Resumo
O artigo analisa singularidades da organização Atenção Primária à Saúde (APS) em municípios rurais remotos (MRR) da Amazônia sob influência dos rios e discute desafios para atenção integral no Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de estudo qualitativo e quantitativo de casos múltiplos em sete MRR mediante a análise de entrevistas com gestores, visitas a serviços e dados secundários. Os MRR da Amazônia fluvial são pequenos, com população rarefeita, dispersa vivendo em condições de vulnerabilidade social. Longas distâncias, regime dos rios e irregularidade dos transportes interferem no acesso aos serviços de APS. A Estratégia Saúde da Família está implementada no sistema municipal, contudo permanecem áreas sem cobertura assistencial, indisponibilidade de serviços de APS e adaptações à Estratégia impostas pelas características do contexto. Os desafios estão relacionados ao financiamento, provisão e fixação da força de trabalho, e barreiras de acesso geográfico comprometem a capacidade de resposta da APS no SUS. A sustentabilidade da APS exige medidas estratégicas, recursos e ações de múltiplos setores e agentes públicos; políticas de suporte nacional com viabilidade para execução local, para que os serviços de APS se estabeleçam e façam sentido em espaços tão singulares.
Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Saúde rural; Amazônia
Introdução
Dilemas relativos à organização e disponibilidade de serviços de saúde em áreas localizadas fora do eixo urbano, com baixa densidade demográfica e pequeno porte populacional não é singularidade brasileira. Apesar das diferenças entre países, o acesso nas áreas rurais remotas é crítico em todo o mundo11 Strasser R. Rural health around the world: challenges and solutions. Fam Pract 2003; 20(4):457-463.. São contextos moldados por fatores geográficos, ambientais, políticos, econômicos, históricos, culturais e sociais, singulares, que se interconectam e, juntos criam um cenário complexo para o desenvolvimento das práticas e do acesso à saúde11 Strasser R. Rural health around the world: challenges and solutions. Fam Pract 2003; 20(4):457-463.,22 Reid S, Worley P, Strasser R, Couper I, Rourke J. 'What brings us together': The values and principles of rural medical education. In: Chater AB, Rourke J, Couper ID, Strasser RP, Reid S, editors. Rural Medical Education Guidebook. World Organization of Family Doctors (WONCA): Working Party on Rural Practice; 2014. p.43-58..
Países ocidentais, como Canadá e Austrália, com grandes extensões territoriais, populações dispersas e áreas isoladas, têm avançado na proposição de políticas para garantir viabilidade a atenção à saúde em áreas remotas. Os modelos propostos para estes contextos buscam fazer ajustes entre provisão da Atenção primária à Saúde (APS), condições de acesso geográfico e necessidades locais33 Murphy P, Burge F, Wong ST. Measurement and rural primary health care: a scoping review. Rural Remote Health 2019; 19(3):4911.. Os principais desafios estão relacionados a desvantagens socioeconômicas das populações rurais, má distribuição da força de trabalho e falta de recursos em saúde44 Lyle D, Saurman E, Kirby S, Jones D, Humphreys J, Wakerman J. What do evaluations tell us about implementing new models in rural and remote primary health care? Findings from a narrative analysis of seven service evaluations conducted by an Australian Centre of Research Excellence. Rural Remote Health 2017; 17(3):3926.
5 Walters, LK, McGrail, MR, Carson, DB, O'Sullivan, BG, Russell, DJ, Strasser, RP, Hays, RB, Kamien, M. Where to next for rural general practice policy and research in Australia? Medical J Australia 2017; 207(2):56-88.-66 O'Sullivan BG, Worley P. Setting Priorities for Rural Allied Health in Australia: a scoping review. Rural and Remote Health 2020; 20:5719.. Apesar dos avanços decorrentes de políticas específicas para localidades rurais remotas, o acesso continua sendo um aspecto crítico nos sistemas de saúde projetados para garantir o provimento equitativo de APS adequada e apropriada33 Murphy P, Burge F, Wong ST. Measurement and rural primary health care: a scoping review. Rural Remote Health 2019; 19(3):4911.,77 Russell DJ, Humphreys JS, Ward B, Chisholm M, Buykx P, McGrail M, Wakerman J. Helping policy-makers address rural health access problems. Aust J Rural Health 2013; 21(2):61-71.. Persistem importantes lacunas entre expectativas da comunidade e a real prestação de serviços de saúde88 Oosterveer TM, Young TK. Primary health care accessibility challenges in remote indigenous communities in Canada's North. Int J Circumpolar Health 2015; 74:29576..
No Brasil, a definição de áreas rurais remotas é recente, o que aponta para a incipiência de políticas públicas específicas para estes contextos. A Amazônia brasileira é território marcado por rarefação populacional, grandes distâncias e isolamento. Em parte dela, os rios constituem-se em meio exclusivo de interconexão. Estudos demonstram haver descolamento entre as políticas de caráter nacional e as realidades locais, sugerindo ser imperativo construir políticas diferenciadas dentro da região99 Viana AL, Machado CV, Baptista TWF, Lima LD, Mendonça MHM, Heimann LS. Sistema de saúde universal e território: desafios de uma política regional para a Amazônia Legal. Cad Saude Publica 2007; 23(2):S117-S131.
