Crack e sonhos: a visão dos usuários

Thiago Rovai da Silva Solange Aparecida Nappo Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é descrever os conteúdos dos sonhos dos usuários de crack, de acordo com sua visão, e analisar a interferência que produzem no processo de abstinência. Pesquisa qualitativa com 21 usuários de crack. Consumir a droga durante o sonho significou o fracasso ou uma forma compensatória de prazer ou de alerta a potenciais recaídas; não consumir a droga significou sintomas de abstinência ou o sucesso em ter vencido a dependência. A interpretação dada aos sonhos pode levar os usuários de crack à fissura e recaída. Os resultados podem contribuir para intervenções terapêuticas eficazes.

Cocaína; Crack; Fissura; Sonhos; Recidiva

Introdução

As características e a dificuldade para compreender o fenômeno de sonhar, fazem dele um objeto de curiosidade e estudo desde os primórdios da civilização humana. Foi na Grécia antiga que os sonhos deixaram de ser vistos somente como eventos místicos ou sobrenaturais para serem observados como fenômenos naturais que também ocorriam nos animais, e ainda, com uma ligação aos acontecimentos diários dos indivíduos11. Pinto JR, Timo-aria C. Atividade Onírica e os sonhos. In: Tufik S, organizador. Medicina E Biologia Do Sono. Barueri: Editora Manole; 2008. p. 227-237..

Envolvido em mistério, o sonho tem sido associado a religião, a previsão de acontecimentos, etc.22. Scott R, Ribeiro S. A Ocorrência de Sonhos Antecipatórios é Proporcional à Crença em sua Eficácia. Neurobiologia 2010; 73(3):73-86.. Diferentes ciências, abordagens e modelos tentam explicar a origem dos sonhos, fazendo com que as conclusões sobre este tema sejam conflitantes e variadas.

Freud atribuiu aos sonhos o autoconhecimento e a regulação dos impulsos e desejos. Para o criador da Psicanálise era no labirinto dos conteúdos conscientes do sonho que estavam escondidas as realizações de desejos que o próprio indivíduo reprimia. Vontades estas que, conscientemente, o sujeito não se permitiria realizá-las. Dessa forma, os sonhos possibilitariam a esse indivíduo vivenciar e/ou realizar tais desejos, ainda que parcialmente33. Freud S. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM Editores; 2012.,44. Vinocur Fischbein S, Miramón B. Theoretical trajectories: Dreams and dreaming from Freud to Bion. Int. J. Psychoanal 2015; 96(4):967-992., O avanço científico, como o estudo eletrofisiológico do sono, levou a identificação das fases do sono e permitiu a compreensão dos sonhos por mecanismos cerebrais22. Scott R, Ribeiro S. A Ocorrência de Sonhos Antecipatórios é Proporcional à Crença em sua Eficácia. Neurobiologia 2010; 73(3):73-86.. Teorias neurofisiológicas contestaram a visão de Freud e consideraram os sonhos apenas como “ruídos aleatórios” que ocorreriam nos processos cerebrais durante o sono55. Hobson JA, Pace-Schott EF, Stickgold R. Dreaming and the brain: Toward a cognitive neuroscience of conscious states. Behav Brain Sci 2000; 23(6):793-842..

Porém, como apontado por Scott e Ribeiro22. Scott R, Ribeiro S. A Ocorrência de Sonhos Antecipatórios é Proporcional à Crença em sua Eficácia. Neurobiologia 2010; 73(3):73-86., a crença popular não absorveu tais dados advindos da ciência, vingando a ideia de que os sonhos fazem referência a “verdades ocultas”, capazes de transmitir importantes mensagens sobre o mundo e sobre aquele que sonha. Os sonhos refletiriam os interesses e a personalidade dos indivíduos, assim como, as suas experiências ansiosas, o humor e as preocupações que vivenciam acordados.

Sonhar é um estado consciente onde não há o discernimento e o controle cognitivo típicos de indivíduos acordados, mas que permite o surgimento de uma narrativa coerente, com imagens vívidas, carregadas de emoções intensas e às vezes elementos nunca antes experimentados66. Pace-Schott EF. REM sleep and dreaming. In: Mallick BN, Pandi-Perumal SR, McCarley RW, Morrison AR editors. Rapid Eye Movement Sleep-Regulation and Function. New York: Cambridge university press; 2011. p. 8-20.. O sonho é uma sequência de ricas experiências subjetivas que ocorrem durante o sono, na ausência de estimulação física externa ou atividade comportamental77. Sikka P, Valli K, Virta T, Revonsuo A. I know how you felt last night, or do I? Self- and external ratings of emotions in REM sleep dreams. Conscious Cogn 2014; 25(1):51-66..

Tanguay et al.88. Tanguay H, Antonio Z, Daniel G, Francesco L. Relationship between drug dreams, affect, and craving during treatment for substance dependence [thesis]. Ontaro: University of Guelph; 2014. afirmam existir uma relação, pouco estudada, entre sono e a dependência de drogas. Dormir é fundamental para os processos cognitivos de consolidação de memória e aprendizagem99. Blagrove M, Fouquet NC, Henley-Einion JA, Pace-Schott EF, Davies AC, Neuschaffer JL, Turnbull OH. Assessing the dream-lag effect for REM and NREM stage 2 dreams. PLoS One 2011; 6(10):e26708.,1010. Nielsen TA, Kuiken D, Alain G, Stenstrom P, Powell RA. Immediate and delayed incorporations of events into dreams: Further replication and implications for dream function. J Sleep Res 2004; 13(4):327-336., processos esses, importantes na aprendizagem de novas habilidades e estratégias para o enfrentamento da dependência química. Além disso, os distúrbios do sono como insônia e sono interrompido, aumentariam a chance para uma possível recaída ao consumo1111. Berro LF, Frussa-Filho R, Tufik S, Andersen ML. Relationships between sleep and addiction: The role of drug-environment conditioning. Med. Hypotheses 2014; 82(3):374-376..

