Resumo
A aprovação da Lei no 12.764/2012 representou uma vitória do ativismo político de familiares de autistas no Brasil, mas também deu visibilidade a um enorme antagonismo entre uma parcela significativa de pais de autistas e a rede de saúde mental. Este artigo analisa o posicionamento dos diferentes atores envolvidos na controvérsia que se sucedeu à aprovação e regulamentação da lei, e procura demonstrar as razões pelas quais essa polêmica antecede à lei e não se resolve com ela. Argumenta-se que a conturbada relação entre o movimento político de pais de autistas e a rede de saúde mental pode ser mais bem entendida se tomarmos a construção e a legitimação de uma rede de “expertise” a respeito dos transtornos do espectro autista como indissociável da construção de uma identidade social e política para os autistas no Brasil. O artigo utiliza como referência teórica os Estudos sobre Expertise e Experiência, que têm como principal pano de fundo uma discussão acerca do novo regime de relações entre a pesquisa científica e a sociedade civil. Entretanto, demonstramos também que a consolidação dessa rede de expertise vem ocorrendo apesar da ausência de uma ampla rede de tratamentos especializados e de uma reconfiguração profunda no regime de pesquisa e de produção de conhecimento sobre autismo no Brasil.
Autismo; Expertise; Experiência; Identidade
Abstract
The passing of federal law 12,764/2012 marked a victory for the political activism of parents of autistic individuals in Brazil, but it also drew attention to the serious antagonism between parents of autistic individuals and the mental health network. This article examines the perspectives of social actors involved in the controversy that took place after the enactment of this law and seeks to show why this controversy precedes the passing of the law and is not resolved by it. The argument is that the troubled relationship between the political movement of parents of autistic individuals and the mental health network can be better understood when the construction and consolidation of a network of expertise around autism spectrum disorders as being inseparable from the construction of a social and political identity for autistic people in Brazil is taken into consideration. The article draws inspiration from the Studies of Expertise and Experience, which discuss the new regime of relations between scientific research and civil society. Nevertheless, it is also seen that the consolidation of this expertise network has arisen despite the absence of a broad specialized treatment network and of a profound reconfiguration in the regime of scientific research and production of knowledge about autism in Brazil.
Autism; Expertise; Experience; Identity
Introdução
A aprovação da Lei no 12.764, em dezembro de 2012, também conhecida como Lei Berenice Piana, representou uma vitória do ativismo político de familiares de autistas por todo o Brasil, mas também deu visibilidade a um enorme antagonismo entre pais de autistas e a rede de saúde mental. Este artigo analisa o posicionamento dos diferentes atores envolvidos na controvérsia que se sucedeu à aprovação e regulamentação da lei, e procura demonstrar as razões pelas quais essa polêmica antecede à lei e não se resolve com ela. Argumenta-se que a conturbada relação entre o movimento político de pais de autistas e a rede de saúde mental pode ser mais bem entendida se tomarmos a construção e a legitimação de uma rede de expertise a respeito dos transtornos do espectro autista como indissociável da construção de uma identidade social e política para os autistas no Brasil. Como veremos a seguir, embora essa rede de expertise esteja intimamente ligada à especialização profissional no tratamento do autismo, ela não se reduz a essa especialização e nem às práticas e aos discursos terapêuticos que lhe são subjacentes. Esse argumento tem como pano de fundo teórico, por um lado, os debates contemporâneos acerca de bioidentidades e biossocialidades11. Rose N, Novas C. Biological Citizenship. In: Ong A, Collier SJ, editors. Global Assemblages: Technology, Politics, and Ethics as Anthropological Problems. Malden, MA: Blackwell; 2005. p. 439-463.,22. Rabinow P. Artificiality and Enlightenment: From Sociobiology to Biosociality. In: Rabinow P. Essays on the Anthropology of Reason. Princeton: Princeton University Press; 1996. p. 91-111., e, por outro, a chamada terceira onda dos Estudos da Ciência, qual seja, os Estudos de Expertise e Experiência33. Collins H, Evans R. The Third Wave of Science Studies: Studies of Expertise and Experience. Social Studies of Science 2002; 32(2):235-296..
Considerando-se todos os benefícios garantidos pela Lei no 12.764, a história da mobilização e das controvérsias que antecederam e sucederam sua aprovação demonstra que, no cerne das reivindicações dos familiares, está a demanda por um tratamento especializado para as pessoas com transtorno do espectro autista. O texto da lei não é específico no que diz respeito a tratamentos, estabelecendo apenas que o autista tem direito a “atendimento multiprofissional”. Para uma boa parte dos pais ativistas, como Berenice Piana, e diversas associações de pais envolvidas na luta pela aprovação da lei, isso deveria implicar a criação de centros especializados para o tratamento para autistas. O decreto 8.368/2014, que regulamenta essa lei, publicado no início de dezembro de 2014, depois de dois anos de muita polêmica, propõe, entretanto, “a qualificação e o fortalecimento da rede de atenção psicossocial e da rede de cuidados de saúde da pessoa com deficiência no atendimento das pessoas com o transtorno do espectro autista”44. Brasil. Decreto No 8.368, de 2 de Dezembro de 2014. Diário Oficial da União 2014; 3 dez..
