Entrevista: desigualdade é o conceito-chave para a discussão da saúde no contexto internacional

Gastão Wagner de Souza Campos Sobre o autor

Resumo

O desenvolvimento econômico, científico, tecnológico e a inovação influenciam as desigualdades entre os países, especialmente nas condições de saúde e de bem-estar de suas populações. Este é um fenômeno que ocorre entre países e dentro deles. Como essas desigualdades podem ser diminuídas e como analisar a saúde no contexto internacional são os temas dessa entrevista com Gastão Wagner, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Como o senhor analisa a saúde no contexto internacional?

A categoria analítica chave é a desigualdade. Existe uma heterogeneidade muito grande das condições de saúde no mundo, tanto no que se refere ao perfil epidemiológico da população (de morbidade, de mortalidade, etc.), quanto de instrumentos de políticas e de programas para enfrentar esses problemas. Essa desigualdade se revela entre as regiões de um país, entre os países e entre os continentes.

Há progressos importantes em relação ao acesso às tecnologias, às vacinas, de controle do meio ambiente, de controle do uso de alimentos, de agrotóxicos e de fármacos em países europeus, por exemplo. Ainda assim, ao mesmo tempo, convivemos com determinadas situações como se estivéssemos na 1ª Guerra Mundial, no século XIX; é o caso dos refugiados, da alta taxa de mortalidade por causas evitáveis, da desnutrição, das doenças infecciosas e das mortalidades materna e infantil em algumas populações.

Outro tema é o da violência, né?! A Síria, principalmente, vive uma regressão social muito forte. A África com intervenções de grandes empresas e grupos; da presença dos mercenários. Uma situação de saúde muito ruim, dependendo da interferência de Médicos Sem Fronteiras, de programas focais importantes, mas...

Mas?

Apesar dos esforços da Organização das Nações Unidas (ONU), as desigualdades no acesso ao direito de defesa da saúde prevalecem. O que existem são esses socorros emergenciais da própria ONU, das organizações de cada continente, de Organizações Não Governamentais e apoios conjuntos de entidades filantrópicas.

Mesmo aqui dentro, na América Latina, há uma disparidade de direitos, que reflete nos indicadores de saúde. Se compararmos a esperança de vida no Brasil e no Paraguai, para exemplificar com um país vizinho, encontramos uma diferença enorme na esperança de vida e na sobrevida de pessoas que vivem com doenças crônicas em geral. Isto é resultado do desenvolvimento político, social e econômico singular de cada país.

Outro ponto central para esta análise é a existência, ou não, de um sistema nacional público de saúde. Países que têm sistemas públicos com grau médio, razoável, de efetividade compensam as desigualdades econômicas e sociais. Compensam com acesso, com ações intersetoriais, com promoção da saúde e com outras políticas públicas, como o Bolsa Família.

Então, os países que conseguem construir e implementar essas políticas públicas e especialmente os sistemas públicos de saúde, ainda que de forma parcial, como é o caso do Brasil, conseguem assegurar uma proteção de direitos sociais.

Os Organismos Internacionais, além desses programas de socorro, precisam defender os sistemas públicos de saúde, né? Além dos slogans “saúde para todos no ano não sei lá quando...”.

O senhor apontou alguns problemas éticos presentes na discussão sobre a saúde em âmbito internacional, quais seriam os principais?

Eu acho que tem um dilema ético, ou melhor, são vários dilemas éticos. O Piketty (Thomas Piketty, autor de O Capital no século XX) levanta em seu livro a relação desequilibrada entre concentração de riqueza e políticas públicas, entre elas, o direito à saúde, as necessidades de saúde e a saúde como negócio. Nesse caso, representada pelo complexo médico industrial, que os sistemas públicos não estatizam e não socializam na maioria dos países, mas tentam fazer negociações melhores e mais adequadas. A vigilância sanitária tenta colocar limites para a distribuição e a comercialização dos produtos do complexo médico industrial. As políticas tentam impedir o uso de exames médicos complementares de internação. Enfim, é uma relação muito complexa porque a lógica e a racionalidade dos sistemas públicos são as das necessidades de saúde. A racionalidade básica do complexo médico industrial, que é privado, é a de mercado, quem tiver dinheiro compra, quem não tiver não compra.

