Resumo
Este estudo tem por objetivo compreender os movimentos de produção da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) em duas regiões de saúde. É caracterizado como estudo de casos múltiplos, de caráter qualitativo, e foi desenvolvido por meio de entrevistas abertas com gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) em dois estados brasileiros. O material empírico foi organizado e discutido por meio de categorias identificadas, adotando o esquema analítico dos campos das intervenções organizacionais, que foram: a multiplicidade de movimentos na produção da RUE; o poder dos hospitais; e a fragilidade da regulação governamental. Apesar dos momentos e contextos diferentes nesses estados, ambos os processos deram ênfase aos aspectos organizativos e ao financiamento, havendo baixo investimento na produção de diferentes modos de produção do cuidado em saúde. A governança regional é, portanto, produzida nas complexas relações entre a política nacional e a ação local. A RUE, enquanto política pública induzida nacionalmente pelo Ministério da Saúde, torna-se uma produção singular no campo da gestão regional.
Palavras-chave:
Rede de Atenção à Saúde; Emergência; Regionalização; Gestão em saúde; Micropolítica
Introdução
O principal referencial organizativo do Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2010 tem sido as Redes de Atenção à Saúde (RAS)11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 30 dez.. O modelo, preconizado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)22 Organización Panamericana de La Salud (OPAS). Redes integradas de servicios de salud: conceptos, opciones de política e hoja de ruta para sua implementación em las Américas. Washington: OPAS; 2010., vem sendo utilizado em países em transição demográfica e epidemiológica onde predominam condições e agravos crônicos33 Mendes EV. As Redes de Atenção à Saúde. Cien Saude Colet 2010; 15(5):2297-2305., apresentando-se como alternativa à fragmentação dos sistemas de saúde44 Organização Panamericana de Saúde (OPAS), Organização Mundial de Saúde (OMS). A atenção à saúde coordenada pela APS: construindo as redes de atenção no SUS. Brasília: OPAS/OMS; 2010.. A normativa legal que instituiu as RAS propõe um modelo poliárquico, constituído por diferentes pontos de atenção e pelas ligações que os comunicam, para se obter melhores resultados epidemiológicos e de integralidade do cuidado em saúde11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 30 dez..
Nesse contexto, a Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) foi proposta com o objetivo de articular e integrar os equipamentos de saúde, ampliando e qualificando o acesso dos usuários em situação de urgência e emergência de forma ágil e oportuna, e tem como componentes: promoção, prevenção e vigilância à saúde; atenção básica; Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU); sala de estabilização; Força Nacional de Saúde; Unidade de Pronto Atendimento (UPA); hospital e atenção domiciliar55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 7 jul..
A conformação de redes pressupõe planejamento regionalizado, mediante a articulação entre estados e municípios66 Brasil. Presidência da República. Decreto no 7508/ 2011, de 28 de julho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 28 jul.. A regionalização tem garantido mais acesso e qualidade, porém, a simples existência dos espaços regionais de gestão não garante um processo vivo e potente77 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054.. Padilha et al.88 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, Campos GWS. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde em Debate 2018; 42(118):579-593. (2018) observaram a insuficiência de instrumentos políticos e arranjos de coordenação desenvolvidos para implementação da RUE na região metropolitana de São Paulo. Mesmo assim, avanços têm sido alcançados, dificuldades precisam ser superadas e aprimoramentos são necessários para se engendrar novos arranjos de gestão e práticas assistenciais99 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145..
Este estudo parte do pressuposto de que as políticas públicas são ressignificadas no campo das práticas. Entende-se que, do ponto de vista epistemológico, é possível tomar uma política pública como objeto de produção de conhecimento, em particular o que se passa a partir de sua “entrada” no campo organizacional, constituído por atores que a reinventam a partir de suas intencionalidades, interesses, possibilidades, limites, desejos e oportunidades1010 Reis AAC, Cecílio LCO. A política de reestruturação dos hospitais de ensino: notas preliminares sobre os seus impactos na micropolítica da organização hospitalar. Saúde em Debate 2009; 33(81):88-97.. A atuação micropolítica dos gestores e demais atores no espaço regional é compreendida neste estudo como a encenação descrita por Ball1111 Mainardes J, Marcondes MI. Entrevista com Stephen J. Ball: um diálogo sobre justiça social, pesquisa e política educacional. Educação & Sociedade 2009; 30(106):303-318., em que a conversão da palavra escrita em ações dá-se como numa peça teatral: temos o texto, mas este apenas ganha vida quando alguém o representa num processo de interpretação investido de valores locais e pessoais. Esta pesquisa tem por objetivo compreender os movimentos de produção da Rede de Atenção às Urgências e Emergências em duas regiões de saúde.
