Violência contra idosos e qualidade de vida relacionada à saúde: estudo populacional no município de São Paulo, Brasil

Violence perpetrated against the elderly and health-related quality of life: a populational study in the city of São Paulo, Brazil

Daniel Rodrigues Machado Miako Kimura Yeda Aparecida de Oliveira Duarte Maria Lúcia Lebrão Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se identificar a prevalência da violência doméstica contra idosos não institucionalizados e verificar se esta é um fator independente associado aos Componentes Físico (CF) e Mental (CM) da Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QVRS) desses idosos. É um estudo epidemiológico transversal e de base populacional integrante do Estudo SABE (Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento). A amostra foi de 1.126 idosos que responderam ao Short-Form 12 Health Related Survey (SF-12), instrumento genérico que avalia a QVRS em seus CF e CM. A prevalência da violência doméstica contra idosos foi de 10% (IC 95% 9,1 - 13,6). Na análise múltipla, a violência contra idosos permaneceu significativamente associada ao CM (β = -3,03; p = 0,000) e ao CF (β = -1,69; p = 0,017) da QVRS, independente de covariáveis sociodemográficas, de saúde, de apoio familiar e de incapacidade funcional. A prevalência da violência doméstica foi elevada e comprometeu a saúde física e mental dos idosos.

Palavras-chave
Qualidade de vida; Idoso; Maus-tratos ao idoso

Abstract

The scope of this work was to identify the prevalence of domestic violence against non-institutionalized elderly individuals, and to establish if violence is an independent factor associated with the Physical Component (PC) and Mental Component (MC) scores of the Health-Related Quality of Life (HRQOL) of these elderly individuals. It is a cross-sectional epidemiologic and population-based investigation that is part of the SABE (Wellbeing, Health and Aging) study. A sample of 1,126 elderly individuals filled out the Short-Form 12 (SF-12) Health Survey, namely a generic instrument that assesses HRQOL through the Physical and Mental components. The prevalence of domestic violence against of the elderly was 10% (CI 95% 9.1-13.6). In the multiple analyses, violence against the elderly was significantly associated to the MC (β = -3.03; p = 0.000) and to the PC (β = -1.69; p = 0.017) of HRQOL, independently of the sociodemographic, health, family support, and functional incapacity covariables. The prevalence of domestic violence was high and compromised the physical and mental health of the elderly.

Key words
Quality of life; Elderly individuals; Mistreatment of the elderly

Introdução

Com o aumento expressivo da população idosa, a violência contra indivíduos mais velhos vem assumindo grandes proporções na sociedade moderna11 Ho CS, Wong SY, Chiu MM, Ho RC. Global prevalence of elder abuse: a meta-analyses and meta-regression. East Asian Arch Psychiatry 2017; 27(2):43-55.. Representa um problema de saúde pública de grande magnitude22 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002.,33 Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Mello Jorge MH, Silva CM, Minayo MC. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet 2011; 377(9781):1962-1975. e constitui um dos tópicos mais relevantes das últimas décadas44 Veras R. Living a full life without violence at maturity: the contemporary search. Cien Saude Colet 2010; 15(6):2671-2673., pois gera grande pressão sobre os sistemas de saúde, de segurança pública e de serviços sociais, bem como pode impactar diretamente na qualidade de vida das vítimas55 Castro VC, Rissardo LK, Carreira L. Violence against the Brazilian elderlies: an analysis of hospitalizations. Rev Bras Enferm 2018; 71(2):830-838..

A violência cometida contra idosos foi descrita pela primeira vez, em 1975, em publicação britânica como espancamento de avós. Desde então, tem sido tema de investigações científicas e alvo de ações governamentais em todo o mundo e, especificamente, no Brasil, desde a década de 199022 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002..

O primeiro estudo internacional de revisão sistemática sobre a prevalência da violência contra idosos detectou coeficientes de abuso entre 1,6%, nos Estados Unidos da América, e 18%, na Suécia e Dinamarca66 Espíndola CR, Blay SL. Prevalence of elder abuse: a systematic review. Rev Saude Publica 2007; 41(2):301-306.. Uma metanálise recente com estudos de 28 países constatou que a prevalência da violência contra idosos foi de 15,7%. No entanto, a falta de consenso na definição e medição da violência resultou em grandes variações nas taxas de prevalência dos 52 estudos incluídos na metanálise77 Yon Y, Miktron CR, Gassoumis ZD, Wilber KH. Elder abuse prevalence in Community settings: a systematic review and meta-analysis. Lancet Glob Health 2017; 5(2):147-156.. No Brasil, não se conhece a prevalência da violência contra idosos, pois existem poucas pesquisas de base populacional publicadas sobre o assunto.

A definição mais utilizada na literatura científica para o conceito “violência contra idosos” foi proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS)88 Organización Mundial de la Salud (OMS). Declaración de Toronto para la prevención global del maltrato de lãs personas mayores. Ginébra: OMS; 2003. e adotada no presente estudo, na qual violência constitui uma ação única ou repetida ou ainda a ausência de uma ação devida, que cause sofrimento e angústia, e que ocorre em uma relação em que haja expectativa de confiança.

Ainda de acordo com a OMS22 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002., algumas tipologias são utilizadas para designar as formas de violência mais praticadas contra a população idosa. A violência física refere-se à dominação induzida por drogas ou pelo uso da força física, resultando em dor ou lesão; a violência psicológica corresponde a infringir angústia mental; enquanto que a violência financeira ou material manifesta-se pela exploração imprópria ou ilegal do idoso ou no uso não consentido por ele de seus recursos patrimoniais e/ou financeiros.

