde Coletiva. (Quadro 1). O cálculo do crescimento nominal do financiamento para a saúde bucal foi feito comparando-se o valor do ano de 2015 dividido pelo valor nominal aplicado em 2003.
A categoria definida como ‘resultados da política’ analisou a cobertura da primeira consulta odontológica no sistema público de saúde, como proxy do aumento da utilização dos serviços nessa esfera. A cobertura da primeira consulta odontológica programática foi aquela do último ano de cada período de governo, conforme apresentada na Figura 1. A tendência da proporção do componente restaurado no índice de Dentes Cariados, Perdidos e Obturados/Restaurados (CPO-D) nos inquéritos epidemiológicos nacionais, como proxy do acesso à atenção restauradora foi complementar na análise. Foi também analisada a produção de ações especializadas em odontologia no sistema público, com foco no tratamento endodôntico nos três períodos de governo.
Crescimento % de Equipes de Saúde Bucal na ESF e de Centros de Especialidades Odontológicas por período de governo e cobertura % da primeira consulta odontológica no SUS em 2006, 2010 e 2014 entre 2003 - 2014. Brasil.
Resultados
O cenário da saúde bucal
O Quadro 1 apresenta o cenário da saúde bucal nos três períodos de governo. No final da década de 1990, a severidade da cárie dentária entre escolares aos 12 anos (CPO-D 6,7) e o edentulismo em adultos era muito alto (72% da população urbana analisada na faixa de 50-59 anos já haviam extraído todos os dentes de pelo menos um maxilar), o que valeu ao Brasil o apelido de “o país dos banguelas”. Este cenário epidemiológico apresentou modificações a partir do século XXI, caracterizadas em estudo de abrangência nacional, enfocando especialmente a severidade da cárie e a perda dental relacionada, que observou uma tendência de redução da doença cárie entre escolares (12 anos) e adultos jovens (15-19 anos). A média da perda dental atingiu 25,8 dentes entre idosos de 65-74 anos em 2003.
Em 2010, último inquérito disponível apontou tendência de redução da cárie dentária entre escolares e adolescentes, mas entre os pré-escolares (05 anos) ainda não se atingiu a meta de 50% da população livre de cárie. Entre os adultos houve discreta redução na severidade de cárie (CPO-D 17,2), mas entre os idosos permaneceu sem alterações (CPO-D 27,5). A perda dental permaneceu extremamente elevada entre adultos e idosos, em que 53,7% dos brasileiros entre 65-74 anos são desdentados e 22,4% entre 35-44 anos já não possuem dentição funcional (menos de 21 dentes presentes na boca). Ou seja, o quadro é de redução da cárie entre os mais jovens, mas permanência de perda dental entre adultos e idosos. As desigualdades regionais segundo desenvolvimento humano são importantes, onde a maior severidade da cárie dentária está em cidades do interior do norte e nordeste, seguido pelas capitais da região norte.
Quanto ao mercado de trabalho odontológico, o número de cirurgiões-dentistas (CD) no Brasil passou de 201,1 mil em 2005 para 219,6 mil em 2009. Estima-se uma proporção de CDs no SUS em torno de 27-30% durante o período de 2003-20062020. Morita MC, Haddad AE, Araújo ME. Perfil Atual e Tendências dos Cirurgião-Dentista Brasileiro. Maringá: Dental Press; 2010.. No período governamental correspondente ao segundo mandato do Presidente Lula, 27% dos CD possuíam vinculação com o SUS. No final do governo Dilma I (2014), o CFO registrou 264,5 mil profissionais, sendo aproximadamente 30% vinculados ao sistema público (Quadro 1).
Com relação à formação profissional, houve aumento gradual e constante na abertura de Faculdades de Odontologia no período estudado, em especial de cursos em faculdades privadas, passando de 170 (113 privadas, 68,8% do total) em 2003 para 203 (148 privadas, 72,9% do total) em 2012, com um aumento de 19,4% em quase 10 anos.