Metodologia
A pesquisa tem caráter qualitativo, é caracterizada como estudo de casos múltiplos e desenvolvida por meio da coleta de depoimentos com informantes-chave identificados entre os gestores do SUS na região de saúde de Campinas (RSC), no estado de São Paulo, e na região de saúde Planalto (RSP), no estado do Rio Grande do Sul. O método de estudo de casos múltiplos envolve mais do que um único caso e tem potencial para proporcionar um estudo mais robusto, por utilizar múltiplas fontes de evidências, sendo importante em pesquisas fundamentadas na relação entre profundidade, o tipo da experiência vivida e a compreensão da mesma. Sua ênfase não está no potencial de generalização, mas na sua compreensão, que tem forte ligação com intencionalidade e ampliação da experiência1212 Stake RE. Case Studies. In: Denzin NK, Lincoln YS, editors. Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications; 2000. p. 435-454..
Neste estudo, “regiões de saúde” são aquelas resultantes da pactuação intergestores regulamentada na normativa legal brasileira, que as conceitua enquanto espaços geográficos contínuos constituídos por agrupamentos de municípios limítrofes, delimitados a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde66 Brasil. Presidência da República. Decreto no 7508/ 2011, de 28 de julho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 28 jul.. A escolha das duas regiões foi por conveniência, por facilitar o acesso ao campo. E também pelas diferenças de localização, porte populacional, características socioeconômicas, capacidade instalada de serviços de saúde, bem como a pactuação da RUE realizada em tempos e cenários distintos, conferindo potencial de visibilização da diversidade e da multiplicidade nos casos estudados. Ainda que o estudo não tenha caráter comparativo, as duas regiões se apresentam com característica distintas, conforme disposto no Quadro 1 1313 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas da população residente com data de 1 de janeiro de 2019. 2000. [acessado 2020 Ago 22]. Disponível em: www.ibge.gov.br
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Por meio de entrevistas abertas, foram colhidos depoimentos de dirigentes regionais das secretarias estaduais e de gestores de saúde de municípios de diferentes portes sobre o processo de planejamento, pactuação e implementação da RUE (Quadro 2). O critério de inclusão dos entrevistados foi a participação no processo de formulação e pactuação do Plano de Ação Regional - PAR. O material foi gravado e transcrito, sendo a identificação dos entrevistados codificada como garantia de sigilo e anonimato.
Após as entrevistas, foram discutidas e revistas em reuniões do grupo de pesquisa, narrativas elaboradas pelos pesquisadores que buscaram descrever a história da pactuação da RUE nas regiões estudadas. Para Brockmeier e Harré1414 Brockmeier J, Harré R. Narrativa: problemas e promessas de um paradigma alternativo. Psicol Reflex Crít 2003; 16(3):525-535., a narrativa tem o sentido de organizar as experiências e atribuir significados que são de ordem singular e ao mesmo tempo cultural e social. Dessa forma, foi possível, por meio da leitura extensiva do material empírico, destacar as relações micropolíticas postas na implantação da “grande política”, a partir da compreensão de que a micropolítica é o processo de produção de subjetividades a partir das relações de poder, decisivo para se pensar a gestão, a produção do cuidado e a formação na área da saúde1515 Feuerwerker LCM. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2014..
A análise do material foi realizada pela identificação, nas narrativas, de categorias e organização dos resultados, adotando o esquema analítico dos campos das intervenções organizacionais proposto por Lins e Cecílio1616 Lins AM, Cecílio LCO. Campos de Intervenções Organizacionais: a contribuição das ciências humanas para uma leitura crítica das propostas de gestão das organizações de saúde. Interface (Botucatu) 2007; 11(23):503-514., em seminários de pesquisa do grupo que desenvolveu a investigação. A pesquisa teve caráter indutivo, ou seja, a partir do material empírico, foram pesquisados conceitos e agregados novos referenciais, considerando o pluralismo teórico proposto por Ball1111 Mainardes J, Marcondes MI. Entrevista com Stephen J. Ball: um diálogo sobre justiça social, pesquisa e política educacional. Educação & Sociedade 2009; 30(106):303-318..
Os entrevistados assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, sob parecer no 2.447.067. A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Faculdade Meridional (IMED).
Resultados
Foram evidenciadas como categorias de análise: a multipliciade de movimentos na produção da RUE; o poder dos hospitais; e a fragilidade da regulação governamental. Algumas dessas categorias têm inclusive potencial como analisadores, considerados dispositivos fundamentais para o deslocamento do pesquisador1717 Guizardi FL, Lopes MR, Cunha MLS. Contribuições do movimento institucionalista para o estudo de políticas públicas de saúde. In: Mattos RA, Baptista TW, organizadores. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida; 2015. p. 319-346..
A multiplicidade de movimentos na produção da RUE
Os processos de planejamento e pactuação da RUE nas duas regiões ocorreram em tempos e dinâmicas diferentes. Na RSC, se deu logo após a publicação das portarias que regulamentam a política, entre 2011 e 2012, numa ação conjunta entre estado e municípios, com forte indução financeira federal:
Foi um processo super rico, teve a participação dos municípios, dos prestadores [...] o Ministério da Saúde muito presente. A gente chamava os gestores e pactuava, depois chamava os serviços (GEC3).
Havia garantia de recursos [...] todo mundo falava, eu amplio, eu faço, dinheiro tem [...] o financiamento da RUE foi significativo (GEC1).