Os idosos têm sido expostos a esses tipos de violência e eles ocorrem, predominantemente, de modo único ou combinado, no âmbito familiar22 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002.. Alguns fatores de risco em idosos vítimas da violência doméstica já foram descritos pela literatura científica, dentre os quais, merecem destaque: ter algum tipo de demência, deficiência física, depressão, solidão ou falta de apoio social; viver situações conflitivas com o cuidador; apresentar diminuição da capacidade funcional e cognitiva; bem como fazer uso de álcool ou drogas ilícitas99 Faustino AM, Gandolfi L, Moura LBA. Functional capability and violence situations against the elderly. Acta Pauli Enferm 2014; 27(5):392-398..

Independentemente da motivação, a ocorrência da violência poderá resultar em sofrimento desnecessário, lesão ou dor, perda ou violação dos direitos humanos, transtorno de estresse pós-traumático e somatização, tendendo a afetar severamente a saúde física e mental das vítimas1010 Oliveira AAV, Trigueiro DRSG, Fernandes MGM, Silva AO. Elderly maltreatment: integrative review of the literature. Rev Bras Enferm 2013; 66(1):128-133..

Alterações na saúde física e mental podem ser mensuradas pelas avaliações da Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QVRS), definida como o valor atribuído à duração da vida, modificado pelos prejuízos, estados funcionais, percepções e oportunidades sociais que são influenciados por doenças, dano, tratamento ou política de saúde1111 Patrick DL, Erickson P. Health Status and health policy - quality of life in health care evaluation and resource allocation. New York: Oxford University Press; 1993., não sendo, com frequência, diferenciada do estado funcional ou do estado de saúde (física e mental) de um indivíduo1212 Wilson IB, Cleary PD. Linking clinical variables with health-related quality of life. A conceptual model of patient outcomes. JAMA 1995; 273(1):59-65..

As investigações que se propõem a identificar os fatores determinantes de boa ou má QVRS são cada vez mais necessárias e imprescindíveis, pois podem subsidiar a elaboração e a implementação de políticas públicas que visem à melhoria da saúde física e mental das pessoas. Nesse sentido, é válido mencionar que diversos pesquisadores nacionais e internacionais detectaram que indivíduos expostos à violência apresentaram piores escores de QVRS em relação aos não expostos1313 Sorensen J, Kruse M, Gudex C, Helweg-Larsen K, Bronnum-Hansen H. Physical violence and health-related quality of life: Danish cross-sectional analyses. Health Qual Life Outcomes 2012; 10(113):110-119.

14 Costa D, Hatzidimitriadou E, Ioannidi-Kapolou E, Lindert J, Soares J, Sundin O, Toth O, Barros H. Intimate partner violence and health-related quality of life in European men and women: findings from the DOVE study. Qual Life Res 2015; 24(2):463-471.
-1515 Gharacheh M, Azadi S, Mohammadi N, Montazeri S, Khalajinia Z. Domestic Violence During Pregnancy and Women's Health-Related Quality of Life. Glob J Health Sci 2015; 8(2):27-34..

No entanto, essas pesquisas têm foco direcionado para a violência contra mulheres e indivíduos da população geral e, até o momento, não se tem conhecimento de nenhum estudo científico empírico que objetivou investigar a violência como fator independente associado à redução da QVRS de idosos.

No Brasil, investigações ajudaram a identificar variáveis socioeconômicas e de saúde associadas à QVRS de idosos da comunidade1616 Ribeiro KT. Fatores associados à qualidade de vida relacionada à saúde de idosos residentes no Município de São Paulo - Estudo SABE: Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2011.,1717 Camelo LV, Giatti L, Barreto, M. Health related quality of life among elderly living in region of high vulnerability for health in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. Rev Bras Epidemiol 2016; 19(2):280-293.. A detecção de outros fatores ligados à QVRS dessa população é primordial para o avanço do conhecimento científico.

Dessa forma, a presente investigação objetivou identificar a prevalência da violência doméstica contra idosos não institucionalizados do Município de São Paulo, assim como verificar se a violência é um fator independente associado aos escores dos componentes físico e mental da QVRS dos idosos.

Método

Esta investigação é parte integrante do estudo SABE (Saúde, Bem-estar e Envelhecimento) e caracteriza-se como uma pesquisa epidemiológica transversal, com amostra de base populacional.

O estudo SABE

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a OMS coordenaram o estudo multicêntrico denominado SABE com o objetivo de detalhar as condições de vida e o estado de saúde de idosos residentes em sete centros urbanos da América Latina e Caribe. O estudo SABE teve início em 2000 e foi conduzido na Argentina, Barbados, Brasil, Chile, Cuba, México e Uruguai. No Brasil, uma amostra representativa de idosos não institucionalizados (60 anos ou mais) foi obtida no Município de São Paulo, tendo em vista o apoio institucional da Universidade de São Paulo (USP) e o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Somente nesse país, o SABE constitui-se em estudo longitudinal com quatro ondas (2000, 2006, 2010 e 2015), coordenado por uma equipe de pesquisadores do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP. O detalhamento da técnica de amostragem do estudo SABE encontra-se descrito em publicações específicas1818 Palloni A, Pelaez M. SABE: Survey on Health and Well-being of Elders - preliminary report [internet] 2002 Nov [cited 2018 Fev 5]: [about 102 p.]. Available from: www.ssc.wisc.edu/sabe/docs/informeFinal%20Ingles%20noviembre%202004
www.ssc.wisc.edu/sabe/docs/informeFinal%...

19 Lebrão ML, Laurenti R. Health, well-being and aging: the SABE study in São Paulo, Brazil. Rev Bras Epidemiol 2005; 8(2):127-141.
-2020 Tamanini JTN, Sartori MGR, Santos JLF, Kerrebroeck PEVA, Pallone LV, Girão MJBC, Duarte YAO. A populational based survey on the prevalence, incidence, and risk factors of urinary incontinence in older adults - results from the "SABE STUDY. Neurourol Urodyn 2018; 37(18):466-477.. Ressalta-se que, em 2010, a população de idosos residentes no Município de São Paulo era de 1.338.138 indivíduos2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. DATASUS, 2017. [acessado 2017 Jun 18]. Disponível em: http://www.datasus.gov.br.
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.