Vários pesquisadores têm demonstrado que é comum o relato de sonhos com conteúdos relacionados ao consumo de drogas entre pacientes que buscam tratamento para a dependência de substâncias psicoativas1212. Christo G, Franey C. Addicts Drug-Related Dreams: Their Frequency and Relationship to Six-Month Outcomes. Subst Use Misuse 1996; 31(1):1-15

13. Colace C. Drug Dreams: Clinical and Research Implications of Dreams about Drugs in Drug-addicted Patients. London: Karnac Books; 2013.

14. Hajek P, Belcher M. Dream of absent-minded transgression: an empirical study of a cognitive withdrawal symptom. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):487-491.

15. Reid SD, Simeon DT. Progression of dreams of crack cocaine abusers as a predictor of treatment outcome: a preliminary report. J Nerv Ment Dis 2001; 189(12):854-857.
-1616. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175..

Pela sua penetração na sociedade brasileira e pelos comportamentos de risco que gera, o crack tem se tornado um desafio principalmente para os profissionais envolvidos no tratamento de usuários. Tanto assim, que vários aspectos da cultura de uso do crack têm sido analisados com o propósito de fornecer indícios que possam ajudar na atenção à saúde do usuário de crack1616. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175.,1717. Ribeiro LA, Sanchez ZM, Nappo SA. Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da droga. J Bras Psiquiatr 2010; 59(3):210-218.. Considerando que usuários de drogas têm sonhos cujos conteúdos remetem ao consumo dessas substâncias, o objetivo desse trabalho foi descrever os conteúdos dos sonhos dos usuários de crack, de acordo com sua visão, e analisar a interferência que produzem no processo de abstinência da droga.

Metodologia

O entendimento do fenômeno, objeto deste estudo, depende do relato dos usuários de crack, do conteúdo dos seus sonhos e do significado que dão a eles. Nesse sentido, a metodologia qualitativa foi a mais adequada, devido às suas características as quais levam em consideração a compreensão do problema através dos conceitos, crenças, opiniões e significados daqueles que vivenciaram o problema1818. Creswell JW. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods approaches. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2009.,1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002..

Construção da amostra: Durante a primeira fase do estudo foram selecionados quatro informantes-chave - IC (dois psiquiatras, dois psicólogos) que tinham conhecimento do tema da pesquisa e da população em estudo1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.. Esses IC foram convidados para uma entrevista informal, ou seja, sem uma preparação prévia de um roteiro2020. Kvale S. Interviews: an introduction to qualitative research interviewing. Thousand Oaks: Sage Publications; 1996.. Questões relevantes para o entendimento do tema surgiram durante a entrevista. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas e os dados gerados foram a base para preparação do roteiro utilizado na entrevista com os participantes da pesquisa (usuários de crack)1818. Creswell JW. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods approaches. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2009.. Devido à dificuldade em acessar a população estudada, em função da ilegalidade do crack, alguns desses IC também fizeram o papel de gatekeepers (isto é, eles ajudaram acessar a população). Os gatekeepers eram conhecidos da população em estudo o que facilitou a participação desses usuários1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.. Cada IC identificou participantes em potencial, explicou a cada um deles o objetivo da pesquisa antes de introduzi-los aos pesquisadores. Entrevistas em profundidade2020. Kvale S. Interviews: an introduction to qualitative research interviewing. Thousand Oaks: Sage Publications; 1996. com os participantes da amostra foram conduzidas utilizando-se uma amostra intencional, selecionada por critérios: usuários de crack maiores de 18 anos, com mais de um ano de uso da droga (assegurando a exclusão de usuários experimentais); dependentes de crack de acordo com os critérios do DSM-IV2121. American Psychiatry Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4th ed. Porto Alegre: Artmed; 2002., no início do período de abstinência. Para se garantir esse último critério os entrevistados recrutados eram recém egressos de tratamentos, condição alcançada com a ajuda dos informantes chaves, que com sua rede de conhecimento, conseguiram aproximar pesquisadores e participantes que cumpriam os critérios estabelecidos para inclusão na amostra1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.. Os entrevistados foram provenientes de seis diferentes locais de atendimento e cuidado destinados a usuário de drogas como indica a primeira letra do código alfanumérico que identifica cada participante. Clínicas privadas e gratuitas, comunidades terapêuticas e CAPS ad foram acionados para recrutamento dos participantes. A coleta de dados levou aproximadamente um ano para ser concluída e ela se deu na cidade de São Paulo.

As entrevistas ocorreram até que as informações se tornaram repetitivas, nesse momento, denominado ponto de saturação teórica, nenhuma nova informação foi identificada1818. Creswell JW. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods approaches. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2009.. A saturação teórica é uma ferramenta bastante utilizada em investigações qualitativas para estabelecer o tamanho da amostra final do estudo1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.,2222. Glaser BG, Strauss AL. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York: Aldine de Gruyter; 1967.. Na prática, o ponto de saturação teórica é definido como a interrupção de inclusão de novos participantes na amostra quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição, não sendo considerado relevante continuar com a coleta de dados1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.,2323. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de preocedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica 2011; 27(2):389-394.. Ou seja, as informações que poderiam advir de novos participantes da pesquisa pouco acrescentariam ao material já obtido, não mais contribuindo para o aperfeiçoamento da reflexão teórica fundamentada nos dados que estão sendo coletados2323. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de preocedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica 2011; 27(2):389-394.. No caso deste estudo o ponto de saturação teórica foi alcançado com uma amostra de 21 participantes.

