Resumo
O artigo apresenta uma prospecção da produção científica brasileira sobre a saúde da população negra (SPN) publicada em periódicos científicos. Trata-se de uma revisão de escopo rápida, combinada com análise temática e bibliométrica. As buscas foram realizadas em quatro bases indexadas. Foram selecionados 519 trabalhos em consonância com os eixos temáticos e subtemas estratégicos da Agenda de Prioridades de Pesquisa do Ministério da Saúde e das diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Os dados mostraram estudos publicados entre 1969 e 2022, a maioria deles com abordagem quantitativa. Entre os selecionados, 65 foram especificamente sobre a população negra e 54 sobre a população quilombola. A análise dos termos mais recorrentes nos títulos dos trabalhos selecionados mostrou que prevaleceram aspectos epidemiológicos e condições de saúde e doença. Observou-se limitações nos descritores de indexação hoje disponíveis, que não abrangem a terminologia mais adequada conceitualmente. O artigo contribui para consolidar o conhecimento sobre a produção científica relacionada com a SPN, subsidiando também a discussão em torno de uma agenda prioritária propositiva para pesquisas com vistas a aprimorar as políticas de saúde para essa população, superar o racismo e denunciar as violações de direitos.
Palavras-chave:
População negra; Saúde; Revisão de escopo; Bibliometria; Brasil
Introdução
No Brasil, a população autodeclarada negra, caracterizada pelo somatório de pretos, pretas, pardos e pardas, representa a maioria das/dos brasileiras/os11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.. Ao longo do tempo, reiteradamente esse estrato acumula os piores indicadores de condições de vida/doença/morte11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.
2 Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S. Atlas da Violência - 2021. São Paulo: IPEA/FBSP; 2021.-33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2019., reeditados nos números da pandemia de COVID-19, bem como no recrudescimento da fome e da extrema pobreza44 Santos MPAD, Nery JS, Goes EF, Silva AD, Santos ABSD, Batista LE, Araújo E. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos Avançados 2020; 34(99):225-244.,55 Silva DT, Silva SP. Trabalho, população negra e pandemia: notas sobre os primeiros resultados da Pnad covid-19. Nota técnica nº 46 - Diest. Brasília: Ipea; nov 2020..
Estudos e análises que adotam perspectiva étnico-racial relacionam o impacto da construção social do racismo histórico no país sobre as condições sóciodemográficas, de escolaridade, renda/trabalho, moradia, estilo de vida, violência e educação. Diante dessa realidade, investigações acerca de grupos específicos de populações negras originárias, seus territórios, hábitos, costumes, valores e crenças religiosas, além de aspectos relativos às condições de saúde e de acesso a esse direito, são fundamentais para o alcance da equidade e o pleno exercício da democracia, uma vez que viabilizam ações, normativas e estratégias no combate às abissais iniquidades existentes no Brasil, especialmente em saúde. Essa é a marca da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 3. ed. Brasília: M Saúde; 2017..
Ainda existe, no entanto, a necessidade de melhorar a difusão das políticas públicas relativas a esse grupo populacional na sociedade, como apontam Brito e colegas77 Leal MB, Batista YBS, Borges J, Santos EQ, Cangussu MCT. Políticas públicas reparadoras no acesso ao serviço de saúde da população negra: uma revisão sistemática. REBRASF 2021; 9(3):77-89. em revisão sistemática sobre políticas públicas reparadoras do acesso aos serviços de saúde para negras e negros. Os autores concluem que, no contexto de atenção à saúde, as políticas públicas não foram suficientes para sanar as necessidades desse estrato. Tal achado corrobora a tese de que a demolição das barreiras impostas pelo racismo é questão central para garantir o acesso ao direito à saúde.
No cenário estadunidense, Krieger88 Krieger N. Structural racism, health inequities, and the two-edged sword of data: structural problems require structural solutions. Front Public Health 2021; 9:655447. enfatiza a necessidade de intervenções estruturais, como pré-requisitos para as mudanças necessárias à busca pela equidade. Para tanto, recomenda que a perspectiva de grupos racializados seja incorporada a toda e qualquer produção de informação em saúde e de conhecimento científico, quando financiada pelo governo. Como segunda recomendação, propõe que sejam comparados dados de saúde, em nível individual, na perspectiva de grupos racializados, com ênfase na desigualdade social. No contexto nacional, ambas as recomendações estão incluídas nas diretrizes gerais da PNSIPN desde 200966 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 3. ed. Brasília: M Saúde; 2017..