Amostra e critério de exclusão

Foi realizada uma análise transversal com os idosos brasileiros que participaram do estudo SABE em 2010. Dos 1.345 participantes, foram excluídos 219, cujos questionários foram respondidos por um informante auxiliar ou substituto. A adoção desse critério de exclusão é justificada pela premissa de que a qualidade de vida, principal desfecho do presente estudo, é um construto de natureza subjetiva e, portanto, deve ser aferida com base nas respostas do próprio indivíduo que está sendo avaliado2222 Ware JE, Kosinski MA, Keller SD. A 12-Item Short-Form Health Survey - construction of scales and preliminary tests of reliability and validity. Med Care 1996; 34(3):220-233.. Ademais, o informante auxiliar ou substituto poderia ser o provável agressor do idoso e, nesse contexto, a informação sobre a ocorrência da violência poderia ser omitida ou não fidedigna1212 Wilson IB, Cleary PD. Linking clinical variables with health-related quality of life. A conceptual model of patient outcomes. JAMA 1995; 273(1):59-65.,2323 Guedes DT, Curcio CL, Liano BA, Zunzunegui MV, Guerra R. The gender gap in domestic violence in older adults in Latin America: the IMIAS Study. Rev Panam Salud Publica 2015; 37(4-5):293-300..

Portanto, a amostra final do presente estudo constituiu-se de 1.126 idosos (≥ 60 anos) não institucionalizados do Município de São Paulo.

Coleta de dados

Os dados foram coletados por meio de entrevistas individualizadas, face a face, realizadas nos domicílios dos idosos (em um local da residência que oferecesse privacidade) por uma equipe de entrevistadores, especialmente treinada para atuar no estudo SABE.

O questionário utilizado no estudo SABE está composto por doze seções que abrangem vários aspectos da vida do idoso, tais como: dados pessoais, avaliação cognitiva, estado de saúde, estado funcional, medicamentos, uso e acesso aos serviços, rede de apoio familiar e social, história laboral e fontes de receita, características da moradia, violência, antropometria, flexibilidade e mobilidade (disponível em http://www.fsp.usp.br/sabe/quetionario.php).

Variáveis dependentes

Os escores do Componente Físico (CF) e Mental (CM) do SF-12 foram as variáveis dependentes deste estudo. Validado no Brasil em amostras clínicas2424 Andrade TL, Camelier AA, Rosa FW, Santos MP, Jezler S, Silva JLP. Applicability of the 12-Item Short-Form Health Survey in patients with progressive systemic sclerosis. J Bras Pneumol 2007; 33(4):414-422. e na população geral2525 Silveira MF, Almeida JC, Freire RS, Haikal DS, Martins AEBL. Psychometric properties of the quality of life assessment instrument: 12-item health survey (SF-12). Cien Saude Colet 2013; 18(7):1923-1931., o SF-12 está composto por 12 itens derivados do SF-36 (36-item Short Form Health Survey)2626 Ware JE, Sherbourne CD. The MOS 36-item Short-Form Health Survey (SF-36). Med Care 1992; 30(6):473-483., um instrumento genérico de avaliação de QVRS que se encontra traduzido e validado em português2727 Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para a língua portuguesa e validação do questionário genérico de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36). Rev Bras Reumatol 1999; 39(3):143-150.. As oito dimensões do SF-12 são: estado geral de saúde, capacidade funcional, aspectos físicos, dor, vitalidade, saúde mental, aspectos emocionais e aspectos sociais, sendo que as quatro primeiras formam o CF e as demais, o CM.

Os escores dos componentes do SF-12 podem variar de 0 a 100%, sendo as pontuações mais elevadas tradução de melhor percepção de saúde física ou mental e as mais baixas, o oposto2424 Andrade TL, Camelier AA, Rosa FW, Santos MP, Jezler S, Silva JLP. Applicability of the 12-Item Short-Form Health Survey in patients with progressive systemic sclerosis. J Bras Pneumol 2007; 33(4):414-422.,2525 Silveira MF, Almeida JC, Freire RS, Haikal DS, Martins AEBL. Psychometric properties of the quality of life assessment instrument: 12-item health survey (SF-12). Cien Saude Colet 2013; 18(7):1923-1931.. No presente estudo, o coeficiente alfa de Cronbach foi de 0,77 para o CF e de 0,74 para o CM, valores indicativos de consistência interna satisfatória.

Variáveis independentes

Variáveis sociodemográficas e de saúde foram investigadas, incluindo sexo (masculino e feminino), idade (número de anos completos no momento da entrevista), raça/cor (branca, parda, preta e outras), coabitação (sozinho e acompanhado), escolaridade (anos de estudo no momento da entrevista) e suficiência de renda percebida (suficiente e insuficiente), sendo esta última variável acessada por meio da pergunta: o(a) senhor(a) considera que tem dinheiro suficiente para cobrir suas despesas diárias?.

A percepção do estado geral de saúde (boa, regular, ruim) foi obtida por meio da indagação: o(a) Senhor(a) diria que sua saúde é muito boa, boa, regular, ruim ou muito ruim?. A categoria “boa” foi composta pelas respostas boa e muito boa, a categoria “regular” correspondeu à própria alternativa regular e a categoria “ruim”, foi formada pelo agrupamento das respostas ruim e muito ruim.

Os dados sobre a variável dor (sim, não) foram acessados por meio de duas perguntas: 1) o(a) Senhor(a) sente dor ou desconforto quando faz algum esforço físico ou movimento como, por exemplo, levantar e andar? e 2) o(a) Senhor(a) tem alguma dor há mais de 3 meses, que dói continuamente ou que vai e vem, pelo menos, uma vez por mês? Uma resposta afirmativa para qualquer uma dessas duas perguntas caracterizou o idoso como portador de dor.