10 Miclos PV, Calvo MCM, Colussi CF. Avaliação do desempenho da Atenção Básica nos municípios brasileiros com indicador sintético. Saude Debate 2015; 39(107):984-996.-1111 Garnelo L, Sousa ABL, Silva CO. Regionalização em Saúde no Amazonas: avanços e desafios. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1225-1234..
Assim, quais seriam os desafios e as estratégias da gestão municipal para conferir sustentabilidade aos serviços de APS em territórios rurais remotos da Amazônia brasileira? Quais elementos organizacionais contribuem ou comprometem a capacidade de respostas da APS no Sistema Único de Saúde (SUS)?
O objetivo deste artigo é analisar as singularidades da organização da APS em municípios rurais remotos da Amazônia em localidades sob forte influência da dinâmica dos rios e discutir os desafios para a garantia de atenção integral no SUS nestes territórios.
Aspectos metodológicos
Este artigo discute parte dos resultados da pesquisa “Atenção Primária à Saúde e territórios rurais e remotos no Brasil”, cujo objetivo foi analisar as singularidades da organização e do uso dos serviços de APS nos territórios rurais remotos brasileiros. O estudo partiu da caracterização dos 323 municípios rurais remotos (MRR), segundo classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1212 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro: IBGE; 2017., que foram por nós tipificados em seis áreas com dinâmicas socioespaciais peculiares: Semiárido; Matopiba, Vetor Expansão Centro-Oeste; Norte de Minas; Norte Águas e Norte Estrada1313 Fausto MCR, Fonseca HMS, Penzin VM, Cabral LMS. Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil: Relatório Final. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020..
Para definição da amostra, caracterizamos os 62 MRR Norte Águas, considerando as características demográficas, econômicas e sociais destes municípios. Posteriormente foram selecionados intencionalmente MRR com características mais comuns e incomuns no território Norte Águas, de modo a incluir municípios de diferentes estados com características diversificadas. Chegamos a uma amostra de sete MRR: Prainha, Curuá, Aveiro, Melgaço no Pará; Maués e Boa Vista do Ramos no Amazonas; e Vitória do Jari no Amapá.
Este artigo analisa as singularidades da organização da APS em sete MRR, os fatores e processos que facilitam ou dificultam sua efetivação e os desafios para a garantia do acesso na APS. Trata-se de estudo de casos múltiplos com abordagem qualitativa-quantitativa, mediante entrevistas semiestruturadas e dados secundários de acesso público.
Foram analisadas 13 entrevistas com Secretário Municipal de Saúde (6) e Coordenador de Atenção Básica (7). Entre os entrevistados a maioria era do sexo feminino (9) principalmente na coordenação da Atenção Básica (6). Os gestores concentram-se na faixa etária de 30 a 40 anos de idade (9); com nível superior completo, predomínio de graduação em enfermagem (10), mais de 10 anos de formados (9), tempo na gestão variando entre menos de 3 meses e 1 ano (6) e de 2 a 4 anos (7) e experiência pregressa em gestão antes de assumir o cargo (7). Os Secretários Municipais de Saúde tinham cargo comissionado e os Coordenadores de Atenção Básica exerciam o cargo mediante contrato por tempo determinado (4) ou eram estatutários da Prefeitura (3).
O trabalho de campo ocorreu entre maio e novembro de 2019, com visitas aos municípios e Unidades Básicas de Saúde (UBS) da sede e do interior de cada município-caso e entrevistas presenciais gravadas com gestores municipais de saúde sobre a organização, estratégias e desafios da APS no SUS, com duração média de duas horas e meia e posterior transcrição na íntegra para a produção dos dados e categorização do conteú do.
As entrevistas foram guiadas por roteiros semiestruturados e multidimensionais, elaborados de modo a criar possibilidades de análises trianguladas e transversais, abrangendo o máximo de informações para análise de casos múltiplos em profundidade1414 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2001..
Para a elaboração dos resultados realizou-se a análise de conteúdo temática. A partir da leitura do material empírico foram identificados temas relacionados à provisão e ao acesso a APS. A segunda etapa da leitura envolveu síntese e interpretação do material, posteriormente organizado em três dimensões temáticas, as quais estruturam a apresentação dos resultados: características socioespaciais dos municípios rurais remotos, composta pelas categorias aspectos socioeconômicos e demográficos, e acesso geográfico; APS no SUS municipal que engloba cobertura e (in)disponibilidade dos serviços, e adaptações das diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) à realidade Amazônica - múltiplos formatos de organização da APS; e desafios para a garantia do acesso a APS, abrangendo financiamento e oferta de serviços de APS; provisão e fixação de profissionais; e acesso geográfico e mobilidade para o cuidado em saúde.