Instrumentos Utilizados: entrevistas semiestruturadas foram conduzidas usando um roteiro de tópicos que foi elaborado baseado na informação proveniente das entrevistas com os IC2020. Kvale S. Interviews: an introduction to qualitative research interviewing. Thousand Oaks: Sage Publications; 1996.. O roteiro foi composto de questões previamente padronizadas para facilitar a comparação entre as respostas e redução da interferência do entrevistador. Questões adicionais emergiram para clarificar tópicos específicos durante cada entrevista permitindo um aumento do entendimento1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.. O conteúdo do roteiro foi composto dos seguintes temas: dados sociodemográficos, tempo de abstinência, descrição dos sonhos, seu impacto sobre a abstinência/recidiva, sentimentos desencadeados nos entrevistados, a visão da família, e o significado dado aos sonhos pelos usuários. As questões consideradas mais controversas, nesse estudo, foram aquelas que os participantes evocavam sentimentos negativos como de fracasso, transgressão, etc. Em alguns casos essa circunstância pode constrange-los, no primeiro momento, de responder a essas questões de acordo com a realidade. Para contornar essa situação, o pesquisador aplicou a estratégia recomendada pelos princípios da pesquisa qualitativa, que é a de reiterar essas questões ao longo da entrevista para obter mais credibilidade e segurança às respostas alcançadas1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.. No decorrer da entrevista, com a habilidade do entrevistador em criar um ambiente de confiança e de acolhimento, o participante do estudo, mais à vontade e mais confiante, teve chance de alterar a sua fala inicial revelando os fatos condizentes com a verdade. As perguntas relativas aos significados que davam à recaída ao consumo de crack, após os sonhos com a droga, foram objeto dessa técnica. Após a obtenção do consentimento do entrevistado, a entrevista foi gravada com uma duração média de 50 min.

Análise de conteúdo: Cada entrevistado foi identificado por um código alfanumérico no qual a primeira letra está relacionada ao local da entrevista, em seguida a sequência de entrevistas, o gênero do participante e por último a sua idade. As entrevistas foram transcritas e lidas pelos pesquisadores e depois analisadas com base nos princípios da análise de conteúdo2424. Bardin L. Análise de conteúdo. 3rd ed. Lisboa: Edições 70; 2004..

Preparação do material: desmembramento e reagrupamento das respostas de acordo com o tópico e questão. Esse material deu origem a arquivos independentes para cada item do roteiro cada um deles compreendendo respostas que corresponderam a cada integrante da amostra1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.,2424. Bardin L. Análise de conteúdo. 3rd ed. Lisboa: Edições 70; 2004.. Para esta preparação do material contou-se com a ajuda de um software destinado a pesquisa qualitativa, Nvivo 10. A partir dessa informação as categorias, em relação aos diferentes comportamentos identificados, foram construídas.

Tratamento dos resultados: de forma a obter as frequências e porcentagens relativas às diferentes categorias permitindo interpretações e inferências. Neste estudo utilizou-se a técnica de Triangulação na análise dos resultados1919. Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice. 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002., ou seja, dois pesquisadores independentes, com conhecimento dos princípios de uma análise de conteúdo reconstruíram as categorias identificadas. A técnica visou identificar a convergência das interpretações reduzindo a probabilidade de má interpretação e dessa forma gerando resultados mais adequados. Partes das narrativas dos usuários são apresentadas em itálico no texto, identificadas pelo código alfanumérico explicado anteriormente.

Considerações Éticas: O estudo foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da Instituição. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi obtido de cada participante após receberem todas as informações sobre o estudo. Anonimato dos participantes foi mantido.

Resultados

Características da amostra

Foram entrevistados 21 usuários de crack com as seguintes características: maioria de homens (n = 20), com mais de 30 anos de idade (n = 17), com uma concentração entre 30 e 40 anos de idade (n = 12). Escolaridade alta, com 11 dos entrevistados com nível superior completo/incompleto. Em contrapartida, 11 deles se declararam desempregados por ocasião da entrevista. Apenas 5 participantes reportaram ter companheira (o), porém 13 informaram ter filhos. Todos cumpriam os critérios de dependência segundo o DSM-IV (Quadro 1).

Quadro 1
Características da Amostra.

Características dos sonhos

Os sonhos relacionados ao crack (sonhos de uso) foram descritos pelos entrevistados como repetições dos comportamentos, dos ambientes, das pessoas e de situações comuns ao consumo da droga. Informaram ainda, que esses sonhos de uso ocorriam sempre no início da fase da abstinência diminuindo a frequência com o passar do tempo.

A fase do seu aparecimento foi considerada crítica por muitos, pois estão num momento de transição, deixaram de consumir a droga recentemente e entraram na abstinência. Reviver, através dos sonhos, toda a situação que estavam buscando vencer, segundo alguns, poderia comprometer a abstinência.

Eu sonhei que eu estava no mesmo lugar que eu tinha saído ontem, às seis horas da manhã. É na favela, onde eu costumo fazer (uso), enfim eu simplesmente estava usando [...]. Tinha as mesmas pessoas que costumam estar lá, a comunidade do local. Como se eu estivesse ali. (C01-H42)

Origem dos sonhos

Os sonhos parecem ser originados, principalmente, devido ao desejo intenso, consciente

ou inconsciente, de fazer uso de crack novamente. Os sonhos seriam uma forma, incontrolável e involuntária, de expressão do desejo de consumo da droga, desejo esse, talvez ocasionado pelas situações relacionadas a esse consumo e vivenciadas pelos entrevistados

Esses sonhos acontecem justamente por causa da vontade de usar. Essa vontade vem disfarçada em sonho e ai a gente no sonho tem vontade e usa. Sei lá, é uma coisa muito louca que acontece. (SO3-H27)

Conteúdo dos sonhos

Segundo os relatos, a droga surgiu nos sonhos em vários contextos. Algumas vezes de forma indireta, ou seja, apenas o ambiente de consumo, ou mesmo o ritual de preparo da pedra. Em outros casos, o entrevistado revelou a presença do crack no sonho, ou seja, ele teve contato direto com a droga. Por outro lado, nem sempre o conteúdo do sonho representava a realidade de consumo do usuário, porém, sempre fazia referência à droga.

