Pré-natal da mulher brasileira: desigualdades raciais e suas implicações para o cuidado

Millani Souza de Almeida Lessa Enilda Rosendo Nascimento Edméia de Almeida Cardoso Coelho Ieda de Jesus Soares Quessia Paz Rodrigues Carlos Antônio de Souza Teles Santos Isa Maria Nunes Sobre os autores

Resumo

Esta investigação teve como objetivo caracterizar as mulheres que realizaram o pré-natal no Brasil segundo raça/cor e variáveis sociodemográficas e verificar associação entre os indicadores de processo do cuidado no pré-natal e a raça/cor das mulheres. Estudo transversal de base populacional empreendido com dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013. Realizou-se análise bivariada mediante modelo de regressão logística multinível, estimando-se as odds ratio para medir a associação entre os indicadores de processo do cuidado pré-natal adequado e raça/cor das mulheres e verificando os respectivos intervalos de confiança de 95%. Os achados evidenciaram que mulheres negras possuem menor chance de iniciar o pré-natal antes das 12 semanas de gestação, ter seis ou mais consultas, realizar teste de HIV, exame VDRL e receber orientações referentes aos cuidados na gestação e parto. Identificamos desigualdades na atenção à saúde das mulheres brasileiras atendidas no pré-natal relacionadas à raça/cor e a outras características sociodemográficas. Conclui-se que ser negra e ocupar lugares sociais desfavoráveis acarretam desvantagens para as mulheres quanto ao acesso a um pré-natal considerado adequado segundo os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde do Brasil.

Palavras-chave:
Cuidado pré-natal; Saúde da mulher; Saúde da população negra; Racismo

Introdução

O cuidado pré-natal é mundialmente reconhecido como uma intervenção que gera grande impacto na redução dos coeficientes de morbimortalidade materna e perinatal e sua implementação guarda relação com os indicadores de saúde e de desenvolvimento social de um país11 Paiz JC, Ziegelmann PK, Martins ACM, Giugliani ERJ, Giugliani CF. Fatores associados à satisfação das mulheres com a atenção pré-natal em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cien Saude Colet 2021; 26(8):3041-3051..

A literatura destaca os efeitos do cuidado pré-natal sobre a vida e a saúde das mulheres, evidenciando que o acesso a esse cuidado está intimamente relacionado aos fatores sociodemográficos, culturais e de desenvolvimento econômico que mediam o acesso aos serviços de saúde22 Feijen-de Jong EI, Jansen DE, Baarveld F, Van Der Schans CP, Schellevis FG, Reijneveld SA. Determinants of late and/or inadequate use of prenatal healthcare in high-income countries: a systematic review. Eur J Public Health 2012; 22(6):904-913.

3 Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA; Theme-Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Adequa ção da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2015; 37(3):140-147.

4 Dias-da Costa JS, Cesar JA, Haag CB, Watte G, Vicenzi K, Schaefer R. Inadequação do pré-natal em áreas pobres no Nordeste do Brasil: prevalência e alguns fatores associados. Rev Bras Saude Matern Infant 2013; 13(2):101-109.

5 Joshi C, Torvaldsen S, Hodgson R, Hayen A. Factors associated with the use and quality of antenatal care in Nepal: a population-based study using the demographic and health survey data. BMC Pregnancy Childbirth 2014; 14:94.
-66 Guimarães WSG, Parente RCP, Guimarães TLF, Garnelo L. Acesso e qualidade da atenção pré-natal na Estratégia Saúde da Família: infraestrutura, cuidado e gestão. Cad Saude Publica 2018; 34(5):e00110417.. Esses estudos destacam ainda que, em sociedades caracterizadas pelas desigualdades, gênero e racismo constituem elementos estruturantes e explicam o acesso diferenciado e desigual das mulheres negras aos serviços de saúde considerados relevantes, quando comparadas com as brancas.

A cobertura do pré-natal no Brasil tem acompanhado uma tendência de crescimento ao longo dos anos, chegando a aproximadamente 100% quando analisados independentemente das características maternas e da qualidade da assistência prestada77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Datasus. Indicadores de cobertura. Cobertura de consultas pré-natal [Internet]. 2012. [acessado 2015 dez 14]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2012/f06
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
,88 Livramento DVP, Backes MTS, Damiani PR, Castillo LDR, Backes DS, Simão MAS. Percepções de gestantes acerca do cuidado pré-natal na atenção primária à saúde. Rev Gaucha Enferm 2019; 40:e20180211.. No entanto, quando avaliada segundo a adequabilidade da assistência, os níveis de cobertura caem assustadoramente, revelando que a abrangência do pré-natal em termos de eficácia ainda está muito aquém do desejado99 Mario DN, Rigo L, Boclin KLS, Malvestio LMM, Anziliero D, Horta BL, Wehrmeister FC, Martínez-Mesa J. Qualidade do pré-natal no Brasil: Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2019; 24(3):1223-1232..