O percentual de CDs com renda média na faixa de 4.000 a 5.000 mil reais/mês apresentou discreto aumento entre os anos de 2003 a 2007, passando de 5% (2003) para 9% (2007)2020. Morita MC, Haddad AE, Araújo ME. Perfil Atual e Tendências dos Cirurgião-Dentista Brasileiro. Maringá: Dental Press; 2010.. Com relação ao período do governo Dilma I, não houve uma pesquisa específica sobre a renda do CD, mas em 2013 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou que os dentistas teriam um salário médio de 4.238,65 reais (Quadro 1). Deve-se considerar, contudo, que entre 2003 e 2007 houve aumento do salário mínimo (de R$ 240,00 para R$ 380,00). Portanto, os dados não apontam um aumento da proporção de dentistas que passaram para uma melhor faixa salarial, mas sim a redução da remuneração em relação ao salário mínimo. Em 2003, R$ 4.000,00 representavam mais de 16 salários mínimos. Em 2013, R$ 4.238,65, representavam apenas 6,3 salários.
Ao final do governo Lula I, 15.086 ESB foram implantadas, com cobertura de 40% da população, representando 254,0% de aumento em relação ao último ano do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (2002), que criou o incentivo para a implantação das ESB/ESF no final de 2000. Em 2010, alcançou-se 20.424 ESB, com cobertura de 34% da população (35,4% de aumento em relação a 2006), 853 CEO em funcionamento (aumento de 71,3% em relação a 2006) e 676 LRPD implantados (Figura 1). A menor cobertura observada, apesar do aumento do número de equipes, pode ter relação com a base populacional utilizada, baseada em censo demográfico. Em 2014, observaram-se 24.243 ESB implantadas, com cobertura de 38% da população, mas com 18,7% de aumento em relação ao último ano do segundo mandato do governo Lula (Figura 1).
Quanto aos centros especializados, após dois anos da publicação da portaria que habilitou sua implantação (2004), havia 498 CEOs em funcionamento (aumento de 398% em dois anos). Os CEOs chegaram a 1030 no final de 2014, com aumento de 20,8% em relação a 2006. A oferta de próteses pelo serviço público odontológico avançou. No final de 2014, já eram 1.995 LRPD, o dobro do final do governo Lula II.
A análise da utilização de serviços odontológicos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) em 2003 revelou que 15,9% da população brasileira (27,9 milhões) nunca havia ido ao dentista, sendo este valor reduzido para 11,7% (22,1 milhões) na PNAD 2008. Na PNAD, em 2003, entre os que utilizaram serviços odontológicos, 30,7% utilizaram os serviços do SUS. Já a PNAD de 2008 apontou que 29,7% dos indivíduos que buscaram serviço odontológico utilizaram o SUS, demonstrando uma manutenção no percentual da população que procurou os serviços odontológicos públicos. A maioria dos entrevistados (64,4%) utilizou a rede particular, sendo que 48,2% por meio de desembolso direto e 16,2% por meio de plano de saúde no ano de 2003. Já em 2008, essa proporção foi de 69,6%, sendo 53,5% por meio de desembolso direto e 17,1% por meio de plano de saúde. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2013, divulgada em 2015 pelo IBGE, ainda que com metodologia relativamente distinta já que teve como base a utilização de serviços odontológicos nos últimos doze meses, enquanto na PNAD foi calculada com base nos últimos 15 dias, revelou que a utilização dos serviços odontológicos privados foi de 74,3% e as Unidades Básicas de Saúde foram utilizadas por apenas 19,6% da população. Apontou também desigualdades na utilização conforme nível de escolaridade, em que entre os mais escolarizados esta utilização no último ano foi de 67,4% e entre os sem instrução, 36,6%. Observa-se, portanto, a tendência de aumento da utilização de serviços privados, com grande desigualdade entre classes sociais (Quadro 1).
Propostas e ações institucionais do executivo
O Quadro 2 apresenta as principais propostas e ações institucionais da agenda executiva, considerando a fase de implementação da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), nos distintos componentes do sistema de saúde.
No governo Lula I, na perspectiva do componente gestão e organização, foi criado o Comitê Técnico Assessor da Coordenação Geral de Saúde Bucal (CGSB), com objetivo de definir instrumentos técnicos e normativos que orientassem a elaboração e o desenvolvimento de ações de atenção à saúde bucal, bem como foram formuladas as Diretrizes da PNSB22. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Coordenação Geral de Saúde Bucal. 2004. [acessado 2015 fev 20]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/cisb/doc/politica_nacional.pdf
http://conselho.saude.gov.br/web_comisso... , contemplando quatro principais eixos: ampliação e qualificação das Equipes de Saúde Bucal (ESB), criação dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), ampliação da fluoretação das águas de abastecimento público e a vigilância da saúde bucal (monitoramento de indicadores).