Embora parte das associações de pais tenha participado da formulação e da aprovação da regulamentação dessa lei, uma parcela significativa dos pais ativistas permanece irredutível na demanda por “atendimento especializado” e na recusa dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como possíveis dispositivos de cuidados para autistas. A rede de atenção psicossocial é composta de diferentes dispositivos, mas o CAPS é um serviço estratégico da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), e “tem a importante tarefa de promover a articulação com os serviços de saúde e da rede intersetorial”55. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Linha de cuidado para a atenção às pessoas com Transtornos do Espectro do Autismo e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do SUS. Brasília: MS; 2013.. Entre outros critérios, os CAPS se diferenciam também pela clientela atendida, tendo uma versão especializada em infância e adolescência, os chamados CAPSi, e uma que atende especificamente usuários de álcool e drogas, o chamado CAPSad. Para esse grupo de pais ativistas, os CAPS não teriam condição de atender às necessidades específicas dos autistas (sobre o desencontro entre profissionais da saúde mental e familiares, ver também66. Constantinidis TC, Andrade AN. Demanda e oferta no encontro entre profissionais de saúde mental e familiares de pessoas com sofrimento psíquico. Cien Saude Colet 2015; 20(2):333-342.).
Os profissionais da rede pública de saúde mental por sua vez tendem a criticar o excessivo especialismo implícito nas reivindicações desses pais ativistas. Para eles, a tendência a especialização excessiva dos serviços oferecidos pela rede pública fere o princípio da integralidade em saúde no SUS, pois ignora a totalidade da experiência do sujeito no mundo e os componentes sociais e econômicos do seu sofrimento. Além disso, aprofundaria a exclusão social experimentada pelos autistas em função do estigma associado a essa condição.
A discussão apresentada aqui se baseia em uma pesquisa etnográfica mais ampla acerca do autismo no Brasil. A primeira etapa do trabalho consistiu numa pesquisa na mídia impressa77. Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(53):325-336.. Além disso, uma equipe de pesquisadores tem acompanhado desde 2012 eventos públicos destinados à disseminação de informação e à conscientização sobre autismo: congressos, fóruns e seminários no campo da saúde mental para a infância e a adolescência; audiências públicas para discutir o tratamento de crianças com autismo no Sistema Único de Saúde (SUS); e outros eventos relacionados ao ativismo político de pais de autistas. O trabalho de campo também associa observação participante com entrevistas semiestruturadas em quatro contextos específicos – uma associação de pais que presta atendimento a famílias de baixa renda, dois CAPSis e um programa voltado para a inclusão social de pessoas com deficiência, entre as quais aquelas com autismo. O presente artigo está baseado primordialmente na observação participante de eventos públicos e na pesquisa feita na mídia impressa. As entrevistas semiestruturadas, embora não citadas diretamente, também contribuíram para as reflexões apresentadas nesse artigo.
Repensando a expertise e demarcando territórios identitários
Os Estudos de Expertise e Experiência (EEE) despontam no campo dos Estudos da Ciência não tanto como uma crítica epistemológica sobre a “verdade” da ciência, mas a partir de uma preocupação com a extensão dos limites da participação pública nas decisões políticas que requerem conhecimento técnico. Com o intuito de ajudar a delimitar o grupo de pessoas que estariam aptas a tomar tais decisões, ou seja, distinguir entre experts e não experts, Collins e Evans88. Collins H, Evans R. Expertise: From Attribute to Attribution and Back Again? In: Hackett EJ, Amesterdamska O, Lynch M, Wajcman J, organizadores. The Handbook of Science and Technology Studies. 3th ed. Cambridge, Massachusetts, London: The MIT Press; 2008. p. 609-630.,99. Collins H, Evans R. Rethinking Expertise. Chicago: University of Chicago Press; 2009. propõem uma análise da própria natureza da expertise. Para esses autores a expertise assenta-se não apenas o reconhecimento social e institucional, mas em habilidades reais e substantivas adquiridas através da experiência. Ou seja, a expertise é simultaneamente formal e performativa - “ser um expert envolve familiaridade com os aspectos formais do conhecimento juntamente com a capacidade de agir e responder às circunstâncias.”88. Collins H, Evans R. Expertise: From Attribute to Attribution and Back Again? In: Hackett EJ, Amesterdamska O, Lynch M, Wajcman J, organizadores. The Handbook of Science and Technology Studies. 3th ed. Cambridge, Massachusetts, London: The MIT Press; 2008. p. 609-630.. Essa abordagem contrapõe-se a uma sociologia focada somente na aquisição do status de expert e nos limites formais de sua jurisdição. Postula-se com isso uma acepção mais ampla do que seja uma rede de expertise, incluindo tanto os experts por atribuição formal quanto aqueles que têm conhecimento técnico e experiencial, mas não as credenciais atribuídas por uma rede de atores e instituições (o que alguns autores chamam de “experts leigos”)1010. Epstein S. The Construction of Lay Expertise: AIDS Activism and the Forging of Credibility in the Reform of Clinical Trials. Science, Technology, & Human Values 1995; 20(4):408-437.,1111. Epstein S. Impure Science – Aids, Activism, and the Politics of Knowledge. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press; 1996..