As seis diretrizes dessa política são:
1) inclusão dos temas racismo e saúde da população negra nos processos de formação e educação permanente; 2) ampliação e fortalecimento da participação do movimento social negro nas instâncias de controle social das políticas de saúde; 3) promoção do reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas; 4) implementação do processo de monitoramento e avaliação das ações pertinentes ao combate ao racismo e à redução das desigualdades étnico-raciais no campo da saúde nas distintas esferas de governo; 5) incentivo à produção do conhecimento científico e tecnológico em saúde da população negra; e 6) o desenvolvimento de processos de informação, comunicação e educação que desconstruam estigmas e preconceitos, fortalecendo uma identidade negra positiva, [que] e contribuam para a redução das vulnerabilidades99 Campos DA, Rodrigues J, Moretti-Pires RO. Pesquisa em saúde coletiva como instrumento de transformação social: uma proposta fundamentada no pensamento hermenêutico-dialético. Saude Transf Soc 2012: 3(4):14-24..
Dessa forma, a produção de conhecimento científico sobre saúde da população negra é um importante subsídio para o aprimoramento contínuo da PNSIPN, bem como para superar o racismo e denunciar as violações de direitos à saúde e à vida66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 3. ed. Brasília: M Saúde; 2017., contribuindo para a perspectiva de que a pesquisa em saúde coletiva constitui uma ferramenta de transformação social99 Campos DA, Rodrigues J, Moretti-Pires RO. Pesquisa em saúde coletiva como instrumento de transformação social: uma proposta fundamentada no pensamento hermenêutico-dialético. Saude Transf Soc 2012: 3(4):14-24..
No histórico das iniciativas para a priorização dos temas que envolvem a saúde da população negra, em novembro de 2003 um grupo de especialistas nessa área participou, em Brasília, do Seminário para Construção da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa. Essa agenda, que passou por consulta pública, foi apresentada na II Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, sendo seu texto final referendado pelo Conselho Nacional de Saúde, em reunião realizada em fevereiro de 20051010 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia. Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde [Internet]. Brasília: MS; 2005. (Série B. Textos Básicos em Saúde). [acessado 2022 maio 12]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agenda_nac_pesq_saude.pdf. Já em 2012, pesquisadores, gestores, lideranças de movimentos sociais e representantes do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde (Decit-MS) promoveram o I Encontro Nacional de Pesquisadoras e Pesquisadores em Saúde da População Negra, que mapeou as prioridades de pesquisa em saúde da população negra1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia. Seleção de prioridades de pesquisa em saúde: guia PPSUS. Brasília: MS; 2008. e levou à definição de temas para a construção de um edital de pesquisa, realizado pelo Decit em 2013. Por fim, em 2018, o próprio Ministério da Saúde reuniu suas áreas técnicas e elencou 172 linhas de pesquisa agrupadas em 14 eixos, incluindo a saúde da população negra e das comunidades tradicionais.
Antes, o Decit lançou dois editais temáticos (2006 e 2013) e fomentou 18 editais de Pesquisa para o SUS (PPSUS)1212 Carta do I Encontro Nacional de Pesquisadoras e Pesquisadores em Saúde da População Negra [Internet]. [acessado 2022 maio 12]. Disponível em: http://comitepaz.org.br/index.php/carta-do-i-encontro-nacional-de-pesquisadoras-e-pesquisadores-negros-em-saude-da-populacao-negra/
http://comitepaz.org.br/index.php/carta-... sobre temas de saúde da população negra, perfazendo um total de 54 projetos de pesquisa apoiados e um investimento de aproximadamente R$ 4,8 milhões. Cabe registrar que a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) lançou duas chamadas próprias, específicas para saúde de negras e negros e doença falciforme.
Embora a mencionada Agenda de Prioridades de Pesquisa do Ministério da Saúde tenha funcionado como indutora de estudos para o SUS, a pesquisa translacional nesse campo ainda precisa se consolidar no país, considerando que pode trazer grandes contribuições para o avanço das políticas de saúde, proporcionando maior aproximação entre o conhecimento produzido e sua aplicação para os indivíduos e a sociedade1313 Correia CVDSR, Rezende KS, Rosa SDSRF, Barreto JOM, Felipe MSS. Pesquisa translacional no Brasil: temas de pesquisa e sua aderência à Agenda do SUS. Saude Debate 2020; 43(Esp. 2):75-86.. Além disso, considerando o aporte de recursos para pesquisa na área da saúde da população negra, faz-se necessário saber como a produção desse conhecimento tem sido realizada e, ainda mais, quais suas repercussões para fortalecer a PNSIPN e o Sistema Único de Saúde, bem como garantir o direito à saúde a negras e negros.
