Produzir saúde e tratar de doenças são práticas distintas. A produção da saúde está diretamente associada ao modo como cada pessoa se insere no mundo e vivencia seu cotidiano. Inadequações nos processos de produzir saúde com frequência resultam em doenças. Portanto, um tratamento adequado exige a compreensão da doença como um evento complexo, simultaneamente social, cultural, emocional e fisiopatológico. Os corpos que adoecem têm histórias, afetos e afetações singulares; o adoecimento é um acontecimento único para quem o vivencia.
Conhecer alguns processos que impõem obstáculos à produção de saúde é essencial para a efetivação de práticas preventivas e terapêuticas.
No caso das mulheres, a compreensão dessas inadequações implica o reconhecimento da contradição entre a importância social de sua função reprodutiva - biológica e cultural - e a subalternidade que coletivamente marca o sujeito feminino11 ZC Lamy, LLM Gonçalves, RH Britto, MTSSB Alves, ME Koser, MS Martins, NP Leal, EBAF Thomaz. Atenção ao parto e nascimento em maternidades do Norte e Nordeste brasileiros: percepção de avaliadores da Rede Cegonha. Cien Saude Colet 2021; 26(3): 951-960.. Cada mulher constrói sua trajetória de vida e de saúde no entrecruzamento entre diferentes marcadores sociais de desigualdade, raça/etnia, orientação sexual, idade e outros, e as práticas sustentam e reproduzem as desigualdades de gênero. Incluem-se aí as formas específicas de violência e violação de seus corpos e seus direitos. Mulheres brancas, negras, indígenas ou mestiças, lésbicas ou heterossexuais, cis ou trans, pobres ou não, escolarizadas ou não, jovens ou idosas, se diferenciam entre si para além de suas características individuais. O sentido atribuído socialmente a cada uma dessas características, ou ao seu somatório, define seu acesso a oportunidades distintas e à saúde22 Almeida AMB, França LCM, Silva AK. Diversidade humana e interseccionalidade: problematização na formação de profissionais da saúde. Interface (Botucatu) 2021; 25:e200551..
É nesse contexto que o feminino se torna uma questão, já que este não pode ser pensado como uma característica que define as mulheres. Ao contrário, são as mulheres quem, na sua diversidade, reconstroem a cada dia o feminino, como algo fluido e em constante transformação.
Cada mulher demanda o serviço de saúde a partir de seu lugar no mundo e do momento que está vivendo. Ao buscar escuta e diálogo, rompe com a relação assimétrica entre profissionais e usuária; instigam os profissionais, forjados em uma cultura patriarcal e racista, a repensarem seus próprios preconceitos e repertórios técnicos.
A ampliação da cobertura dos serviços básicos de saúde no país tem sido uma importante estratégia para o redimensionamento da questão feminina no Sistema Único da Saúde. O acesso aos serviços por uma grande diversidade de mulheres, e a proximidade geográfica e cultural entre usuárias e trabalhadores onde esta implantada a Estratégia Saúde da Família, tem se mostrado capaz de oferecer soluções criativas para alguns dos desafios colocados33 Bearzi PSS, Martins AB, De Marchi RJ, Reser AR. Trilhas para o enfrentamento da violência contra a mulher. Revista Estudos Feministas 2020; 28(3):e60162..
Mas ainda há muito a ser feito. As práticas que sustentam as desigualdades de gênero são reproduzidas cotidianamente de diferentes maneiras, marcando as subjetividades de usuárias e profissionais. Muitas formas de violência e violação dos direitos das mulheres são naturalizadas e não percebidas como tal. Sexismo, homofobia e transfobia produzem sofrimentos desnecessários e dificultam a realização dos projetos de felicidade de muitxs.
Os artigos reunidos neste volume apresentam diferentes aspectos da questão feminina, que impactam, direta ou indiretamente, a saúde das mulheres e a prática dos profissionais e serviços de saúde. Desde a abordagem das propostas que visam alinhar tecnologias médicas a posturas humanizadas, até a identificação de fatores sociais implicados em adoecimentos específicos, passando pelo desvelamento de formas sutis de violência contra meninas e mulheres. Esperamos que sua leitura estimule profissionais e pesquisadores em saúde a reflexões e práticas transformadoras num espaço povoado de sujeitos em constante transformação.
Referências
- 1ZC Lamy, LLM Gonçalves, RH Britto, MTSSB Alves, ME Koser, MS Martins, NP Leal, EBAF Thomaz. Atenção ao parto e nascimento em maternidades do Norte e Nordeste brasileiros: percepção de avaliadores da Rede Cegonha. Cien Saude Colet 2021; 26(3): 951-960.
- 2Almeida AMB, França LCM, Silva AK. Diversidade humana e interseccionalidade: problematização na formação de profissionais da saúde. Interface (Botucatu) 2021; 25:e200551.
- 3Bearzi PSS, Martins AB, De Marchi RJ, Reser AR. Trilhas para o enfrentamento da violência contra a mulher. Revista Estudos Feministas 2020; 28(3):e60162.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
02 Fev 2022 - Data do Fascículo
Fev 2022