Para caracterização socioespacial dos MRR, cobertura e disponibilidade de serviços no SUS municipal, além da fonte primária, utilizou-se dados secundários de acesso público: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde; Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica; e outras informações disponíveis em bancos de dados de acesso público; Ministério do Desenvolvimento Social; Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor público brasileiro.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca -- CEP/ENSP/Fiocruz, CAAE 92280918.3.0000.5240 e parecer nº 2.832.559.
Resultados
Características socioespaciais dos municípios rurais remotos
Aspectos socioeconômicos e demográficos
Os sete MRR estudados encontram-se imersos no vasto território Amazônico, parte deles agregam áreas de proteção ambiental e têm o rio como fio condutor do modo de organização social e econômica das comunidades locais. A mesma água que alaga os territórios de várzea é a água que desaparece no período da vazante. Os povos tradicionais estão presentes nestes municípios, antes mesmo de serem concebidos como unidades administrativas. As comunidades ribeirinhas povoadas por pescadores, agricultores e extrativistas caracterizam o modo de vida da população que vive no interior, fora da sede dos municípios.
Os rios possibilitam a mobilidade, atraem populações e viabilizam a comunicação entre os diversos espaços sociais. São responsáveis pela maior parte das fontes de renda da população ribeirinha, transformando sazonalmente a terra, a utilização do espaço e o modo de vida dessa população, em constante adaptabilidade1515 Martine D. Fazer Territó-rios na Amazônia. Confins 2017; 31(1):[about 17 p.],1616 Duarte JCS, Rezende MGG, Fraxe TJP. A materialização da territorialidade na Comunidade São Francisco (Careiro da Várzea/AM). IN: Terceira Margem Amazônia. São Paulo: Outras Expressões; 2018. p.198-209..
Entre muitas similaridades, os MRR apresentam diferenças que se expressam nos meios de acesso, características da população e formas de uso dos territórios. A Tabela 1 apresenta informações sobre as características socioeconômicas e demográficas dos MRR do território que aqui denominamos de Amazônia fluvial.
São pequenos municípios com áreas remotas e de difícil acesso, quase todos com mais da metade de sua população residindo fora da sede municipal. A rarefação e dispersão populacional nos interiores é fenômeno comum. Municípios com maiores extensões territoriais também são os que apresentam áreas mais rarefeitas.
Os MRR são pouco atrativos, marcados por expressiva vulnerabilidade social. A economia municipal sustenta-se em transferências intergovernamentais e pelas atividades da administração pública. A agricultura, a pecuária, a pesca e o extrativismo são principalmente de base familiar e importante meio de subsistência para a população do interior.
Questões relacionadas ao meio ambiente são muito expressivas nestes municípios (conflitos de terra, desmatamento, poluição dos rios) e impactam nas condições de vida e de saúde das populações.
Acesso geográfico
As longas distâncias percorridas entre interior e sede municipal são expressivas e os tempos de deslocamento não são fixos. A Tabela 2 apresenta as formas de deslocamento habitualmente feitas pelos usuários em busca de atendimento nos serviços de saúde e demonstra que nestes contextos há intrínseca relação entre tipo de transporte, tempos e custo de deslocamento.
O regime dos rios, o tipo de embarcação, o quantitativo de pessoas e objetos carregados são variantes que alteram os tempos de deslocamento. A fase cheia dos rios favorece a navegação e melhora a trafegabilidade. Nos acessos terrestres o período chuvoso é o mais difícil para trafegar e os tempos de deslocamento estão relacionados ao tipo de transporte e as condições da estrada. O fenômeno da cheia dos rios também implica no processo migratório de famílias, já que as áreas ribeirinhas ficam inundadas.
Na fase da vazante, a seca dos rios restringe o uso de embarcações e dificulta o deslocamento. O isolamento, condição rotineira, torna-se extremo neste período e dificulta ainda mais a mobilidade dos ribeirinhos.
A irregularidade do sistema de transporte dificulta a conexão entre áreas do interior com a sede municipal e com a região, situação que limita ou impede a mobilidade das pessoas para acessar serviços disponíveis apenas em áreas mais concentradas.
APS no SUS municipal
Cobertura e disponibilidade de serviços
Nos MRR a APS está organizada com base nas diretrizes da Estratégia Saúde da Família (ESF) proposta pelo Ministério da Saúde (MS), com cobertura populacional potencial entre 69 e 100%. Como se pode observar na Tabela 3, em todos os municípios há UBS com Equipes de Saúde da Família (EqSF) completas com médicos do Programa Mais Médicos (PMM), Agentes comunitários de Saúde (ACS) e Equipes de Saúde Bucal (EqSB), além de outros tipos de equipes (EqSF fluviais, EqSF ribeirinhas, Equipes de Agentes Comunitários de Saúde - EACS) também previstas e financiadas pelo MS. O Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), dispositivo para ampliar a cobertura e melhorar a capacidade resolutiva da APS estão presentes nos municípios, com particularidades.