O número de doença(s) crônica(s) (nenhuma, uma, duas ou mais) considerou as seguintes doenças: hipertensão (pressão sanguínea alta), doença cardíaca (ataque do coração, doença coronária, angina, doença congestiva ou outro problema cardíaco), acidente vascular encefálico (embolia, derrame, ataque, isquemia ou trombose cerebral), diabetes mellitus (níveis altos de açúcar no sangue), doença pulmonar crônica (como asma, bronquite ou enfisema), doença osteoarticular (artrite, reumatismo, artrose), neoplasia (excluindo os tumores menores de pele) e problema neurológico ou psiquiátrico. Os dados foram acessados por meio da pergunta: alguma vez um médico ou enfermeiro lhe disse que o(a) Senhor(a) tem hipertensão, quer dizer pressão sanguínea alta?, mudando o nome da doença ao final da frase.

O declínio cognitivo foi avaliado pelo MEEM (Miniexame do Estado Mental)2828 Folstein MF, Folstein SE, Mchugh PR. Mini-Mental State - A Practical Method for Grading the Cognitive State of Patients for the Clinician. J Psychiatr Res 1975; 12(3):189-198., modificado e validado no Chile2929 Cerqueira ATAR. Deterioração cognitiva e depressão. In: Lebrão ML, Duarte YAO, organizadores. SABE - Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento - O Projeto SABE no Município de São Paulo: uma abordagem inicial. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde; 2003. p. 141-165. e traduzido para o português3030 Bertolucci PHF, Brucki SMD, Campacci SR, Juliano Y. O Mini-Exame do Estado Mental em uma população geral: impacto da escolaridade. Arq Neuropsiquiatr 1994; 52(1):1-7.. A pontuação do MEEM varia de zero a 19 e o declínio cognitivo é indicado por 12 ou menos pontos obtidos na versão modificada da escala2929 Cerqueira ATAR. Deterioração cognitiva e depressão. In: Lebrão ML, Duarte YAO, organizadores. SABE - Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento - O Projeto SABE no Município de São Paulo: uma abordagem inicial. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde; 2003. p. 141-165..

Para o estudo dos sintomas depressivos foi utilizada a Escala de Depressão Geriátrica Abreviada (GDS - 15 itens), validada no Brasil3131 Almeida OP, Almeida SA. Confiabilidade da versão brasileira da escala de depressão em geriatria (GDS) versão reduzida. Arq Neuropsiquiatr 1999; 57(2):421-426.. A pontuação do instrumento varia de 0 a 15 e 6 ou mais pontos alcançados na escala indicam que o idoso tem sintomas sugestivos de depressão3131 Almeida OP, Almeida SA. Confiabilidade da versão brasileira da escala de depressão em geriatria (GDS) versão reduzida. Arq Neuropsiquiatr 1999; 57(2):421-426.. O coeficiente alfa de Cronbach para a GDS foi de 0,69, valor indicativo de consistência interna satisfatória.

A funcionalidade familiar foi avaliada por meio do instrumento denominado APGAR de Família (Family Apgar), que no Brasil foi traduzido e adaptado para ser aplicado em idosos3232 Duarte YAO. Família: rede de suporte ou fator estressor. A ótica de idosos e cuidadores familiares [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2001.. As cinco questões do instrumento permitem pontuação variando de 0 a 20, e quanto mais elevado for o escore, melhor será a funcionalidade familiar. Neste estudo, os escores de 0 a 12 foram categorizados como família disfuncional e de 13 a 20, família funcional1616 Ribeiro KT. Fatores associados à qualidade de vida relacionada à saúde de idosos residentes no Município de São Paulo - Estudo SABE: Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2011.. Os cinco itens da escala mostraram alta consistência interna (coeficiente alfa de Cronbach = 0,89), indicando a confiabilidade da medida.

Em relação à incapacidade funcional, avaliou-se, separadamente, a dificuldade para executar atividades básicas - ABVD3333 Katz S, Ford AB, Moskowitz RW, Jackson BA, Jaffe MW. Studies of illness in the aged. The index of ADL: a standardized measure of biological and psychosocial function. JAMA 1963; 21(185):914-919. e instrumentais da vida diária - AIVD3434 Lawton MP, Brody EM. Assessment of older people: Self-maintaining and instrumental activities of daily living. Gerontologist 1969; 9(3):179-186. (nenhuma dificuldade, dificuldade em uma ou duas atividades, dificuldade em três ou mais atividades). As ABVD investigadas foram: usar o vaso sanitário, alimentar-se, banhar-se, vestir-se, transferir-se e atravessar um quarto caminhando. As questões sobre AIVD incluíram: utilizar um meio de transporte, fazer compras, cuidar do próprio dinheiro, usar o telefone e tomar medicamentos.

Neste estudo, a ocorrência da violência foi detectada por meio de um questionário utilizado em pesquisas científicas3535 Duque AM, Leal MCC, Marques APO, Eskinazi FMV, Duque AM. Violence against the elderly in the home environment: prevalence and associated factors (Recife, State of Pernambuco). Cien Saude Colet 2012; 17(8):2199-2208.

36 Bolsoni CC, Coelho EBS, Giehl MWC, d'Orsi E. Prevalence of violence against the elderly and associated factors - a population based study in Florianópolis, Santa Catarina. Rev Bras Geriatr Gerontol 2016; 19(4):671-682.
-3737 Schneider IJC, Confortin SC, Bernardo CO, Bolsoni CC, Antes DL, Pereira KG, Ono LM, Marques LP, Borges LJ, Gieh MWC, Krug RR, Goes VF, Boing AC, Boing AF, d'Orsi E. Estudo de coorte EpiFloripa Idoso: métodos, aspectos operacionais e estratégias de seguimento. Rev Saude Publica [periódico na Internet]. 2017 Nov [acessado 2018 Fev 16]; 51(104):[cerca de 10 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v51/pt_0034-8910-rsp-S1518-87872017051006776.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rsp/v51/pt_0034...
e recomendado pelo Ministério da Saúde do Brasil como subsídio técnico aos profissionais que atuam na atenção primária3838 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Envelhecimento e saúde da pessoa idosa - Cadernos de Atenção Básica. Brasília: MS; 2006.. Por meio desse questionário é possível identificar violência física, psicológica ou financeira contra idosos.