Tendo em vista o alcance de melhores resultados nos indicadores de saúde nacional, o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN) foi criado no ano 2000 e estabeleceu critérios relacionados à melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, bem como da assistência ao parto e puerpério.

Muitos estudos têm demonstrado, porém, que esses critérios mínimos não estão sendo executados satisfatoriamente para a grande maioria das gestantes, alcançando de forma ainda mais limitada aquelas mulheres que se encontram em condição de vulnerabilidade, podendo também variar de acordo com a região e o estabelecimento onde se oferece a assistência11 Paiz JC, Ziegelmann PK, Martins ACM, Giugliani ERJ, Giugliani CF. Fatores associados à satisfação das mulheres com a atenção pré-natal em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cien Saude Colet 2021; 26(8):3041-3051.,66 Guimarães WSG, Parente RCP, Guimarães TLF, Garnelo L. Acesso e qualidade da atenção pré-natal na Estratégia Saúde da Família: infraestrutura, cuidado e gestão. Cad Saude Publica 2018; 34(5):e00110417.,99 Mario DN, Rigo L, Boclin KLS, Malvestio LMM, Anziliero D, Horta BL, Wehrmeister FC, Martínez-Mesa J. Qualidade do pré-natal no Brasil: Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2019; 24(3):1223-1232.

10 Prudêncio PS, Mamede FV. Avaliação do cuidado pré-natal na atenção primária a saúde na percepção da gestante. Rev Gaucha Enferm 2018; 39:e20180077.
-1111 Polgliane RBS, Leal MC, Amorim MHC, Zandonade E, Santos Neto ET. Adequação do processo de assistência pré-natal segundo critérios do Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento e da Organização Mundial de Saúde. Cien Saude Colet 2014; 19(7):1999-2010..

De uma maneira geral, a literatura aponta para a persistência do baixo cumprimento do conjunto das metas propostas e sua correlação com os determinantes sociais da saúde, entre os quais a raça/cor se destaca99 Mario DN, Rigo L, Boclin KLS, Malvestio LMM, Anziliero D, Horta BL, Wehrmeister FC, Martínez-Mesa J. Qualidade do pré-natal no Brasil: Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2019; 24(3):1223-1232.. Portanto, cor da pele deve ser discutida conjuntamente com fatores socioeconômicos e culturais, visto que essas são variáveis que agem de maneira sinérgica, amplificando os resultados negativos sobre a saúde e compondo mecanismos explicativos das desigualdades raciais nesse âmbito1212 Fonseca SC, Monteiro DAS, Pereira CMSC, Scoralick ACD, Jorge MG, Rozario S. Desigualdades no pré-natal em cidade do Sudeste do Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(7):1991-1998.

13 Carvalho PI, Pereira PMH, Frias PG, Vidal SA, Figueiroa JN. Fatores de risco para mortalidade neonatal em coorte hospitalar de nascidos vivos. Epidemiol Serv Saude 2007; 16(3):185-194.
-1414 Fonseca SC, Kale PL, Silva KS. Pré-natal em mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde em duas maternidades no estado do Rio de Janeiro, Brasil: a cor a importa? Rev Bras Saude Matern Infant 2015; 15(2):209-217..

Estudos com ênfase nas desigualdades raciais em saúde têm destacado que mulheres negras ocupam uma posição de maior vulnerabilidade porque vivenciam, no mínimo, a tripla discriminação de gênero, raça e classe, as quais impactam diretamente no padrão de acesso e utilização dos serviços de saúde bem como nos processos de adoecimento e morte1212 Fonseca SC, Monteiro DAS, Pereira CMSC, Scoralick ACD, Jorge MG, Rozario S. Desigualdades no pré-natal em cidade do Sudeste do Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(7):1991-1998.,1515 Theophilo RL, Rattner D, Pereira EL. Vulnerabilidade de mulheres negras na atenção ao pré-natal e ao parto no SUS: análise da pesquisa da Ouvidoria Ativa. Cien Saude Colet 2018; 23(11):3505-3516.,1616 Santos LAV, Lara MO, Lima RCR, Rocha AF, Rocha EM, Glória JCR, Ribeiro GC. História gestacional e características da assistência pré-natal de puérperas adolescentes e adultas em uma maternidade do interior de Minas Gerais, Brasil. Cien Saude Colet 2018; 23(2):617-625..

O racismo opera nas instituições sob uma dinâmica que confere tanto privilégios como desvantagens com base na raça, estabelecendo-se parâmetros discriminatórios que buscam manter a hegemonia do grupo racial que detém o poder1717 Almeida S. O que é racismo estrutural? Letramento: Belo Horizonte: MG; 2018.. Especificamente no campo da atenção pré-natal, os achados decorrentes de estudos nacionais e regionais ratificam essa afirmação, à medida que mostram que as mulheres de cor da pele preta ou parda, com baixa escolaridade e atendidas em serviços públi cos vivenciam menor adequação na assistência1212 Fonseca SC, Monteiro DAS, Pereira CMSC, Scoralick ACD, Jorge MG, Rozario S. Desigualdades no pré-natal em cidade do Sudeste do Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(7):1991-1998.,1818 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):85-100.