Passados 16 anos do lançamento do primeiro edital de pesquisa, o conhecimento sobre a saúde da população negra, segundo a matriz inerente à PNSIPN66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 3. ed. Brasília: M Saúde; 2017., precisa ser sistematizado e analisado. Este estudo exploratório se justifica pela necessidade de abordar as lacunas ainda existentes nas investigações nacionais nessa área, a fim de identificar e compartilhar o estado da arte sobre o tema e subsidiar a discussão a respeito da respectiva agenda de pesquisa, tanto por parte das instituições de fomento quanto pelas próprias instituições de pesquisa. Mapaear essa produção foi o objetivo deste trabalho.
Métodos
Delineamento e critérios de inclusão e exclusão
Realizou-se uma revisão rápida de escopo para mapear a produção científica brasileira sobre a saúde da população negra. Um protocolo da revisão foi elaborado previamente e registrado no Open Science Framework1414 Toma TS, Batista LE, Santos MPAD, Cruz MM, Silva Passos SC, Ribeiro EE, Barreto JOM. Protocolo: Revisão de escopo rápida da produção científica brasileira sobre a saúde da população negra e saúde pública: uma análise temática e bibliométrica. 2022. [acessado 2022 maio 12]. Disponível em: https://osf.io/cv8nq/
https://osf.io/cv8nq... . O referencial metodológico para o desenvolvimento da revisão foi o manual do Joanna Briggs Institute1515 Peters MDJ, Godfrey C, McInerney P, Soares CB, Khalil H, Parker D. Scoping reviews. In: Aromataris E, Munn Z, editors. Joanna Briggs Institute Reviewer's Manual. Adelaide: Joanna Briggs Institute; 2017..
A pergunta de pesquisa foi “Qual é o perfil temático e de colaboração acadêmica da produção científica em saúde pública no Brasil sobre a saúde da população negra?”, que teve como ponto de partida o acrônimo PCC (população: população negra; conceito: produção científica brasileira; e contexto: saúde pública).
Foram incluídos estudos primários, secundários, relatos de experiência e ensaios teóricos sobre a temática, produzidos por pesquisadores(as) brasileiros(as) - como autores(as) principais ou como coautores(as) - e publicados em periódicos científicos em português, espanhol ou inglês. Não houve restrição quanto à data de publicação.
Foram considerados elegíveis os artigos que versaram acerca de quaisquer temáticas de saúde pública referentes à população negra e à PNSIPN. Foram excluídos os estudos genéticos e antropométricos que não articulavam, direta ou indiretamente, suas discussões com os temas da política nacional. Também foram excluídos livros, coletâneas ou capítulos de livros, teses, dissertações, trabalhos monográficos, relatórios oriundos de simpósios ou conferências e manuais técnicos. Artigos cujos resumos foram inacessíveis, estudos de revisão narrativa de literatura ou cujas metodologias, resultados ou conclusões não abordavam diretamente ou indiretamente a população negra também foram excluídos. Adicionalmente, foram excluídos estudos em que não houve participação de pesquisadores(as) brasileiros(as) nem de populações brasileiras ou publicados em idiomas diferentes dos citados.
Estratégias de busca e seleção dos estudos
As buscas foram efetuadas em abril de 2022, nas seguintes bases de dados: Portal Regional da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), PubMed e Web of Science e Scopus. A busca estruturada foi adaptada para cada base, a partir dos seguintes descritores básicos: “população negra” e “saúde pública”. A busca detalhada encontra-se no Apêndice 1 do material suplementar (disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.F9KDBK). As estratégias de busca foram elaboradas e realizadas por um bibliotecário experiente.
A seleção dos artigos foi empreendida por dois autores, de forma independente, com base nos critérios de inclusão e exclusão definidos, levando-se em consideração o eixo saúde da população negra da Agenda de Prioridades de Pesquisa em Saúde (Quadro 1)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia. Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde [Internet]. Brasília: MS; 2005. (Série B. Textos Básicos em Saúde). [acessado 2022 maio 12]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agenda_nac_pesq_saude.pdf. Após a exclusão de duplicatas, a triagem foi feita por meio da leitura de títulos e resumos, utilizando-se o gerenciador bibliográfico Rayyan QCRI1616 Ouzzani M, Hammady H, Fedorowicz Z, Elmagarmid A. Rayyan - a web and mobile app for systematic reviews. Syst Rev 2016; 5(1):210., e checada por outros dois avaliadores com expertise na temática. As divergências foram resolvidas por consenso.
Extração e análise dos dados
Os dados dos estudos incluídos foram extraídos inicialmente para uma planilha eletrônica, contendo título, resumo, ano e periódico em que foram publicados e nomes dos(as) autores(as) e coautores(as). Depois foram extraídos os seguintes dados dos resumos: i) delineamento do estudo, ii) população de interesse, iii) tema central estudo e suas abordagens, iv) diretriz relacionada à PNSIPN e v) apoio financeiro, palavras-chave e desfechos observados em relação à população negra. A extração dos dados não foi feita em duplicidade, mas conduzida individualmente por quatro revisores, de forma complementar, e checada por um quinto revisor. Os achados foram sintetizados de forma descritiva.