As perguntas do questionário de identificação de violência são as seguintes: 1) no último ano, alguma das pessoas que o rodeiam tem gritado com o Senhor sem razão?; 2) no último ano, alguma das pessoas que o rodeiam tem chamado por algum nome ou apelido que o Senhor não goste?; 3) no último ano, alguma das pessoas que o rodeiam tem usado ou mexido no seu dinheiro sem sua autorização?; 4) no último ano, alguma das pessoas que o rodeiam tem ameaçado em função de o Senhor não fazer o que querem que o Senhor faça?; 5) no último ano, alguma das pessoas que o rodeiam tem batido ou esbofeteado o Senhor?; 6) no último ano, alguma das pessoas que o rodeiam tem sacudido ou chacoalhado o Senhor?, e 7) no último ano, alguma das pessoas que o rodeiam tem roubado seu dinheiro ou algum pertence importante para o Senhor?.

Para cada pergunta havia como possibilidade de resposta sim, não ou ignorado. Ressalta-se que uma resposta afirmativa (sim) para qualquer pergunta desse questionário bastava para caracterizar o entrevistado como vítima da violência.

Análise estatística

Os dados foram analisados pelo software R versão 3.0.1, utilizando-se o pacote survey que permite incorporar aspectos referentes ao delineamento complexo de amostragem: estratificação não proporcional, sorteio de conglomerados e ponderação.

A estatística descritiva foi utilizada para a análise das variáveis independentes e dependentes da pesquisa. A confiabilidade dos instrumentos padronizados foi testada por meio da análise de consistência interna, utilizando-se o coeficiente alfa de Cronbach. O valor de referência adotado como aceitável (boa confiabilidade) foi igual ou maior a 0,603939 Hair JF, Black WC, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL. Análise multivariada de dados. 6ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2009.. Calculou-se a prevalência da violência contra idosos com intervalo de 95% de confiança.

Foram ajustados modelos de regressão linear ponderados para explicar os escores dos CF e CM da QVRS. Foram selecionadas 14 variáveis independentes: sexo, idade, raça/cor, escolaridade, coabitação, suficiência de renda percebida, funcionalidade familiar, número de doenças crônicas, dor, sintomas depressivos, declínio cognitivo, dificuldade para executar ABVD e AIVD e exposição à violência. O método utilizado na análise de regressão foi o stepwise backward, adotando-se o critério de Akaike para a seleção do modelo final. A autocorrelação dos resíduos (colinearidade) foi testada pelo Teste de Durbin Watson, e a qualidade do ajuste do modelo foi representada pelo coeficiente de determinação (R²). Todos os pressupostos desse tipo de regressão foram analisados. O nível de significância dos testes foi de 5% e utilizou-se a correção de Rao-Scott para amostragem complexa.

Aspectos éticos

O estudo SABE foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Resultados

Os idosos incluídos (Tabela 1) tinham média de idade equivalente a 69,2 anos (dp = 7,4) e estudaram, em média, 5,7 anos (dp = 4,4).

Tabela 1
Características sociodemográficas, de funcionalidade familiar, de estado de saúde e de incapacidade funcional dos idosos. São Paulo, Brasil, 2010 (n = 1.126).

A prevalência de violência contra idosos foi de 10% (IC 95% 9,1 - 13,6). Os dados da Tabela 2 apresentam os escores dos componentes físico e mental da QVRS.

Tabela 2
Escores dos CF e CM da QVRS dos idosos. São Paulo, Brasil, 2010 (n = 1.126).

Observa-se na Tabela 2 que o escore do CM foi superior ao do CF da QVRS dos idosos. A Tabela 3 mostra os modelos finais da análise de regressão múltipla para os escores do CF e CM do SF-12.

Tabela 3
Regressão linear múltipla para os escores dos CF e CM do SF-12. São Paulo, Brasil, 2010 (n = 1.126).

Entre as 14 variáveis que compuseram o modelo inicial de regressão, sete foram preditoras independentes do CF da QVRS: dor, multimorbidade, necessidade de ajuda em ABVD e AIVD e violência. O valor de R22 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002. ajustado indica que 45,8% da variabilidade do CF é explicada pelas variáveis que permaneceram no modelo final. Em relação ao CM, continuaram como variáveis associadas: escolaridade, renda suficiente, funcionalidade familiar, sintomas depressivos, dor, multimorbidade, ajuda em AIVD e violência. Ressalta-se que a exposição à violência teve um coeficiente β negativo de 3,03 e um nível de significância p = < 0,001, o que significa que ser exposto à violência reduz uma estimativa de 3,03 pontos o escore do CM do SF-12. O teste de Durbin Watson para os CF e CM do SF-12 indica que não houve colinearidade entre os resíduos.