19 Silva FS. Mulheres negras e brancas: análise do acesso às consultas de pré-natal no Estado do Rio Grande do Sul, 2016. Porto Alegre: UFRGS; 2018.
-2020 Santos B. Iniquidades raciais na atenção pré-natal: estudo de coorte materna. Porto Alegre: UFRGS; 2020.. São elas, portanto, as mais afetadas pelas complicações decorrentes da ausência ou iniquidades do cuidado.

Entendendo a importância da investigação científica sobre o acesso aos serviços qualificados e eficazes pela população de mulheres vítimas do preconceito e da discriminação, seja racial ou social, e considerando a importância de dados na cionais para uma avaliação mais ampla da assistência prestada, este estudo objetivou caracterizar as mulheres que realizaram o pré-natal no Brasil segundo variáveis sociodemográficas e raça/cor e verificar associação entre os indicadores de processo do cuidado no pré-natal e a raça/cor das mulheres.

Metodologia

O presente estudo foi realizado a partir da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, cujo principal objetivo é produzir e fornecer dados nacionalmente representativos sobre a situação de saúde e os estilos de vida da população brasileira, bem como a respeito da atenção à saúde no que se refere ao acesso e uso dos serviços de saúde, às ações preventivas, à continuidade dos cuidados e ao financiamento da assistência de saúde2121 Freitas MPS. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Diretoria de Pesquisas e Coordenação de Métodos e Qualidade. Pesquisa Nacional de Saúde Plano Amostral. Rio de Janeiro: IBGE; 2014..

A PNS é uma pesquisa domiciliar realizada por meio de amostragem conglomerada em três estágios, a saber: os setores censitários ou conjunto de setores, que formam as unidades primárias de amostragem; os domicílios, que representam as unidades de segundo estágio; e os moradores de 18 anos ou mais de idade, entre eles mulheres que tiveram algum parto no período de 28/10/2011 a 27/07/2013, considerando-se o último parto.

A população do estudo foi composta por 1.851 mulheres que realizaram o cuidado pré-natal, distribuídas em todo o Brasil. Houve perda de 2,1% relacionada à não resposta a questões específicas do questionário de pesquisa, sendo a análise desenvolvida com base em informações de 1.812 mulheres. Para variáveis peculiares, como renda e ocupação, as percentagens computadas como não resposta, relacionadas à definição “não aplicável”, foram representadas por 59,87% e 58,60%, respectivamente.

Analisou-se a variável raça/cor composta por dois grupos (negras e brancas). A definição da raça/cor utilizada segue o critério do IBGE, que atualmente é constituído pelas cores/raça/etnia: branca, preta, parda, indígena e amarela, sendo que para fins deste estudo as mulheres autodeclaradas pretas e pardas são classificadas como “negras”.

As características sociodemográficas das mulheres investigadas se enquadram como variáveis independentes e dizem respeito a idade, conjugalidade, ocupação, renda, nível de instrução, paridade e cobertura de atendimento da população. Os indicadores de processo do pré-natal adequado foram definidos no estudo como variáveis dependentes e seguem as recomendações mínimas propostas pelo Ministério da Saúde do Brasil por meio do Programa de Humanização do Parto e Nascimento (PHPN) e do Manual Técnico de Atenção ao Pré-natal de Baixo Risco.

Indicadores de processo referentes aos aconselhamentos dados durante o acompanhamento pré-natal foram incluídos, provenientes das questões presentes no questionário da PNS, que foram acrescentadas a fim de propiciar uma análise mais ampla e realista da assistência pré-natal.

Os indicadores de processo do cuidado pré-natal foram determinados levando em conta a primeira consulta até a 12ª semana de gestação, o mínimo de seis consultas, exames laboratoriais (hemograma, sorologia para sífilis - venereal disease rese arch laboratory test-VDRL, testagem anti-HIV e exame de urina), avaliação clínica-obstétrica (aferição da pressão arterial, mensuração de peso, medida da altura uterina, avaliação de batimentos cardiofetais e exame clínico das mamas), fornecimento de aconselhamentos relacionados ao uso de tabaco, álcool, tintura de cabelo, ausência nas consultas, alimentação saudável; e orientações referentes a sinais de trabalho de parto e de risco obstétrico, orientações sobre aleitamento materno e acerca da maternidade de referência para assistência ao parto2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à saúde. Departamento de Atenção Básica. Atenção ao pré-natal de baixo risco. Brasília: MS; 2012..

A análise inicial foi efetivada mediante estatística descritiva, obtendo-se as medidas de tendência central (médias e medianas), desvio padrão, frequências e percentuais. A análise bivariada tabular foi efetuada para verificar a homogeneidade da distribuição das covariáveis sociodemográficas entre os grupos de brancas e negras, referente à variável raça/cor, utilizando-se o teste qui-quadrado ao nível de significância p < 0,05. Posteriormente, realizou-se análise bivariada mediante modelo de regressão logística multinível, em que foram estimadas as odds ratio (OR), para verificar associação entre os indicadores de pré-natal adequado e a variável raça/cor, com os respectivos intervalos de confiança de 95%.

