Resumo
A partir do papel central da saúde mental para a saúde global e a complexidade da universalização de políticas de cuidado, este artigo discute aspectos da saúde mental global por meio de uma pesquisa situada entre dois países, Brasil e Itália, potenciais referências para o intercâmbio entre Norte e Sul global. Trata-se de pesquisa-ação colaborativa, sob perspectiva etnográfica, realizada por meio de uma comunidade virtual de prática composta por brasileiros e italianos interessados no cuidado comunitário em saúde mental. Os resultados são apresentados em cenas que fornecem pistas para o debate internacional em pelo menos três aspectos: a lógica do cuidado médico-centrado, a institucionalização do cuidado e a medicalização do sofrimento, e a contribuição das práticas comunitárias e dos saberes locais e não especializados. As cenas localmente situadas dão relevo a nós, críticos, globalmente compartilhados, explicitando um conjunto plural de relações que atravessam o processo de trabalho e cuidado em saúde mental. O compartilhamento de experiências e conhecimentos aponta para o que deve ser universalizado: as oportunidades de intercâmbio horizontal ao invés da produção de identidades nacionais irradiadoras de práticas e políticas universalizantes.
Palavras-chave:
Saúde mental; Assistência à saúde mental; Saúde global; Cooperação internacional; Antropologia
Introdução
A partir dos anos 2000, o conceito de saúde internacional amplia-se para saúde global, reafirmando a saúde como um bem público de todos os seres humanos, extravasando as fronteiras entre países. Tal concepção apresenta-se em oposição ao avanço neoliberal de escala mundial11 Fortes PAC, Ribeiro H. Saúde Global em tempos de globalização. Saude Soc 2014; 23(2):366-375.,22 Global health: time for radical change [editorial]. The Lancet 2020; 396(10258):1129.. Um de seus grandes desafios está em encontrar a justa medida entre universalidade sanitária e especificidade sócio-histórica-cultural dos Estados-nação, superando riscos de neocolonizações ou da ocidentalização dos modelos de saúde-doença-intervenção33 Ortega F, Wenceslau LD. Dilemas e desafios para a implementação de políticas de saúde mental global no Brasil. Cad Saude Publica 2015; 31(11):2255-2257..
Em 2007, The Lancet44 Horton R. Launching a new movement for mental health. The Lancet 2007; 370(9590):806. enfatizou a escalada global de transtornos e agravos em saúde mental, com baixa cobertura de serviços especializados, aumento dos indicadores epidemiológicos de morbidade para transtornos mentais, com significativos impactos socioeconômicos para diferentes povos do mundo. Este marco estimulou parcerias internacionais, visando os países de média e baixa renda, culminando na ascensão do Movimento de Saúde Mental Global (Movement for Global Mental Health - MGMH), o qual continua carregando controvérsias antigas sobre a universalidade ou especificidade cultural de transtornos mentais (Ortega e Wenceslau, 2015). Mills55 Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014., uma das principais críticas ao MGMH, discute a psiquiatrização da vida como forma de colonialidade engolida tal qual medicamento. Para ela, esse processo maqueia crises socioeconômicas coletivas produzidas pelos modos hegemônicos de produção que passam a ser compreendidas e tratadas como crises individuais ou doenças mentais.
Assim, reconhecendo a centralidade da saúde mental na saúde global66 The Lancet. Mental health: time to invest in quality [editorial]. The Lancet 2020; 396(10257):1045., as questões em debate nos incitam a produzir conhecimentos atrelados à ação, para sua transformação77 Stengers I. Putting Problematization to the Test of Our Present. Theory Culture Society 2019; 0(0):1-22.. Stengers77 Stengers I. Putting Problematization to the Test of Our Present. Theory Culture Society 2019; 0(0):1-22. propõe que, para desvelar a forma desta mudança, e no que ela pode ser possível e desejável, torna-se necessário o engajamento criativo de pessoas a quem essa questão importa em busca da construção de sentidos comuns. Mills55 Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014. nomeia de terceiro espaço o esforço de visibilizar singularidades, contradições e impasses para a construção ética e solidária de novas metáforas, conceitos e relações. Usualmente invisibilizado, tal conhecimento experiencial quando ressoa não se liga somente à experiência situada, mas visibiliza amplamente o que está impactando essa experiência.
Desse modo, ao considerarmos a complexidade da globalização de processos de saúde mental que se produzem a partir das relações entre sujeitos individuais e coletivos localizados em um dado espaço-tempo e ao afirmarmos que as especificidades locais/tradicionais não devem nos desviar do direito global à saúde mental, este artigo toma o desafio de discutir aspectos da saúde mental global (SMG) por meio de uma pesquisa-ação colaborativa encarnada na produção comunitária de saúde mental de dois países, Brasil e Itália. Trata-se de um projeto de cooperação internacional, nomeado de CoPBrit, construído entre dois países que ativaram, em sua história de colaboração mútua, uma sensibilidade decolonial para colaborações entre sul e norte global88 Ferla AA, Guimarães CF. La salute globale in Brasile. In: Ferla AA, Stefanini A, Martino A. Salute globale in una prospettiva comparata tra Brasile e Italia. Porto Alegre, Bologna: Rede Unida, CSI/Unibo; 2016. p. 101-129..