Os serviços de APS constituem-se em único, principal e primeiro recurso procurado pelos usuários quando buscam por cuidado em saúde. Apesar da ESF estar implementada nos MRR, a provisão da APS em áreas mais remotas e de difícil acesso mostra-se desafiadora quando se almeja a cobertura universal. As dificuldades para disponibilizar serviços de APS em áreas de difícil acesso e com população rarefeita impõem aos gestores municipais a necessidade de criar alternativas organizacionais por dentro da ESF. Ainda assim permanecem áreas sem cobertura assistencial.
O modelo de financiamento e de organização propostos para a APS mostram-se limitados para estes contextos, diante dos desafios para realização de cadastramento e oferta de serviços para famílias que vivem em áreas isoladas. A existência de populações indígenas que não contabilizam para a cobertura da ESF também surge como questão que impacta no cálculo de cobertura e do financiamento da APS.
Os sistemas de saúde municipais abarcam variados tipos de estruturas para a oferta de serviços de APS: UBS convencionais, pequenos postos de saúde, unidades fluviais, unidades móveis terrestres. Todos dispõem de algum tipo de estrutura para realizar primeiro atendimento às situações emergenciais, inclusive para atenção ao parto de baixo risco (Prainha). Os serviços de pronto atendimento também foram mencionados como opção de acesso nos dias e horários em que as UBS não estão em funcionamento ou quando localizados mais próximos do que a UBS.
Na maioria dos casos, são serviços com pouca capacidade resolutiva, estruturados em centros de saúde ou unidades mistas que funcionam 24 horas com médico, profissionais de enfermagem (enfermeiro e técnicos de enfermagem), em alguns casos sem o profissional médico. Três municípios dispõem de hospital de pequeno porte com funcionamento 24 horas que além de atender urgências e emergências, possui leitos obstétricos, clínicos e cirúrgicos (Maués, Boa Vista do Ramos e Melgaço). Academia da Saúde, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), estão menos presentes nos municípios.
Com relação à vinculação e territorialização, verificou-se que na sede municipal a população está vinculada a EqSF de referência por áreas de atuação definidas. No interior a lógica da adscrição raramente se mantém, sendo frequente a vinculação de usuários residente no interior a equipes que atuam em UBS localizadas na sede municipal. Para viabilizar o acesso e disponibilidade da oferta a toda população, em alguns municípios observou-se haver concentração de certos serviços em UBS maiores e de localização central, a exemplo da saúde bucal em Melgaço e de consulta ginecológica em Melgaço, Maués e Vitória do Jari.
Nestas UBS busca-se garantir a priorização das famílias do interior, havendo menos rigidez nos horários e dias de atendimentos programados. Mesmo para a realização do trabalho do ACS verificou-se haver junção de pequenas comunidades ribeirinhas, as vezes com distâncias expressivas, para o acompanhamento do número mínimo de família.
Na maior parte dos municípios as condições estruturais das UBS em áreas rurais não permitem a realização das mesmas ações ofertadas nas unidades da sede municipal, exceto em Aveiro e Boa Vista do Ramos onde as UBS localizadas no interior tinham condições estruturais superiores às da sede, com equipamentos para atender situações de urgência. As diferenças entre UBS da sede e do interior estavam principalmente na disponibilidade de ações (saúde bucal, vacinação, medicamentos, coleta de exames laboratoriais) e na composição das equipes. A dispensação de medicamentos ocorre na maioria das UBS, porém é descontínua e insuficiente principalmente nas unidades do interior. Para os exames laboratoriais, a coleta de material biológico é feita em unidades de saúde da sede, com estratégias diversificadas entre os municípios.
O uso de ferramentas de tecnologias da informação e comunicação (TIC) é incipiente. O sistema de informação na APS está estabelecido em todos os municípios, porém a maioria funcionando off-line, com preenchimento das fichas de Coleta de Dados Simplificados (CDS) nas UBS e encaminhadas para digitação e transmissão no sistema e-SUS-AB. As UBS estão informatizadas, porém poucas dispõem de conectividade. A implantação de prontuário eletrônico só foi observada em UBS, sede e interior, de Boa Vista do Ramos e Prainha.
Dificuldades para o uso de Telessaúde ou Telemedicina foram reportadas, mesmo entre os municípios com alguma experiência no uso para consulta com especialistas (Melgaço) e capacitação profissional (Maués). As dificuldades foram atribuídas a falhas de conectividade, de energia elétrica e as limitações de transmissão via rádio, principalmente no interior.
O aplicativo WhatsApp é comumente utilizado entre gestores, profissionais das EqSF e usuários para transmissão diversificada de informações: orientações sobre cuidado ao usuário, envio de produção, envio de informações de prontuários eletrônicos.
Nas áreas mais remotas, radiotransmissor e rádio local são formas de comunicação importantes, especialmente quando não há acesso ao telefone e à internet.