Para evitar associações espúrias, o modelo de regressão logística multinível foi adotado neste estudo em lugar do modelo logístico tradicional, dessa maneira tratou-se o setor censitário como efeito aleatório na análise. Para tanto, estimou-se o coeficiente de correlação intraclasse, que expressa o grau de homogeneidade dos comportamentos e atitudes dos indivíduos ao compartilharem a mesma área geográfica - setor censitário2323 Leeuw J, Meijer E. Handbook of multilevel analysis. Los Angeles: Springer; 2008..

Os dados utilizados neste estudo foram obtidos por meio de fonte de domínio público, sendo a pesquisa original aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde em junho de 2013, como pré-requisito para a divulgação dos dados. Portanto, o presente estudo dispensa a apreciação do Comitê de Ética.

Resultados

A população do estudo apresenta idade média de 27 anos (dp 6,2) e raça/cor majoritariamente negra (65,9%). Predominaram as mulheres que tinham parceiro fixo (78,1%), ensino escolar médio (44,8%), empregada por empresa pública ou privada (26,7%) e com renda entre um e três salários-mínimos (25, 9%). Pouco mais de um terço das mulheres tinha parido apenas uma vez antes da gestação que investigou as características do pré-natal (37,5%) e 70,8% utilizaram o SUS para realizar o acompanhamento.

A Tabela 1 apresenta a descrição dos dados sociodemográficos das mulheres que fizeram o pré-natal no Brasil, estratificados por raça/cor. Observou-se associação estatisticamente significante entre a idade e a raça/cor das mulheres (p = 0,045), com predomínio de faixa etária entre 25 e 35 anos, tanto entre negras como entre brancas, 56,3% e 52,9%, respectivamente.

Tabela 1
Comparação entre mulheres negras e brancas atendidas no pré-natal, segundo variáveis sociodemográficas. Brasil, 2013.

Houve maior percentual de mulheres brancas com parceiro fixo, 80,6%, em relação às negras. O quesito nível de instrução apresentou significância estatística quanto às diferenças de raça/cor das mulheres (p < 0,001); para essa variável, as diferenças percentuais se deram principalmente entre os grupos sem instrução e ensino superior, em que no primeiro as mulheres negras representaram 7,8%, enquanto as brancas corresponderam a 4,2%; e inversamente, houve predomínio de mulheres de cor da pele branca para o nível mais alto instrução, que correspondeu a 27,9%, cerca de 2,40 vezes maior que o grupo das negras para o mesmo nível.

No que diz respeito à ocupação, houve diferença entre as proporções estatisticamente significante entre os grupos (p < 0,001), destacando-se percentagens referentes às empregadas no setor público/privado e trabalhadoras domésticas. Neste último, as mulheres negras foram 2,03 vezes mais prevalentes que as brancas, enquanto no primeiro as brancas se destacaram com 32,9%. Com relação à renda, as negras apresentaram maior percentual entre as mulheres que tinham ganho mensal menor ou igual a um salário-mínimo, quando comparadas às brancas; já entre aquelas que ganhavam quatro salários-mínimos ou mais, destacaram-se as mulheres de pele branca, representando 9,8%, com 2,8% do grupo das negras.

A paridade apresentou diferença estatisticamente significante (p < 0,001) entre as proporções, destacando-se os grupos das mulheres que haviam parido apenas uma vez e aquelas que haviam parido três ou mais vezes. Para aquelas com menos filhos, predominaram as mulheres que se autodeclaram brancas. Em contrapartida, entre as que referiram ter parido mais de duas vezes, houve predomínio das negras, 32,9%. Não houve significância estatística entre a conjugalidade e a raça/cor das mulheres que realizam o pré-natal.

Quanto ao tipo de serviço utilizado, verificou-se diferença entre as proporções, com significância estatística entre os grupos. Mulheres negras representaram a maioria dos atendimentos no setor público (79,9%), e somente 15,9% dos pré-natais realizados no setor privado, enquanto para esse último, as brancas representaram 41,1% dos atendimentos.

Na Tabela 2 são apresentados a prevalência dos indicadores de processo no cuidado pré-natal adequado segundo a raça/cor das mulheres e as odds ratio (OR) com seus respectivos intervalos de confiança dos modelos de análise multinível. Utilizou-se o coeficiente de correlação intraclasse (Rho), ou efeito de cluster, para avaliar a existência de parcelas de variabilidade entre as áreas onde as mulheres residem, não explicadas pelas variáveis incluídas no modelo, com valor mínimo de 0,00 e máximo de 0,46.