Assim, os EEE procuram problematizar a questão da expertise no contexto de um novo regime de relações entre a ciência e a sociedade. Conforme apontam Rabeharisoa e Callon1212. Rabeharisoa V, Callon M. Patients and Scientists in French Muscular Dystrophy Research. In: Rabeharisoa V, Callon M, editors. States of Knowledge – The Co-production of Science and Social Order. London, New York: Routledge; 2004.[informar as páginas do capítulo], a noção de coprodução captura bem a natureza de novo regime de relações, na medida em que há uma ampliação do diálogo entre cientistas e grupos de interesse específico (tais como associações de pacientes), que resulta em ações projetadas e executadas em conjunto. Ainda segundo esses autores, por um lado, a coprodução envolve “emergência de ações coletivas e [...] formação de novas identidades”, e, por outro, “construção de objetos de interesse compartilhado que não poderiam ter emergido sem essas ações coletivas”1212. Rabeharisoa V, Callon M. Patients and Scientists in French Muscular Dystrophy Research. In: Rabeharisoa V, Callon M, editors. States of Knowledge – The Co-production of Science and Social Order. London, New York: Routledge; 2004.[informar as páginas do capítulo]. Dessa forma, os EEE explorariam tanto os novos processos de construção de conhecimento resultantes da colaboração entre cientistas e grupos de interesse específico quanto os efeitos sociais e identitários que tais processos colaborativos produzem. De uma forma geral, no entanto, parece haver uma preocupação muito maior com o impacto que esse novo regime de relações tem no processo de pesquisa e de construção de conhecimento do que com as novas identidades e a mobilização política construídas a partir dessas redes de expertise. Quando a discussão política aparece, ela está atrelada às reconfigurações no processo de construção de conhecimento. É o caso, por exemplo, do clássico trabalho de Steven Epstein1010. Epstein S. The Construction of Lay Expertise: AIDS Activism and the Forging of Credibility in the Reform of Clinical Trials. Science, Technology, & Human Values 1995; 20(4):408-437. sobre ativistas no campo da Aids nos Estados Unidos. Embora a questão política e identitária perpasse todo o trabalho de Epstein, seu foco principal é nos mecanismos e nas táticas utilizados por ativistas leigos para construir sua credibilidade como experts e se tornarem participantes legítimos na construção de conhecimento científico, garantindo com isso seu acesso a instâncias de deliberação política mais ampla. Nesse sentido, não é por acaso que o próprio campo de Estudos de Expertise e Experiência apresentado por Collins e Evans surge como resposta à preocupação com a extensão dos limites da participação pública nas decisões políticas que requerem conhecimento técnico. A reconfiguração política desse processo decisório está intimamente relacionada a uma reconfiguração epistêmica.
No presente artigo, focamos nossa análise na dimensão política e identitária inerente à formação de redes de expertise sob outro ângulo. Argumentamos que a construção e a legitimação de uma rede de expertise em torno dos transtornos do espectro autista vêm possibilitando a consolidação de uma identidade social e política a partir do autismo, mesmo na ausência de uma ampla rede de tratamentos especializados e de uma reconfiguração profunda no regime de pesquisa e de produção de conhecimento a respeito do autismo no Brasil. Em vez disso, essa rede de expertise, liderada especialmente por associações de pais, vem mobilizando o conhecimento científico produzido em outros países como bandeira política para a reivindicação de tratamento especializado. Isso significa, paradoxalmente, desatrelar a existência de uma extensa rede de tratamento especializado daquela de expertise e ainda assim afirmar a centralidade das demandas por esse tipo de tratamento para a consolidação dessa rede de expertise e de uma identidade social e política para o autismo no Brasil. Não se trata aqui de afirmar o óbvio, ou seja, que o autismo é um diagnóstico médico e que, portanto, é preciso que exista uma rede profissional capaz de produzir e legitimar esse diagnóstico, mas de apontar que práticas diagnósticas e, em especial, terapêuticas, são atravessadas por processos políticos e sociais mais amplos, uma vez que dão visibilidade pública aos autistas e seus familiares. Além disso, dão contornos identitários específicos a uma população cujas demandas até então vinham sendo compreendidas em termos mais genéricos.
Embora o tratamento especializado esteja intimamente relacionado à consolidação de uma rede de expertise em torno do autismo, a nova sociologia da expertise proposta por Collins e Evans88. Collins H, Evans R. Expertise: From Attribute to Attribution and Back Again? In: Hackett EJ, Amesterdamska O, Lynch M, Wajcman J, organizadores. The Handbook of Science and Technology Studies. 3th ed. Cambridge, Massachusetts, London: The MIT Press; 2008. p. 609-630.,99. Collins H, Evans R. Rethinking Expertise. Chicago: University of Chicago Press; 2009. nos permite, portanto, pensar essa rede de expertise para além dos discursos e das práticas formulados por profissionais e pesquisadores (tais como práticas diagnósticas, aplicação de testes padronizados, terapias especializadas, técnicas pedagógicas, técnicas de mediação escolar etc.). De fato, foi justamente essa rede de expertise, tomada num sentido mais amplo, que possibilitou a especialização do tratamento no Brasil, particularmente a partir da criação das associações de pais voltadas ao tratamento para autistas. A primeira delas foi a Associação de Pais e Amigos dos Autistas (AMA), fundada em 1983, em São Paulo, e responsável pela introdução do método TEACCH no Brasil. A AMA-SP não apenas apoiou a criação de outras associações semelhantes pelo resto do País, como também inspirou outras associações de pais focadas somente no ativismo político, tais como a Associação Brasileira de Autismo (Abra), a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (Abraça), o Movimento Orgulho Autista (Moab), entre outras. Portanto, a rede de expertise em torno do autismo vem-se consolidando juntamente com um forte ativismo político por parte dos pais.