Brasil e Itália guardam características importantes para o diálogo entre as experiências locais e a SMG, tanto pela implementação e desenvolvimento de sistemas universais redistributivos, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Servizio Sanitario Nazionale (SSN); como pelo pioneirismo de reformas psiquiátricas em seus respectivos continentes. Resguardadas as significativas diferenças em termos políticos, históricos e socioeconômicos, a psiquiatria democrática italiana influenciou profundamente as políticas nacionais de saúde mental brasileira, e hoje também é influenciada por ela, num acúmulo de quase 30 anos de interlocução88 Ferla AA, Guimarães CF. La salute globale in Brasile. In: Ferla AA, Stefanini A, Martino A. Salute globale in una prospettiva comparata tra Brasile e Italia. Porto Alegre, Bologna: Rede Unida, CSI/Unibo; 2016. p. 101-129..
Atualmente no Brasil, o cuidado em saúde mental organiza-se por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), construída gradativamente desde o final da década de 70, para pessoas com sofrimento mental e com necessidades decorrentes do uso abusivo de substâncias psicoativas no âmbito do SUS. A RAPS é composta por serviços de atenção básica, atenção especializada (Centros de Atenção Psicossocial/ CAPS para transtornos mentais graves, e para populações específicas, como álcool e drogas/ CAPS AD, e infantojuvenil/ CAPSij) e atenção hospitalar. Na atenção básica, há apoio matricial de especialistas, com ênfase no trabalho do agente comunitário de saúde/ ACS (profissional de nível médio, que reside no território, e desempenha ações de ligação entre a comunidade e a equipe de saúde). A RAPS articula ações de desinstitucionalização, reabilitação psicossocial e práticas intersetoriais de empreendimentos culturais, solidários e cooperativos99 Brasil, Ministério da Saúde (MS). Conheça a RAPS: Rede de atenção psicossocial. Brasília: MS; 2013..
Na Itália, a perspetiva da saúde mental comunitária operacionaliza-se pelos Departamentos de Saúde Mental (DSM), cujo objetivo é promover e proteger a saúde mental dos cidadãos, englobando a continuidade do cuidado, a relação de colaboração com pacientes e familiares, a integração entre medicina e participação comunitária local, visando inclusão social, educação e trabalho. O DSM coordena a rede de saúde mental territorial composta por Centros de Saúde Mental − Centri de Salute Mentale (CSM), estruturas residenciais e semi residenciais; e Serviço Psiquiátrico de Diagnóstico e Tratamento − Servizio Psichiatrico di Diagnosi e Cura (SPDC). O CSM é o ponto de referência das atividades que acontecem no território, contando com equipe composta por psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e operadores sociais (profissionais com formação variada, integrantes de cooperativas sociais contratadas pelo DSM para a realização de atividades sociais diversas). Na Itália, a política de cuidado para álcool e drogas é operacionalmente separada da política de saúde mental, embora haja integração de ações territoriais1010 Lora A. An overview of the mental health system in Italy. Ann Ist Super Sanità 2009 45(1):5-16..
Em ambos os países, tais políticas de atenção comunitária em saúde mental vêm sofrendo desmontes, em diferentes níveis, agenciados por forças político-econômicas neoliberais e por meio de um regime moralizado de vida e cuidado1111 Lussi IAO, Ferigato SH, Gozzi, APNF Fernandes, ADSA, Morato GG, Cid MFB, Marcolino TQ, Matsukura TS. Saúde mental em pauta: afirmação do cuidado em liberdade e resistência aos retrocessos [editorial]. Cad Bras Ter Ocup 2019; 27(1):1-3.,1212 Muehlebach A. The Moral Neoliberal: welfare and citizenship in Italy. Chicago: The University of Chicago Press; 2012.. Em meio a esta realidade, brasileiros e italianos envolvidos no cuidado comunitário em saúde mental, e interessados em operar transformações para melhorar tal prática, envolveram-se no projeto CoPBrit. A proposta deste artigo é identificar pistas para a SMG a partir do que foi ativado por meio desta experiência de troca aberta à aprendizagem mútua e de superação de ideários colonizadores.
Metodologia
Trata-se de pesquisa-ação colaborativa, de abordagem etnográfica, realizada entre 2017 e 2020, com maior detalhamento em Marques et al.1313 Marques IP, Ferigato SH, Minelli M, Marcolino TQ. Da produção local à cooperação internacional em saúde mental: construção de redes de cuidado e aprendizagem entre Brasil e Itália. Interface 2020; 24:e200241.. Insere-se em um amplo projeto de cooperação internacional entre Brasil e Itália sobre a temática da saúde mental comunitária, iniciado em 2011. A pesquisa-ação colaborativa, como enfatiza Tripp1414 Tripp D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educ Pesq 2005; 31(3):443-466., opera sob dois registros: o da melhoria da prática e o da produção de conhecimentos atrelados à prática, o que demanda flexibilidade metodológica. O referencial da Comunidade de Prática (CoP)1515 Lave J, Wenger E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge: Cambridge University Press; 1991. alinha-se a essa perspectiva, na medida em que propõe uma estrutura metodológica flexível e dinâmica com foco na prática. Uma CoP demanda o engajamento de pessoas em um projeto de interesse comum para refletir coletivamente sobre ações, valores e conhecimentos inerentes às práticas, potencializando novas formas de agir e participar1515 Lave J, Wenger E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge: Cambridge University Press; 1991..