Adaptações das diretrizes da PNAB à realidade Amazônica - múltiplos formatos de organização da APS
A ESF está implementada nos MRR, porém com adaptações impostas pelas características do contexto amazônico fluvial. Os ajustes feitos pela gestão local visam principalmente garantir o acesso a APS nas áreas mais remotas, mas nem sempre assegurando a continuidade e a integralidade do cuidado.
A Tabela 4 mostra como são variados e conjugados os formatos de organização da oferta de APS. Coexistem modalidades induzidas por políticas do governo federal e iniciativas do governo local. Entre as modalidades de equipes e unidades de saúde destaca-se: Equipes de ACS (EACS); Equipes ESF Ribeirinhas (EqSFR); EqSFR ampliadas; EqSF itinerantes; UBS Fluvial e pontos de apoio das UBS no interior.
O PMM mostrou-se crucial para a manutenção das EqSF completas em MRR. A chegada de médicos do programa nos municípios ampliou a cobertura ESF e possibilitou aos gestores locais investir na contratação de outros profissionais para a APS. Em alguns casos, o PMM permitiu, inclusive, investimento municipal na contratação de médicos especialistas para promover retaguarda e maior resolutividade da APS. Contudo, permanecem dificuldades para manutenção de EqSF completas nos interiores e permanecem áreas descobertas e enormes desafios para a ampliação do acesso na APS em áreas de difícil acesso.
Chama-nos atenção que modalidades voltadas para favorecer o acesso no contexto fluvial (como EqSFR e UBSF), financiadas pelo MS, estão pouco implantadas. A permanência de profissionais de nível superior em áreas ribeirinhas foi verificada apenas em municípios que implantaram EqSFR, revelando-se como estratégia potente para o vínculo e cuidado longitudinal. Estas equipes, embora financiadas pelo Governo Federal, são complementadas com recursos municipais para manutenção de infraestrutura, acomodação dos profissionais e alimentação.
Foram identificados modelos ampliados de EqSFR com a inclusão de mais profissionais, além da equipe mínima e com formas diversificadas de atuação: EqSFR que deslocam da sede para atuar de maneira permanente em UBS de área ribeirinha e EqSFR que atuam de forma itinerante, principalmente nas áreas mais remotas e isoladas, com periodicidade das ações e permanência nas comunidades visitadas; ações sistemáticas para o acompanhamento de programas prioritários (pré-natal, crescimento e desenvolvimento infantil, hipertensão e diabetes) e ações pontuais de caráter campanhista, como vacinação e exame preventivo do câncer de colo de útero. A indisponibilidade de serviços de APS em áreas de difícil acesso propicia o predomínio de ações de saúde itinerantes e pontuais para as populações residentes nas localidades mais remotas.
A UBSF é considerada recurso potente para a provisão da APS em áreas ribeirinhas de difícil acesso, inclusive para os gestores que não dispunham deste recurso em seus municípios. A unidade fluvial é fornecida pelo MS com repasse mensal de recurso financeiro, mediante credenciamento. Todavia, há investimento significativo por parte da gestão municipal no custeio das ações e manutenção da embarcação. A equipe fixa da UBSF é complementada por EqSF responsáveis pelo acompanhamento de populações de áreas do interior, com ações programadas em intervalo médio de 45 dias para alcançar de forma intermitente populações com grandes dificuldades de acesso. A UBSF comporta todas as ações realizadas em UBS convencional, todavia prevalecem as ações itinerantes, sem a garantia do vínculo com EqSF de referência e a continuidade do cuidado.
É comum a estruturação de pontos de apoio nas áreas do interior para realização de ações de saúde por EqSF que se deslocam da sede. São unidades que contam com a presença de pelo menos um técnico de enfermagem, fixo na unidade, que atua de sobreaviso 24 horas para atendimentos de urgências. Alguns pontos de apoio dispõem de transporte para levar o usuário até o serviço de saúde na sede, caso necessário. O argumento para manutenção deste tipo de estrutura é mitigar os efeitos das barreiras geográficas e da ausência de EqSF e viabilizar o acesso oportuno nas situações de urgência.
O sobreaviso é uma forma de atendimento comumente utilizada em áreas rurais, fora do horário habitual das UBS e nos fins de semana. Em caso de urgência, o profissional de sobreaviso (em geral técnico de enfermagem ou enfermeiro que residem na localidade) é acionado, pelo paciente ou pelo ACS. Dependendo da gravidade do caso, o usuário é direcionado para unidades da sede em transporte sanitário, quando disponível.
Os entrevistados foram unânimes em considerar que o ACS é o profissional que está presente nas áreas rurais. É, muitas vezes, o único representante do SUS nas localidades mais remotas. O ACS exerce papel crucial junto às EqSF, cumprindo a função de mediador entre a equipe e a comunidade e facilitador do acesso ao serviço de saúde.
As ações de saúde executadas pelo ACS tendem a ser diferenciadas entre os que atuam na sede ou no interior dos municípios. As distâncias entre as microáreas e o quantitativo de pessoas residentes nos povoados definem o número de pessoas e famílias vinculadas aos ACS no interior. A visita domiciliar realizada pelo ACS possibilita o acompanhamento dos usuários em programas prioritários e o monitoramento das condicionalidades do Programa Bolsa Família (PBF).