Uma deficiência no órgão estadual regional para a coordenação do processo aparece nas falas dos gestores, tendo sido suprida pela atuação de equipes técnicas de alguns municípios e serviços:
A dificuldade começa nas equipes da regional. A gente se articulou para trazer experts nos assuntos, especialistas [...] foram atores locais das universidades e de serviços especializados dos municípios [...] é muito ruim você ter de fazer a coordenação da implantação de uma política e não ter recursos humanos (GEC1).
Já na RSP, houve um processo marcadamente cartorial, realizado tardiamente, apenas em 2018. Também em busca do financiamento, o planejamento foi efetuado de forma centralizada pela equipe regional da Secretaria de Estado da Saúde. Os gestores municipais estiveram ausentes no processo e foram chamados para homologar o PAR apenas ao final:
Não tendo sido discutido com os principais atores, tais como as equipes de atenção básica e os gestores municipais, que poderiam agregar muito ao plano. A elaboração do PAR foi burocrática e centralizada na Coordenadoria Regional de Saúde (GMP1).
A assimetria nas negociações entre o estado e os municípios ficou evidenciada nas duas regiões pelas diferentes relações entre estados e municípios com distintos graus de cooperação ou subordinação. Somam-se ainda a capacidade de mobilização e a forma de atuar dos hospitais universitários, prestadores de serviços filantrópicos e privados.
Entre os desafios da gestão regional da RUE, os entrevistados expressam o atravessamento da governança regional por contingências, como a descontinuidade das gestões e a alta rotatividade dos quadros de direção, fragilizando as pactuações.
A gente sente a dificuldade dos municípios quando muda. Muda tudo e eu não consigo mais [...] a gente avança, daí tem um retrocesso e tem de reconfigurar a rede. E não é só no nível municipal, mas também estadual e federal (GMC3).
Os entrevistados também relatam a não internalização da RUE para os serviços e trabalhadores que a operam cotidianamente:
Na RUE eu não sei dizer se houve essa conversa, dentro dos serviços municipais, com os médicos, enfermeiros... a gente não sabe se a pessoa que participava fazia a conversa para dentro (GEC1).
Os usuários são “culpabilizados” por usarem as portas hospitalares de urgência em detrimento da atenção básica, ainda que haja reconhecimento das motivações para estes movimentos:
Eu acho que falta muito da população ter consciência do que é uma urgência e emergência. As pessoas acabam buscando para situações que não são urgentes (GMP5).
Culturalmente, a população procura as emergências, é o local onde encontra resolutividade. Na atenção básica, às vezes consegue consulta, outras não, necessitando agendar atendimento (GEP1).
Alguns avanços foram percebidos na RSC, como a implantação da atenção domiciliar, da classificação de risco e das linhas de cuidado:
Eu acho que uma grande conquista foi a utilização dos protocolos de classificação de risco pelas portas. Com a ampliação das UPAs, essa cultura da classificação foi entrando para dentro dos municípios e dos serviços [...] o Melhor em Casa foi muito bom. A maioria dos municípios abriu serviço e foi o que salvou a rede: essas pessoas não estão ocupando leito hospitalar e nós ainda temos superlotação (GEC3).
O IAM e AVC avançou por trabalhar a prevenção, a promoção, o tempo oportuno, o trombolítico [...] nestas linhas, a gente avança (GMC3).
Devido ao caráter cartorial e recente na RSP, o estudo aponta para um processo fragmentado e pouco articulado, o que expressa a fragilidade da rede no território.
O poder dos hospitais
O poder real e simbólico dos hospitais continua intocado, seja pelo protagonismo de seus dirigentes no processo, seja pela centralidade que adquiriram no planejamento da RUE, ou ainda pelo papel dado a esses no desenho da rede. Na RSP, evidenciaram-se percepções de que a RUE seria o próprio hospital, como se fosse sinônimo de pronto atendimento hospitalar e as ações na atenção básica não fizessem parte da rede:
A RUE é bastante ligada ao hospital. Embora a gente faça isso nas unidades, mas não é muito... a gente prefere trabalhar mais na parte preventiva. Então acaba que toda essa questão fica para o hospital, por isso que o município optou por investir no hospital (GMP9).
Além da compressão de que o pronto atendimento coordena o cuidado e da função “preventivista” da atenção básica, há também relatos na RSC de que a inserção da atenção básica na RUE não foi trabalhada:
Outra coisa que nós não fizemos foi o papel da atenção básica na rede. A gente chegou a discutir classificação de risco, mas daí dizem: a UBS é porta de entrada, precisa ser por vulnerabilidade [...] Ficou descolado (GEC3).
A implantação e a operacionalização do SAMU nas duas regiões enfrentam muitas dificuldades. Na RSC, emerge a ausência da participação estadual no custeio, inviabilizando-o.
Outra questão que estava no plano, foi muito discutida e não aconteceu, é o SAMU. [...] e tem tudo, projeto, estudos, contas, planilhas [...] a gente fez a proposta para o estado para entrar com uma parte de financiamento [...] daí veio a resposta: que seria a regulação e helicóptero [...] quem pediu helicóptero? [...] e o assunto esfriou (GMC2).