No governo Lula II configuraram-se “novos arranjos” à política por meio da instituição da Unidade Odontológica Móvel (UOM) (2009), a possibilidade de vínculo das ESB às Equipes de Agentes Comunitários de Saúde (AECS) (2009) e a criação de novos procedimentos possíveis de serem realizados no CEO (2010).
Ainda nesse primeiro mandato, buscou-se a equiparação da implantação de ESB e ESF, estabelecendo a possibilidade da proporção de uma ESB para cada ESF, como forma de garantir a saúde bucal na atenção primária. Com relação à fluoretação das águas, houve também a regulamentação do valor máximo de fluoreto por mg/L de água. Na atenção especializada foram estabelecidos critérios, normas e requisitos para implantação e habilitação dos CEOs e Laboratórios Regionais Próteses Dentárias (LRPD), o que possibilitou a configuração de um atendimento público especializado no âmbito da atenção em saúde bucal.
No segundo governo subsequente (2007-2010), destacam-se a criação da Comissão Intersetorial de Saúde Bucal para assessoramento do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nos assuntos referentes à saúde bucal e a inserção da CGSB na estrutura do Ministério da Saúde. Infere-se assim a definição das atribuições da CGSB na gestão e organização da Política Nacional de Saúde Bucal.
No governo Dilma I (2010 a 2014) pode-se destacar a criação do Brasil Sorridente Indígena, ampliando as ações da PNSB também para a população indígena, a inclusão da Saúde Bucal no Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, além da instituição do componente GraduaCEO - BRASIL SORRIDENTE, no âmbito da Política Nacional de Saúde Bucal com objetivo de compor a Rede de Atenção à Saúde (RAS).
Em relação ao financiamento, enfatizam-se as ações institucionais do Governo Lula I, em 2005, atividade orçamentária específica foi criada intitulada atenção à saúde bucal, detalhadas em atenção básica em saúde bucal e atenção especializada em saúde bucal, no ano seguinte, garantindo legitimidade à PNSB para execução das ações, o reajuste de 20% no valor do incentivo de implantação repassado para as ESB, além da determinação do financiamento para o CEO e próteses dentárias. No período seguinte (2007-2010), foram instituídos reajustes de valores de custeio das ESB, das próteses dentárias e implantação do CEO e o financiamento da atenção em saúde bucal no nível hospitalar.
Ao analisar os repasses da união para estados e municípios, observou-se um aumento expressivo no período. Estes passaram 83,4 milhões em 2003 para mais de 916 milhões em 2014, aumento de 10,9 vezes no período. Em termos de valores transferidos para a atenção primária à saúde bucal, estes foram de 81,5 milhões em 2003, e chegaram a 364,3 milhões em 2006. Em 2010, o investimento na atenção especializada chegou a 81,1 milhões de reais. No final do primeiro governo Dilma, os valores transferidos para as ESB/ESF chegaram a 721,7 milhões de reais (Tabela 1).
Quanto à infraestrutura, conforme já destacado na implementação da política pública pelo aumento da oferta/disponibilidade de serviços odontológicos (Quadro 1), destaca-se a criação dos estabelecimentos de referência para a atenção especializada em saúde bucal (CEO I e CEO II) e habilitação dos laboratórios de próteses dentárias, no primeiro mandato do presidente Lula. No governo posterior houve a criação do plano de fornecimento de equipamentos odontológicos para as ESB/ESF e inserção da saúde bucal e prótese dentária entre as áreas técnicas prioritárias do programa de formação de profissionais de nível médio para a saúde. Em 2006, dois anos após a publicação da portaria que recomendava a implantação dos centros especializados, 498 CEO já estavam em funcionamento, significando um aumento de 398%. Em 2011, o cirurgião-dentista foi inserido no Programa de Valorização da Atenção Básica (PROVAB) (Quadro 2).