Conteúdo fantasioso

Relataram sonhos, que apesar de referirem-se ao consumo de crack, as situações vividas eram constituídas de histórias bizarras e fantasiosas, que muitas vezes surpreenderam os entrevistados. Apesar de não reproduzirem a realidade, esses sonhos traziam o crack como foco central do enredo, fazendo com que o usuário, embora em abstinência, entrasse em contato com a droga.

Eu tive um sonho com aqueles caminhões que carregam aquelas pedras de mármore do tamanho de um container. Eu estava carregando uma dessas, só que era uma pedra de crack do tamanho do container. E eu com uma serra elétrica tentando cortar a pedra e quando comecei a cortar eu acordei. (S05-H52)

Conteúdo com contextos de uso diferente

Também foram descritos enredos de sonhos envolvendo novas vivências e experimentações relacionadas ao uso do crack. O conteúdo do sonho mostrou maneiras e situações diferentes das que usualmente o usuário praticava quando do consumo de crack, mas a droga estava presente no sonho. Alguns usuários relataram sonhos cujo o enredo englobava situações contrárias à realidade daqueles usuários, tais como a utilização da droga na presença de familiares. Esses sonhos, segundo esses entrevistados, indicavam a degradação moral que o usuário poderia chegar por conta da droga, a qual agia destrutivamente sobre os poucos valores que ele ainda preservava.

Sonhei que eu estava fumando pedra ao lado da minha esposa, coisa que eu não fazia. Eu estava sentado na poltrona na sala, do lado dela, fumando pedra. Esse foi um sonho que marcou bastante, porque eu não usava perto dela. Me senti mal, pensava “pô isso pode acontecer mesmo e eu não queria que isso acontecesse [...] (S04-H28)

Conteúdo com o contexto que envolve a droga

Apesar de a maioria dos sonhos relatados ter a presença do crack, também existiram relatos de sonhos onde a droga não fazia parte do enredo. Porém, as situações vivenciadas no sonho eram as mesmas que o usuário enfrentava para conseguir a droga. Apesar de não estar presente no sonho, o entrevistado era remetido ao crack da mesma forma.

Eu não sonhava apenas que estava usando o crack, eu também me via em situações difíceis, eu me via em situações de estar procurando a pedra, em situações de brigas, em situações de estar sendo preso pela polícia. As cenas eram do crack, mas muitas vezes a pedra não estava presente no sonho. (J02 - H32)

Conteúdo relacionado ao ritual do uso do crack

Outra característica descrita pelos entrevistados foi a presença, nos sonhos, do mesmo ritual de preparo e uso de quando consumiam o crack. Todas as etapas eram repetidas nos sonhos, desde conseguir o dinheiro para comprar a droga até os detalhes de seu preparo.

Eu peguei a pedrinha de crack, aí eu fiz todo aquele processo que eu gostava de fazer, de moer com cuidado, misturar com carvão, todo processo. Diluía com um pouquinho de álcool, aí misturava, deixava secar, misturava no tabaco, todo aquele processo que eu fazia... aí eu enrolava com um pouco da maconha junto. O sonho que eu tive foi assim, muito perfeito nesse aspecto. Muito real, até o ponto de eu chegar colocar na boca e acordar. (O04-h38)

Interpretação dada aos sonhos

Entre alguns entrevistados, os sonhos despertaram sentimentos positivos relacionados a prazer e satisfação, enquanto outros, relataram ter sentido medo, frustração e sensação de derrota. Esses sentimentos estavam diretamente ligados ao conteúdo e a interpretação que os usuários davam a esses sonhos.

Não usar a droga durante o sonho

Para alguns entrevistados, por exemplo, o fato de não terem conseguido consumir a droga durante o sonho parecia ser animador em relação ao processo de tratamento de sua dependência. Interpretavam essa atitude como uma prova de que estavam realmente superando a problemática da droga. Para eles, esses sonhos tinham um papel protetor, pois reforçavam a abstinência.

No meu próprio sonho eu sabia que não podia usar a droga. Eu pegava a droga na mão, mas passava para outra pessoa. Então é legal que meu subconsciente está mudando o meu modo de pensar e de agir. Eu até acordo feliz saber que no sonho não usei a pedra. (CO3-H37)

O que eu lembro é que eu não conseguia usar. Quando eu ia usar eu acordava. O significado que eu dou para isso é que no meu consciente essa vontade de não usar já está estabelecida. É por isso que na hora do uso eu acordo. (SO2-H32)

Reportaram que os familiares quando escutavam o relato dos sonhos, sem o consumo do crack, demonstravam ficar mais tranquilos reforçando a mesma interpretação dada pelo usuário, ou seja, a dependência estava sendo vencida.

Entretanto, ao contrário dos anteriores, outros entrevistados relataram que, o não consumo de crack durante os sonhos, desencadeava, quando acordavam, os mesmos sintomas negativos que experimentavam na falta da droga. A fissura pela ausência do crack provocava o aumento da vontade de consumi-lo.

