Evitável? Entre a ciência, a saúde global e os desafios de um mundo incerto

Gustavo Corrêa Matta Sobre o autor

Preventable é a mais nova publicação da Professora Devi Sridhar da Universidade de Edimburgo na Escócia. Além de Professora e coordenadora de Saúde Pública Global (Global Public Health), Sridhar é também colunista de diversos jornais, entre eles o renomado The Guardian, consultora da BBC, e dos governos da Escócia, do Reino Unido e da Alemanha.

O livro foi cercado de expectativa. Editado pela gigante editora britânica Penguin, entrou em pré-venda desde o início de 2022 e seu lançamento ocorreu em abril do mesmo ano. Além da publicação, o livro ganhou uma versão audiobook narrado pela própria Devi Sridhar, disponível em diversas plataformas, antes mesmo do seu lançamento.

Além do interesse acadêmico, no que diz respeito as análises e narrativas construídas pela autora sobre a pandemia de COVID-19, esse livro desperta a atenção também por sua produção, disseminação, publicidade e consumo público. Para além de uma publicação que visa a divulgação científica, trata-se de um livro que apresenta não só a análise da maior crise sanitária e humanitária recente, em linguagem acessível, como também discute amplamente temas até então limitados a círculos científicos e jornalísticos especializados. Foi publicado a tempo de se juntar as inúmeras iniciativas de historicizar e analisar a epidemia que assombra o mundo desde 2020, porém com riqueza de detalhes técnicos e políticos narrados em suas mais de 420 páginas. Ou seja, um volume razoavelmente grande para uma publicação que pretende atingir um público amplo e influenciar políticas de saúde global.

Porém, qual a interpretação que a autora nos oferece sobre a crise decorrente da COVID-19 e suas propostas para evitar uma próxima pandemia?

Inicialmente é importante destacar que o livro é datado, ou seja, foi escrito ao longo dos dois primeiros anos da COVID-19 e destaca a identificação do vírus, sua origem controversa na China, sua expansão em diversos países e continentes, a resposta dos países, o desenvolvimento e produção das vacinas, entre outros. Pode-se dizer que a autora propõe uma análise interdisciplinar focada principalmente na análise política, econômica, epidemiológica, com contribuições da virologia, da comunicação e monitoramento das ações adotadas por diferentes chefes de Estado. O livro possui mais de 70 páginas de referências bibliográficas, compondo um robusto fundamento histórico, técnico e analítico que merecem ser seguidas na intenção de aprofundar as análises e ampliar as visões sobre o tema.

Sridhar concentra suas análises em alguns países “modelos” como Reino Unido, Estados Unidos, China, África do Sul, Suécia, Nova Zelândia e Austrália, entre outros com menor atenção e profundidade.

Podemos aqui distinguir dois momentos e três estratégias-tipo que servem como categorias de análise para os diferentes argumentos desenvolvidos e que organizam a estrutura do livro. O primeiro momento se caracteriza pelas escolhas estratégicas para responder à COVID-19 na ausência das vacinas, e no segundo momento as estratégias político-sanitárias após o desenvolvimento e produção das vacinas. Na ausência de imunobiológicos disponíveis para conter a COVID-19, as estratégias não-farmacológicas adotadas foram classificadas em três: a) Mitigação - a transmissão do vírus pela população até atingir a chamada imunidade de rebanho; b) Supressão - manter o número de casos muito baixo através de medidas de controle prolongadas com ciclos de “lockdown”; c) Eliminação - parar a transmissão comunitária nas fronteiras dos países e regiões, e depois estabelecer estratégias para que o vírus não seja reintroduzido.

Apesar da metodologia e classificação adotada pela autora não serem originais, tem a virtude de criticar duramente as ações negacionistas e as omissões de líderes de países como EUA, Reino Unido e Brasil, identificadas como irresponsáveis, e que colocaram em risco não apenas suas populações, mas também o mundo inteiro, produzindo mortes evitáveis e o incremento do surgimento de novas variantes do SARS-Cov-2. Além disso a dificuldade no acesso às vacinas, denunciou o nacionalismo e os dispositivos de securitização dos países do chamado Norte Global. Este último, expondo a ausência de solidariedade, cooperação e alinhamento entre as nações.