Este expressivo crescimento do número de estabelecimentos básicos e especializados com consequente contratação de cirurgião-dentista (CD) e pessoal auxiliar, no primeiro período de governo analisado (2003-2006), não se sustentou no decorrer dos dois mandatos subsequentes. Em 2010, os números da PNSB chegaram a 20.424 ESB (35,4% de aumento em relação a 2006), 853 CEO em funcionamento (71,3% de aumento em relação a 2006) e 676 LRPD implantados. No governo Dilma I o percentual de crescimento das ESB atingiu 18,7% e dos CEO 20,8% comparando ao governo anterior (Figura 1). Portanto, no mandato Dilma 1 notou-se certa “perda de fôlego” na ampliação da política, mesmo diante de um avanço na oferta de próteses pelo serviço público odontológico, que ao final de 2014, totalizou 1995 LRPD.
Os procedimentos denominados “ações especializadas em odontologia” somaram 6,1 milhões em 2002, aumentando para 7,3 milhões em 2006, correspondendo a um crescimento de 18,3% no período entre 2002 e 2006. Ressalta-se que houve mudança na denominação no DATASUS a partir de 2008, passando para o termo “tratamento odontológico de média e alta complexidade”, portanto, são comparáveis, em termos de produção ambulatorial, dados obtidos apenas a partir deste período. Neste grupo, em 2010, foram 3,2 milhões de procedimentos realizados. No final do governo Dilma I, somou 3,7 milhões, apontando para um crescimento de 15,3% entre 2010 e 2014. Este crescimento apresentou-se consistente, considerando o aumento de apenas 20,8% de centros especializados no período do governo Dilma I. No caso dos tratamentos endodônticos, indicador sensível do acesso a serviços odontológicos especializados, apenas os dois últimos governos são comparáveis em termos de produção ambulatorial também pela mudança de codificação do procedimento. Assim, realizaram-se 635,3 mil procedimentos endodônticos em 2010 e 633,5 mil em 2014, caracterizando uma redução de 0,29%.
Além disso, é importante mencionar que desde a publicação das diretrizes da PNSB, a CGSB vem firmando contratos e convênios com diversas instituições de ensino para estudos sobre saúde bucal, o que demonstra, de certa forma, determinada articulação da burocracia estatal com pesquisadores no que se refere ao fomento da investigação e cooperação técnica nessa área.
Em relação ao modelo de atenção, no governo Lula II, pode ser incluído o Programa Saúde na Escola (PSE), em 2007, uma política intersetorial que contemplou mudanças no modelo de atenção em saúde bucal voltado para o público escolar.
O governo Dilma I investiu na articulação da saúde bucal com o Programa Saúde na Escola, na implementação do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica e dos CEOs (PMAQ/PMAQ-CEO) com objetivo de melhorar a qualidade do cuidado no incentivo à autoavaliação das ESB e CEOs e posterior certificação, além da instituição do componente da política, intitulado como GraduaCEO. Pode-se notar que o componente do modelo de atenção foi pouco enfatizado, com resultados nos indicadores dos serviços públicos odontológicos aquém daqueles da ampliação da oferta.
A cobertura da primeira consulta odontológica era de 13,1% da população em 2003, foi de 12,5% em 2006, chegou a 13,6% em 2010 e de 12,8% em 2014. Estas somaram neste ano de 2014, 26.199.247 milhões (0,6% de aumento em relação a 2010). Ou seja, observou-se estabilização desse indicador ainda que a oferta de serviços através das ESB e dos centros especializados tenha se ampliado no período (Figura 1). A análise desse indicador antes dos anos 2000 (ano da inserção do CD na ESF) mostra que não houve alteração, já que este era de 12,6% em 1998, muito próximo do valor apurado em 2014 de 12,8% de cobertura.
Discussão
Verificou-se crescimento na oferta e cobertura potencial de serviços públicos odontológicos entre 2003 e 2006 e certa manutenção nos períodos subsequentes, 2007-2010 e 2011-2014. Desta constatação, pode-se supor que nesse caso específico, conforme afirma Testa2424. Testa M. Pensar em saúde. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992., os propósitos de governo definidos enquanto legitimação, crescimento ou transformação, foram de crescimento como elemento principal, sem transformações da estrutura de poder na saúde bucal nos governos Lula I, Lula II e Dilma I.