Além disso, observa-se também uma intensa troca de informações e de experiências em rede sociais1313. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, Chagas BS, Feldman C. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu) 2013; 17(44):119-132., em workshops com apresentações de profissionais, depoimento de pais e autistas, na mídia impressa77. Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(53):325-336. etc. É importante notar, entretanto, que a grande maioria das pesquisas divulgadas nesses meios, das escalas de avaliação e dos tratamentos tidos como cientificamente válidos, são estrangeiras. Assim, se a troca intensa de informações e de experiências entre pais e ativistas se dá às margens de uma rede profissional estabelecida e legitimada, isso não representa necessariamente um questionamento da autoridade científica, que, ao contrário, quando inscrita na noção de “tratamento especializado”, concede legitimidade e força política para o movimento de pais ativistas.
Não se pretende analisar aqui, entretanto, a transformação, ou não, do regime de produção e disseminação de conhecimento a partir do autismo. Pretendemos apenas explicitar o trabalho identitário que acompanha a formação de uma rede de expertise, não simplesmente como um efeito de práticas diagnósticas e medicalizantes, mas como uma construção política que dá força e visibilidade ao ativismo em torno do autismo no Brasil. Nesse sentido, os EEE permitem-nos abordar esse processo de construção identitária para além dos discursos e das práticas estritamente profissionais, incorporando em nossa análise características importantes das políticas de identidade, tais como sua ênfase nos aspectos pessoais e íntimos da vida humana, e a necessidade de dar sentido a experiências de sofrimento e de exclusão social como uma força mobilizadora do fazer político (ver, por exemplo77. Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(53):325-336.,1414. Nunes FCF. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro – perspectivas para o campo da saúde [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2014.).
A especificidade, a especialidade e o SUS
Em um livro sobre as origens sociais do que se vem chamando de epidemia de autismo, Eyal et al.1515. Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic. Cambridge: Polity Press; 2010. propõem que a matriz institucional que se estabeleceu a partir da desinstitucionalização do retardo mental no final dos anos 1960, nos Estados Unidos, deu origem à noção atual de transtornos do espectro autista. Segundo esses autores, a desinstitucionalização funcionou como um “liquidificador moral”, em que o abandono das antigas categorias utilizadas no contexto das instituições de custódia deu origem a uma massa de “crianças atípicas”1515. Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic. Cambridge: Polity Press; 2010.. Novas categorias começaram então a ser diferenciadas dentro de uma nova matriz institucional, a qual foi capaz de borrar as fronteiras entre o retardo e a doença mental, e, nesse arranjo, o autismo se tornou a forma dominante de representar e de intervir nas desordens da infância. Dessa forma, o termo “autismo” passou a designar cada vez mais um espectro que abarca uma enorme diversidade de sintomas e de configurações.
De acordo com esse argumento, a construção da expertise sobre o autismo caminha lado a lado com a sua explosão diagnóstica e também com uma reorganização na matriz institucional e terapêutica construída a partir de seu tratamento. O que esses autores exploram, porém, não é a patologização da atipia mental ou a medicalização de desvios sociais, mas rearranjos diagnósticos e terapêuticos dentro do próprio âmbito da psiquiatria e às margens dela1515. Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic. Cambridge: Polity Press; 2010., que tiveram efeitos profundos na configuração diagnóstica do que se entende hoje por Transtornos do Espectro Autista e na construção da identidade social subjacente a essa condição. Eyal et al. se inspiram nas ideias de Ian Hacking1616. Hacking I. Making up people. In: Biagioli M, organizador The Science Studies Reader. London: Routledge; 1999.[informar as páginas do capítulo] a respeito do efeito looping, para defender que a construção de uma rede de expertise em torno dessa massa de “crianças atípicas” tornou o autismo não apenas uma classificação diagnóstica popular, mas possibilitou uma construção identitária tomando por base esse diagnóstico. Como identidade diagnóstica, o autismo cria uma forma específica de dar sentido a experiências pessoais e de lidar consigo mesmo (sozinho ou por meio do trabalho terapêutico). Além disso, constitui-se também em um “ponto focal para indivíduos se encontrarem, reconhecerem-se uns aos outros, organizarem e desenvolverem uma linguagem compartilhada que dá forma e significado a suas experiências”1515. Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic. Cambridge: Polity Press; 2010..
A correlação entre o diagnóstico de autismo como ponto focal para uma construção identitária e os contornos específicos da expertise que se desenvolveu sobre ele permite-nos também retomar a discussão acerca da adoção de determinadas abordagens terapêuticas para tratar o autismo dentro do SUS sob outro ângulo. De acordo com o argumento que procuramos desenvolver neste artigo, o elemento principal e a maior fonte de polêmica no posicionamento dos profissionais da área de saúde mental em relação às solicitações dos pais ativistas é sua enorme resistência à demanda por tratamento especializado. É o que mostram os seguintes trechos de depoimentos desses profissionais em recente audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) para tratar da integração das crianças autistas aos CAPSis:
[...] a maneira como esse serviço [CAPSi] acolhe a todos... não é priorizando um diagnóstico, não é pelo diagnóstico que a gente recebe uma criança em tratamento, é pelo grau de sofrimento mental dessa criança, pelo grau de sofrimento dessa família principalmente, pelas dificuldades que essa família encontra para poder incluir o seu filho, para poder fazer com que ele esteja na vida como todos1717 Depoimentos colhidos pelos autores durante audiência na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Rio de Janeiro; maio de 2014..