Avaliação da qualidade dos estudos
A qualidade metodológica dos estudos incluídos não foi avaliada, uma vez que isso não fez parte dos critérios de exclusão. Na revisão de escopo, essa etapa é considerada opcional1717 Tricco AC, Lillie E, Zarin W, O'Brien KK, Colquhoun H, Levac D, Moher D, Peters MDJ, Horsley T, Weeks L, Hempel S, Akl EA, Chang C, McGowan J, Stewart L, Hartling L, Aldcroft A, Wilson MG, Garritty C, Lewin S, Godfrey CM, Macdonald MT, Langlois EV, Soares-Weiser K, Moriarty J, Clifford T, Tunçalp Ö, Straus SE. PRISMA Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR): checklist and explanation. Ann Intern Med 2018; 169(7):467-473..
Análise da coautoria e da associação de termos usados nos títulos dos artigos
Uma análise complementar dos dados bibliográficos dos estudos selecionados foi realizada para caracterizar a relações de coautoria e os termos mais recorrentes nos títulos. Para gerar os grafos de rede nesta análise, foi utilizado o software livre VOSviewer1818 Van Eck NJ, Waltman L. Software survey: VOSviewer, a computer program for bibliometric mapping. Scientometrics 2010; 84:523-538., com base na força de associação entre as duas unidades de análise de interesse (autores e palavras dos títulos). Para a rede de coautoria foram considerados os seguintes critérios de inclusão: i) autores(as) que integraram a autoria de mais de um artigo; ii) autores(as) com coautoria; e iii) autores(as) com força de associação maior que zero (calculado automaticamente pelo VOSviewer, seguindo os métodos descritos por Van Eck e Waltman1818 Van Eck NJ, Waltman L. Software survey: VOSviewer, a computer program for bibliometric mapping. Scientometrics 2010; 84:523-538.). Para a rede lexical dos títulos dos artigos selecionados, os critérios de inclusão foram: i) termos com cinco ou mais ocorrências e ii) termos com força de associação maior que zero (calculado automaticamente pelo VOSviewer).
Os resultados foram apresentados na forma de grafos de rede, possibilitando a inspeção visual e a identificação das características de associação das redes resultantes. Esses grafos apresentam visualmente as seguintes informações: i) nós (autores individuais e termos); ii) conexões (coautoria e co-ocorrência); e iii) métricas (proximidade, representada pela localização dos nós na rede, e força de associação, dada pelo tamanho da bolha e pela espessura da linha conectora).
Resultados e discussão
Dos 1.527 registros identificados nas bases de dados, 351 foram excluídos por duplicidade e 1.176 foram avaliados, dos quais 604 excluídos após leitura do título e do resumo por não alcançarem os critérios de elegibilidade. Assim, 572 relatos considerados elegíveis foram novamente analisados em nova rodada de leitura dos resumos, ou mesmo do artigo completo, após o quê foram excluídos outros 53. Assim, 519 publicações foram incluídas nesta revisão de escopo (Figura 1). A lista dos estudos incluídos é apresentada no Apêndice 2 do material suplementar (disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata.F9KDBK).
Publicação por ano e periódico
Os estudos incluídos foram publicados entre 1969 e 2022 (Gráfico 1). Essa produção se distribui assimetricamente no período, com aumento a partir de 2005, atingindo seu ápice em 2018, com 48 (9%) publicações, seguido de uma redução em 2019 e 2020 e nova retomada em 2021, durante a pandemia de COVID-19. Do total de artigos analisados, 262 foram publicados em revistas internacionais e 272 em brasileiras.
Quanto aos periódicos nacionais que mais publicaram sobre temas da saúde da população negra, Cadernos de Saúde Pública se destacou com maior número (n = 54, 25,1%), seguido pela Ciência & Saúde Coletiva (n = 42, 19,5%). No âmbito internacional, PlosONe foi o que mais publicou estudos sobre saúde da população negra brasileira (n = 8, 3,7%). Publicações também foram verificadas em outras revistas internacionais, tais como Community Dental and Oral Epidemiology e BMC Infectious Disease, com cinco publicações cada (2,3%), e Ethinicty & Disease (n = 7, 3,3%). A internacionalização da temática saúde da população negra brasileira ocorreu basicamente por esses quatro periódicos.
Delineamento dos estudos
Com relação ao delineamento metodológico, 457 (88%) foram categorizados como quantitativos (transversal, coorte, caso-controle, ecológico), 33 (6%) qualitativos (etnografia), 24 (5%) revisões (narrativa, sistemática, integrativa) e 5 (1%) quantitativos e qualitativos. Estudos quantitativos, portanto, representam a maioria.