Como a prática em foco − o cuidado em saúde mental nos dois países − é complexa e demanda contextualizações em diferentes níveis, valemo-nos da etnografia para acompanhar tanto as pistas textuais e audiovisuais produzidas nesse intercâmbio, como os cruzamentos entre esses singulares territórios. Isso possibilitou reconhecer novas formas de subjetividade e potenciais recursos para a agregação de coletivos e transformação da prática e dos saberes de usuários e trabalhadores da saúde mental1616 Minelli M. Santi, demoni, giocatori: Una etnografia delle pratiche di salute mentale. Argo: Lecce; 2011..
Desenho da pesquisa
Esta pesquisa-ação operacionalizou-se por meio de uma comunidade virtual de prática, a CoPBrit, levada a cabo qual um curso de extensão universitária em saúde mental comunitária, que ocorreu entre setembro e dezembro de 2019. A virtualidade, além de ampliar as possibilidades de participação, permitiu ultrapassar limites geográficos, imperativos para o desenvolvimento de pesquisas internacionais1313 Marques IP, Ferigato SH, Minelli M, Marcolino TQ. Da produção local à cooperação internacional em saúde mental: construção de redes de cuidado e aprendizagem entre Brasil e Itália. Interface 2020; 24:e200241.. A produção dos dados deu-se no desenvolvimento das atividades da CoPBrit, em seus três blocos temáticos de interação (Quadro 1) compostos por reuniões síncronas presenciais dos grupos em cada país (gravadas, transcritas e condensadas em narrativas validadas coletivamente pelos participantes), atividades de campo (produtos narrativos e audiovisuais elaborados pelos participantes de um país para apresentar sua realidade de cuidado aos participantes do outro país) e atividades de interação virtual, assíncronas, em aplicativo de mídia social, cujo produto final abarcou perguntas e respostas elaboradas coletivamente para aprofundar a compreensão sobre a realidade dos participantes do outro país.
Aspectos éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos, parecer 2.538.858. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participantes
A CoPBrit foi formada por pesquisadores, gestores, profissionais, usuários, familiares e voluntários do campo da saúde mental, de duas cidades de médio porte do interior do Estado de São Paulo, no Brasil; e de duas cidades, uma de médio e uma de pequeno porte da região da Úmbria, na Itália. No Brasil, participaram duas pesquisadoras, seis gestores, 22 profissionais e uma familiar. Na Itália, participaram dois pesquisadores, um familiar, uma pessoa da comunidade, quatro estudantes de psicologia, quatro integrantes do Grupo Ouvidores de Vozes, 16 profissionais e cinco gestores.
Produção e análise dos dados
Os materiais textuais e audiovisuais decorrentes das interações entre os participantes foram analisados com auxílio do software NVivo, inicialmente operando-se análise temática trecho a trecho dos materiais textuais, relacionando-os aos materiais audiovisuais, e buscando identificar categorias, em seus núcleos de sentido. Posteriormente, buscou-se identificar pontos de convergência e divergência no interior das categorias identificadas, construindo análises processuais de casos complexos, apresentadas por meio da construção de cenas, integrando contribuições de múltiplos atores. Os pontos de intersecção entre as duas realidades sobre os dilemas comuns no âmbito do cuidado em saúde mental foram analisados com a consciência de que cada cena constrói uma rede híbrida, biopsicossocial, cultural e política1616 Minelli M. Santi, demoni, giocatori: Una etnografia delle pratiche di salute mentale. Argo: Lecce; 2011., que permite relacioná-la à agenda global. Foram múltiplos os pontos de intersecção, e para este artigo, explicitamos diretamente os resultados cujas discussões contribuem para a ampliação do debate da SMG. Para produzir possíveis desenlaces de seus nós críticos e/ou potenciais, tais cenas buscam desvelar tensionamentos sobre a lógica do cuidado médico-centrado e institucionalizado, o binômio herói-vilão que habita a figura do psiquiatra, a institucionalização do cuidado e a medicalização do sofrimento, e os saberes menores como ativadores de redes.
Resultados e discussão
Os resultados serão apresentados por meio de cenas que articulam as interações em um diálogo coletivo superando espacialidade e linearidade temporal na qual os encontros aconteceram. Buscou-se articular os discursos em torno das tensões emersas na CoPBrit, sem polarizá-los em identidades nacionais. Todas as declarações revelam os protagonistas da etnografia: pessoas brasileiras e italianas envolvidas no cuidado em saúde mental, em suas características pessoais, posições profissionais e filiações nacionais − porém favorecendo novos processos de relação e de produção cultural intercambiada.