Ações intersetoriais desenvolvidas pelas EqSF, quando ocorrem, são em articulação com o setor da educação, fomentadas pelo Programa Saúde na Escola, com uso do espaço de escolas para realização de ações de saúde. Outras articulações foram mencionadas: assistência social com programas específicos junto ao Centro de Referência de Assistência Social (Prainha, Aveiro Maués, Melgaço, Vitória do Jari) e à Secretaria de Meio Ambiente (Melgaço e Boa Vista do Ramos).
A disponibilidade de transporte para as EqSF mostrou-se decisivo para o provimento da APS, especialmente na impossibilidade de manter serviços fixos em áreas remotas e de baixa ocupação. As longas distâncias associadas e a irregularidade dos transportes locais dificultam o deslocamento de usuários e de profissionais de saúde entre sede, interior e região.
Os transportes sanitários são gerenciados e mobilizados pelos gestores municipais que consideram alto o gasto com compra e manutenção de transportes. Muitas vezes estes recursos são interrompidos, a exemplo da operação da UBSF, dada a insustentabilidade financeira para os municípios. As verbas provenientes de emendas parlamentares foram referidas como importante fonte de recurso para compra de transportes, assim como para reformas de UBS.
Os obstáculos geográficos têm motivado a contratação de médicos especialistas para atuarem no município com vistas ao fortalecimento da capacidade de resposta da APS (Melgaço, Maués e Vitória do Jari).
Desafios para a garantia do acesso a APS
Os desafios centrais para o acesso na APS em MRR da Amazônia fluvial estão relacionados ao financiamento e oferta de serviços de APS; aos dilemas permanentes para a provisão e fixação de profissionais nas áreas de difícil acesso; ao acesso geográfico e os obstáculos relativos à mobilidade de usuários e profissionais para a efetivação do cuidado em saúde. O Quadro 1 registra falas expressivas dos gestores municipais entrevistados que sinalizam os riscos para a sustentabilidade da APS em contextos rurais remotos.
O desafio basilar para a organização da APS nos MRR estudados refere-se à disjunção entre o financiamento da saúde e as características do território: áreas remotas, longas distâncias, áreas extensas com populações esparsas; baixa atratividade dos municípios pela insuficiência de infraestrutura. Essas particularidades do contexto amazônico aprofundam os desafios para a efetivação da APS, tornando o custo muito além do previsto no cálculo para o seu financiamento. O subfinanciamento da APS pode gerar insustentabilidade da política, se não houver um plano de execução interfederativa próprio para estas localidades.
As altas coberturas potenciais da ESF nos municípios não expressam a realidade das áreas descobertas e a necessidade de ativar variados recursos localmente para superar o déficit de acesso, que nem sempre alcançam êxito. Quanto mais distante da sede, maiores são os desafios de implementação da ESF, prevalecendo ações de saúde pontuais, sem a garantia da APS do tipo porta aberta, cuidado regular, contínuo e integral. Sobressaem as ações itinerantes e de pronto atendimento, diante da real dificuldade de manter estruturas físicas e equipes de saúde completas nestes cenários.
A provisão de cuidados organizados em UBS localizadas nas áreas do interior, com equipes EqSFR e ações itinerantes regulares nas UBSF mostraram-se potentes para viabilizar acesso oportuno e favorecer a permanência de profissionais de nível superior nas áreas ribeirinhas remotas. Mas, poucos municípios adotaram estes formatos de credenciamento propostos pelo MS. Entre as razões, pode-se relacionar aos elevados custos de manutenção que incorrem para os municípios e aos entraves para atração de profissionais.
O transporte sanitário ganha protagonismo na forma como o sistema municipal de saúde se estrutura. São frágeis os aportes financeiros dos governos estadual e federal para o apoio ao tratamento fora do domicílio, que por serem baixos desconsideram as especificidades regionais e o alto custo dos transportes fluviais. Os gestores são envolvidos com a disponibilidade dos transportes dentro do município, para situações de urgência e emergência e na região, para o acesso a atenção especializada. As dificuldades de deslocamento mobilizam a gestão local para garantir alguns serviços no próprio município, frente às barreiras geográficas que prejudicam o acesso regional. A assistência ao parto de baixo risco em municípios pequenos é exemplo para esta questão.
Discussão
Os resultados evidenciam que as condições de acesso a APS são potencialmente moldadas pelas características geográficas, amplificadas pela não inclusão de políticas públicas nas localidades distantes e rarefeitas. Mostram como as condições geográficas, ambientais, econômicas e sociais dos MRR amazônicos fluviais interferem na provisão da APS. Estudos nacionais trazem resultados semelhantes sobre a região Amazônica1515 Martine D. Fazer Territó-rios na Amazônia. Confins 2017; 31(1):[about 17 p.]