[...] a questão de fundo [...] é uma concepção ética, mais do que teórica – se nós vamos tomar o autista como um doente, que tem funções em déficit, que então precisam ser tratadas numa perspectiva de clínica especializada, que vai se especializar... uma retificação se o senhor me permite, não são clínicas específicas, são especializadas mesmo – elas querem tomar como especialidade “aqui se trata de autista” [...]. É muito mais potente [...] um dispositivo que trate sim das especificidades, e não da especialidade, das crianças autistas1717 Depoimentos colhidos pelos autores durante audiência na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Rio de Janeiro; maio de 2014..
Eu, pessoalmente, sou totalmente contra um centro especializado para o autismo. Porque eu acho que o centro especializado, ele vai na direção oposta da inclusão. [...] Esses casos de crianças, eles são casos que muitas vezes você tem o autismo, só. E muitas vezes você tem o autismo e outras questões. E aí, quanto mais você especializa, mais você exclui1717 Depoimentos colhidos pelos autores durante audiência na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Rio de Janeiro; maio de 2014..
Alguns pontos merecem ser destacados nesses depoimentos. O primeiro é a noção de que “sofrimento mental” tem prioridade em relação a um diagnóstico específico. Trabalhar visando à atenuação do sofrimento mental do usuário tornaria possível que seus problemas fossem abordados a partir de uma ótica mais ampla, que envolve diversas áreas de sua vida, e não restrita ao diagnóstico. A especialização do tratamento, por outro lado, implicaria a redução do sujeito ao seu diagnóstico e a sua exclusão social e política. Um tratamento especializado também implicaria a percepção do autista como um doente e portador de um déficit, de acordo com o segundo depoimento. O CAPSi, por outro lado, cuidaria das “especificidades” da criança autista, ou seja, faria um tratamento a partir da singularidade de cada caso.
De acordo com esses profissionais, o diagnóstico e a especialização teriam o poder de anular a singularidade do sujeito e todos os outros aspectos de sua vida. Além disso, selariam um destino de exclusão social e, consequentemente, a negação de sua condição de “sujeito de direitos”. Nos termos de Jane Russo1818. Russo J. Os três sujeitos da psiquiatria. Cadernos IPUB 1997; (8):11-21. em artigo seminal de sua autoria, a lógica implícita nesse argumento parece ser a de que somente a defesa de um “sujeito da singularidade” – ou seja, aquele no qual se valoriza a diferença individual – garantiria a autonomia política e social necessária para que o “sujeito cidadão”, isto é, um indivíduo “autônomo, livre e igual”, pudesse emergir e ser incluído socialmente.
Também é comum no discurso de profissionais da rede de saúde mental a preocupação com os “falsos positivos”, ou seja, com o fato de que um foco excessivo no diagnóstico e na especialização acabaria por acarretar um boom diagnóstico, no qual seriam incluídas como autistas crianças que estão em sofrimento mental pelos mais diversos motivos. Essa preocupação não surge num vácuo histórico obviamente, mas num contexto em que a explosão de diagnósticos na infância tem levantado diversas discussões sobre a medicalização desse período da vida humana (infância). O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), por exemplo, tem-se configurado como um dos diagnósticos mais controversos nesse campo, especialmente por envolver tratamento medicamentoso. O transtorno bipolar e a depressão infantil também têm despontado como diagnósticos cada vez mais comuns.
O discurso crítico em relação à medicalização da infância alia-se também a uma forte crítica a um suposto reducionismo biológico inerente às concepções fisicalistas sobre o autismo, que teria como corolário a descontextualização e a naturalização do sofrimento psíquico, transformado então em condição perene com forte carga estigmatizante.
Expertise e biossocialidade
As associações de pais que lutam pelos direitos dos autistas e as narrativas jornalísticas sobre o autismo articulam um ponto de vista bem diferente daquele dos profissionais de saúde mental. De acordo com essa perspectiva, em lugar de medicalização, haveria uma enorme falta de informação e desassistência no que tange ao autismo. Em vez de “falsos positivos”, haveria, de fato, uma demanda reprimida de “falsos negativos”.
Os “falsos negativos”, nesse caso, seriam pessoas que não foram diagnosticadas e que teriam tido um prognóstico melhor se houvesse intervenção precoce. É comum, por exemplo, nos depoimentos de mães ativistas, a menção a uma verdadeira via crucis até conseguirem um diagnóstico1414. Nunes FCF. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro – perspectivas para o campo da saúde [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2014.. Uma mãe em especial, líder de uma das várias associações de pais que lutam pelos direitos dos autistas, abre suas palestras com sua história pessoal. Por volta de um ano e meio de idade, seu filho começou a apresentar sintomas do que é conhecido como “autismo regressivo”, ou seja, ele se desenvolveu normalmente até certa idade e, num período relativamente curto, passou a desenvolver comportamentos associados ao autismo. Em seu desespero de mãe, ela procurou diversos profissionais e ouviu com frequência que era assim mesmo, que cada criança é diferente, que aquilo provavelmente era uma fase. Ao longo da pesquisa encontramos diversas mães como essa, que relataram sentir um enorme alívio no momento em que finalmente conseguiram dar um nome e um diagnóstico a algo que elas já haviam percebido havia muito tempo.