Em relação à população estudada, foram observados os seguintes artigos individuais: população geral, 95 artigos (18,3%); população negra, 65 (12,5%); população quilombola, 54 (10,4%); adultos, 31 (5,9%); e crianças, 16 (3,0%). Os trabalhos se distribuíram nas temáticas saúde da mulher, mortalidade, saúde bucal, hipertensão, HIV/Aids; doenças cardiovasculares, violências e acidentes, nutrição e doenças renais (Tabela 1).
Os artigos sobre a saúde de negras e negros discutem temas como doenças cardiovasculares, HIV/Aids, PNSIPN, saúde bucal, saúde da mulher, saúde mental e doença falciforme, entre outras. Os artigos sobre populações quilombolas discutem temas como hipertensão arterial, hepatites, insegurança alimentar e saúde da mulher. Quando se analisa a população estudada, os temas e sua interface com as diretrizes da PNSIPN, identificam-se 195 (37,6%) artigos que dialogaram com a diretriz “Implementação do processo de monitoramento e avaliação das ações pertinentes ao combate ao racismo e à redução das desigualdades étnico raciais”.
Quando analisada a interface dos artigos selecionados com o eixo “Saúde da população negra da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde”, os artigos respondem aos diferentes subtemas da “Magnitude e dinâmica dos problemas relacionados à saúde da população negra”. Considera-se que esse aspecto específico poderia ser objeto de maior aprofundamento, em um estudo específico.
Evidências sobre a produção brasileira
Os estudos incluídos nesta revisão foram analisados em relação às diretrizes da PNSIPN, bem como a partir dos eixos temáticos e subtemas estratégicos para saúde da população negra da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde.
Alguns artigos utilizaram a categoria raça/cor, sem cotejar o conceito de etnicidade, no contexto social, o que dificulta maior nitidez e visibilidade de um amplo leque de questões sobre o impacto do racismo na saúde2020 Pinto EA, Souzas R. Etnicidade e saúde da população negra no Brasil. Cad Saude Publica 2002; 18(5):1144-1145.. Em geral, a estratégia utilizada pelas lideranças negras para discutir a temática racial na saúde foi incluir o quesito cor nos sistemas de informação, mas sempre considerando sua articulação com o tema da equidade, para descortinar suas iniquidades2020 Pinto EA, Souzas R. Etnicidade e saúde da população negra no Brasil. Cad Saude Publica 2002; 18(5):1144-1145.. Os títulos e resumos dos artigos selecionados apresentaram uma variedade de termos que vão de “raça/cor” a “raça/cor etnia” e “raça/cor da pele” - esse último podendo estar em contradição com as feministas históricas, quando pensaram o quesito “cor” para trazer as dimensões sociais das iniquidades em saúde. Nesse sentido, caberiam recomendações para a adoção do atributo “raça/cor” nos títulos e descritores das publicações em saúde2121 Santos RV, Bastos JL, Kaingang JD, Batista LE. Cabem recomendações para usos de "raça" nas publicações em saúde? Um enfático "sim", inclusive pelas implicações para as práticas antirracistas. Cad Saude Publica 2022; 38(3):00021922..
A maioria dos estudos é do tipo observacional e utiliza indicadores de saúde para a população negra por meio dos sistemas públicos de informação em saúde, em detrimento de estudos clínicos ou de avaliação. Daí supõe-se que a abordagem metodológica utilizada pode interferir na confiança a ser depositada nos achados por eles apresentados. Evidências indicam que tomadores de decisão citam a ausência de análises de efetividade em relação aos efeitos sobre a equidade em saúde, o que pode consistir em uma importante limitação dos subsídios para a tomada de decisões políticas e de programas focados na equidade2222 Welch V, Tugwell P, Petticrew M, de Montigny J, Ueffing E, Kristjansson B, McGowan J, Benkhalti Jandu M, Wells GA, Brand K, Smylie J. How effects on health equity are assessed in systematic reviews of interventions. Cochrane Database Syst Rev 2010; 2010(12):MR000028. doi: 10.1002/14651858.MR000028.pub2.
https://doi.org/10.1002/14651858.MR00002... .
A partir da análise da variável raça/cor nos sistemas de informação em saúde, os estudos ratificam a persistência de iniquidades raciais em saúde. Como contribuição para a tradução desse conhecimento, pode-se considerar a criação de um painel de monitoramento referente à população em foco, a fim de disponibilizar dados consolidados em uma plataforma única, de acesso público, multiusuário e dinâmico, que possa apoiar não apenas a produção científica, mas a tomada de decisão e sobretudo o acesso à informação por diferentes instituições, representações da sociedade civil e da população. Essa solução também foi apresentada como uma recomendação do Grupo de Trabalho sobre Racismo e Saúde da Abrasco, pois funcionaria como uma ferramenta de monitoramento e avaliação da saúde da população negra e da PNSIPN.