Discussão

Embora a violência contra idosos seja um problema de saúde pública global33 Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Mello Jorge MH, Silva CM, Minayo MC. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet 2011; 377(9781):1962-1975., há pouco conhecimento sobre esse tema em países menos desenvolvidos. Isso pode ser atribuído, entre outros motivos, à escassez de dados epidemiológicos sobre a violência contra idosos4040 Blay SL, Laks J, Marinho V, Figueira I, Maia D, Coutinho ESF, Quintana IM, Mello MF, Bressan RA, Mari JJ, Andreoli SB. Prevalence and Correlates of Elder Abuse in São Paulo and Rio de Janeiro. J Am Geriatr Soc 2017; 65(12):2634-2628.. No Brasil, estudos documentaram prevalência da violência contra idosos variando de 10,1 a 21%, sendo de 10,1% em Niterói4141 Moraes CL, Apratto Júnior PC, Reichenheim ME. Breaking silence and its barriers: a household survey on domestic violence against the elderly within the scope of a Family Health Program in Niterói, Rio de Janeiro State, Brazil. Cad Saude Publica 2008; 24(10):2289-2300., 12,4% em Florianópolis3636 Bolsoni CC, Coelho EBS, Giehl MWC, d'Orsi E. Prevalence of violence against the elderly and associated factors - a population based study in Florianópolis, Santa Catarina. Rev Bras Geriatr Gerontol 2016; 19(4):671-682., 13,3% no Rio de Janeiro4040 Blay SL, Laks J, Marinho V, Figueira I, Maia D, Coutinho ESF, Quintana IM, Mello MF, Bressan RA, Mari JJ, Andreoli SB. Prevalence and Correlates of Elder Abuse in São Paulo and Rio de Janeiro. J Am Geriatr Soc 2017; 65(12):2634-2628., 14,4% em São Paulo4040 Blay SL, Laks J, Marinho V, Figueira I, Maia D, Coutinho ESF, Quintana IM, Mello MF, Bressan RA, Mari JJ, Andreoli SB. Prevalence and Correlates of Elder Abuse in São Paulo and Rio de Janeiro. J Am Geriatr Soc 2017; 65(12):2634-2628., 17,8% em Porto Alegre4242 Santos SM, De Marchi RJ, Martins AB, Hugo FN, Padilha DM, Hilgert JB. The prevalence of elder abuse in the Porto Alegre metropolitan area. Braz Oral Res 2013; 7(3):197-202., 20,8% no Recife3535 Duque AM, Leal MCC, Marques APO, Eskinazi FMV, Duque AM. Violence against the elderly in the home environment: prevalence and associated factors (Recife, State of Pernambuco). Cien Saude Colet 2012; 17(8):2199-2208., 20,9% em Uberaba4343 Paiva MM, Tavares DMS. Physical and psychological violence against the elderly: prevalence and associated factors. Rev Bras Enferm 2015; 68(6):1035-1041. e 21% em Camaragibe4444 Melo VL, Cunha JOC, Falbo Neto GH. Maus-tratos contra idosos no município de Camaragibe, Pernambuco. Rev Bras Saude Mater Infant 2006; 6(1):43-48..

No presente estudo, 10% dos participantes referiram ter sofrido algum tipo de violência. Essa prevalência é maior do que a encontrada em estudos realizados na Europa4545 Sooryanarayana R, Choo WY, Hairi NN. A Review on the prevalence and measurement of elder abuse in the community. Trauma Violence Abuse 2013; 14(4):316-325. (5,6%) e América do Norte4646 Gomez Ricardez LA, Abrego GR, Llamas EK. Prevalencia y factores asociados a violencia familiar en adultos mayores de Ocozocoautla (Chiapas, México). Rev Esp Geriatr Gerontol 2007; 42(1):27-34. (8,1%) e também superior às estimativas de violência doméstica contra idosos divulgadas pela OMS (4 a 6%)22 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002., embora seja inferior às taxas encontradas na África e (43,7,%)4747 Abdel Rahman TT, El Gaafary MM. Elder mistreatment in a rural area in Egypt. Geriatr Gerontol Int 2012; 12(3):532-537., Ásia (49,1%)4848 Yadav UN, Paudel G. Prevalence and associated factors of elder mistreatment: A cross sectional study from urban Nepal. Age Ageing 2016; 45(5):609-613. e em outras localidades no Brasil3535 Duque AM, Leal MCC, Marques APO, Eskinazi FMV, Duque AM. Violence against the elderly in the home environment: prevalence and associated factors (Recife, State of Pernambuco). Cien Saude Colet 2012; 17(8):2199-2208.,3636 Bolsoni CC, Coelho EBS, Giehl MWC, d'Orsi E. Prevalence of violence against the elderly and associated factors - a population based study in Florianópolis, Santa Catarina. Rev Bras Geriatr Gerontol 2016; 19(4):671-682.,4040 Blay SL, Laks J, Marinho V, Figueira I, Maia D, Coutinho ESF, Quintana IM, Mello MF, Bressan RA, Mari JJ, Andreoli SB. Prevalence and Correlates of Elder Abuse in São Paulo and Rio de Janeiro. J Am Geriatr Soc 2017; 65(12):2634-2628.

41 Moraes CL, Apratto Júnior PC, Reichenheim ME. Breaking silence and its barriers: a household survey on domestic violence against the elderly within the scope of a Family Health Program in Niterói, Rio de Janeiro State, Brazil. Cad Saude Publica 2008; 24(10):2289-2300.

42 Santos SM, De Marchi RJ, Martins AB, Hugo FN, Padilha DM, Hilgert JB. The prevalence of elder abuse in the Porto Alegre metropolitan area. Braz Oral Res 2013; 7(3):197-202.

43 Paiva MM, Tavares DMS. Physical and psychological violence against the elderly: prevalence and associated factors. Rev Bras Enferm 2015; 68(6):1035-1041.
-4444 Melo VL, Cunha JOC, Falbo Neto GH. Maus-tratos contra idosos no município de Camaragibe, Pernambuco. Rev Bras Saude Mater Infant 2006; 6(1):43-48..

Diferentes abordagens metodológicas, incluindo diferenças nos procedimentos de amostragem e nos instrumentos de coleta de dados utilizados, bem como os aspectos culturais envolvidos podem explicar essa variação da prevalência da violência contra idosos. Estudos adicionais são necessários para melhor investigar essa questão, de preferência utilizando um conjunto comum de procedimentos77 Yon Y, Miktron CR, Gassoumis ZD, Wilber KH. Elder abuse prevalence in Community settings: a systematic review and meta-analysis. Lancet Glob Health 2017; 5(2):147-156.,4040 Blay SL, Laks J, Marinho V, Figueira I, Maia D, Coutinho ESF, Quintana IM, Mello MF, Bressan RA, Mari JJ, Andreoli SB. Prevalence and Correlates of Elder Abuse in São Paulo and Rio de Janeiro. J Am Geriatr Soc 2017; 65(12):2634-2628..