Há nessa perspectiva, portanto, uma ênfase na enorme desinformação sobre o autismo no Brasil, além da falta de serviços especializados. A mídia impressa, por sua vez, articula esse argumento com uma crítica mais geral à falta de políticas públicas para o autismo no campo da saúde e da educação. Como, no caso do autismo, a intervenção precoce figura entre os mais importantes elementos para um bom prognóstico, não há espaço aqui para a cautela dos que evitam patologizar a diferença. É preciso, antes de tudo, estimular a criança o mais cedo possível, de forma que ela tenha chance de se desenvolver ao máximo ou até mesmo “sair do espectro”. Oferecer o mesmo tipo de tratamento para os autistas que é destinado a usuários de álcool e de drogas e a esquizofrênicos – uma das maiores queixas dos pais ativistas em relação aos CAPSis – significa, portanto, negar a especificidade do autismo como condição clínica. A inclusão social dos autistas é também uma bandeira e um objetivo para os pais ativistas, mas entende-se que ela só seria possível a partir de uma atenção especializada, capaz de oferecer aos autistas as habilidades necessárias para que eles possam de fato ser incluídos socialmente. Mais do que isso, tais habilidades são definidas e determinadas a partir das dificuldades que distinguem o autismo, que seriam diferentes das que caracterizam o abuso de drogas e a esquizofrenia.
É nesse contexto também que o interesse pelas origens neurobiológicas desses transtornos ganha mais força. Uma boa parte das matérias que saem sobre autismo na mídia impressa divulga estudos e pesquisas sobre aspectos genéticos e neurológicos77. Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(53):325-336.. Mas se, a princípio, a ênfase nas descrições neurobiológicas parece fazer do autismo, no dizer de Verhoeff1919. Verhoeff B. What Is this Thing Called Autism? A Critical Analysis of the Tenacious Search for Autism’s Essence. BioSocieties 2012; 7(4):410-432. “uma entidade objetiva independente da sua incorporação em indivíduos particulares”, na prática, os contornos do autismo são definidos por sua sintomatologia clínica, e não neurológica. Assim, mesmo que um diagnóstico de autismo possa criar nos membros do grupo diagnosticado um sentimento de pertença genética, como sugere Silverman2020. Silverman C. Brains, Pedigrees, and Promises: Lessons from the Politics of Autism Genetics. In: Gibbon S, Novas C, organizadores. Biosocialities, Genetics and the Social Sciences: Making Biologies and Identitites. New York: Routledge; 2008. p. 38-55., “as identidades genéticas são tão fixas quanto os significados atribuídos a elas”. Além disso, como aponta Valle2121. Valle CGO. Doença, ativismo biossocial e cidadania terapêutica: a emergência da mobilização de pessoas com HTLV no Brasil. Vivência: Revista de Antropologia 2013; (41):27-47., em um artigo sobre a mobilização política de pessoas com HTLV no Brasil, a emergência de biossocialidades depende menos da existência de um aspecto biológico do que de dinâmicas sociopolíticas que tornam certos grupos merecedores de existência e outros não. Dito de outra forma, embora a ênfase nas descrições neurobiológicas tenha se tornado a tônica dominante no campo do autismo, elas não determinam por si só os contornos políticos e sociais das identidades construídas em torno do autismo.
Ainda que descrições neurobiológicas conduzam a representações do autismo como um transtorno com contornos bem definidos, na prática não se pode dizer que esse distúrbio seja percebido como uma constelação específica e imutável de déficits atribuídos a certos indivíduos e a outros não. Como apontam Eyal et al.1515. Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic. Cambridge: Polity Press; 2010., a compreensão do autismo como um espectro trouxe a possibilidade de absorver múltiplas combinações de sintomas em diferentes áreas desse espectro. Casos mais leves, como a antiga síndrome de Asperger, e casos graves puderam então ser incluídos em um mesmo espectro. Segundo Silverman2020. Silverman C. Brains, Pedigrees, and Promises: Lessons from the Politics of Autism Genetics. In: Gibbon S, Novas C, organizadores. Biosocialities, Genetics and the Social Sciences: Making Biologies and Identitites. New York: Routledge; 2008. p. 38-55., as descrições neurobiológicas do autismo possibilitam um discurso de “parentesco genético” baseado nas semelhanças entre diferentes grupos de autistas, e também o reconhecimento de “traços autistas” em outros membros de uma mesma família.
Há também outro aspecto menos óbvio na construção de uma biossocialidade em torno do autismo, observado por um dos pesquisadores ao longo da investigação em uma associação de pais que atende autistas. Durante conversas informais, esse pesquisador observou que os profissionais frequentemente brincavam de identificar traços de autismo em pessoas ditas “normais”, muitas vezes identificando neles mesmos tais sinais. Nas palavras de uma funcionária, cujo olhar e compreensão sobre o autismo se desenvolveram a partir de interações informais com os pais e as crianças que frequentam a associação, “ninguém é purinho”. O propósito desse tipo de conversa certamente não é patologizar a todos. Em vez disso, há ali um trabalho consciente no sentido de tornar o diagnóstico do autismo algo mais leve e menos sombrio, além da constatação de que vários comportamentos e dificuldades ditos autistas, de fato, estão presentes em todos nós. Nesse caso, o diagnóstico não é necessariamente uma atribuição negativa, ou mesmo a designação de atributos claramente definidos a uma classe específica de pessoas, mas uma linguagem, um código, que se estende além das classificações estritamente patológicas. Vista sob esse ângulo, a reivindicação pelo chamado “tratamento especializado” ganha outro significado. Ela faz parte de um trabalho de construção identitária que não se esgota em descrições neurobiológicas ou lista de sintomas e déficits.