Sobre os medicamentos de HIV/Aids, por exemplo, isso fica muito claro. O Brasil é um dos poucos países do mundo que assumiu como política pública a integralidade do atendimento, tanto na prevenção quanto na promoção. Uma decisão que fomos à luta para buscar recursos, negociar genéricos e romper patentes. Isso não é simples.

Há um dilema ético-político muito grande que explica grande parte dessas desigualdades, além da dominação econômica de uma parte do mundo. Nós precisamos ver como fazer com esse conflito ético-político entre essas duas racionalidades.

E tem como resolver? Quais seriam os caminhos possíveis?

Se pensar como “tudo ou nada”, não tem como fazer. Mas se pensar em coeficiente, tem. Esse dilema muitos países enfrentam. Os Estados Unidos, por ser rico, enfrenta pelo lado dos negócios, pela cultura liberal e tradicional de mercado. E fica claro que não é só uma questão de formação intelectual da população, dos políticos ou de grau de escolaridade. Acho que, na América do Sul, o Brasil tem enfrentado isso puxando mais para as necessidades de saúde. Com a política de HIV/Aids e no caso de vacinas, por exemplo, o país possui uma fabricação própria e negocia firme com o setor privado, apesar de todo patrimonialismo e esse concubinato mercado-Estado. Ainda assim, temos conseguido razoavelmente melhor do que outros países.

O Nethis (Nethis é a sigla de Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde) vem trabalhando ao longo dos anos com a correlação dos conceitos desenvolvimento, desigualdade e cooperação internacional. A problematização central está no impacto do desenvolvimento cientifico e tecnológico e da inovação nas desigualdades entre os países. De que forma a cooperação poderia minorar essas desigualdades? Qual a sua opinião?

As universidades e a pesquisa pública, como política pública, têm que ter autonomia. A universidade foi criada para ter autonomia em relação à Igreja Católica na Europa. E depois, a universidade foi se desenvolvendo para ter autonomia em relação ao Estado. Hoje em dia, a gente acrescenta a autonomia em relação ao mercado. Embora a autonomia seja sempre relativa, pois a academia estuda a igreja, se relaciona com o Estado, forma gente para o Estado, faz Escola de Governo, etc.

Defendo que o orçamento público para a pesquisa tem que ser dividido, uma parte para a livre iniciativa dos cientistas e da dinâmica acadêmica e a outra para as políticas públicas, com foco nas necessidades de saúde. Enfim, precisamos fazer essa combinação.

E quando a ciência serve apenas a uma minoria e caminha para a lado oposto dos interesses da sociedade?

O desenvolvimento cientifico e tecnológico mundial e a inovação não garantem saúde e bem-estar, se todos esses movimentos são apropriados pelo mercado e o acesso passa a depender de custo.

Eu não estou responsabilizando o cientista por pensar a ciência aplicada. Acho que a ONU, a Organização Mundial da Saúde e a Abrasco têm que pensar a aplicação e no impacto dessa ciência e tecnologia.

E a cooperação entre os países?

É fundamental. Dez países têm mais poder de negociação contra os monopólios das vacinas, medicamentos e equipamentos do que um só. O Brasil, ao negociar vacinas com outros países que têm maior capacidade de produção e pesquisa, poderia fazê-lo em conjunto com a África, por exemplo. É óbvio que não podemos ter prejuízo, bancar o orçamento, mas a gente pode ter essa cooperação entre políticas públicas. Então, eu acho que o caminho é esse, a cooperação é fundamental.