16 Duarte JCS, Rezende MGG, Fraxe TJP. A materialização da territorialidade na Comunidade São Francisco (Careiro da Várzea/AM). IN: Terceira Margem Amazônia. São Paulo: Outras Expressões; 2018. p.198-209.-1717 Kadri MRE, Freitas CM. Um SUS para Amazônia: Contribuições do pensamento de Boaventura de Sousa Santos. Cien Saude Colet 2019; 65(2): [cerca de 5 p.]. e estudos internacionais ressaltam os efeitos das limitações de infraestrutura nas condições de acesso, na disponibilidade e na qualidade dos serviços de saúde em áreas rurais remotas em todo o mundo77 Russell DJ, Humphreys JS, Ward B, Chisholm M, Buykx P, McGrail M, Wakerman J. Helping policy-makers address rural health access problems. Aust J Rural Health 2013; 21(2):61-71.,1818 International Labour Office (ILO), Social Protection Department. Global evidence on inequities in rural health protection: new data on rural deficits in health coverage for 174 countries / Xenia Scheil-Adlung. Geneva: ILO; 2015.,1919 Mohammad H, Anita DB, Wendy A, Evdokia K. The Social Determinants of Healthcare Access for Rural Elderly Women - A Systematic Review of Quantitative Studies. Open Public Health J 2017;10:244-266..
É neste contexto que a política de saúde é reinventada cotidianamente de forma que os serviços de APS se estabeleçam e façam sentido em espaços tão singulares. Em se tratando do contexto Amazônico cuja dinâmica socioespacial é essencialmente influenciada pelos ciclos da natureza destaca-se o enorme desafio de implementar políticas públicas traçadas nacionalmente e com base em padrão alheio a esta realidade2020 Garnelo L. Especificidades e desafios das políticas públicas de saúde na Amazônia. Cad Saude Publica 2019; 35(12):1-4.. Quanto mais afastada e menos densamente povoada é a localidade, mais restritas são as opções organizativas para APS. Em paralelo, aumentam os desafios e a necessária ousadia para desenvolver serviços de saúde abrangentes e integrados.
A experiência australiana demonstra a importância de se definir modelos organizacionais para áreas rurais e remotas, em geral, localidades pequenas demais para absorver formatos padronizados de provisão da APS. Modelos operacionais sustentáveis, nestes contextos, envolvem medidas que considerem deseconomias de escala resultantes de grandes distâncias populações dispersas e rarefeitas2121 Wakerman J, Humphreys JS, Wells R, Kuipers P, Jones JA, Entwistle P, Kinsman L. Features of effective primary health care models in rural and remote Australia: a case-study analysis. Medical J Australia 2009; 191(2):88-91..
A APS está estabelecida nos MRR, com execução municipal densamente apoiada por induções financeiras promovidas pelo governo federal entre 2010 e 20162222 Almeida ER. Atenção Básica à Saúde: avanços e desafios no contexto amazônico. In: Júlio Cesar S, Michele REK, Rodrigo TSL, organizadores. Atenção Básica na Região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. Porto Alegre: Rede Unida; 2019. 311 p.. Entretanto, as políticas vigentes não foram suficientes para amalgamar a organização da APS às necessidades locais, permanecendo falhas de acesso em áreas mais distantes e rarefeitas.
Ademais, o subfinanciamento produz barreiras efetivas na provisão da APS, pois serviços inadequados limitam o acesso aos cuidados de saúde, postergam o uso em momentos de necessidade e incidem negativamente nos resultados de saúde2323 Tham R, Humphreys JS, Kinsman L, Buykx P, Asaid A, Tuohey K, Riley K. Evaluating the impact of sustainable comprehensive primary health care on rural health. Australian J Primary Health 2010; 18(4):166-172..
Ainda que garantido o acesso dos usuários dos interiores em UBS da sede, com prioridade para agendamento de suas consultas e atendimento por demanda espontânea, sem restrição de horário, tais medidas podem encobrir inaceitáveis barreiras de acesso à APS2424 Garnelo L, Lima JG, Rocha, ESC, Herkrath, FJ. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saude Debate 2018; 42:81-99..
A provisão e fixação dos profissionais é um grande desafio nos MRR fluviais. A adesão ao PMM ampliou a cobertura da ESF com equipes completas, um divisor de águas para o fortalecimento da APS nestas localidades2525 Santos W, Comes YP, Lucélia L, Costa AM, Merchan-Hamann E, Santos LMP. Avaliação do Programa Mais Médicos: relato de experiência. Saude Debate 2019.43(120):256-268.. Entretanto, a provisão da força de trabalho, especialmente médicos, nas áreas mais remotas continua sendo um problema sem solução. A contratação de médicos pela gestão municipal mostrou-se insustentável em função da alta remuneração que precisa ser paga para atrair o profissional, o que não garante a sua fixação, e a instabilidade do PMM é grave ameaça à garantia do acesso ao SUS.