Eu nunca sonhei que estou usando a droga. Quase chego a usar e naquele momento, que seria uma alivio se acontecesse, onde seria colocada a cereja do bolo, por algum motivo não acontece. Quando eu acordo eu estou suando, não vejo a hora de acender um cigarro, entrar debaixo do banho, andar pela casa, sair. E o receio de dormir e viver isso de novo. Não é bom, é ruim, na verdade um pesadelo. (J02-H32)

Consumir a droga no sonho

Da mesma forma que os relatos anteriores, há divergência de interpretações em relação a esse conteúdo de sonho. Alguns sentiram-se bastante fragilizados, com muita culpa e angústia a ponto de interpretarem os sonhos como uma possibilidade real de uma recaída próxima.

Apesar de ter usado a droga no sonho eu não lembro do prazer. Só da angústia, da assombração de pensar que iriam me ver fumando. Eu me tornar sujo de novo, sofrer o horror e o sofrimento da recaída. (SO1-H26)

...não foi um sonho bom, foi um pesadelo. O meu intuito é tirar isso da minha vida e o sonho me traz esse uso de volta. É um sentimento ruim. (PO1-H28)

Por outro lado, outros não entenderam esses sonhos dessa mesma forma, pelo contrário, viram benefício ter consumido a droga no sonho e interpretaram como um aviso, um alerta educativo. Seria uma mensagem preventiva em relação à possibilidade de recaída ao consumo do crack. Iniciavam o dia atentos em defender o propósito de continuarem abstinentes.

Quando eu sonho que eu estou usando a droga eu vejo isso como um aviso do que eu não posso fazer o meu dia a dia. (CO3-H37)

Discussão

Os sonhos de uso, objeto desta pesquisa, são definidos como experiências vívidas, subjetivas que ocorrem durante o sono cuja a importância está centrada no fato de conterem tópicos relacionados com drogas, tais como: elementos do ritual de uso, cenas de busca e consumo da droga, etc.1313. Colace C. Drug Dreams: Clinical and Research Implications of Dreams about Drugs in Drug-addicted Patients. London: Karnac Books; 2013.,2525. Tanguay H, Zadra A, Good D, Leri F. Relationship Between Drug Dreams, Affect, and Craving During Treatment for Substance Dependence. J Addict Med 2015; 9(2):123-129..

Esses sonhos já foram descritos por outros autores que tiveram como foco outras drogas (álcool, heroína, cocaína, etc.)1414. Hajek P, Belcher M. Dream of absent-minded transgression: an empirical study of a cognitive withdrawal symptom. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):487-491.,1515. Reid SD, Simeon DT. Progression of dreams of crack cocaine abusers as a predictor of treatment outcome: a preliminary report. J Nerv Ment Dis 2001; 189(12):854-857.,2626. Colace C. Drug dreams in cocaine addiction. Drug Alcohol Rev 2006; 25(2):177.

27. Decicco TL, Higgins H. Dreams of Recovering Alcoholics: Mood, Dream Content, Discovery, and the Storytelling Method of Dream Interpretation. Int J Dream Res 2009; 2(2):45-51.

28. Yee T, Perantie DC, Dhanani N, Brown ES. Drug dreams in outpatients with bipolar disorder and cocaine dependence. J Nerv Ment Dis 2004; 192(3):238-242.
-2929. Jerry PA. Psychodynamic psychotherapy of the intravenous cocaine abuser. J Subst Abuse Treat 1997; 14(4):319-332.. Porém, pouca literatura se encontra a respeito de sonhos com crack o que reforça o objetivo deste trabalho.

Os resultados deste estudo demonstram que os sonhos de uso interferem no cotidiano dos dependentes de crack em abstinência. Considerando-se o potencial de danos físicos3030. Afonso L, Mohammad T, Thatai D. Crack whips the heart: a review of the cardiovascular toxicity of cocaine. Am J Cardiol 2007; 100(6):1040-1043.,3131. Vogenthaler NS, Hadley C, Lewis SJ, Rodriguez AE, Metsch LR, del Rio C. Food insufficiency among HIV-infected crack-cocaine users in Atlanta and Miami. Public Health Nut 2010; 13(9):1478-1484., psíquicos1717. Ribeiro LA, Sanchez ZM, Nappo SA. Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da droga. J Bras Psiquiatr 2010; 59(3):210-218.,3232. Ford JD, Gelernter J, DeVoe JS, Zhang W, Weiss RD, Brady K, Farrer L, Kranzler HR. Association of psychiatric and substance use disorder comorbidity with cocaine dependence severity and treatment utilization in cocaine-dependent individuals. Drug Alcohol Depend 2009; 99(1-3):193-203. e principalmente sociais1616. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175.,3333. Carvalho HB, Seibel SD. Crack cocaine use and its relationship with violence and HIV. Clinics 2009; 64(9):857-866.,3434. Degenhardt L, Singleton J, Calabria B, McLaren J, Kerr T, Mehta S, et al. Mortality among cocaine users: a systematic review of cohort studies. Drug Alcohol Depend 2011; 113(2-3):88-95., decorrentes do consumo de crack, esse achado merece atenção, principalmente quando o usuário inicia a recuperação e alcança a abstinência.