Por outro lado, a implementação bem sucedida de uma política dependeria de alguns fatores como transferência do projeto formulado para equipes de governo capazes de implementá-la, sua formulação clara e alocação de recursos associada à boa coordenação pelos atores governamentais na sua execução1919. Fisher F, Miller GJ, Sidney MS. Handbook of public policy analysis: theory, politics, and methods. Boca Raton: CRC Press; 2007. Part II policyprocess.. Há indícios de que a implementação ocorreria mais “de cima para baixo” do que o contrário, refletindo valores e interesses das burocracias estatais2525. Walt G, Shiffman J, Scheneider H, Murray SF, Brugha R, Gilson L. Doing’ health policy analysis: methodological and conceptual reflections and challenges. Health Policy Plan 2008; 23(5):308-317.. No presente estudo, essa condição se confirmou já que o principal responsável pela política foi relativamente bem sucedido nesse processo de indução para o crescimento inicial e manutenção, com a ação de um empreendedor de políticas nos três períodos2626. Rendeiro MMP. O ciclo da política de saúde bucal no Brasil no sistema de saúde brasileiro: atores, ideias e instituições [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2011.. Não foi objeto do presente artigo analisar o processo de formulação da política e a participação social no processo. Contudo, análise do documento da política mostra a incorporação de algumas premissas dos encontros da área e das Conferências Nacionais de Saúde Bucal.
O cenário aponta para uma tendência de redução da cárie dental na população brasileira, mas com manutenção de desigualdades regionais e sociais, em que os grupos mais vulneráveis e em pior situação socioeconômica apresentam mais cárie e perda dental2727. Peres KG, Peres MA, Boing AF, Bertoldi AD, Bastos JL, Barros AJD. Redução das desigualdades sociais na utilização de serviços odontológicos no Brasil entre 1998 e 2008. Rev Saude Publica 2012; 46(2):250-258.. Ainda assim, a tendência de redução global da prevalência de cárie poderá significar maior número de dentados nos anos subsequentes, com repercussões prováveis no sistema de serviços odontológicos, que deverão ser monitorados. A redução do principal agravo bucal (a cárie dentária) poderá levar a transformações nas necessidades de saúde bucal e, portanto, também na demanda por serviços. Um crescimento do número de adultos e idosos dentados pode significar maior prevalência de outros agravos, como periodontopatias, oclusopatias, etc.
O Brasil é o país com o maior número de cirurgiões-dentistas (CDs) por habitante do mundo. Bleicher2121. Bleicher L. Autonomia ou assalariamento precário? O trabalho dos cirurgiões-dentistas na cidade de Salvador [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2011. destaca que o aumento do número de CDs foi maior que o crescimento populacional. No período de 1997 a 2007, enquanto a população brasileira registrou um aumento de 18,6%, o número de cirurgiões-dentistas aumentou 114%2121. Bleicher L. Autonomia ou assalariamento precário? O trabalho dos cirurgiões-dentistas na cidade de Salvador [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2011.. Estudo divulgado em 20102020. Morita MC, Haddad AE, Araújo ME. Perfil Atual e Tendências dos Cirurgião-Dentista Brasileiro. Maringá: Dental Press; 2010. revelou que o Brasil possuía cerca de 20% dos CD do mundo, contudo, com distribuição desigual, com três estados (SP, MG e RJ) concentrando mais de 57% dos profissionais e cerca de 40% das Faculdades de Odontologia do país, sendo a maioria mulheres (54%), quadro este que se transformou ao longo de 40 anos, já que na década de 1960, quase 90% dos CD eram homens. Há que se supor, portanto, uma grande pressão dos atores não governamentais, grupos de interesse, como o CFO, ABO e sindicatos na ampliação do mercado de trabalho público para redução do desemprego na categoria profissional. É preciso investigar, portanto, como esses grupos de interesse influenciam a política no sentido da garantia de mais postos de trabalho nesse setor.