Por outro lado, também não pretendemos argumentar que as terapias especializadas operam como marcadores identitários porque se construíram a partir de alguma nova descoberta ou conhecimento sobre o autismo. Pelo contrário, conforme argumentam Eyal et al.1515. Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic. Cambridge: Polity Press; 2010., um olhar para a trajetória histórica das terapias contemporâneas para autismo mostra que suas origens são bastante diversas, tendo se transformado bastante desde que o autismo foi primeiramente nomeado por Leo Kanner, em 1943. Segundo esses autores, a partir do processo de desinstitucionalização do retardo mental, houve uma hibridização de terapias destinadas a públicos e a problemas diversos, borrando as fronteiras entre o retardo e a doença mental, e dando origem às terapias contemporâneas especializadas em autismo e também ao que se entende por autismo hoje de uma forma geral.
Eyal et al.1515. Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic. Cambridge: Polity Press; 2010. argumentam ainda que as terapias contemporâneas do autismo se distinguem daquelas dos anos 1950/1960 em alguns aspectos importantes. O primeiro deles é o papel dos pais no tratamento – como coterapeutas, enquanto, nas antigas, os terapeutas funcionavam como pais substitutos. Além disso, naquele período, a narrativa moral das terapias direcionadas para o autismo estava centrada na descoberta, que é também autodescoberta e autocura, capaz de retirar a criança do encastelamento representado pelo autismo.
Nas terapias contemporâneas, por outro lado, o foco é na construção dos alicerces para o desenvolvimento, ensinando à criança as habilidades necessárias para avançar na próxima etapa do desenvolvimento. Por fim, há uma diferença evidente na estrutura temporal ou no ritmo dos tratamentos de anos passados em relação aos atuais. Se, nos anos 1950/1960, as terapias de autismo seguem o ritmo lento da autodescoberta, estendendo-se por longos períodos de espera paciente, nas contemporâneas há um senso de urgência, um ritmo acelerado por atividades mais curtas e estruturadas, nas quais cada avanço, não importa quão pequeno, passa a ser observado e mensurado.
Esse senso de urgência também está implícito nas demandas dos pais ativistas por intervenção precoce, que falam não apenas de um novo regime terapêutico, mas de uma nova forma de conceber e definir o autismo e o seu destino social. A ideia de que os primeiros anos da vida de uma criança representam uma janela de oportunidade para estimulação e um melhor prognóstico para o autismo também torna mais atraente esse diagnóstico do que um de retardo mental, por exemplo, que pode funcionar como uma sentença para toda a vida. No campo do autismo, por outro lado, é comum ouvir pais ou especialistas falando sobre a possibilidade de “sair do espectro” ou simplesmente mover-se dentro dele, passando-se de um quadro grave para um mais leve.
Além disso, esse novo regime terapêutico reforça também a percepção de que casos mais graves e mais leves são expressões de um mesmo tipo de condição neurobiológica, em que elementos como intervenção precoce e terapias adequadas seriam fatores importantes, senão decisivos, na classificação e nos desdobramentos de cada caso. Na pesquisa feita na mídia impressa77. Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(53):325-336., por exemplo, constatamos que boa parte das notícias que falam da luta dos pais por tratamento especializado, geralmente recorrendo a ações públicas contra o governo, traz histórias de autistas com quadros bastante graves, vivendo em situações extremamente precárias, muitas vezes em cárcere privado. Tais reportagens são comumente utilizadas por pais ativistas para sensibilizar o público para a causa autista e autorizar suas reivindicações por tratamento especializado também para os casos mais leves2222. Costa U. Autismo no Brasil, um grande desafio: a história da luta de um pai e a origem da Lei Federal no 12.764, Lei Berenice Piana. Rio de Janeiro: WAK; 2013..
O sentido implícito nas narrativas produzidas pela mídia e apropriadas pelos pais ativistas é o de que, se o autismo não pode ser curado, ele pode ao menos ser atenuado por meio da intervenção precoce e das terapias especializadas. Nesse contexto, os casos mais graves de abandono e de encarceramento domiciliar tornam-se então exemplos do que pode acontecer caso não haja intervenção precoce e tratamento apropriado.
Conclusão
Neste artigo, utilizamos a polêmica entre profissionais da saúde mental e pais ativistas como ponto de partida para discutir a relação entre o chamado “tratamento especializado” e a construção de uma identidade social e política para o autismo no Brasil. Para tal, recorremos aos chamados Estudos de Expertise e Experiência , como forma de ampliar a discussão sobre tratamentos especializados para além do discurso crítico a práticas diagnósticas e medicalizantes. Procuramos mostrar que a demanda por tratamento especializado também pode ser entendida como parte da consolidação de uma rede de expertise em torno do autismo no Brasil, a qual depende de práticas diagnósticas e terapêuticas desempenhadas por profissionais, e também da organização e da atuação política de pais ativistas e dos próprios autistas. As práticas diagnósticas e terapêuticas têm um papel importante na disseminação de um determinado tipo de concepção acerca do autismo, mas elas não se originam e nem se esgotam simplesmente entre profissionais especializados. O ativismo dos familiares tem sido decisivo para a consolidação dessa rede de expertise. Assim, a construção de uma identidade social e política para o autismo no Brasil deve ser tomada a partir dessa concepção ampliada de expertise, que reúne os experts com credenciais profissionais e os chamados “experts leigos”1010. Epstein S. The Construction of Lay Expertise: AIDS Activism and the Forging of Credibility in the Reform of Clinical Trials. Science, Technology, & Human Values 1995; 20(4):408-437.,1111. Epstein S. Impure Science – Aids, Activism, and the Politics of Knowledge. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press; 1996..