O problema é que os nossos governos falam de Estado como se fosse uma coisa neutra, mas todo governo apresenta uma certa competição de forças, e esse conglomerado tem uma capacidade de entrar nesses blocos políticos com um poder muito grande, né?! Na mídia, na opinião pública... Muitas vezes a cooperação fica impedida e refém da posição de cada governo.

De que forma o envolvimento da população com questões de saúde repercute nas decisões políticas de um Estado para o fortalecimento dos sistemas de saúde?

Se não houver movimento social muito forte, a gente perde para essa dinâmica do mercado cada vez mais concentrado e do complexo médico industrial, os seus intelectuais orgânicos e os jornalistas que repetem os discursos desses interesses. A OMS e a ONU são caixas de ressonância que vão negociar essas várias pressões. As pressões, que em geral são feitas pelas academias e profissionais de saúde, pelos movimentos de usuários, populares, que interferem na opinião pública e ocupam espaços na mídia, precisam persistir. Se o movimento social é forte, então temos chances de aprovar leis, sistemas, políticas mais adequadas, legitimar a ONU e a OMS a terem uma política mais firme, uma política com “P” maiúsculo e não uma política dos interesses menores. Essa racionalidade do mercado em todos os espaços tem que ser desnaturalizada. Isso que o discurso conservador, liberal e radical tenta naturalizar. Eles naturalizam um produto que é social, que é a saúde. O uso de Agrotóxicos, por exemplo, é típico disso, se for depender do complexo médico industrial, da indústria química, nós vamos viver em um mundo químico.

Até que ponto os interesses da sociedade estão representados nas ações dos Estados em âmbito internacional, no caso da saúde?

A pressão e a força política do mercado e dos interesses econômicos estão sempre presentes e fortes, mas nem sempre prevalecem. Vou dar um exemplo internacional: o boicote ao apartheid na África do Sul durou de 15 a 20 anos e 98% dos países não violaram. E um outro exemplo que não prevaleceu 100%, mas que cresceu muito, foi o boicote dos Estados Unidos a Cuba, eram só os países comunistas que comercializavam com Cuba, depois, com a democratização da América Latina, alguns países voltaram a comerciar e investir. Então, isso é cooperação também. Ou seja, esses espaços de mediação precisam ser criados e o resultado não está dado, tem que tentar, política é para isso, a Abrasco é para isso!

Como o senhor interpreta a mudança de conceito, que alguns autores vêm trabalhando, de saúde internacional para saúde global?

Indica uma corresponsabilização, ou seja, a saúde é do planeta, de todas as pessoas e de todas as Nações. É uma declaração de intenção importante do ponto de vista conceitual e ético. Agora, que implicações concretas essa mudança vai ter? Depende da peleja, da luta e do conflito. Usamos muito essa coisa de mudar o nome para não mudar a realidade. Tem um certo movimento que é demagógico, não nesse caso, mas de um modo geral.

Pois, se tem uma situação de crise, dá-se outro nome e finge-se que resolveu o problema ou não se enfrenta os desdobramentos concretos desse problema. A nossa Constituição de 1988 tem uma perspectiva de direito dos povos indígenas interessante comparada com outros povos da América Latina. Acontece que, na prática, eles são agredidos pelo agronegócio e pelas mineradoras. É bom ter essa lei? É obvio, mas como é que nós vamos garantir o desdobramento dessa lei?

Nesse caso aqui, o conceito global indica uma preocupação, o problema na saúde dos refugiados é nosso, o problema de saúde na Etiópia é nosso.

E quem é esse nosso? Nessa discussão sobre saúde global, alguns autores entendem que se relaciona somente aos Estados, enquanto outros autores entendem ser possível dar voz para demais atores, como por exemplo, as indústrias e outros conglomerados, com interesses comerciais diversos na saúde.