A escassez da força de trabalho talvez seja o desafio mais comum entre os diversos contextos rurais remotos e as respostas para suplantar tal obstáculo parecem ir além da provisão. Exige fortalecimento do trabalho multiprofissional, compartilhado e altamente qualificado para atuar em ambientes tão singulares11 Strasser R. Rural health around the world: challenges and solutions. Fam Pract 2003; 20(4):457-463.,55 Walters, LK, McGrail, MR, Carson, DB, O'Sullivan, BG, Russell, DJ, Strasser, RP, Hays, RB, Kamien, M. Where to next for rural general practice policy and research in Australia? Medical J Australia 2017; 207(2):56-88.,2525 Santos W, Comes YP, Lucélia L, Costa AM, Merchan-Hamann E, Santos LMP. Avaliação do Programa Mais Médicos: relato de experiência. Saude Debate 2019.43(120):256-268.
26 Humphreys JS, Wakerman J, Wells R, Kuipers JP. A Jones and Phil Entwistle. "Beyond workforce": a systemic solution for health service provision in small rural and remote communities. Medical J Australia 2008; 188 (8):S77.-2727 Lehmann U, Dieleman M, Martineau T. Staffing remote rural areas in middle- and low-income countries: A literature review of attraction and retention. BMC Health Serv Res 2008; 23(8):19.. Requer estratégias baseadas em recursos de tecnologia da informação e comunicação, soluções remotas que possibilitam ampliar recursos e promover cuidados oportunos, resolutivos e de qualidade em áreas de difícil acesso2121 Wakerman J, Humphreys JS, Wells R, Kuipers P, Jones JA, Entwistle P, Kinsman L. Features of effective primary health care models in rural and remote Australia: a case-study analysis. Medical J Australia 2009; 191(2):88-91.,2828 Cyr ME, Etchin AG, Guthrie BJ, Benneyan JC. Access to specialty healthcare in urban versus rural US populations: a systematic literature review. BMC Health Serv Res 2019; 19:974..
A indisponibilidade de transportes exemplifica a premência de respostas sistêmicas para a superação de barreiras ao uso dos serviços de saúde, pois é recurso definidor de acesso nos MRR. As dificuldades e os custos com transportes atingem os usuários que precisam deslocar até sede para utilizar os serviços de APS, assim como limita a capacidade de atuação das EqSF que precisam deslocar até os interiores. Nos dois sentidos, as dificuldades estão relacionadas às distâncias, precariedades, baixa regularidade, informalidade e alto custo dos meios de transporte, em especial os fluviais ou aéreos.
Os desafios são enormes para executar políticas públicas formuladas a partir de um padrão urbano de cidades que nem de longe alcançam as especificidades dos espaços rurais remotos. A provisão da APS em MRR fluviais reflete interações complexas e multifacetadas. Envolve medidas estratégicas e sustentáveis: governança com sintonia fina entre recursos e ações de múltiplos setores e agentes públicos; políticas de suporte nacional com viabilidade para execução em nível local; engajamento comunitário para a identificação das necessidades em saúde e para o planejamento das ações dos serviços de saúde2626 Humphreys JS, Wakerman J, Wells R, Kuipers JP. A Jones and Phil Entwistle. "Beyond workforce": a systemic solution for health service provision in small rural and remote communities. Medical J Australia 2008; 188 (8):S77.,2727 Lehmann U, Dieleman M, Martineau T. Staffing remote rural areas in middle- and low-income countries: A literature review of attraction and retention. BMC Health Serv Res 2008; 23(8):19.,2929 Ekman B, Pathmanathan I, Liljestrand J. Integrating health interventions for women, newborn babies, and children: a framework for action. The Lancet 2008; 372:990-1000.,3030 Ensor T, Cooper S. Overcoming barriers to health service access: influencing the demand side. Health Policy Planning 2004; 19:69-79..
Considerações finais
Os resultados apresentados neste estudo revelam desafios à gestão municipal, que exigem respostas prementes, sob pena de violação dos princípios basilares do direito a saúde e do acesso universal aos SUS. As características dos MRR marcados pela ordenação dos rios exigem outras formas de organização da APS, apoiadas nos valores comunitários e nas competências culturais, elementos marcantes para o desenvolvimento de ações de saúde em lugares tão singulares. É preciso construir caminhos sustentáveis para a efetivação de uma APS robusta no SUS, baseada na oferta de cuidados contínuos, longitudinais, com garantia de acesso oportuno de qualidade. Os passos iniciais estão dados, mas não está garantida a sustentabilidade da APS e a superação das barreiras de acesso. Quando se trata de contextos remotos, rarefeitos e dependentes de transportes fluviais, maiores são os desafios colocados para a provisão de serviços de saúde do SUS. Circunstâncias cujo enfrentamento vão além da capacidade da gestão local e do setor saúde, envolve mudanças sistêmicas e políticas ampliadas de proteção social e socioambientais.
Agradecimentos
Apoio financeiro do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz para realização da pesquisa.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Abr 2022 - Data do Fascículo
Abr 2022
Histórico
- Recebido
06 Out 2020 - Aceito
01 Jun 2021 - Publicado
03 Jun 2021