A proporção de dentistas com algum vínculo com o SUS seria em torno de 37,1%99. Antunes JLF e Narvai PC. Políticas de saúde bucal no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Rev Saude Publica 2010; 44(2):360-365.. Porém os dados governamentais referentes ao período de 2003 a 2014 apontaram variações de 29,2% em 2006 a 30,0% em 2014. Reitera-se que o aumento no número de Equipes de Saúde Bucal não se traduziu automaticamente em novos postos de trabalho, por haver realocação de CD de outros serviços públicos, conforme estudo de 1999, realizado antes da inclusão do CD na equipe de saúde da família, somente ocorrida no final de 2000, que apontou a existência de 30 mil dentistas atuando no setor público de saúde2121. Bleicher L. Autonomia ou assalariamento precário? O trabalho dos cirurgiões-dentistas na cidade de Salvador [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2011.. Neste mesmo estudo constatou-se que a maioria dos CDs possui inserção na rede privada através de diferentes formas de vinculação, novas morfologias do trabalho, desde uma autonomia típica, como aquela de aluguel de turno ou participação como pessoa jurídica, assalariamento, recebimento por porcentagem em contratos desprotegidos e, em menor proporção, proprietários.
As iniciativas das políticas públicas na saúde bucal após 2003 apresentam duas vertentes, não excludentes entre si: a oficial, que aponta que os dados dos inquéritos epidemiológicos, como o alto percentual de perda dental entre adultos e a redução da cárie dental relacionada ao acesso à fluoretação das águas de abastecimento, subsidiaram de forma relevante a construção da PNSB2828. Pucca-Jr GA. Política Nacional de Saúde Bucal como demanda Social. Cien Saude Colet 2006; 11(1):243-246.; e outra que defende que a entrada na agenda e formulação de algumas alternativas políticas resultou da atuação de distintos grupos de interesse2929. Bartole MCS. Da boca cheia de dentes ao Brasil Sorridente: uma análise retórica da formulação da política nacional de saúde bucal [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2006., com participação ativa da comunidade epistêmica, os militantes de esquerda e pesquisadores2626. Rendeiro MMP. O ciclo da política de saúde bucal no Brasil no sistema de saúde brasileiro: atores, ideias e instituições [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2011..
Boa parte das propostas da política já estava em discussão nas três Conferências Nacionais de Saúde Bucal (CNSB) realizadas anteriormente à sua implantação. A última delas, a III CNSB ocorreu em 2004 e parte de suas proposições foi incorporada na formulação da PNSB. Por um lado, os atores não governamentais, entidades de classe (Associação Brasileira de Odontologia, Conselho Federal de Odontologia, Federação Interestadual de Odontologistas e Federação Nacional dos Odontologistas) demonstraram preocupações com a garantia de mercado de trabalho; e, por outro, os militantes nas conferências nacionais dos partidos de esquerda, naquele momento do início do governo Lula I, influenciaram essa formulação2929. Bartole MCS. Da boca cheia de dentes ao Brasil Sorridente: uma análise retórica da formulação da política nacional de saúde bucal [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2006.,3030. Frazão P, Narvai PC. Saúde bucal no Sistema Único de Saúde: 20 anos de lutas por uma política pública. Revista Saúde em Debate 2009; 33(81):64-71., reconhecidos como atores da comunidade epistêmica2626. Rendeiro MMP. O ciclo da política de saúde bucal no Brasil no sistema de saúde brasileiro: atores, ideias e instituições [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 2011..
Entre as políticas de saúde bucal de países em desenvolvimento, o caso brasileiro é reconhecido pela inclusão da saúde bucal na atenção primária e pela manutenção da fluoretação das águas de abastecimento público, como importantes estratégias na redução da cárie3131. Singh A. Oral health policies in developing countries. J Public Health Policy 2010; 31(4):498-499..
Quanto à utilização de serviços odontológicos, os resultados sugerem que no SUS entre 2003-2008 manteve-se constante em torno de 30%, e observou-se aumento do uso dos privados (de 64,4% em 2003 para 74,3% em 2013). Permanece, portanto, o quadro do início da década de 2000 de dois subsistemas de saúde: um público, em expansão de oferta na infraestrutura e recursos humanos, mas com utilização estável; e outro privado que se amplia com os distintos modos de trabalho desprotegido, contudo, inferior ao aumento da oferta de profissionais no mercado de trabalho. É necessário acompanhar as tendências de ambos os subsistemas nas próximas PNADs.