Analisando as características da amostra, observa-se que ela contraria, em alguns aspectos, o perfil do usuário brasileiro de crack definido pela Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack3535. Bastos FI, Bertoni N, coordenadores. Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack. Brasil. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), Ministério da Justiça (MJ). 2013 Set [ acessado 2012 Fev 15]. Disponível em: http://www.observasmjc.uff.br/psm/uploads/Pesquisa_Nacional_sobre_uso_de_crack_e_outras_drogas.pdf
http://www.observasmjc.uff.br/psm/upload...
patrocinado pela SENAD (Secretaria de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça). Nesse Levantamento, o usuário de crack foi caracterizado como sendo: homem jovem, solteiro, predominantemente “não branco”, pouco escolarizado, sem emprego/renda fixa. Entretanto, os participantes deste estudo apresentavam escolaridade alta, sendo que vários deles com ensino superior e na sua maioria brancos, média alta de idade e ainda, oito deles com empregos formais, características não condizentes ao status atribuído a usuários de crack3535. Bastos FI, Bertoni N, coordenadores. Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack. Brasil. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), Ministério da Justiça (MJ). 2013 Set [ acessado 2012 Fev 15]. Disponível em: http://www.observasmjc.uff.br/psm/uploads/Pesquisa_Nacional_sobre_uso_de_crack_e_outras_drogas.pdf
http://www.observasmjc.uff.br/psm/upload...
. Essas diferenças demonstram que o crack avançou para outras classes sociais quebrando o paradigma de associação da droga, exclusivamente, à contextos de alta vulnerabilidade social, fato já contestado por outros estudos1717. Ribeiro LA, Sanchez ZM, Nappo SA. Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da droga. J Bras Psiquiatr 2010; 59(3):210-218.. Por outro lado, a amostra deste estudo alinha-se com o perfil estabelecido pela pesquisa nacional em relação à predominância de homens sem família, fruto das perdas que sofreram devido ao consumo da droga1616. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175.,3333. Carvalho HB, Seibel SD. Crack cocaine use and its relationship with violence and HIV. Clinics 2009; 64(9):857-866.,3434. Degenhardt L, Singleton J, Calabria B, McLaren J, Kerr T, Mehta S, et al. Mortality among cocaine users: a systematic review of cohort studies. Drug Alcohol Depend 2011; 113(2-3):88-95..

De acordo com os participantes, os sonhos ocorrem mais frequentemente logo após a suspensão do consumo do crack, ou seja, no início da abstinência, coincidindo com os achados de outros autores quando do estudo de sonhos e drogas1414. Hajek P, Belcher M. Dream of absent-minded transgression: an empirical study of a cognitive withdrawal symptom. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):487-491.,2323. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de preocedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica 2011; 27(2):389-394.,2929. Jerry PA. Psychodynamic psychotherapy of the intravenous cocaine abuser. J Subst Abuse Treat 1997; 14(4):319-332.,3636. Colace C, Belsanti S, Antermite A. Limbic system irritability and drug dreams in heroin-addicted patients. Heroin Addict Relat Clin Probl 2014; 16(3):75-86. e ainda, podem persistir por semanas1414. Hajek P, Belcher M. Dream of absent-minded transgression: an empirical study of a cognitive withdrawal symptom. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):487-491.,2929. Jerry PA. Psychodynamic psychotherapy of the intravenous cocaine abuser. J Subst Abuse Treat 1997; 14(4):319-332.,3737. Colace C. Dreaming in Addiction: A Study on the Motivational Bases of Dreaming Processes. Neuropsychoanalysis 2004; 6(2):165-179., meses 12 e até anos 35. Entretanto, quando se trata de crack, esses dados passam a ter uma dimensão importante que não deve ser desprezada, ou seja, o período inicial dos sonhos ocorre no momento em que o grau de fissura está aumentado no usuário devido à abstinência do consumo da droga, portanto sonhar com a droga nesse momento pode induzir à recaída1616. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175.,3838. Johnson B. Drug dreams: a neuropsychoanalytic hypothesis. J Am Psychoanal Assoc 2001; 49(1):75-96.,3939. Haas C, Karila L, Lowenstein W. [Cocaine and crack addiction: a growing public health problem]. Bull Acad Natl Med 2009; 193(4):947-962-3.. Adiciona-se a esse fato o agravante do crack ser uma droga conhecida pelo seu grande potencial de recaída3939. Haas C, Karila L, Lowenstein W. [Cocaine and crack addiction: a growing public health problem]. Bull Acad Natl Med 2009; 193(4):947-962-3..

Os entrevistados afirmaram que o crack nem sempre estava presente no sonho, porém o seu conteúdo referia-se ao ambiente, ao ritual e às vezes à cenas relacionadas à droga, situações suficientes para que os usuários desenvolvessem, ao acordar, os sinais de fissura, levando alguns ao consumo da droga. Tiffany4040. Tiffany ST. A cognitive model of drug urges and drug-use behavior: role of automatic and nonautomatic processes. Psychol Rev 1990; 97(2):147-168. considera que com o uso repetido da droga o usuário desenvolve pistas associando-as ao consumo (cheiro, imagens, sons, etc). Autores afirmam que quando os usuários são expostos a esses estímulos condicionados ao uso da droga, neles é desencadeado um forte desejo e necessidade de consumi-la1616. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175.,3939. Haas C, Karila L, Lowenstein W. [Cocaine and crack addiction: a growing public health problem]. Bull Acad Natl Med 2009; 193(4):947-962-3.. Bruehl et al.4141. Bruehl AM, Lende DH, Schwartz M, Sterk CE, Elifson K. Craving and control: methamphetamine users’ narratives. J Psychoactive Drugs 2006; Supl. 3:385-392. e Stalcup et al.4242. Stalcup SA, Christian D, Stalcup J, Brown M, Galloway GP. A treatment model for craving identification and management. J Psychoactive Drugs 2006; 38(2):189-202. atribuem a essas pistas um aumento da fissura pela droga. Contudo, a resposta a esses estímulos é difícil de ser interrompida porque ela ocorre independente da vontade do usuário2323. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de preocedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica 2011; 27(2):389-394..