Em outra vertente está o estudo de patologias elegíveis para avaliar a implementação da política de saúde da população negra, tais como os programas de atenção à saúde das pessoas com doença falciforme. Específica, essa patologia se coloca, por exemplo, como estratégica, tendo como indicador o número de nascidos vivos com o diagnóstico2323 Batista LE, Barros S, Silva NG, Tomazelli PC, Silva A da, Rinehart D. Indicators for monitoring and evaluating the implementation of the National Policy for the Integrative Health of the Black Population. Saude Soc 2020; 29(3):e190151.. A doença falciforme é uma desordem hematológica hereditária ligada à ancestralidade africana e fortemente atravessada pelo racismo, uma vez que, no Brasil, acomete majoritariamente negras e negros. Power-Hays e McGann2424 Power-Hays A, McGann PT. When actions speak louder than words - racism and sickle cell disease. N Engl J Med 2020; 383(20):1902-1903. afirmam que a construção social da raça exige da maioria das pessoas com essa patologia não só o enfrentamento das consequências de uma condição de saúde, mas também de uma sociedade em que a cor da pele é frequentemente uma injusta desvantagem.
Esses mesmos autores refletem sobre a persistência de altas taxas de mortalidade e de morbidade de pessoas com doença falciforme, condicionadas pela falta de acesso das/dos pacientes aos sistemas de saúde e ao cuidado multiprofissional de forma qualificada, contínua e integral. Eles finalizam questionando a ausência de financiamentos para as políticas públicas, bem como para a realização de estudos, pesquisas e produção de inovação tecnológica para esse grupo populacional2424 Power-Hays A, McGann PT. When actions speak louder than words - racism and sickle cell disease. N Engl J Med 2020; 383(20):1902-1903.. Em parte, a agenda de prioridades responde a esse chamamento quando disponibiliza recursos para induzir a produção de conhecimento científico em dois editais temáticos específicos na Bahia, o estado da federação com maior número de casos de doença falciforme. Isso consubstancia as diretrizes da PNSIPN.
Nossos resultados evidenciaram que muitos estudos sobre doença falciforme sequer mencionaram que o distúrbio é mais prevalente na população negra, tampouco abordaram as perceptíveis iniquidades em saúde no acesso aos serviços ou mesmo para o cuidado específico. A maioria aborda a questão de saúde sem cotejar a perspectiva social das pessoas com doença falciforme, nem mesmo como usuários(as) dos serviços. Evidências mostram que o estigma, a depressão, as barreiras de acesso aos serviços de saúde e aos medicamentos impedem a adesão de crianças e adolescentes com doença falciforme, bem como fragilizam a rede de apoio familiar, são os principais problemas relacionados à abordagem do agravo e da qualidade de vida dos seus portadores2525 Ojelabi AO, Yitka Graham Y, Ling J. Health-related quality of life predictors in children and adolescents with sickle cell disease: a systematic review. IJTDH 2017; 22(2):1-14.. E são tão impactantes quanto as questões inerentes à doença em si, como a presença de complicações ou as hospitalizações.
Berghs e colegas2626 Berghs M, Ola BA, Cronin de Chavez A, Ebenso B. Time to apply social determinants of health lens to addressing sickle cell disorders in Sub-Saharan Africa. BMJ Global Health 2020; 5(7):e002601. enfatizam a necessidade de incorporar o conceito dos determinantes sociais em saúde em países de baixo e médio desenvolvimento econômico2626 Berghs M, Ola BA, Cronin de Chavez A, Ebenso B. Time to apply social determinants of health lens to addressing sickle cell disorders in Sub-Saharan Africa. BMJ Global Health 2020; 5(7):e002601. e, a partir daí, considerar a relevância do impacto negativo do racismo, em suas diferentes dimensões, como forte indutor de iniquidades em doença falciforme2727 Royal CDM, Babyak M, Shah N, Srivatsa S, Stewart KA, Tanabe P, Wonkam A, Asnani M. Sickle cell disease is a global prototype for integrative research and healthcare. Advanced Genetics. 2021; 2(1): e10037.. Sem considerar tais perspectivas, estudos cujas investigações se resumem a marcadores genéticos e antropométricos, entre outros, contribuem muito pouco para a translação de conhecimento como diretriz da PNSIPN. Contrariamente, eles estão quantitativamente bem representados nesta revisão e nas chamadas dos editais referentes à Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde.