Tabela 2
Associação e correlação intraclasse entre os indicadores de cuidado pré-natal adequado e raça/cor de mulheres que realizaram o pré-natal. Brasil, 2013.

Sobre os indicadores do cuidado pré-natal adequado e a raça/cor das mulheres, observou-se associação negativa estatisticamente significante entre a cor da pele e o início do pré-natal com 12 semanas ou menos, o número de consultas igual ou superior a seis, realização de teste HIV, realização de exame VDRL, exame das mamas em todas as consultas, orientações referentes ao trabalho de parto, sinais de risco indicativos de emergência obstétrica e aleitamento materno, além das orientações relacionadas à maternidade de referência.

Os resultados demonstraram que mulheres negras tiveram chances 35% menores de iniciar o pré-natal com 12 semanas ou menos, quando comparadas às mulheres brancas (OR = 0,65; IC95%: 0,49-0,87. Rho = 0,08). Com relação à realização do teste HIV durante o pré-natal, mulheres negras registraram 49% de redução de chance de fazer a testagem para o vírus durante a gestação, se comparadas às gestantes de raça/cor branca (OR = 0,51; IC95% 0,26-1,03. Rho = 0,41). Quanto à realização do teste para sífilis (VDRL), ser negra se constituiu como fator dificultador para o exame (OR = 0,68; IC95%: 0,49-0,94. Rho = 0,32).

No quesito exame das mamas em todas as consultas, obteve-se uma baixa prevalência de concretização tanto para negras como para brancas, representando percentagens de 34,4% e 41,3%, respectivamente. No entanto, quando comparadas as chances de realizar essa anamnese segundo a raça/cor, as mulheres negras tiveram 28% de redução de chance de satisfazer a esse indicador (OR = 0,72; IC75%: 0,57-0,90. Rho = 0,13).

Em todos os indicadores relacionados ao recebimento de orientações dadas no pré-natal com relação à gestação, trabalho de parto e parto, houve menor prevalência para o grupo das mulheres negras quando comparadas às brancas. Quanto à orientação relacionada às características e aos alertas do trabalho de parto, mulheres negras obtiveram chances 23% menores de terem acesso a essas informações (OR = 0,77; IC: 0,61-0,97. Rho = 0,03). No quesito orientação sobre os sinais de risco que indicam emergência obstétrica, as negras registraram uma chance ainda menor de obtê-la, 22% (OR = 0,78; IC: 0,61-0,99. Rho = 0,01). Com relação à orientação sobre aleitamento materno, os resultados apontaram que gestantes negras tiveram chances 33% menores de serem orientadas sobre o assunto (OR = 0,67; IC: 0,50-0,91. Rho = 0,17).

Dados referentes à orientação da gestante acerca da maternidade de referência apontam que existe associação entre a raça/cor e esse indicador de adequação pré-natal, sendo que, neste estudo, o fato de ser negra reduziu em 55% a chance de obter esse tipo de orientação (0,56; IC: 0,43-0,73. Rho = 0,16).

Os resultados do estudo não mostraram diferenças estatisticamente significantes entre os grupos de mulheres brancas e negras para a mensuração da altura da mulher na primeira consulta pré-natal, realização de exame de sangue durante o acompanhamento, solicitação de teste para o HIV, solicitação de exame de urina para a gestante, mensuração da pressão arterial, peso e altura uterina em todas as consultas, aconselhamentos sobre não faltar às consultas, manter uma alimentação balanceada e saudável, não fumar, não beber e não usar tinta capilar.

Discussão

O presente estudo aponta que mulheres brasileiras autodeclaradas negras tiveram menor chance de receber um cuidado adequado no pré-natal quando verificados os indicadores de uma assistência considerada adequada de acordo com o PHPN e o Manual Técnico de Atenção ao Pré-Natal de Baixo Risco. A literatura demonstra que tanto para populações específicas por regiões quanto para a população geral no Brasil a cor da pele tem atuado como marcador de iniquidades no acesso aos serviços de saúde1414 Fonseca SC, Kale PL, Silva KS. Pré-natal em mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde em duas maternidades no estado do Rio de Janeiro, Brasil: a cor a importa? Rev Bras Saude Matern Infant 2015; 15(2):209-217.,1818 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):85-100.,1919 Silva FS. Mulheres negras e brancas: análise do acesso às consultas de pré-natal no Estado do Rio Grande do Sul, 2016. Porto Alegre: UFRGS; 2018..

Achados relacionados à adequação do pré-natal evidenciam que a raça/cor e os fatores sociodemográficos das mulheres guardam influência com a adequabilidade da assistência e as experiências discriminatórias, de forma que as configurações sociais fomentam processos de discriminação no acesso, na oferta e na qualidade da atenção à saúde1515 Theophilo RL, Rattner D, Pereira EL. Vulnerabilidade de mulheres negras na atenção ao pré-natal e ao parto no SUS: análise da pesquisa da Ouvidoria Ativa. Cien Saude Colet 2018; 23(11):3505-3516.