Por outro lado, quando a droga está presente no contexto do sono, as respostas são polarizadas em duas situações: consumo ou não da droga durante o sonho. Percebe-se que, embora os enredos dos sonhos nesses dois casos sejam semelhantes a interpretação dada pelos entrevistados não segue a mesma linha. Enquanto para alguns não fumar a droga era sinal de cura da dependência, para outros significou a impossibilidade de sentir prazer, levando a uma intensificação desse desejo ao despertarem. Essa última interpretação encontra amparo em achados de alguns autores que defendem a ideia do aumento da fissura devido a esses sonhos. Araujo et al.4343. Araujo RB, Oliveira MS, Piccoloto LB, Magrinelli M, Szupszynski K. A abordagem Cognitivo-Comportamental dos sonhos de alcoolistas. Rev Psiquiatr do Rio Gd do Sul 2004; 26(1):70-77. identificaram uma ligação entre sonhar com álcool e aumento da fissura entre alcoolistas na fase de desintoxicação. Outros autores1212. Christo G, Franey C. Addicts Drug-Related Dreams: Their Frequency and Relationship to Six-Month Outcomes. Subst Use Misuse 1996; 31(1):1-15,2828. Yee T, Perantie DC, Dhanani N, Brown ES. Drug dreams in outpatients with bipolar disorder and cocaine dependence. J Nerv Ment Dis 2004; 192(3):238-242. afirmam que a frequência com a qual esses sonhos ocorrem poderia estar relacionada a um aumento na fissura e dessa forma encorajaria o retorno à droga.

Em contrapartida, consumir a droga durante o sonho significou a derrota para alguns usuários. A culpa, a incapacidade em manter-se abstinente revelada no sonho, torna-os vulneráveis podendo comprometer a abstinência. Johnson3838. Johnson B. Drug dreams: a neuropsychoanalytic hypothesis. J Am Psychoanal Assoc 2001; 49(1):75-96.reforça essa ideia quando assegura que sonhar com o consumo da droga representa o desejo do dependente em usá-la.

Entretanto, em contraste, outros usuários sentiram-se fortalecidos com esse episódio, pois fizeram a distinção entre sonho e realidade e de forma otimista interpretaram ter encontrado uma nova forma de saciar o desejo pela droga, que seria através dos sonhos.

Alguns pesquisadores acreditam que o prazer da droga alcançado no sonho pode ter um papel compensatório que favorece à abstinência1414. Hajek P, Belcher M. Dream of absent-minded transgression: an empirical study of a cognitive withdrawal symptom. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):487-491.,1515. Reid SD, Simeon DT. Progression of dreams of crack cocaine abusers as a predictor of treatment outcome: a preliminary report. J Nerv Ment Dis 2001; 189(12):854-857..

Conclui-se que os sonhos relacionados ao crack obrigam o indivíduo, de forma involuntária e incontrolável, reviver a cultura do uso, ou seja, o consumo, os ambientes, os colegas de uso, o gosto, os cheiros e também o prazer. Por outro lado, mais importante que o conteúdo do sonho por si só, a interpretação que os usuários dão aos sonhos parece ser uma informação importante que pode subsidiar possíveis intervenções terapêuticas visando a prevenção da recaída.