Já na RSP, embora implantado, o SAMU, cuja regulação fica centralizada em Porto Alegre, compete com as ações dos bombeiros, sem ações de articulação destes:
Naquele período em que tu fica ligando (para o SAMU), que eles te passam informação, o outro cidadão que vê o que tá acontecendo e liga para o bombeiro. Quando você terminou o teu atendimento do SAMU, o bombeiro já encostou (GMP9).
A fragilidade da regulação governamental
Na RSP, os relatos indicam que a regulação é fundamentalmente profissional1818 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1502-1514. e realizada diretamente entre os prestadores de serviço, predominantemente privados:
O nosso médico faz um contato com o médico que vai encaminhar para a emergência. Até a gente tem um grupo de WhatsApp, só dos médicos nossos e dos médicos da emergência. Então o caso já é mais ou menos discutido antes de enviar (GMP 9).
Já na RSC, expressam-se dificuldades com a regulação estadual, centralizada na Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (CROSS):
Entra pelo PS, vai para a Santa Casa e a CROSS não cede vaga. Você põe um caso e ela não tem vaga, daí ela dá baixa no caso! Você põe no outro dia, ela dá baixa. Eu vou fazer o que com o paciente? Dar baixa nele também? (GM2).
Há, ainda, manifestações de um jogo de pressões e fragilidades dos gestores no processo, que muitas vezes ficam subsumidos aos interesses dos serviços:
Muitos gestores municipais ficam na mão dos prestadores. O estado também. A discussão é sempre dura. [...] O gestor que tinha um bom entendimento da própria política conseguiu fazer uma discussão boa com seu prestador e entrou na rede. Outros que não tinham um bom entendimento, ou tinham restrições políticas, aí a gente não conseguiu avançar tanto (GEC4).
Assim, apesar dos momentos e contextos distintos, nas duas regiões fica evidente que houve ênfase nos aspectos organizativos e no financiamento da RUE, influenciada pelos múltiplos movimentos dos atores envolvidos, com baixo investimento na produção de diferentes modos de cuidado e de redes vivas de saúde.
Discussão
A partir da premissa de que os gestores, ao optarem por estratégias de condução de mudanças organizacionais, são influenciados por diferentes modos de interpretar a realidade, Lins e Cecílio1616 Lins AM, Cecílio LCO. Campos de Intervenções Organizacionais: a contribuição das ciências humanas para uma leitura crítica das propostas de gestão das organizações de saúde. Interface (Botucatu) 2007; 11(23):503-514. formularam um esquema analítico denominado “campos das intervenções organizacionais sem saúde”, cujo referencial
foi construído a partir do conceito de instituição da socioanálise e categoriza as intervenções organizacionais em universalistas, particulares e singulares, a depender dos pressupostos teóricos que as embasam e da natureza das ações desenvolvidas1616 Lins AM, Cecílio LCO. Campos de Intervenções Organizacionais: a contribuição das ciências humanas para uma leitura crítica das propostas de gestão das organizações de saúde. Interface (Botucatu) 2007; 11(23):503-514..
Para Lorau1919 Lorau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 1996., o momento da universalidade tem por conteúdo os sistemas de normas, os valores que orientam a socialização, a ideologia, enfim, o instituído. No momento da particularidade, seu conteúdo se resume às determinações materiais e sociais que negam a universalidade, é o momento instituinte. Já no momento de singularidade, o conceito de instituição tem por conteúdo as formas organizacionais, jurídicas ou anônimas necessárias para atingir determinada finalidade, a institucionalização.
No contexto brasileiro de organização federativa, a implantação de redes no SUS traz desafios ímpares. Assim, a forte indução nacional de políticas de saúde pelo MS, como a RUE, não pode ser caracterizada como uma intervenção organizacional universalista, uma vez que depende da articulação intergestores interfederativa66 Brasil. Presidência da República. Decreto no 7508/ 2011, de 28 de julho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 28 jul., além de ações locais nos municípios.
Neste estudo, observa-se a micropolítica operando nos espaços regionais, evidenciada por disputas, movimentos e interesses dos gestores e atores presentes ou que influenciaram o cenário de planejamento da RUE. Para Deleuze e Guattari2020 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (v. 3). Rio de Janeiro: Editora 34; 1996., a micropolítica opera no detalhe, por meio de fluxos de intensidades, que podem ser extensivos ao conjunto do corpo social mas possuem um caráter de imprevisibilidade. Em especial no campo da saúde, são comuns estudos que explicitam a micropolítica pela ação dos trabalhadores enquanto portadores de relativa autonomia frente às determinações da gestão1515 Feuerwerker LCM. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2014.,2121 Barros LS, Cecílio LCO. Entre a "grande política" e os autogovernos dos Agentes Comunitários de Saúde: desafios da micropolítica da atenção básica. Saúde Debate 2019; 43(6):4-9.,2222 Merhy EE, Feuerwerker LMC, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde Debate 2019; 43(6) 70-83., pela relação entre profissionais de saúde e usuários na produção do cuidado em saúde2323 Feuerwerker LCM, Bertussi DC, Merhy EE, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes - Livro 2. Rio de Janeiro: Hexis; 2016.