Cena 1: O psiquiatra entre o binômio herói-vilão
Rúbia, uma jovem e comunicativa psiquiatra, inicia sua participação no grupo brasileiro dizendo: eu vou ser sincera, sendo a única psiquiatra aqui no grupo, achei que vocês nem iam me aceitar! Alguns participantes prontamente respondem que imploram pela presença de psiquiatras em espaços multiprofissionais e uma gestora brasileira comenta sobre a dificuldade de manter o psiquiatra na rede pública, pela concorrência com o setor privado, que oferece maiores salários, “psiquiatra tem que caçar com lanterna”. A participação de Rúbia contribuiu para que refletíssemos sobre a lógica do cuidado médico-centrado para além da visão maniqueísta de culpado/vítima e herói/vilão, exemplificando situações que evidenciam dinâmicas que perpetuam essa lógica, nas quais todos estão envolvidos e são responsáveis. Rúbia refere-se ao fato das próprias equipes criticarem condutas medicalizantes, mas, no calor do trabalho, exigirem do médico esse tipo de intervenção: Na minha equipe ninguém gosta de mim, eles gostam do meu carimbo!
Após assistidos os materiais produzidos pela Itália, Rúbia é a primeira a se manifestar, ressaltando o processo de transição de um jovem usuário que se mudaria de uma residência terapêutica para morar sozinho em um apartamento no centro da cidade. Ela observa que a mudança se deu de modo bastante apoiado, tanto pelos operadores sociais quanto pelos outros usuários da casa. Em sua experiência de cuidado, destacou que se o usuário possui redes frágeis, ela, na condição de psiquiatra, acaba medicando mais: Eu assumo efeitos colaterais para não assumir alguns riscos. Em contrapartida, quando existe um suporte social, sua contribuição pode se dar de outras formas, mais livres e menos medicamentosas, levantando a ausência de redes como um indicador de práticas manicomiais: CAPS sem rede é manicômio! Por fim, exalta a quantidade de atividades desenvolvidas sem o psiquiatra à frente, ressaltando que se a equipe multidisciplinar está fortalecida, a demanda pelo médico reduz significativamente. Caso contrário, aciona-se o médico com mais frequência, fomentando sua centralidade e uma proposta de cuidado voltada para a doença, o diagnóstico e a medicação.
Débora, trabalhadora do CAPS, acrescentou que a ausência do médico também pode mobilizar a equipe a buscar articulação com a rede, como ocorreu em seu serviço. Entretanto, Maicon, psicólogo brasileiro de um serviço ambulatorial, argumenta: Pode ser uma potência a ser desenvolvida, mas parece ser um disfarce, pois apesar dos nossos médicos não serem gestores (como na Itália), ainda somos muito médico-centrados. Stefania, psiquiatra e gestora italiana, argumenta que o médico teve um papel muito importante durante a reforma sanitária italiana, mas atualmente vivencia o auge de uma formação biologicista e prescritiva. Ela expõe a contradição de que, apesar de em menor número tanto na Itália quanto no Brasil, o psiquiatra mantém-se no baricentro dos serviços territoriais.
Ambos os grupos discutiram o quanto a psiquiatria tem assumido uma função de normatização e controle, avançando nos espaços comuns da vida, de modo que paira sobre a figura do psiquiatra uma grande expectativa social de resolutividade de problemas de qualquer ordem, gerando banalização das práticas psiquiátricas e revelando uma tendência social de buscar um “herói”, que promova uma solução imediata para as questões de saúde e sociais. Nas palavras de Stefania: Nos vemos diante de um mecanismo estigmatizante de encaminhamento que vê a psiquiatria como o sujeito que pode encontrar soluções para tudo. [...] A psiquiatria é chamada novamente para administrar a marginalidade.