Referências

  • 1
    Pinto JR, Timo-aria C. Atividade Onírica e os sonhos. In: Tufik S, organizador. Medicina E Biologia Do Sono Barueri: Editora Manole; 2008. p. 227-237.
  • 2
    Scott R, Ribeiro S. A Ocorrência de Sonhos Antecipatórios é Proporcional à Crença em sua Eficácia. Neurobiologia 2010; 73(3):73-86.
  • 3
    Freud S. A interpretação dos sonhos Porto Alegre: L&PM Editores; 2012.
  • 4
    Vinocur Fischbein S, Miramón B. Theoretical trajectories: Dreams and dreaming from Freud to Bion. Int. J. Psychoanal 2015; 96(4):967-992.
  • 5
    Hobson JA, Pace-Schott EF, Stickgold R. Dreaming and the brain: Toward a cognitive neuroscience of conscious states. Behav Brain Sci 2000; 23(6):793-842.
  • 6
    Pace-Schott EF. REM sleep and dreaming. In: Mallick BN, Pandi-Perumal SR, McCarley RW, Morrison AR editors. Rapid Eye Movement Sleep-Regulation and Function New York: Cambridge university press; 2011. p. 8-20.
  • 7
    Sikka P, Valli K, Virta T, Revonsuo A. I know how you felt last night, or do I? Self- and external ratings of emotions in REM sleep dreams. Conscious Cogn 2014; 25(1):51-66.
  • 8
    Tanguay H, Antonio Z, Daniel G, Francesco L. Relationship between drug dreams, affect, and craving during treatment for substance dependence [thesis]. Ontaro: University of Guelph; 2014.
  • 9
    Blagrove M, Fouquet NC, Henley-Einion JA, Pace-Schott EF, Davies AC, Neuschaffer JL, Turnbull OH. Assessing the dream-lag effect for REM and NREM stage 2 dreams. PLoS One 2011; 6(10):e26708.
  • 10
    Nielsen TA, Kuiken D, Alain G, Stenstrom P, Powell RA. Immediate and delayed incorporations of events into dreams: Further replication and implications for dream function. J Sleep Res 2004; 13(4):327-336.
  • 11
    Berro LF, Frussa-Filho R, Tufik S, Andersen ML. Relationships between sleep and addiction: The role of drug-environment conditioning. Med. Hypotheses 2014; 82(3):374-376.
  • 12
    Christo G, Franey C. Addicts Drug-Related Dreams: Their Frequency and Relationship to Six-Month Outcomes. Subst Use Misuse 1996; 31(1):1-15
  • 13
    Colace C. Drug Dreams: Clinical and Research Implications of Dreams about Drugs in Drug-addicted Patients London: Karnac Books; 2013.
  • 14
    Hajek P, Belcher M. Dream of absent-minded transgression: an empirical study of a cognitive withdrawal symptom. J Abnorm Psychol 1991; 100(4):487-491.
  • 15
    Reid SD, Simeon DT. Progression of dreams of crack cocaine abusers as a predictor of treatment outcome: a preliminary report. J Nerv Ment Dis 2001; 189(12):854-857.
  • 16
    Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175.
  • 17
    Ribeiro LA, Sanchez ZM, Nappo SA. Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da droga. J Bras Psiquiatr 2010; 59(3):210-218.
  • 18
    Creswell JW. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods approaches 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2009.
  • 19
    Patton MQ. Qualitative research & Evaluation methods: integrating theory and practice 3rd ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002.
  • 20
    Kvale S. Interviews: an introduction to qualitative research interviewing Thousand Oaks: Sage Publications; 1996.
  • 21
    American Psychiatry Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 4th ed. Porto Alegre: Artmed; 2002.
  • 22
    Glaser BG, Strauss AL. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research New York: Aldine de Gruyter; 1967.
  • 23
    Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de preocedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica 2011; 27(2):389-394.
  • 24
    Bardin L. Análise de conteúdo 3rd ed. Lisboa: Edições 70; 2004.
  • 25
    Tanguay H, Zadra A, Good D, Leri F. Relationship Between Drug Dreams, Affect, and Craving During Treatment for Substance Dependence. J Addict Med 2015; 9(2):123-129.
  • 26
    Colace C. Drug dreams in cocaine addiction. Drug Alcohol Rev 2006; 25(2):177.
  • 27
    Decicco TL, Higgins H. Dreams of Recovering Alcoholics: Mood, Dream Content, Discovery, and the Storytelling Method of Dream Interpretation. Int J Dream Res 2009; 2(2):45-51.
  • 28
    Yee T, Perantie DC, Dhanani N, Brown ES. Drug dreams in outpatients with bipolar disorder and cocaine dependence. J Nerv Ment Dis 2004; 192(3):238-242.
  • 29
    Jerry PA. Psychodynamic psychotherapy of the intravenous cocaine abuser. J Subst Abuse Treat 1997; 14(4):319-332.
  • 30
    Afonso L, Mohammad T, Thatai D. Crack whips the heart: a review of the cardiovascular toxicity of cocaine. Am J Cardiol 2007; 100(6):1040-1043.
  • 31
    Vogenthaler NS, Hadley C, Lewis SJ, Rodriguez AE, Metsch LR, del Rio C. Food insufficiency among HIV-infected crack-cocaine users in Atlanta and Miami. Public Health Nut 2010; 13(9):1478-1484.
  • 32
    Ford JD, Gelernter J, DeVoe JS, Zhang W, Weiss RD, Brady K, Farrer L, Kranzler HR. Association of psychiatric and substance use disorder comorbidity with cocaine dependence severity and treatment utilization in cocaine-dependent individuals. Drug Alcohol Depend 2009; 99(1-3):193-203.
  • 33
    Carvalho HB, Seibel SD. Crack cocaine use and its relationship with violence and HIV. Clinics 2009; 64(9):857-866.
  • 34
    Degenhardt L, Singleton J, Calabria B, McLaren J, Kerr T, Mehta S, et al. Mortality among cocaine users: a systematic review of cohort studies. Drug Alcohol Depend 2011; 113(2-3):88-95.
  • 35
    Bastos FI, Bertoni N, coordenadores. Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack Brasil. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), Ministério da Justiça (MJ). 2013 Set [ acessado 2012 Fev 15]. Disponível em: http://www.observasmjc.uff.br/psm/uploads/Pesquisa_Nacional_sobre_uso_de_crack_e_outras_drogas.pdf
    » http://www.observasmjc.uff.br/psm/uploads/Pesquisa_Nacional_sobre_uso_de_crack_e_outras_drogas.pdf
  • 36
    Colace C, Belsanti S, Antermite A. Limbic system irritability and drug dreams in heroin-addicted patients. Heroin Addict Relat Clin Probl 2014; 16(3):75-86.
  • 37
    Colace C. Dreaming in Addiction: A Study on the Motivational Bases of Dreaming Processes. Neuropsychoanalysis 2004; 6(2):165-179.
  • 38
    Johnson B. Drug dreams: a neuropsychoanalytic hypothesis. J Am Psychoanal Assoc 2001; 49(1):75-96.
  • 39
    Haas C, Karila L, Lowenstein W. [Cocaine and crack addiction: a growing public health problem]. Bull Acad Natl Med 2009; 193(4):947-962-3.
  • 40
    Tiffany ST. A cognitive model of drug urges and drug-use behavior: role of automatic and nonautomatic processes. Psychol Rev 1990; 97(2):147-168.
  • 41
    Bruehl AM, Lende DH, Schwartz M, Sterk CE, Elifson K. Craving and control: methamphetamine users’ narratives. J Psychoactive Drugs 2006; Supl. 3:385-392.
  • 42
    Stalcup SA, Christian D, Stalcup J, Brown M, Galloway GP. A treatment model for craving identification and management. J Psychoactive Drugs 2006; 38(2):189-202.
  • 43
    Araujo RB, Oliveira MS, Piccoloto LB, Magrinelli M, Szupszynski K. A abordagem Cognitivo-Comportamental dos sonhos de alcoolistas. Rev Psiquiatr do Rio Gd do Sul 2004; 26(1):70-77.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2016
  • Revisado
    31 Maio 2017
  • Aceito
    02 Jun 2017
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br