De forma similar, as descrições neurobiológicas não determinam por si só os contornos identitários do autismo no Brasil. Embora elas marquem uma transição importante no modo de conceber o autismo, os sentidos construídos a partir delas são resultado também de dinâmicas sociopolíticas que emergem em um contexto histórico específico no Brasil. Ao contrário do que muitos profissionais da saúde mental supõem, o sentido de um diagnóstico de autismo, mesmo que fortemente marcado por um discurso fisicalista, não se esgota em representações reducionistas e estigmatizantes.
Procuramos neste artigo enriquecer a discussão acerca dos sentidos de um diagnóstico de autismo no Brasil hoje, focando no trabalho identitário que se produz a partir das demandas por tratamento especializado. É importante notar que, nesse contexto, o chamado “tratamento especializado” reivindicado pelos pais ativistas não se reduz a abordagens terapêuticas específicas, ainda que a referência à terapia comportamental seja bastante comum.
Ainda assim, podem-se apontar algumas características gerais das terapias contemporâneas que colocam em evidência o modo como se concebe o autismo e o objetivo dos tratamentos. A centralidade da intervenção precoce, por exemplo, relaciona-se a uma estrutura temporal específica nos tratamentos contemporâneos, em que os primeiros anos aparecem como uma janela crítica de oportunidade para um bom prognóstico. Além disso, as terapias contemporâneas representam um modelo de intervenção centrado na aquisição de habilidades específicas, que aumentariam as chances da criança de “mover-se dentro do espectro”, ou mesmo sair dele.
Por fim, gostaríamos de ressaltar que não é o caso de decidir se o tratamento especializado seria a resposta ideal de atendimento para uma população cronicamente desassistida, ou se seria mais um passo em direção a uma expansão diagnóstica desordenada e medicalização da infância. Acreditamos que os dois cenários – medicalização e desassistência – não são excludentes. Pelo contrário, eles caminham lado a lado, em tensão com a luta pelo direito à saúde e a construção de uma rede de expertise em torno do autismo. E é justamente nesse paradoxo que residem os maiores impasses e contradições na construção da identidade social e política dos autistas e seus familiares no Brasil.
Agradecimentos
Agradecemos às alunas de doutorado Barbara da Costa e Clara Feldman pela colaboração na pesquisa.
Referências
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- 7Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(53):325-336.
- 8Collins H, Evans R. Expertise: From Attribute to Attribution and Back Again? In: Hackett EJ, Amesterdamska O, Lynch M, Wajcman J, organizadores. The Handbook of Science and Technology Studies 3th ed. Cambridge, Massachusetts, London: The MIT Press; 2008. p. 609-630.
- 9Collins H, Evans R. Rethinking Expertise Chicago: University of Chicago Press; 2009.
- 10Epstein S. The Construction of Lay Expertise: AIDS Activism and the Forging of Credibility in the Reform of Clinical Trials. Science, Technology, & Human Values 1995; 20(4):408-437.
- 11Epstein S. Impure Science – Aids, Activism, and the Politics of Knowledge Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press; 1996.
- 12Rabeharisoa V, Callon M. Patients and Scientists in French Muscular Dystrophy Research. In: Rabeharisoa V, Callon M, editors. States of Knowledge – The Co-production of Science and Social Order London, New York: Routledge; 2004.[informar as páginas do capítulo]
- 13Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, Chagas BS, Feldman C. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu) 2013; 17(44):119-132.
- 14Nunes FCF. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro – perspectivas para o campo da saúde [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2014.
- 15Eyal G, Hart B, Onculer E, Oren N, Rossi N. The Autism Matrix: the Social Origins of the Autism Epidemic Cambridge: Polity Press; 2010.
- 16Hacking I. Making up people. In: Biagioli M, organizador The Science Studies Reader. London: Routledge; 1999.[informar as páginas do capítulo]
- 17Depoimentos colhidos pelos autores durante audiência na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Rio de Janeiro; maio de 2014.
- 18Russo J. Os três sujeitos da psiquiatria. Cadernos IPUB 1997; (8):11-21.
- 19Verhoeff B. What Is this Thing Called Autism? A Critical Analysis of the Tenacious Search for Autism’s Essence. BioSocieties 2012; 7(4):410-432.
- 20Silverman C. Brains, Pedigrees, and Promises: Lessons from the Politics of Autism Genetics. In: Gibbon S, Novas C, organizadores. Biosocialities, Genetics and the Social Sciences: Making Biologies and Identitites New York: Routledge; 2008. p. 38-55.
- 21Valle CGO. Doença, ativismo biossocial e cidadania terapêutica: a emergência da mobilização de pessoas com HTLV no Brasil. Vivência: Revista de Antropologia 2013; (41):27-47.
- 22Costa U. Autismo no Brasil, um grande desafio: a história da luta de um pai e a origem da Lei Federal no 12.764, Lei Berenice Piana Rio de Janeiro: WAK; 2013.
Erratum
onde se lê:Clarisse Riosleia-se:Clarice Rios
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Mar 2019
Histórico
- Recebido
15 Mar 2016 - Revisado
04 Jun 2017 - Aceito
06 Jun 2017