Quando eu falei nosso, falei da humanidade de uma maneira geral. Ocorre que a humanidade é heterogênea, estratificada, e falar de humanidade é um conceito abstrato também, né?! Temos povos indígenas, afrodescendentes, brasileiros, empresários, trabalhadores, desempregados, africanos, refugiados, latino-americanos, europeus, etc. A ideia de que só o Estado... Não é assim, é o Estado e a sociedade, quando se fala em Estado entra todo esse povo. Essa ideia do Estado mínimo, que os atores não estatais irão produzir políticas públicas é equivocada. A ideia de que o Estado sozinho, na esperança do socialismo real, vai produzir bem-estar estatizando tudo, também demonstrou-se equivocada.

Eu penso que temos que aprender com o século XX, com o passado. Esse fortalecimento do mercado e da ideologia, da ética e da política liberal – neoliberal, como é chamada – decorre em parte das grandes derrotas na área de direitos sociais universais. Os Estados comunistas fracassaram do ponto de vista democrático, de liberdade, de bem-estar, crescimento e de respeito à natureza.

Então, a discussão que se deve ter é outra, tem-se que repensar os sistemas sem a lógica do mercado, porque se não, não são políticas públicas, voltam a ser mercado.

A radicalidade da política pública é que todo o planejamento de gestão não é feito em nome do mais apto. As políticas sociais criaram uma lógica que os mais vulneráveis serão defendidos, sejam idosos, deficientes, quem não tem seguro privado, quem é dependente químico, etc.

As políticas públicas são para todo mundo e cada país tem que desenvolver as suas técnicas e seus coeficientes. São duas racionalidades que temos que considerar. Eu não vejo nenhuma proposta hoje para ter zero de mercado, não vejo sentido.

Sobre essa Resolução [A Resolução do Quadro de Colaboração com Agentes não Estatais (FENSA) da OMS foi aprovada em maio de 2016], aprovada pela OMS, que pretende criar limites para o relacionamento com fundações, ONGs, empresas privadas e academia. Isto impacta diretamente a Abrasco, o que o senhor pensa?

Temos um desafio internacional no terceiro milênio com relação aos atores não estatais que reflete na discussão da OMS. Atores não estatais é um nome genérico encobridor mais que esclarecedor. Se você olha para indústria farmacêutica e os Médicos Sem Fronteiras são atores não estatais, a Abrasco, uma associação de saúde pública, também é não estatal. Então, tem uma heterogeneidade nisso que é difícil de lidar, mas é melhor reconhecer essa heterogeneidade e passar a trabalhar com normas de relacionamento diferentes.

Eu acho que precisa ser feito desde que se reconheçam essas diferenças e o conflito de interesses. Não vejo no horizonte da humanidade a possibilidade de vivermos em um mundo estatal, não queremos isso mais, não deu certo.

Agora, como a sociedade controla fora da eleição e fora dos lobbies? Quem faz são as empresas que têm muito mais recursos, muito mais empregados economistas e publicitários.

Então, voltando ao Piketty, ele termina o livro elucidando essa coisa da concentração de renda em uma pequena porcentagem da população. Essa concentração de capital reduz a produção de cultura, de produções de explicações para o mundo, de narrativas, de controle do poder executivo, do parlamento. Ou seja, a democracia a favor desses interesses, dessa minoria, é a democracia entre “aspas”.

O senhor apontou o papel da Abrasco nesses espaços de mediação. Como a Associação participa dos fóruns internacionais?

A Abrasco participa das associações com as suas congêneres e inclusive está presente sempre junto à Assembleia Geral da OMS. Nós participamos das Assembleias da OMS, da OPAS e das diretorias como convidada, sem direito a votar, mas procurando influenciar na agenda e nos temas que julgamos relevantes para a saúde global. A gente fala, distribui documentos, articula com outras entidades associativas do mundo e ONGs.

A atuação da Abrasco é muito precária ainda, mas é o que a gente consegue, porque é muito caro fazer isso. Cada reunião internacional custa 1/3 da verba da Abrasco, muito difícil porque nós que pagamos. Se a gente entra na delegação do Ministério da Saúde, não podemos fazer o nosso discurso com autonomia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2017
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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