16 Santos LAV, Lara MO, Lima RCR, Rocha AF, Rocha EM, Glória JCR, Ribeiro GC. História gestacional e características da assistência pré-natal de puérperas adolescentes e adultas em uma maternidade do interior de Minas Gerais, Brasil. Cien Saude Colet 2018; 23(2):617-625.
-1717 Almeida S. O que é racismo estrutural? Letramento: Belo Horizonte: MG; 2018.,2121 Freitas MPS. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Diretoria de Pesquisas e Coordenação de Métodos e Qualidade. Pesquisa Nacional de Saúde Plano Amostral. Rio de Janeiro: IBGE; 2014..

Estudo de abordagem racial sobre a morbimortalidade e atenção peri e neonatal realizado no município do Rio de Janeiro entre 1999-2001 apontou, de maneira semelhante a este estudo, que existe uma persistente situação desfavorável das mulheres de pele preta e parda em relação às brancas, evidenciada por menores idades, piores rendas, baixa escolaridade, menor conjugalidade e maior paridade2424 Leal MC, Gama SGN, Cunha CB. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Rev Saude Publica 2005; 39(1):100-107..

Outras pesquisas mais recentes ratificam esses achados ao evidenciarem a relação da raça/cor negra com baixa renda, ocupações menos remuneradas e pouca escolaridade no contexto do acesso e da qualidade da assistência à saúde99 Mario DN, Rigo L, Boclin KLS, Malvestio LMM, Anziliero D, Horta BL, Wehrmeister FC, Martínez-Mesa J. Qualidade do pré-natal no Brasil: Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2019; 24(3):1223-1232.,1818 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):85-100., fortalecendo a discussão sobre o processo histórico de desigualdades entre os grupos sociais no Brasil, que gera prejuízos no acesso à renda e aos direitos fundamentais, como educação, saúde, ha bitação, informação, previdência social, bens culturais e serviços.

Os antecedentes obstétricos das mulheres e sua associação com a utilização do pré-natal adequado é um tema amplamente discutido nas literaturas nacional e internacional, sendo consenso entre a maioria dos estudos que a paridade é inversamente proporcional às chances de realização de um pré-natal dentro dos padrões de qualidade pré-estabelecidos1010 Prudêncio PS, Mamede FV. Avaliação do cuidado pré-natal na atenção primária a saúde na percepção da gestante. Rev Gaucha Enferm 2018; 39:e20180077.,2525 Gonçalves MF, Teixeira EMB, Silva MAS, Corsi NM, Ferrari RAP, Pelloso SM, Cardelli AAM. Pré-natal: preparo para o parto na atenção primária à saúde no sul do Brasil. Rev Gaucha Enferm 2017; 38(3):e2016-0063..

A associação da raça/cor com o tipo de serviço utilizado identificada neste estudo também é evidenciada em outras investigações que revelam ser a mulher negra aquela que mais busca o serviço público de saúde e também a que mais sofre com as iniquidades relacionadas à operacionalização dos serviços na rede de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS), devido à sobreposição de vulnerabilidades. A esse respeito, estudo em nível nacional afirmou que indivíduos sem cobertura privada e com menor nível socioeconômico apresentam menor probabilidade de utilização dos serviços de saúde e menor número médio de consultas, evidenciando barreiras de acesso relacionas a esse perfil2626 Mallmann MB, Boing AF, Tomasi YT, Anjos JC, Boing AC. Evolução das desigualdades socioeconômicas na realização de consultas de pré-natal entre parturientes brasileiras: análise do período 2000-2015. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(4):e2018022..

Ao investigar especificamente os indicadores de adequação do pré-natal, verificou-se que mulheres negras têm menores chances de iniciar o acompanhamento antes das 12 semanas e de realizar o mínimo de seis consultas, conforme preconizado pelo PHPN e pelo Manual Técnico de Atenção ao Pré-Natal de Baixo Risco. De maneira semelhante, estudo nacional com puérperas destacou que as mulheres negras investigadas apresentaram baixa proporção de início precoce do pré-natal e de número de consultas1818 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):85-100..

Em outra pesquisa de tendência temporal realizada em Niterói, verificou-se que o percentual de mulheres com sete ou mais consultas manteve a constância de 81% entre os anos de 2000 e 2009, média próxima aos achados do nosso estudo (80,7%), apresentando diferenças de percentual de acordo com idade, escolaridade e raça/cor da pele1212 Fonseca SC, Monteiro DAS, Pereira CMSC, Scoralick ACD, Jorge MG, Rozario S. Desigualdades no pré-natal em cidade do Sudeste do Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(7):1991-1998..