No entanto, a questão do poder não está circunscrita apenas ao psiquiatra, assim como a lógica manicomial não está reduzida às trancas das instituições. O paternalismo existente na relação entre profissionais e usuários/familiares demarca o lugar de poder do profissional, reforçando relações de tutela em oposição às emancipatórias, como diz Solange, psicóloga e gestora brasileira: Tem a questão do poder também, desse lugar especial de quem consegue ouvir, dar respostas. [...] Por mais que a gente saiba que é ruim, é sedutor…
Mills55 Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014. alerta que a tutela é mais um dos marcadores coloniais na saúde mental. Sob o discurso do empoderamento, termo politicamente correto, mas pouco praticado, ações paternalistas continuam se propagando, sem questionar a manutenção do status quo1717 Saraceno B. Discorso globale, sofferenze locali: analisi critica del movimento di salute mentale globale. Milano: Il saggiatore; 2014.. Essa assimetria de poder pode ser percebida tanto nas relações interpessoais (entre médicos, demais profissionais da saúde e usuários), quanto nas relações internacionais (entre países de média/baixa renda e países de alta renda). Tecnologias como o trabalho interdisciplinar e o fortalecimento das redes de suporte social são apontados por Rúbia como estratégias para afrontar a hegemonia da psiquiatria, pois os pacotes “científicos-assistenciais” não conseguem garantir a qualidade da intervenção quando as redes interpessoais e as dinâmicas locais não são eticamente consideradas1818 Biehl J. Antropologia no campo da saúde global. Horiz Antropol 2011; 17(35):227- 256.,1919 Amarante P, Torre EHG. Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas. In: Nogueira RP, organizador. Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p.151-160.. E sobre seu papel profissional finaliza: Eu falo que a gente é o batman, não é o super-herói que eles queriam…
Cena 2: Os saberes menores como ativadores de redes
Em contraposição ou composição às discussões em torno da psiquiatria, dois atores, protagonistas do cuidado territorial, também foram foco de admiração e curiosidade: o ACS, no Brasil, e o operador social, na Itália - ambos profissionais sem formação técnica especializada. Tullio, operador social italiano, trabalhador de um serviço para dependentes químicos, impressiona-se com o vídeo de Márcia, ACS brasileira, que apresentou seu trabalho de ressocialização de um usuário de um bairro periférico da cidade, em parceria com estudantes de terapia ocupacional de uma universidade pública: A figura do agente comunitário de saúde é muito estimulante: não é o serviço territorial que espera os usuários ao interno dos seus espaços, mas o contrário, ele se locomove, se transfere, está atento à [...] comunidade na qual pertence.
Os participantes brasileiros realçam a importância do ACS na articulação entre a comunidade e a equipe de saúde, e entre a saúde mental especializada e a atenção básica, no entanto, Márcia contesta: É muita gente falando que a gente é importante, mas pouca gente dando importância. Conta que muitos de seus colegas ACS não fazem relato nos prontuários porque não se sentem valorizados, problematiza a sobrecarga das muitas tarefas administrativas; o fato de morar em comunidade e estar exposta a demandas fora do seu horário de trabalho; e a falta de envolvimento dos profissionais de nível superior no cuidado. Contou que apenas os profissionais de nível superior são pagos para receber os estudantes das universidades, sendo que muito do acompanhamento aos mesmos é realizado pelos ACS. Uma psicóloga do CAPS critica o fato de se defender uma horizontalidade de saberes sendo que certos saberes recebem incentivos salariais maiores que outros.
Os materiais produzidos pelos operadores sociais também impressionaram os participantes das duas localidades por mostrarem experiências de cuidado territoriais voltadas para participação social, como exemplifica Marisa, estagiária de psicologia italiana: O que emergiu [...] demonstrou a importância das experiências, das atividades expressivas e/ou de entretenimento, estruturadas ou improvisadas, que os operadores tornam possível [...] e que estão no centro, ao meu ver, do conceito de cuidado. No entanto, Valentina, operadora social há 12 anos, critica a falta de valorização e refere que, apesar dos operadores sociais comporem redes importantes de associativismo e compartilharem o cotidiano com os usuários, sentem-se excluídos das redes formais de saúde: Os operadores sociais [...] estão fora da rede formal. [...] Precisaria tentar reconstruir a rede a partir dos operadores sociais, porque estamos fora. [...] espero que esse contexto abra possibilidades reais para criar uma história autêntica de rede.
Parte dos destaques dos participantes italianos centrou-se na riqueza da experiência de integração da saúde mental na atenção primária, experiência não expandida no território italiano. As experiências dos ACS e operadores sociais mostram que precisamos, além de aproximar o saber do especialista em atenção básica (como no apoio matricial), usar a potência da territorialização do cuidado agenciado a partir de seus “saberes menores”. Para Deleuze e Guattari2020 Deleuze G, Guattari F. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago; 1977., saberes menores seriam saberes subalternizados pelos discursos hegemônicos, mas que podem se aliar no enfrentamento de lógicas a serem superadas, pelo potencial de comunidades frágeis, justamente em sua fragilidade, abrirem possibilidades para a instauração do novo.
Apesar do potencial da atenção básica brasileira no âmbito da saúde mental, alguns participantes brasileiros iniciaram um debate sobre a prevalência da lógica biomédica e de procedimentos específicos por serem mais visíveis e contabilizáveis do que o trabalho subjetivo, como diz Carol, psicóloga brasileira: É difícil fazer trabalho de prevenção, porque enfiar uma agulha é um procedimento que já está autorizado… Maicon, psicólogo, defende que a implantação da saúde da família foi fruto de contenção de gastos no SUS, acarretando em desmonte do nível especializado sem que se tornasse resolutiva ou menos medicamentosa: Antigamente o ambulatório tinha seis psiquiatras e era criticado por medicalizar demais, de repente não consegue manter psiquiatra, [...] abre a Saúde da Família, e aí passou a ter 29 prescritores de psicotrópico.