24 Mendes PPS, Moebus RLN. A produção do cuidado como micropolítica. Diversitates Int J 2016; 8(1):38-53.
25 Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes - Livro 1. Rio de Janeiro: Hexis; 2016.-2626 Melo SM, Cecílio LCO, Andreazza R. Nem sempre sim, nem sempre não: os encontros entre trabalhadores e usuários em uma unidade de saúde. Saúde Debate 2017; 41(112):195-207., ou pelo agir dos usuários na produção de mapas de cuidados1818 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1502-1514. e de seus itinerários terapêuticos2727 Hadad ACAC, Jorge AO. Continuidade do cuidado em rede e os movimentos de redes vivas nas trajetórias do usuário-guia. Saúde Debate 2018; 42(4):198-210..
Nesta pesquisa, o que se procura observar e analisar é a ação micropolítica no espaço da gestão, na relação interfederativa e na governança regional. Partindo desses pressupostos, a discussão dos resultados será feita por meio das questões: “a gestão regional como campo de interesses e disputas” e “a reconfiguração locorregional da política nacional”.
A gestão regional como campo de interesses e disputas
Nos casos em estudo, as relações assimétricas de poder para negociação da RUE e a heterogeneidade entre municípios, além da atuação de prestadores de serviços hospitalares e das secretarias de estado, estiveram presentes e tiveram forte influência na produção dos PAR.
A Comissão Intergestores Regional (CIR) é definida como instância de pactuação entre os entes federativos para definição das regras da gestão compartilhada do SUS, sua organização e seu funcionamento em redes de atenção à saúde66 Brasil. Presidência da República. Decreto no 7508/ 2011, de 28 de julho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 28 jul.. A integração entre as três esferas de gestão do SUS é imprescindível para que a RUE possa ser implementada99 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145.. A cogestão se dá pela construção de espaços coletivos e pela constituição de sujeitos com capacidade de análise e de intervenção, considerando que adiante de cada núcleo de poder há contrapoderes com os quais há de se relacionar em esquemas de luta e negociação2828 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2007.. Assim, compreende-se a CIR não como um espaço idealizado, mas como um campo onde conflitos, disputas e forças tornam-se centrais. Como define Bourdieu2929 Bourdieu P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papiro; 1996., os campos são espaços da prática criados ou impulsionados por atores com posições definidas por maior ou menor poder, legitimidade, posturas, comportamentos, valores e conhecimentos.
Tanto na CIR da RSC quanto na da RSP, embora em tempos e contextos diferentes, foram observadas ações de atores que mobilizaram seus poderes no campo da pactuação da RUE. Na RSP, há relatos de um processo cartorial e centralizado, coordenado pela equipe da Secretaria de Estado, com baixo protagonismo dos gestores municipais e com influência dos serviços hospitalares. Já na RSC, apesar de um processo participativo, há o reconhecimento das limitações da equipe do órgão regional estadual, da atuação expressiva de membros do MS, da potência das equipes técnicas de alguns municípios, da fragilidade de alguns gestores frente aos prestadores de serviços e da participação ativa de representantes de hospitais de ensino.
Para a implementação da RUE, houve forte indução federal, por meio da ampliação do financiamento, com liberação de recursos imediatos e para custeio de novos serviços99 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145.. A busca pelo financiamento emerge, embora em tempos e momentos distintos devido aos contextos locais, como o principal interesse para a pactuação da RUE nas duas regiões de saúde.
O conhecimento e domínio técnico de alguns participantes oriundos de municípios, órgãos estaduais e serviços universitários contribuíram para ampliar seus poderes nas negociações. Na acepção de Testa3030 Testa M. Pensar em saúde. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992., o poder técnico em saúde é a capacidade de gerar, aceder, lidar com a informação de características diferentes, podendo ser médicas, sanitárias, administrativas ou marcos teóricos. Em estudo sobre a governança regional da RUE, Padilha et al.88 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, Campos GWS. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde em Debate 2018; 42(118):579-593. observaram o poder técnico presente nas relações entre profissionais, entre unidades de um mesmo serviço, entre serviços, entre estruturas de gestão e de atenção à saúde, entre esferas de governo e entre todos esses e os usuários.