É importante afirmar que a ocorrência da violência detectada no presente estudo provavelmente subestima a verdadeira prevalência desse agravo no Município de São Paulo, pois os métodos utilizados para a sua avaliação não envolveram informações de profissionais de saúde responsáveis pelos idosos, registros policiais, realização de exame físico, bem como pelo fato de que idosos vítimas de abusos graves provavelmente não aceitaram participar de um estudo da natureza do SABE.

A exclusão de 219 idosos cujos questionários foram respondidos por um informante auxiliar ou substituto também pode ter subestimado a prevalência da violência. Além disso, menciona-se que alguns casos de violência podem não terem sido revelados pelos próprios idosos, tendo em vista que indivíduos mais velhos tendem a não relatar acontecimentos dessa natureza4949 Neri AL. Idosos no Brasil - vivências, desafios e expectativas na terceira idade. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, Edições SESC-SP; 2007..

Pesquisa conduzida em 204 municípios distribuídos nas cinco macrorregiões do Brasil (Sudeste, Nordeste, Sul, Norte e Centro-Oeste) registrou que 40% dos idosos vítimas de violência não relataram o fato a pessoas conhecidas ou a órgãos competentes4949 Neri AL. Idosos no Brasil - vivências, desafios e expectativas na terceira idade. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, Edições SESC-SP; 2007.. A vergonha, o receio de retaliações do agressor, o medo do rompimento dos laços familiares, da perda da autonomia e do local onde reside, já que grande parte das vítimas vive com o agressor, são alguns dos fatores associados à omissão da ocorrência da violência1010 Oliveira AAV, Trigueiro DRSG, Fernandes MGM, Silva AO. Elderly maltreatment: integrative review of the literature. Rev Bras Enferm 2013; 66(1):128-133..

Dessa forma, a determinação fidedigna da prevalência da violência contra idosos é muito difícil ou até mesmo impossível de ser obtida, pelo caráter, muitas vezes, velado do problema22 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS; 2002.,1010 Oliveira AAV, Trigueiro DRSG, Fernandes MGM, Silva AO. Elderly maltreatment: integrative review of the literature. Rev Bras Enferm 2013; 66(1):128-133.. Ainda assim, os estudos que se propõem a identificar a ocorrência da violência contra idosos são de grande utilidade, pois ajudam a dar visibilidade ao problema e oferecem subsídios para a estimação da magnitude do fenômeno5050 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: MS; 2005..

A análise de regressão linear múltipla apontou que a violência contra idosos foi significativamente associada ao CM (β = -3,03; p = 0,000) e ao CF (β = -1,69; p = 0,017) da QVRS, independente de covariáveis sociodemográficas, de saúde, de apoio familiar e de incapacidade funcional. A violência contra idosos produz efeitos complexos e multidimensionais à saúde das vítimas, incluindo raiva, desmoralização, vergonha, humilhação, medo, isolamento social, insônia, falta de apetite, indigestão, solidão, tristeza e infelicidade diante da vida5151 Park HJ. Living with 'Hwa-byung': the psycho-social impact of elder mistreatment on the health and well-being of folder people. Aging Ment Health 2014; 18(1):125-128..

Estudo transversal realizado com 2.021 idosos (≥ 65 anos) residentes em sete regiões da Irlanda encontrou, por meio de análise multivariada, que obter escore abaixo da média no CM da QVRS, aferida pelo SF-8, aumentou em mais de quatro vezes as chances de relato de qualquer tipo de violência (OR = 4,51, IC 95% 2,22 - 9,14), ao passo que o CF da QVRS não foi significativamente associado ao aumento da chance de relatar violência5252 Naughton C, Drennan J, Lyons I, Lafferty A, Treacy M, Phelan A, O'Loughlin A, Delaney L. Elder abuse and neglect in Ireland: results from a national prevalence survey. Age Ageing 2012; 41(1):98-103..

Todavia, é preciso ter cautela ao se comparar os resultados da presente pesquisa com os da irlandesa supracitada. Uma comparação entre as amostras desses estudos aponta diferenças em relação às características demográficas e culturais dos idosos. Cabe também destacar que a QVRS foi tratada com enfoques diferentes no plano de análise. Na presente pesquisa, a QVRS foi a variável desfecho, enquanto que no estudo irlandês os CF e CM da QVRS foram tratados como variáveis independentes potencialmente associadas ao desfecho violência contra idosos.

Portanto, nossos resultados evidenciam, pela primeira vez, que a violência é uma variável associada à redução do escore do CF e CM da QVRS de idosos, mesmo após o controle de fatores sociodemográficos, de apoio familiar, de saúde e de incapacidade funcional. Este resultado deve servir de alerta aos vários segmentos da sociedade, sobretudo aos profissionais de saúde e aos próprios indivíduos idosos. No caso dos profissionais da saúde, é preciso que muitos deles passem a reconhecer a violência como um problema também pertencente ao campo da saúde e abandonem, definitivamente, a posição de expectadores do fenômeno. Já os idosos necessitam ser alertados de que a omissão no relato de violência pode resultar em queixas e sintomas inespecíficos que dificultam o diagnóstico e o tratamento de distúrbios físicos e mentais resultantes da violência.

Embora o foco do presente estudo tenha incidido na relação entre a violência e os componentes físico e mental da QVRS de idosos, cabe ressaltar que outras variáveis também se mostraram significativamente associadas aos desfechos analisados. As associações com incapacidade funcional para atividades da vida diária, multimorbidade, dor e sintomas depressivos são congruentes com outros estudos1616 Ribeiro KT. Fatores associados à qualidade de vida relacionada à saúde de idosos residentes no Município de São Paulo - Estudo SABE: Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2011.,5353 De Belvis AG, Avolio M, Sicuro L, Rosano A, Latini E, Damiani G, Ricciardi W. Social relationships and HRQL: A cross-sectional survey among older Italian Adults. BMC Public Health 2008; 8(348):1-16.