No que diz respeito à produção do conhecimento sobre saúde da população negra no Brasil, cuja visibilidade fica caracterizada tanto pelo volume de publicações quanto pela proposição política consolidada na agenda de prioridades e na matriz da PNSIPN, diversas lacunas se apresentam. Entre elas, destacam-se: a necessidade de estudos sobre intervenções; estudos secundários analíticos; revisões sistemáticas para informar grau de evidência e nível de recomendações; e estudos de indicação/aplicabilidade de estratégias passiveis de implementação para reduzir as iniquidades em saúde de forma prática e em diálogo com os currículos de formação em saúde. Por fim, não há estudos que abordem questões ambientais e saúde e de transporte e saúde.
Análise de rede da coautoria
A análise bibliométrica da rede de coautoria dos artigos incluídos nesta revisão foi realizada com o propósito de caracterizar a rede de colaboração em pesquisa relacionada à população tema. A análise considerou todos os documentos incluídos nesta pesquisa, adotando o nome dos autores como categoria de análise para estimar a força de associação de cada componente dessa rede.
A Figura 2 mostra a rede completa da coautoria dos estudos selecionados, incluindo 2.480 autores individuais. Foi possível observar que ela possui mais grupos de coautoria isolados do que grupos conectados entre si, embora se destaquem grupos centrais que se conectam entre si e com outros grupos menores.
Para aprofundar a visualização da rede de coautoria com maior colaboração, verificou-se como os grupos com maior número de conexões da rede se relacionam entre si. Entre a amostra total de autores, 226 (9,1% do total) tinham mais de uma publicação; destes, 204 (8,2%) tiveram a força de associação maior que zero, sendo considerados para a análise apresentada na figura a seguir, que também denota a existência de mais grupos de coautoria isolados do que associados entre si, entre aqueles autores com mais publicações. O tamanho da bolha representa a força de associação de cada autor.
Os resultados da análise da rede de colaboração científica, representada pela coautoria na produção dos artigos incluídos nesta revisão, mostraram que a rede de pesquisa sobre a saúde da população negra brasileira é ampla e está conformada por grande quantidade de grupos que publicaram artigos, mas dispersos e, em geral, não conectados entre si. Mesmo assim, uma quantidade menor de grupos interagiu para conformar clusters de centrais de colaboração, inclusive para a caracterização de alguns autores que atuaram como hubs de conexão entre outros autores e grupos na rede de coautoria analisada. Tais achados inspiram a reflexão acerca da necessidade de incentivos para que haja maior interação e colaboração no âmbito da temática no Brasil, a fim de que os grupos mais consolidados e produtivos possam apoiar e impulsionar aqueles em processo de consolidação.
Análise de palavras recorrentes nos títulos dos artigos
Quanto às associações entre os termos recorrentes nos títulos e resumos, foram identificados 1.625 termos individuais, dos quais 84 tiveram pelo menos cinco ocorrências. Na rede de associação formada por termos recorrentes, apresentada na Figura 3, observou-se que os maiores clusters de termos estão relacionados a aspectos epidemiológicos e condições de saúde e doenças (por exemplo: disease, patient, polymorphism, mortality, cancer). Por outro lado, existem termos relacionados com aspectos populacionais, sociais e culturais (como quilombo, community, violence, context).
A análise dos termos mais recorrentes nos títulos dos artigos incluídos nesta revisão mostrou que os temas epidemiológicos e relacionados com doenças e condições de saúde prevaleceram. Mas termos que sugerem a contextualização cultural e social desses elementos também estiveram presentes na análise, ensejando a reflexão sobre o equilíbrio entre esses elementos e temas nos estudos a respeito da saúde de negras e negros no país.
O ponto de partida de uma busca bibliográfica é a seleção de descritores e palavras-chave que caracterizam o assunto referente à pergunta da pesquisa. Generalizações, ou mesmo a inexistência de termos, em especial descritores de assunto, portanto, que definam adequadamente o tema pesquisado relacionado aos grupos populacionais estudados, seus hábitos, costumes e valores, ratificando um processo discriminatório. Além disso, limitam, por meio da invisibilidade temática, a produção de conhecimento científico, o que impacta negativamente as políticas públicas.