O capital real e simbólico dos hospitais também lhes conferiu centralidade no processo. A participação de gestores de hospitais universitários na RSC e a força dos prestadores de serviços privados na RSP levaram à hegemonia destes na RUE. Para Focault3131 Focault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1999., o poder está não apenas vinculado ao direito, mas à verdade, sendo esta produzida pelo poder que a exige e dela necessita para operar. Essa verdade, declarada nos discursos dos entrevistados sobre a centralidade dos hospitais, reproduz a ideia de que o hospital é sinônimo da RUE, invisibilizando os demais serviços da rede. Em estudo que analisa a inserção na RUE de um hospital de grande porte na Região Centro-Oeste do Brasil, Soares et al.3232 Soares EP, Scherer MDA, O'Dwyer G. Inserção de um hospital de grande porte na Rede de Urgências e Emergências da região Centro-Oeste. Saúde Debate 2015; 39(106):616-626. concluem que ela acontece de forma lenta e depende da articulação dos vários outros serviços e instâncias do SUS. Para Jorge et al.99 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145. (2014), o hospital, historicamente trabalhando de forma isolada e desarticulada dos demais pontos de atenção, se baseia na atenção curativa dissociada de qualquer articulação com as RAS, acrescida pela busca incessante dos pacientes por cuidados e que os veem como tábua de salvação para todos os problemas de saúde, garantindo sua legitimidade e dotando-o de um poder ainda maior. Para Beltrammi e Reis3333 Beltrammi DGM, Reis AAC. A fragmentação dos sistemas universais de saúde e os hospitais como seus agentes e produtos. Saúde Debate 2020; 43(5):94-103., os hospitais são causa e consequência da fragmentação dos sistemas universais de saúde. Eles precisam pertencer ao conjunto da região, tê-la como objeto de permanente reflexão, independentemente da natureza administrativa ou do ente federativo aos quais são subordinados, do contrário, correm o risco de serem autorreferenciados, com olhar restrito ao trajeto do usuário dentro de si mesmo, e não na rede regionalizada88 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, Campos GWS. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde em Debate 2018; 42(118):579-593..
Para a articulação de redes regionais, o funcionamento das CIR é vital, pois sua atuação permite a constituição de uma arena política permanente de disputa de projetos, onde pode se dar a construção de novas relações de poder que se impõe como potência77 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054.. Para Furtado3434 Furtado LAC. O desafio da construção do comum nas máquinas de governo: o estado em disputa [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2016., os atuais espaços de gestão regional se mostram importantes, mas não suficientes para garantir uma gestão compartilhada e qualificada nas regiões, pois as macroestruturas são produzidas todo o tempo no espaço da micropolítica. É necessário mergulhar no campo micropolítico das relações de poder para compreender como se constroem e redesenham estratégias, e para influenciar na potência dos arranjos institucionais, evidenciando que é nesse campo relacional, e não no normativo, que a CIR real é produzida77 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054..
A reconfiguração locorregional da política nacional
Os processos de implementação de políticas nacionais de saúde no Brasil são complexos. Para Viana e colaboradores3535 Viana ALA, Bousquat A, Melo GA, Negri Filho A, Medina MG. Regionalização e redes de saúde. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1791-1798., os ciclos políticos de organização do SUS compreendem dois períodos nos quais prevaleceram a descentralização para os entes subnacionais, com protagonismo da esfera municipal no primeiro (1988 a 2000), e a regionalização e construção das RAS no segundo (a partir de 2000). Nesse contexto, há imensos desafios, como a heterogeneidade entre as regiões e a pluralidade de seus arranjos territoriais, para que se possa garantir um sistema universal, integral, equânime e que tenha qualidade e legitimidade social77 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054..
A constituição das instâncias interfederativas de gestão nas esferas federal, estaduais, municipais e regionais, embora tenha dado voz a estados e municípios, ainda não substituiu a ação indutora e regulamentadora do Ministério da Saúde. A manutenção de uma prática centralizada e o uso de instrumentos de indução política e financeira submetem os demais entes às regras do sistema, nem sempre com políticas acordadas e sustentadas nas diversas realidades do país3636 Baptista TWF. Análise das portarias ministeriais da saúde e reflexões sobre a condução nacional da política de saúde. Cad Saude Pública 2007; 23(3):615-626.. O repasse de recursos pré-definidos pelo governo federal pode sugerir redução da autonomia e limitação de soluções locorregionais3737 Moreira LMC, Ferré F, Andrade EIG. Financiamento, descentralização e regionalização: transferências federais e as redes de atenção em Minas Gerais, Brasil. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1245-1256.. Para Reis et al.77 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054., a produção do cuidado integral em redes regionais exige enfrentar a herança dos programas verticais e a lógica de incentivos específicos padronizados para um país de dimensão continental e heterogêneo.
A ação indutora federal não anula a autonomia dos estados e municípios para o desenvolvimento de políticas locais, bem como para a adesão ou não às ofertas do MS. Além disso, políticas definidas centralmente, mas que só podem se realizar em conjunto com outros atores e em outros espaços institucionais, tendem a ser reelaboradas no âmbito regional de maneira peculiar, implantadas com distintos níveis de interlocução pelos gestores em cada realidade, em interação com outros atores sociais, e passam a assumir novas intencionalidades e conformações1010 Reis AAC, Cecílio LCO. A política de reestruturação dos hospitais de ensino: notas preliminares sobre os seus impactos na micropolítica da organização hospitalar. Saúde em Debate 2009; 33(81):88-97.. A simples indução financeira de políticas como a RUE não é suficiente para a implementação imediata de seu modelo, seus objetivos e diretrizes, tampouco dos dispositivos e arranjos preconizados.