A análise do cenário da saúde bucal, das propostas e ações institucionais do principal ator governamental apontou para um aumento inicial, mas posterior estabilização das ações institucionais na oferta de serviços públicos odontológicos. Cabe destacar que houve grande ênfase em todos os três períodos à ampliação da infraestrutura, com a aquisição de novos equipamentos na atenção básica e especializada e laboratórios de prótese, ampliação de recursos humanos (CDs e auxiliares de saúde bucal) decorrente de uma importante ampliação do financiamento no período, com inclusão de recursos para investimentos e nova rubrica de repasse para aquisição de capital. O esforço na ampliação do financiamento, infraestrutura e recursos humanos não produziram os mesmos resultados em termos de aumento da cobertura da primeira consulta odontológica, indicador que reflete acesso ao sistema público. Esta é uma questão problemática que merece maior aprofundamento.
Estudos afirmam que apesar do significativo crescimento do volume de recursos financeiros voltados para a saúde bucal, a continuidade e a manutenção da política pode não se sustentar pelos problemas de subfinanciamento, coordenação política e gerencial1212. Kornis GEM, Maia LS, Fortuna RFP. Evolução do financiamento da atenção à saúde bucal no SUS: uma análise do processo de reorganização assistencial frente aos incentivos federais. Physis Rev Saude Col 2011; 21(1):197-215.,3030. Frazão P, Narvai PC. Saúde bucal no Sistema Único de Saúde: 20 anos de lutas por uma política pública. Revista Saúde em Debate 2009; 33(81):64-71.. Outro ponto é que a implementação da política está condicionada a análise da triangulação entre o projeto, a capacidade de governo e a governabilidade no nível estadual e municipal1515. Soares CL, Paim JS. Aspectos críticos para implementação da política de saúde bucal no município de Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(5):966-974..
O componente modelo de atenção apresentou-se como o menos priorizado pelas ações institucionais nos três governos, constituindo-se em lacuna com repercussões nos resultados, requerendo a adoção de medidas futuras por parte dos gestores. Os CD contratados, bem como sua equipe auxiliar, podem estar pouco preparados para atuar neste subsistema público, e dependente do governo local para seu êxito1414. Chaves SCL, Vieira-da-Silva L. Atenção à saúde bucal e a descentralização da saúde no Brasil: estudo de dois casos exemplares no Estado da Bahia. Cad Saude Publica 2007; 23(5):1119-1131.,1515. Soares CL, Paim JS. Aspectos críticos para implementação da política de saúde bucal no município de Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(5):966-974.. Cabe destacar a concorrência no espaço de lutas simbólicas e econômicas com o setor privado nesta área, conhecida pela sua tradição liberal, que é dominante.
Como principais lacunas, o presente estudo não aprofundou a análise de outros atores não governamentais e atores políticos governamentais como o Conselho Nacional de Saúde, nem se debruçou sobre a análise dos agentes sociais inseridos nessas instâncias governamentais. Também, neste estudo, a análise do financiamento tratou do montante repassado (valor nominal), que não sofre efeito das correções como a inflação. Outra lacuna foi que os dados da PNAD e PNS, produzidos pelo IBGE, têm metodologias distintas já que o primeiro relata a utilização nos últimos 15 dias e o segundo, no último ano. Eles apresentam limitações, mas podem revelar pistas sobre o processo de implementação da política, pois podem ser considerados indicadores de tendência de utilização de serviços odontológicos públicos e privados no Brasil. Esforços para resposta a essa pergunta de pesquisa devem ser equacionados.
O uso de indicadores de cobertura da primeira consulta odontológica, a evolução em percentual do componente restaurado do Índice CPO-D nos últimos inquéritos e o número de tratamentos endodônticos realizados foram aproximações aos prováveis resultados da política pública, cuja relação com a implementação da mesma está por ser determinada cientificamente.
Foi traçado um panorama geral da implementação de uma política pública setorial, merecendo estudos posteriores que aprofundem a análise sobre os rumos dela em cada eixo numa perspectiva de um espaço de luta em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e efetivação do direito à saúde bucal.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2017
Histórico
- Recebido
09 Jun 2015 - Revisado
24 Nov 2015 - Aceito
26 Nov 2015