Em sua experiência como trabalhador da Organização Mundial da Saúde, Saraceno1717 Saraceno B. Discorso globale, sofferenze locali: analisi critica del movimento di salute mentale globale. Milano: Il saggiatore; 2014. relata que apesar de todo incentivo internacional para que a saúde mental fosse integrada à atenção primária, inclusive pelo MGMH, em muitos países de média e baixa renda a atenção básica é ativada diante da ausência de recursos especializados, significando, muitas vezes, aumento da cobertura, sem conseguir oferecer melhoria qualitativa. Além disso, acaba-se por aumentar a carga de trabalho dos profissionais da atenção básica ao lidar com demandas gerais de saúde e de saúde mental. Cecilio, Carapinheiro e Andreazza2121 Cecílio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec/Fapesp; 2014. buscam problematizar tais desafios questionando as formulações idealizadas da atenção básica, e valorizando a compreensão real da dinâmica de seu funcionamento, enfatizando o papel dos usuários como fabricadores de caminhos.
Cena 3: Produção de saúde ou institucionalização do cuidado?
Pietro, enfermeiro italiano de CSM, questiona se as ações de cuidado ocorrem no âmbito da salute ou da sanità, dizendo: [...] se uma pessoa faz xixi na avenida principal, chama o CSM! [...] É estreito o espaço entre normalidade e anormalidade. [...] a questão [...] é o quanto estamos sendo invasivos como ‘sanità’ e não como ‘salute’.
No vocabulário italiano existem duas palavras para o que compreendemos como saúde no Brasil: sanità e salute. Um dos significados de sanità diz respeito à rede institucional de serviços de saúde, enquanto salute é usada para se referir ao bem-estar, ao bem comum. Assim, a fala de Pietro convida à reflexão sobre o quanto o campo institucional da saúde invade espaços de cuidado e bem-estar, ressaltando que, da mesma forma que o sofrimento não é só psiquiátrico, o cuidado também não é só sanitario, como acrescenta Veronica, psiquiatra e gestora italiana: As pessoas são pessoas e não, doentes e não-doentes [...] este é o cenário que devemos afrontar.
Contribuindo com essa reflexão, uma gestora brasileira e um pesquisador italiano, trouxeram, respectivamente, que o cuidado está muito focado no profissional, e que precisamos reconhecer a potência de qualquer pessoa em ajudar no processo de recuperação de outra pessoa, assim como, compreender que nós, como pessoas, somos os recursos da rede. Essa reflexão levantou uma contradição entre alguns profissionais brasileiros, trabalhadores de um ambulatório de saúde mental, que valorizavam o papel profissional para não perder a identidade no trabalho, mas também reforçavam a necessidade de “mandar os protocolos para puta que pariu”, porque dificultam o trabalho criativo, sensível às habilidades dos profissionais e às necessidades dos usuários.
Contatore et al.2222 Contatore OA, Malfitano APS, Barros NF. Os cuidados em saúde: ontologia, hermenêutica e teleologia. Interface 2017; 21(62):553-563. levantam a necessidade de resgatar a dimensão social/ontológica do cuidado, que se baseia na concepção de que o cuidado é inerente à existência humana e se manifesta por meio de pactos de solidariedade, reciprocidade e coesão social. De modo que cuidar é necessidade, responsabilidade e possibilidade de todos, e o papel de cuidador não é fixo e nem terceirizado na figura do profissional da saúde. Nos materiais audiovisuais produzidos pelos participantes brasileiros, a atuação profissional estava focada nas dependências das instituições, revelando o risco de institucionalização do cuidado, em uma lógica focada no acesso dos usuários aos serviços ao invés de fortalecer seus laços comunitários, como dizem Solange: Aqui no Brasil a gente leva os usuários pro serviço, nos vídeos que a gente viu, os profissionais [italianos] vão até o território, isso é uma lógica diferente, [...] ocorre dentro da comunidade, [...] vai criando uma rede de relações que suportam, e Lia, terapeuta ocupacional brasileira: A gente faz questão de manter as pessoas dentro dos espaços, se o paciente não está comparecendo, ele precisa voltar para cá.
Marina, psicóloga brasileira, reflete sobre possibilidades de superação deste dilema: As pessoas trabalham de forma muito solitária dentro da sua prática, dentro das suas angústias […] a gente tem que construir espaços […] em que cada um chega do jeito que é, despido de uma técnica, pronto para experimentar alguma coisa […]. Isso nos ajuda a problematizar que o acesso ao tratamento, preconizado pela SMG, não deve significar somente o acesso ao serviço. O acesso aos recursos comunitários, ou melhor, à possibilidade de construí-los e fortalecê-los, encarna uma concepção de saúde que não está encapsulada em protocolos, instituições e profissionais da saúde, pois é produzida em coletividade, nos cenários da vida cotidiana. Para construir um real trabalho coletivo de cuidado em saúde é necessário que nos enxerguemos para além dos papéis profissionais, valorizando saberes e atitudes que vão além do que se é esperado daquele cargo. Mehry2323 Mehry EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção de cuidado e subjetividade em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. nos ajuda a pensar estratégias para esses desafios a partir do conceito de trabalho vivo, defendendo que o cuidado é relacional, acontece na liberdade de construir práticas que se baseiem na autonomia, no vínculo e que respeitem as subjetividades desejantes. Nessa lógica, os trabalhadores podem utilizar seus desejos como potência para experimentar novos processos de trabalho, e sua criatividade para afastarem-se dos automatismos burocráticos das políticas de saúde.