Na RUE, que já é operacionalizada no cotidiano independentemente da pactuação ou tutela de uma governança regional, a mera reprodução da política formulada em âmbito federal parece estar muito distante de se concretizar. O que a investigação torna visível é a multiplicidade de fatores que operam na construção micropolítica da RUE em cada espaço, para além da pretendida indução de uma política nacional. Assim, não é possível pensar esse processo como uma intervenção de caráter universalista, em que a organização é vista como um sistema que tende à homeostase pela determinação de um eixo racional/legal1616 Lins AM, Cecílio LCO. Campos de Intervenções Organizacionais: a contribuição das ciências humanas para uma leitura crítica das propostas de gestão das organizações de saúde. Interface (Botucatu) 2007; 11(23):503-514..
A não adesão ao modelo definido pela política nacional não significa necessariamente a desqualificação da RUE, pois os processos singulares de construção das políticas nos territórios podem produzir arranjos mais potentes e coerentes com as necessidades. Por outro lado, também não podemos compreender a RUE como uma intervenção particularista. O campo de intervenções particularistas é definido pela ação/liberdade dos sujeitos para redefinir a estrutura da organização1616 Lins AM, Cecílio LCO. Campos de Intervenções Organizacionais: a contribuição das ciências humanas para uma leitura crítica das propostas de gestão das organizações de saúde. Interface (Botucatu) 2007; 11(23):503-514.. Mesmo que planejada, pactuada e executada no espaço locorregional por atores com autonomia formal e atravessados por muitas disputas, a RUE é uma política que provém de uma forte indução central. Assim, o que se observa é que práticas já instituídas e que operam nos espaços de gestão regional e municipal, bem como dos próprios serviços, tendem a se manter ou podem se transformar mediante as possíveis ações instituintes desencadeadas pelos atores locais. A implementação de uma nova política pública pressupõe transformações. Em estudo que analisa o processo de implementação do sistema de saúde britânico, Klein3838 Klein R. Britain's National Health Service Revisited. N Engl J Med 2004; 350(9):937-942. o descreveu como um modelo de “exortação e esperança”, em que o governo central exortava e tinha a esperança de que as medidas seriam adotadas no nível local. As políticas de saúde implementadas no Brasil parecem se basear nesse modelo.
Um elemento central é a percepção de que não se deu necessariamente a conformação de redes integradas, mas um investimento maior no componente hospitalar e nos serviços de pronto atendimento, em detrimento dos outros pontos de atenção, pautado sempre pela busca de mais financiamento em um sistema brutalmente desfinanciado3333 Beltrammi DGM, Reis AAC. A fragmentação dos sistemas universais de saúde e os hospitais como seus agentes e produtos. Saúde Debate 2020; 43(5):94-103.. O SAMU, concebido como um elemento de articulação da rede, apresenta-se como nó crítico nas duas regiões estudadas. A atenção básica, com o atributo da horizontalidade do cuidado, foi apartada e negligenciada em ambas as regiões.
Outra questão que evidencia o instituído operando na RUE é a regulação, em especial a fragilidade da regulação governamental. Cecílio et al.1818 Cecilio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, Souza ALM, Andrade MGG, Santiago SM et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1502-1514. identificam diferentes regimes de regulação - governamental, profissional, clientelístico e leiga - indicando que este é um campo em permanente disputa, uma produção social. Nos casos em estudo, observa-se na RSC uma regulação governamental centralizada pelo estado. Na RSP, a regulação é ainda mais incipiente, centrada nos serviços, marcadamente profissional e realizada na informalidade por meio de aplicativos. Para Jorge e colaboradores99 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145., observa-se a falta de decisão política, em boa parte dos gestores, de regular, e tem sido regra o funcionamento das redes sem regulação.
Uma observação importante nos processos de implementação da RUE nas regiões, e que expressam a relação entre universal, particular e singular, foi a pequena ênfase dada às transformações propostas nas práticas de cuidado em saúde. Para Reis et al.77 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054., a construção de redes vivas de cuidado, que coloquem em conexão os vários serviços existentes nos territórios, é um dos objetivos centrais da governança regional. A pactuação feita “por cima” não foi internalizada para os serviços, seus gestores e trabalhadores, que operam cotidianamente a política “de fato”. Essa percepção é corroborada por estudos que identificam que a implantação do conjunto dos componentes da RUE não se fez acompanhada do processo de modificação do modelo assistencial em direção a uma atenção integral, resolutiva, qualificada e centrada no usuário88 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, Campos GWS. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde em Debate 2018; 42(118):579-593.,99 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145.,3232 Soares EP, Scherer MDA, O'Dwyer G. Inserção de um hospital de grande porte na Rede de Urgências e Emergências da região Centro-Oeste. Saúde Debate 2015; 39(106):616-626.. Para que isso pudesse ocorrer, seria preciso aproximar e estimular o protagonismo dos trabalhadores3232 Soares EP, Scherer MDA, O'Dwyer G. Inserção de um hospital de grande porte na Rede de Urgências e Emergências da região Centro-Oeste. Saúde Debate 2015; 39(106):616-626., reinventar os arranjos internos na produção do cuidado88 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, Campos GWS. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde em Debate 2018; 42(118):579-593. e avaliar a implantação dos dispositivos de qualificação previstos99 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145..