54 Wranker LS, Rennemark M, Berglund J, Elmstahl S. Relationship between pain and quality of life-Findings from the Swedish National study on Aging and Care. Scand J Pain 2014; 5(4):270-275.

55 Cunha LL, Mayrink WC. Influência da dor crônica na qualidade de vida em idosos. Rev Dor 2011; 12(2):120-124.
-5656 Sallum AMC, Garcia DM, Sanches M. Dor aguda e crônica: revisão narrativa da literatura. Acta Paul Enferm 2012; 25(1):150-154. e ratificam a necessidade de detecção e manejo de condições físicas e psíquicas que possam comprometer a QVRS de idosos.

Pesquisa de base populacional realizada no Município de São Paulo, utilizando o SF-12, identificou associação entre dificuldade para realizar ABVD e CF da QVRS de idosos. A chance para uma boa QVRS foi 87% menor para os homens idosos com dificuldade para ABVD em relação àqueles sem dificuldades. Já as mulheres idosas com dificuldades para desempenhar ABVD tiveram suas chances para uma boa QVRS reduzidas em 73%1616 Ribeiro KT. Fatores associados à qualidade de vida relacionada à saúde de idosos residentes no Município de São Paulo - Estudo SABE: Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2011..

No tocante à multimorbidade, pesquisa cuja amostra foi representativa da população idosa italiana não institucionalizada (33.744 indivíduos ≥ 60 anos), detectou que a ocorrência de duas ou mais doenças crônicas afetou o CF e o CM dos idosos, mensurados pelo SF-12, sendo piores os escores do CF. No CF, os idosos com multimorbidade tiveram chance 73% menor para considerarem ter boa QVRS, comparados àqueles sem doença crônica. Já no CM, para os idosos com multimorbidade, a chance para uma boa QVRS foi 50% menor5454 Wranker LS, Rennemark M, Berglund J, Elmstahl S. Relationship between pain and quality of life-Findings from the Swedish National study on Aging and Care. Scand J Pain 2014; 5(4):270-275..

Diversas pesquisas identificaram a dor como variável associada à pior percepção da qualidade de vida entre idosos5555 Cunha LL, Mayrink WC. Influência da dor crônica na qualidade de vida em idosos. Rev Dor 2011; 12(2):120-124.-5656 Sallum AMC, Garcia DM, Sanches M. Dor aguda e crônica: revisão narrativa da literatura. Acta Paul Enferm 2012; 25(1):150-154.. Pesquisa transversal e de base populacional realizada com 1.593 idosos residentes em Bagé, Rio Grande do Sul, documentou que os insatisfeitos com a vida tiveram uma prevalência duas vezes maior de sintomas depressivos quando comparados aos satisfeitos5757 Bretanha AF, Facchini LA, Nunes BP, Munhoz TN, Tomasi E, Thumé E. Depressive symptoms in elderly living in áreas covered by Primary Health Care Units in urban area of Bagé, RS. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(1):1-12..

O presente estudo apresenta algumas limitações. Em primeiro lugar, cita-se a opção pelo corte transversal, que não permitiu estabelecer causalidade entre exposição à violência e QVRS. Em segundo, embora a prevalência da violência seja alta, ela pode estar subestimada por razões já mencionadas. Em terceiro, não foi utilizado um instrumento de detecção da violência validado para uso no Brasil, e que fosse capaz de identificar outros tipos de violência não detectados nessa investigação (sexual e negligência) e de oferecer dados sobre a gravidade das agressões contra idosos. No entanto, a escolha do questionário sobre violência aplicado neste estudo tem utilização precedente em outras pesquisas3535 Duque AM, Leal MCC, Marques APO, Eskinazi FMV, Duque AM. Violence against the elderly in the home environment: prevalence and associated factors (Recife, State of Pernambuco). Cien Saude Colet 2012; 17(8):2199-2208.

36 Bolsoni CC, Coelho EBS, Giehl MWC, d'Orsi E. Prevalence of violence against the elderly and associated factors - a population based study in Florianópolis, Santa Catarina. Rev Bras Geriatr Gerontol 2016; 19(4):671-682.
-3737 Schneider IJC, Confortin SC, Bernardo CO, Bolsoni CC, Antes DL, Pereira KG, Ono LM, Marques LP, Borges LJ, Gieh MWC, Krug RR, Goes VF, Boing AC, Boing AF, d'Orsi E. Estudo de coorte EpiFloripa Idoso: métodos, aspectos operacionais e estratégias de seguimento. Rev Saude Publica [periódico na Internet]. 2017 Nov [acessado 2018 Fev 16]; 51(104):[cerca de 10 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v51/pt_0034-8910-rsp-S1518-87872017051006776.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rsp/v51/pt_0034...
.

Por fim, destaca-se que a representatividade da amostra é uma fortaleza do estudo. A técnica de amostragem randomizada, baseada em setores censitários, garantiu uma amostra representativa dos idosos não institucionalizados residentes no maior município das Américas, em termos populacionais. Essa pesquisa preenche uma lacuna do conhecimento e estabelece bases para futuros estudos sobre a exposição à violência ao longo do tempo e seu impacto na saúde física e mental dos idosos.

Conclusões

Este estudo detectou prevalência de 10% da violência contra idosos. A análise de regressão múltipla evidenciou que a violência comprometeu a saúde física e mental dos idosos, independente das covariáveis sociodemográficas, de saúde, de apoio familiar e de incapacidade funcional analisadas neste estudo. É imprescindível que a violência contra pessoas mais velhas seja fenômeno merecedor de atenção dos profissionais de saúde, gestores e pesquisadores que atuam na área de atenção aos idosos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2018
  • Aceito
    28 Jul 2018
  • Publicado
    30 Jul 2018
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