Cena 4: Sofrimento comum ou adoecimento generalizado?
Adelaide é uma senhora loira de expressão tranquila e receptiva. O marido e o filho possuem dependência de álcool e sua irmã, falecida recentemente, tinha diagnóstico de esquizofrenia. Durante um dos encontros, o grupo brasileiro se encontrava em uma acirrada discussão sobre a medicamentalização como saída rápida para os problemas. Adelaide pede a palavra e, em tom de confissão, conta que devido às dificuldades que está passando com o alcoolismo do filho, começou a tomar o benzodiazepínico que sobrou da cartela da sua irmã: Tenho medo de ficar viciada, mas preciso dormir. Sua fala suscita micro-confissões do grupo brasileiro e Solange diz: Mas quem de nós, profissionais, nunca tomou remédio para dormir?
O não conseguir dormir de Adelaide está relacionado a questões familiares e sociais complexas que não se resolvem até o momento em que ela vai para cama. O diálogo também deflagra a irrisória distância entre o sofrimento do paciente e o sofrimento do profissional da saúde, sugerindo um sofrimento coletivo que, portanto, também deve ser afrontado em coletividade, como denuncia Cida, psicóloga brasileira: Essa coisa de se frustrar permeia todas as relações. [...] Porque você lidar com a doença, com a dificuldade, com o conflito... a gente não está preparado, a gente quer resolver aquilo ali naquele momento. Acho que essa ansiedade faz parte do coletivo.
As experiências de sofrimento referidas pelos participantes são marcadas pelo conceito de adoecimento, evidenciando o quanto a psicopatologia é evocada para nomear o que sentimos e o que os outros sentem. Ao compreendermos o sofrimento como doença mental estamos utilizando uma concepção do norte global, que não totaliza as concepções existentes, mas que se apresenta visivelmente predominante. Ao mesmo tempo em que essa concepção oferece uma via de compreensão de si, ela aciona uma série de atalhos que demarcam e encurtam o caminho entre as experiências de vida e o diagnóstico, e entre o diagnóstico e a medicação. O sofrimento comum entre profissionais da saúde e usuários diz da insustentabilidade de determinadas formas de cuidado que, de fato, não conseguem cuidar das pessoas, independente dos papéis que ocupam. Isso nos provoca a olhar a saúde mental das pessoas a partir do que nos é comum: a vulnerabilidade humana ao sofrimento e nossa capacidade de lidar com ele. Nesse sentido, partir do que nos é comum parece ser um modo propositivo de construir o senso de ‘comunitário’, sustentando uma proposta de cuidado pautada nos valores de interdependência (em detrimento dos valores liberais individualistas) e que avance na promoção de saúde mental, compreendida como uma dimensão da vida de todos.
Um marcador importante das fragilidades que permeiam o cuidado em ambos países foram questões por muitos anos minorizadas na produção das políticas de saúde mental: o cuidado à população infanto-juvenil e a saúde mental de migrantes e refugiados. Stefania pontua o aumento do número de jovens menores de idade usuários de heroína na Itália. Nas localidades brasileiras, os profissionais relataram o grande número de crianças e adolescentes em uso e abuso de substâncias que são encaminhadas judicialmente para o CAPSij, na expectativa de serem medicados e tratados da sua marginalidade, como diz Amanda, assistente social brasileira: O juiz faz uma carta de internação, mas não precisa de internação, ele não precisa de medicação, ele precisa de pai, [...] mãe, [...] ocupar o tempo. Ele não está doente, a gente precisa promover a saúde! Os dilemas da saúde mental na infância e na adolescência colocam um grande desafio para os serviços, que se veem diante da responsabilidade inadiável de articular a rede e construir leituras e práticas complexas, não patologizantes, como acrescenta Stefania: Quando se fala de adolescente estamos falando de questões amplas, como se está no mundo, como ser feliz…
Outros atores que mobilizam o debate sobre a despsiquiatrização do cuidado são os imigrantes. Enquanto no Brasil a chegada dos imigrantes europeus em solos indígenas é legitimada, a Itália tem vivenciado atualmente a intensificação dos fluxos migratórios provenientes principalmente do norte da África e Oriente Médio, que tem reconfigurado o perfil dos cidadãos italianos como etnicamente plural. Isso tem trazido embates culturais e o desafio emergente de produzir um cuidado respondente às necessidades dessa população2424 Abubakar I. The future of migration, human populations, and global health in the Anthropocene. The Lancet 2020; 396(10258):1133-1134., afirmando a pluralidade cultural como potência para construir uma saúde mental que seja de fato comunitária e que afronte as fronteiras internacionais e interpessoais, como complementa Stefania: A questão dos imigrantes pode ser administrada de forma minimalista ou anti-institucional e por meio da saúde mental comunitária. Com certeza essa questão da imigração traz à tona as dificuldades dos serviços.