Com relação ao número de consultas durante o acompanhamento pré-natal, a correlação intraclasse investigada neste estudo apontou ainda que a diferença na prevalência constatada entre negras e brancas ocorre de forma homogênea no Brasil, ou seja, não mantém relação direta com as características locais das áreas onde as mulheres residem, o que é reiterado por pesquisas que apontam o cenário desigual de acesso à saúde em todo o Brasil, destacando a raça/cor como marcador importante das experiências discriminatórias e iniquidades em saúde33 Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA; Theme-Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Adequa ção da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2015; 37(3):140-147.,2626 Mallmann MB, Boing AF, Tomasi YT, Anjos JC, Boing AC. Evolução das desigualdades socioeconômicas na realização de consultas de pré-natal entre parturientes brasileiras: análise do período 2000-2015. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(4):e2018022..

Não verificamos diferenças na solicitação de teste HIV para mulheres brancas e negras, no entanto elas se diferenciaram quanto à realização do exame, sendo que a desvantagem recaiu sobre o grupo das negras, demonstrando que mesmo quando não existe a dificuldade de acesso, mulheres negras enfrentam obstáculos durante o processo de assistência1414 Fonseca SC, Kale PL, Silva KS. Pré-natal em mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde em duas maternidades no estado do Rio de Janeiro, Brasil: a cor a importa? Rev Bras Saude Matern Infant 2015; 15(2):209-217.. A correlação intraclasse calculada converge com a literatura à medida que demonstra que solicitar ou não os exames possui característica heterogênea para as mulheres brasileiras, variando de acordo com a região e o contexto em que a mulher está inserida, bem como segundo as características e a localização dos serviços de saúde.

Embora grande parte dos estudos não apresente associação direta entre a realização de exames e a raça/cor das mulheres, as populações investigadas, em geral, são majoritariamente pardas e pretas e com perfil sociodemográfico semelhante, destacando-se as usuárias do SUS.

Estudos com essas características evidenciam as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que sofrem com as desigualdades e a baixa qualidade na assistência, como destacado por estudo realizado com usuárias do SUS no Acre, onde se identificou que entre os exames necessários para a primeira consulta, apenas 13,6% foram considerados adequados. Para o período entre 28-30 semanas de gestação, não houve nenhum caso de teste de laboratório adequado2727 Arruda RA, Pereira TM, Delfino BM, Mantovani SAS, Marques JO, Lima LFM, Silva-Nunes M. Realização e adequação do pré-natal em Assis Brasil, Acre. Scientia Naturalis 2020; 2(1):160-176..

Semelhante ao teste de sorologia para HIV, o exame de VDRL apresenta distribuição diferente de acordo com a raça/cor neste estudo. Pesquisa realizada com dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAM) e do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) em Niterói-RJ destaca incidência de sífilis elevada e crescente no município, embora este ocupe o sétimo lugar norankingde IDH no Brasil e conte com boa cobertura da atenção básica. Os autores do referido estudo reiteram a associação entre a ocorrência de sífilis e fatores sociais, econômicos, de infraestrutura, de acesso e qualidade da atenção nos serviços de saúde, alertando para o perigo do baixo percentual de diagnóstico e tratamento oportuno para gestantes e seus parceiros2828 Heringer ALS, Kawa H, Fonseca SC, Brignol SMS, Zarpellon LA, Reis AC. Desigualdades na tendência da sífilis congênita no município de Niterói, Brasil, 2007 a 2016. Rev Panam Salud Publica 2020; 44..

No que diz respeito à sífilis congênita, outros estudos têm apontado o perfil de vulnerabilidade das mulheres acometidas, destacando baixa escolaridade, raça/cor preta e parda, baixa renda e estado civil solteira2929 Domingues RMSM, Leal MC. Incidência de sífilis congênita e fatores associados à transmissão vertical da sífilis: dados do estudo Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2016; 32(6):e00082415.,3030 Reis GJ, Barcellos C, Pedroso MM, Xavier DR. Diferenciais intraurbanos da sífilis congênita: análise preditiva por bairros do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(9):e00105517.. Nossos achados corroboram esses estudos, que destacam a importância do pré-natal de qualidade na prevenção de desfechos desfavoráveis, ao apontar que mulheres com diagnóstico de sífilis, mas sem desfecho de sífilis congênita, apresentaram maior proporção de realização de sorologia para sífilis na gestação (um ou dois exames), e mulheres com desfecho de sífilis congênita apresentaram menor registro de sorologia reagente para sífilis no cartão de pré-natal, o que reitera as limitações assistenciais às quais mulheres negras estão submetidas e as repercussões para sua saúde, bem como para a saúde de suas famílias.

A realização dos procedimentos clínico-obstétricos durante todo o acompanhamento pré-natal é de extrema importância para garantir a qualidade da assistência. Com relação à mensuração de pressão arterial, peso da gestante, altura uterina e à ausculta dos batimentos cardiofetais em todas as consultas pré-natais, o estudo de Reis3131 Reis PAGD, Pereira CCA, Leite IC, Theme Filha MM. Fatores associados à adequação do cuidado pré-natal e à assistência ao parto em São Tomé e Príncipe, 2008-2009. Cad Saude Publica 2015; 31(9):1929-1940. aponta alta prevalência de realização, destacando aproximadamente 100% de execução em todas as consultas.