Assim, a RUE se torna uma produção singular ao entrar no campo organizacional da gestão regional, sendo atravessada pela ação micropolítica de atores que a conformam de acordo com a relação de interesses e poderes que operam. Para os institucionalistas, no momento singular a sociedade funciona porque as normas universais, admitidas como tais, não se encarnam diretamente nos indivíduos, mas passam pela mediação de formas sociais singulares, de modos de organização adaptados1919 Lorau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 1996.. Nos casos em estudo, percebe-se uma relação complexa entre a política em ação - o processo - e a política oficial - o modelo -, produzindo no contexto de práticas uma política singular.
Para Lorau1919 Lorau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 1996., a ação dos sujeitos particulares em relação ao universal se desencadeia mediada e organizada pela dimensão singular. Segundo Lins e Cecílio1616 Lins AM, Cecílio LCO. Campos de Intervenções Organizacionais: a contribuição das ciências humanas para uma leitura crítica das propostas de gestão das organizações de saúde. Interface (Botucatu) 2007; 11(23):503-514., no campo das intervenções organizacionais singulares o projeto oficial da organização concretiza o discurso da instituição à qual se vincula, representando o grande eixo normalizador, “transversalizado” por diversos outros projetos disputados por grupos protagonistas que demonstram habilidades na manipulação de recursos por sua autonomia.
Deuleze e Guattari2020 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (v. 3). Rio de Janeiro: Editora 34; 1996. utilizam o conceito de segmentaridade para explicitar essa relação. Para os autores, toda sociedade e todo indivíduo são atravessados por duas segmentaridades: uma molar, outra molecular. Elas se distinguem, mas são inseparáveis, sempre uma pressupondo a outra. Toda política é ao mesmo tempo macro e micro. Existe, então, uma segmentaridade dura (molar) e uma segmentaridade flexível (molecular), que se misturam e convivem. Para Merhy et al.2525 Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes - Livro 1. Rio de Janeiro: Hexis; 2016., compreender como essas linhas estão todo o tempo imbricadas e se constituindo mutuamente, em movimentos de fuga e construção da mudança e em processos de resistência e confirmação do instituído, ajuda a entender o cotidiano do SUS.
Emerge então uma questão importante: a produção singular, na relação entre a política formulada e a política em ação, não é necessariamente boa ou má1919 Lorau R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes; 1996.. O que pode ser uma ação inovadora ou uma adaptação necessária à realidade local na política da RUE, pode ser também uma ação de resistência e de manutenção dos instituídos frente a propostas e objetivos formulados em âmbito federal. Uma política de saúde que poderia possibilitar transformações para a construção de um sistema mais inclusivo e comprometido com a defesa da vida pode, todavia, fortalecer poderes, instituições e processos que não necessariamente contribuem para o interesse comum. Assim, as contatações do estudo referentes à ação micropolítica, às disputas, poderes e às singularidades no campo da gestão interfederativa regional devem ser consideradas pelos formuladores e condutores das políticas de saúde, tornando-se imprescindível construir projetos de gestão singulares77 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054. para cada região, considerando as especificidades de cada território.
Considerações finais
As políticas de saúde induzidas nacionalmente pelo MS tornam-se produções singulares nas regiões de saúde, nos municípios e nos serviços de saúde. Os processos de planejamento, pactuação e implementação da RUE nas duas regiões de saúde estudadas podem ser compreendidos enquanto intervenções organizacionais do campo da singularidade, uma vez que se produziram ou reproduziram de modo diverso do previsto na política formulada. Políticas públicas destinadas à organização do sistema de saúde em redes são reprocessadas nos campos da particularidade e da singularidade, adquirindo outros desenhos não planejados.
Olhar a ação micropolítica de atores inerentes ao cenário da gestão regional, utilizando-se de seus saberes, poderes e ações, foi central na visibilização do processo de construção da RUE em cada região. Apesar das macrodeterminações da política nacional, o campo da governança regional e as relações micropolíticas dos atores envolvidos produzem processos singulares. A governança regional é, portanto, produzida nas complexas relações entre a política nacional e a ação local, compreendidas não como dicotômicas ou determinísticas, mas de imanência. Percebe-se que o processo de construção da RUE nas duas regiões de saúde a partir de um eixo normalizador foi transversalizado por diferentes poderes e projetos em disputa entre os atores locais, produzindo em cada território a síntese possível entre uma política nacional e as realidades locorregionais.
Referências
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- 9Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, Fagundes AMS, Pequeno CC, Carmo M, Abrahão PTM. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulgação em Saúde para Debate 2014; 52:125-145.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Mar 2022 - Data do Fascículo
Mar 2022
Histórico
- Recebido
09 Set 2020 - Aceito
02 Fev 2021 - Publicado
04 Fev 2021