A questão dos imigrantes, sejam europeus ou africanos, diz sobre a legitimidade da mobilidade humana no mundo, e o quanto suas andanças e paradas podem contribuir para pôr em movimento perspectivas e práticas estanques de saúde mental. Tal questão evidencia que, apesar da popularização do modelo biopsicossocial e do fato dos determinantes sociais de saúde comporem os discursos e a literatura da SMG, suas intervenções ainda estão focadas no diagnóstico e no tratamento farmacológico da doença mental, excluindo-se a complexidade cultural, social e política atrelada ao sofrimento55 Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014.,1717 Saraceno B. Discorso globale, sofferenze locali: analisi critica del movimento di salute mentale globale. Milano: Il saggiatore; 2014.. Como estratégia decolonial, faz-se urgente questionar quais vozes estão sendo ouvidas nos debates locais e globais, na intenção de desmontar dispositivos colonizados de produção do cuidado, como a tutela, a assimetria de poder e a falta de alteridade, que enxerga o outro como cópia deficitária de si mesmo.
O desafio está posto: ouvir os saberes menores a fim de mapear como eles ativam redes e recursos (institucionais e informais). Nessa perspectiva, não se trata de “dar voz” ou “fazer participar”, mas de dar licença para que os devires minoritários possam se expressar e apontar os caminhos de um cuidado que se torna ético ao passo em que é construído em plurivocalidade. Adelaide se desculpou várias vezes nos encontros da CoPBrit, dizendo que sua fala sempre acaba puxando para o lado pessoal. Certo dia, em especial, o grupo falou em um uníssono bagunçado que era exatamente essa a contribuição que desejávamos e esperávamos dela, no seu papel de familiar e usuária do SUS. Em sua necessidade de cuidado nos mostra os caminhos possíveis do fluir - pelo afeto, pelo vínculo, pela disposição à partilha e pelo não julgamento, e diz: Que bom que eu consigo contribuir para vocês verem quem está do outro lado.
Considerações finais
Ao revisitar as cenas e suas discussões de forma transversal, podemos nos perguntar que pistas essa experiência produz em relação à Saúde Mental Global. Mesmo compreendendo que Brasil e Itália trilharam caminhos entrelaçados na construção da reforma psiquiátrica, as trocas históricas entre eles evidenciam que o campo de conhecimento e práticas da psiquiatria contemporânea é plural e contraditório. As cenas localmente situadas dão relevo a nós críticos globalmente compartilhados, como a ambivalência e as contradições sobre o papel de psiquiatras, bem como dos ACSs e operadores sociais, explicitando o conjunto complexo de saberes, poderes e produções subjetivas que atravessam a hierarquização do processo de trabalho, com efeitos palpáveis para a produção de cuidado. Certamente, as experiências brasileira e italiana trouxeram ao cenário contemporâneo das políticas neoliberais possibilidades concretas de cuidar da saúde mental com processos de participação coletiva.
Nossa experiência com a CoPBrit situou as “microhistórias” e “sabedorias locais” no panorama do sistema internacional de saúde mental, mostrando experimentações de pessoas que aceitaram o desafio de partilhar sobre como são afetadas, a partir de situações problematizadoras. Tal desafio pode nos dar pistas metodológicas e éticas importantes em termos de produção da saúde mental global e, mais especialmente, sobre a produção de conhecimento sobre/com profissionais e usuários da saúde mental globalmente distribuídos. Assim, nos perguntamos: o que poderia ser universalizado?
Este artigo ousa afirmar que a universalização que importa atualmente não é a de identidades nacionais irradiadoras de práticas e políticas universalizantes, mas a das trocas para a construção de um comum universal, intercâmbios de experiências que fujam à regra da colonização, seja de uma parte do globo sobre a outra, seja dos processos de colonização do inconsciente2525 Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: Editora N1; 2019.. A aposta está na construção de uma inteligência coletiva planetária a partir de experimentações situadas e problematizadoras alimentadas pelo que é local, artesanal, na qual sejam chamados a contribuir todos aqueles a quem a saúde mental importe, mesmo sob o risco do improvável e do não protocolar. Afirmamos a construção de um global múltiplo de singularidades.
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- 25Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: Editora N1; 2019.
Financiamento
Este texto é resultado parcial da dissertação de mestrado da primeira autora sob orientação da última autora, no Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (PPGTO/UFSCar), intitulada “A saúde mental brasileira sob o olhar decolonial: contribuições para o debate da saúde mental global a partir de uma experiência de cooperação internacional com a Itália”, decorrente de pesquisa sob financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Edital Universal 01/2016 - Financiamento 404752/2016-0; da Pró-Reitoria de Extensão da UFSCar - Financiamento 23112.001493/2018-71; e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Brasil - Financiamento 001.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Abr 2022 - Data do Fascículo
Abr 2022
Histórico
- Recebido
11 Jan 2021 - Aceito
07 Jun 2021 - Publicado
09 Jun 2021