Nossos achados se coadunam com as investigações publicadas, no entanto apresentam prevalência um pouco menor, que varia de 82,5% a 91,9% entre os procedimentos citados. Vale ressaltar que, embora neste estudo não tenha havido diferenças estatísticas entre o grupo de negras e brancas para a realização dos procedimentos, a prevalência de brancas que receberam a assistência foi maior do que as de negras em todas as avaliações clínico-obstétricas.

Um dos exames clínico-obstétricos menos realizados durante o acompanhamento pré-natal tem sido o das mamas. Nossos achados corroboram esses resultados na medida em que apontam para a baixa prevalência desse procedimento para ambos os grupos estudados, sendo as negras as que experenciam as mais baixas percentagens referentes à realização desse exame. A literatura destaca percentuais de realização que variam de 17% a 64%, demonstrando vantagens para as mulheres atendidas no setor privado3232 Cesar JA, Mano OS, Carlotto K, Gonzalez-Chica DA, Mendoza-Sassi RA. Público versus privado: avaliando a assistência à gestação e ao parto no extremo sul do Brasil. Rev Bras Saude Matern Infant 2011; 11(3):257-263.

33 Cesar JA, Sutil AT, Santos GB, Cunha CF, Mendonza-Sassi RA. Assistência pré-natal nos serviços públicos e privados de saúde: estudo transversal de base populacional em Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(11):2106-2114.
-3434 Zanchi M, Gonçalves CV, Cesar JA, Dumith SA. Concordância entre informações do Cartão da Gestante e do recordatório materno entre puérperas de uma cidade brasileira de médio porte. Cad Saude Publica 2013; 29(5):1019-1028..

Quando investigadas as rotinas de orientações oferecidas nas consultas pré-natais, estudos revelam que a adequação é mais observada em mulheres de cor da pele branca, mais escolarizadas, de classe econômica mais elevada, com ocupação remunerada, atendidas em ser viços privados, que residem com com panheiro e primíparas33 Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA; Theme-Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Adequa ção da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2015; 37(3):140-147., o que corrobora nossos achados. Embora com uma tendência de crescimento, as orientações ainda são muito restritas e fragmentadas, com menos qualidade à medida que a escolaridade da mulher diminui1818 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):85-100..

Informações sobre sinais de risco obstétrico e aleitamento materno foram destacadas no estudo de Viellas et al.1818 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):85-100. com dados em nível nacional como temas abordados e registrados no cartão de acompanhamento da gestante, mas as práticas educativas são em percentual insatisfatório, com importante variação em diferentes regiões do país. As orientações sobre o trabalho de parto e as práticas benéficas durante esse período foram ainda mais restritas e apresentaram diferença de 30% para menos quando comparado aos valores percentuais encontrados em nosso estudo.

Maior diferença percentual entre os grupos quanto às orientações foram encontradas para as informações sobre a maternidade de referência, e muito embora tenha alcançado taxa superior à de outros estudos33 Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA; Theme-Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Adequa ção da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2015; 37(3):140-147.,66 Guimarães WSG, Parente RCP, Guimarães TLF, Garnelo L. Acesso e qualidade da atenção pré-natal na Estratégia Saúde da Família: infraestrutura, cuidado e gestão. Cad Saude Publica 2018; 34(5):e00110417., corrobora os achados que destacam a maior probabilidade de peregrinação durante o parto para mulheres negras e de baixo poder socioeconômico1818 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):85-100..

Considerações finais

Os resultados deste estudo apontam que ser negra e ocupar lugares sociais desfavoráveis acarretam desvantagens para as mulheres em relação ao acesso a um pré-natal considerado adequado. Nossos achados destacam que existe associação negativa estatisticamente significante entre a cor da pele e o início do pré-natal com 12 semanas ou menos, o número de consultas igual ou superior a seis, realização de testes de HIV e VDRL, exame das mamas em todas as consultas, orientações referentes ao trabalho de parto, sinais de risco indicativos de emergência obstétrica e aleitamento materno, além das orientações relacionadas à maternidade de referência, sendo que em todos os indicadores relacionados ao recebimento de orientações dadas no pré-natal há menor prevalência para o grupo das mulheres negras quando comparadas às brancas.

A potencial limitação do estudo diz respeito à utilização de dados secundários para o estabelecimento de indicadores de processo pré-estabelecidos pela PHPN e pelo Manual Técnico de Atenção ao Pré-Natal de Baixo Risco, podendo gerar ausência de algumas informações não colhidas durante a aplicação do questionário da Pesquisa Nacional de Saúde, de onde provém nosso banco de dados. Destacamos a necessidade de novos estudos que explorem informações referentes à repetição de exames laboratoriais na 30ª semana de gestação, consulta puerperal e aplicação de vacinas em gestantes.

Essas análises permitem traçar estratégias de intervenção com foco na redução das iniquidades de raça/cor no cuidado pré-natal na população usuária do SUS.

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  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
  • Publicado
    22 Maio 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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