Neste estudo, constatou-se que as chaves de busca utilizaram descritores que não abordam a terminologia de forma mais adequada conceitualmente. Para Cruz2828 Cruz KM. Estratégia para reconhecimento de bancos bibliográficos: considerações a partir de uma pesquisa em ciência política. In: Sampaio RC, Codato A, Clemente AJ, Horochovski RR, Sangalli A, Silva R, Sainz N, Gabriel G, organizadores. Ciência política: o campo em discussão. Curitiba: Massimo Editorial; 2021. p. 37-61., é fundamental que as palavras estabeleçam conceitos claramente demarcados, em vez de concepções vagas, com significados díspares, o que foi apontado por Ribeiro e colaboradores2929 Ribeiro TVC, Luzitano BF. Description of color/race in Brazilian biomedical research. Sao Paulo Med J 2012; 130(2):115-118., para se referirem à definição de raça e demais conceitos relativos à população negra. Na temática específica sobre a população negra, há recomendações para que os termos sejam adequadamente utilizados2121 Santos RV, Bastos JL, Kaingang JD, Batista LE. Cabem recomendações para usos de "raça" nas publicações em saúde? Um enfático "sim", inclusive pelas implicações para as práticas antirracistas. Cad Saude Publica 2022; 38(3):00021922.,3030 Flanagin A, Frey T, Christiansen SL. Updated guidance on the reporting of race and ethnicity in medical and science journals. JAMA 2021; 326(7):621-627.. Segundo Flanagin e colegas3030 Flanagin A, Frey T, Christiansen SL. Updated guidance on the reporting of race and ethnicity in medical and science journals. JAMA 2021; 326(7):621-627., terminologia, uso e escolha de palavras são extremamente importantes, uma vez que a linguagem inclusiva apoia a diversidade e transmite respeito. Isso indica a necessidade premente de atualizar as bases de indexação, por meio de seus vocabulários controlados, a fim de assegurar representatividade de todos os grupos populacionais.
Considerações finais
Este estudo apresenta algumas limitações. Primeiro, por ser uma revisão rápida, o processo de busca e seleção, apesar de estruturado e abrangente, pode não ter alcançado a totalidade das pesquisas relevantes. Outro ponto é que não incluiu a literatura acadêmica no formato de teses e dissertações. Outra limitação pode advir da análise temática, que se limitou aos títulos e resumos, ensejando imprecisões pela eventual insuficiência de informações. Finalmente, a análise bibliométrica se baseou nos dados extraídos diretamente dos registros exportados das bases indexadas e não foram checados quanto à consistência e completude das informações.
Apesar de a produção científica mostrar iniquidades raciais para a saúde da população negra, percebeu-se que ainda existe muito espaço para o aprimoramento da tradução do conhecimento, não só no que diz respeito à PNSIPN, mas principalmente em relação às demais políticas contempladas na Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. Sobre elas, fica a pergunta: o que é preciso para que esse conhecimento produzido seja assumido como objeto de interesse, incorporado como conhecimento e traduzido em resultados efetivos? Essa deveria ser a práxis, uma vez que a população negra representa a maioria da população brasileira. Assumir a PNSIPN como transversal às demais políticas, de modo a estruturá-las, traria como imagem-objetivo viabilizar a saúde a toda população brasileira, e como meta, incidir de forma irremediável para a mudança do panorama vigente, em busca da equidade, esta sim, indiscutivelmente, de fato uma agenda prioritária.
Esta revisão de escopo rápida corroborou a tese de que há notórias fortalezas, mas também fragilidades e lacunas, no processo de produção do conhecimento científico sobre a saúde da população negra no Brasil. Se, por um lado, a maioria das publicações reporta uma dada condição de saúde de negras e negros, por outro, está majoritariamente mensurada na perspectiva epidemiológica, muitas vezes sem uma reflexão racial crítica. Além disso, a presente revisão aponta fortemente para a necessidade de avançar na direção de estudos que não se limitem a comprovar as iniquidades raciais, mas que sobretudo proporcionem a oportunidade de traduzir o conhecimento e propor soluções para a superação desse cenário.
Após 52 anos da primeira publicação científica a respeito da saúde da população negra, ainda permanece o desafio de traduzir o conhecimento e formular perguntas sobre a teleologia da produção científica emergente. O que de fato está sendo produzido? E para quem está se produzindo? Tais questões podem orientar uma perspectiva de futuro para a transformação necessária para reduzir os impactos do racismo histórico sobre a saúde das negras e dos negros brasileiros.
Nossos resultados mostraram, ainda, que é premente uma discussão ampla para a mudança da praxis científica, na direção de uma ciência translacional, que efetivamente se estabeleça como movimento democrático eminentemente antirracista e que promova a equidade.
Por fim, este artigo contribui para consolidar o conhecimento científico produzido por pesquisadores(as) brasileiros(as) sobre a saúde da população negra. A respectiva análise temática indica um caminho para uma agenda propositiva prioritária de pesquisa e para o aumento da produção do conhecimento científico para aprimorar a PNSIPN, a fim de superar o racismo e denunciar as violações de direitos.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Set 2022 - Data do Fascículo
Out 2022
Histórico
- Recebido
18 Maio 2022 - Aceito
18 Maio 2022 - Publicado
20 Maio 2022