Este nos parece o grande argumento da autora para uma governança global das emergências e reemergências em saúde pública e sua capacidade de influenciar respostas locais efetivas e baseadas em evidências científicas. Apesar de criticar claramente a demora da OMS em responder à ameaça do vírus que se multiplicava na China e a falha em coordenar satisfatoriamente o esforço global numa resposta ampla e equitativa à COVID-19, Sridhar apresenta mais questões do que respostas: “Os países aprenderão com os erros e irão reconstruir a sociedade de forma mais resiliente e equitativa? Os governos irão cooperar para fazer as coisas serem melhores, ou o oposto, se tornarão mais egoístas?”(p.320).

Podemos perguntar à autora, que não se deteve nesses “pormenores” sociopolíticos: o que são países e governos? Qual a dinâmica histórica interna e externa que determinam ou influenciam suas posições e ações? O que a predominância do neoliberalismo, conservadorismo e populismo tem a ver com as (im)posturas que assistimos durante a pandemia? São perguntas que o livro não se propõe a responder e nem problematizar. Uma grande ausência quando se pretende analisar a dinâmica global da saúde e suas relações com o multilateralismo e a diplomacia da saúde.

Neste sentido a autora não consegue cumprir o que prometeu ainda no título de seu livro: Como parar a próxima pandemia? Podemos refletir, com outros críticos, que seria impossível prevenir a COVID-19 devido a sua eficiente transmissão respiratória, apesar de podermos ter agido nacional e globalmente para evitar muitas das mortes ocorridas11 Anthony A. Preventable by Devi Sridhar review - inside the fog of war on Covid [Internet]. The Guardian; 2022 [cited 2022 jun 8]. Available from: https://www.theguardian.com/books/2022/may/08/preventable-by-devi-sridhar-review-inside-the-fog-of-war-on-covid.
https://www.theguardian.com/books/2022/m...
. Aliás, a autora, que por um lado parece desconhecer a trajetória histórica da nossa vigilância em saúde, aponta o Brasil, ao lado de Índia e África do Sul, como países com vigilância e monitoramento de casos inexistentes. Triste constatação para o recente desmonte da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde brasileira que dependeu dos estados e municípios para reunir e consolidar os dados disponíveis e guiar esse imenso país chamado Brasil.

Por outro lado, a ausência de crítica geopolítica, de uma perspectiva decolonial e das gravíssimas repercussões sociais, econômicas e culturais entre populações negligenciadas, faz a retórica da governança global soar no mínimo ingênua e, no limite, mais uma agenda colonial de adequação do Sul Global às diretrizes hegemônicas fundadas no cientificismo universalista.

Ou seja, a ausência da contribuição crítica das Ciências Humanas e Sociais, em especial, aquelas derivadas da trajetória da Saúde Coletiva brasileira, reproduz o naturalismo e o reducionismo presentes no modelo acrítico da vigilância epidemiológica e da biomedicina, tornando global e normalizador aquilo que se caracteriza por ser particular e diverso.

A COVID-19 não se limita a sua representação numérica e epidemiológica a ser acompanhada e avaliada pelas estratégias dos países a partir de sua performance em termos de infectados, hospitalizados, óbitos e vacinados. Apesar de sua importância nas ações de vigilância e planejamento, entendemos que países, populações, grupos e indivíduos foram afetados diferentemente pela pandemia22 Carrara S. As ciências humanas e sociais entre múltiplas epidemias. Physis 2020; 30(2):e300201.,33 Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021.. Além da dimensão humanitária da crise gerada pela COVID-19, há também a dimensão da estrutura, resposta e alcance dos sistemas de saúde; da produção, acesso e disponibilidade de equipamentos, biofármacos e serviços; do cuidado e valorização dos profissionais de saúde; das relações de gênero, trabalho, raça e etnia; da saúde mental, entre outros, que fizeram da pandemia um significante plural, múltiplo e polissêmico.

Sridhar parece estar atenta a isso, porém sua preocupação em como influir na governança da Saúde Global impõe uma transterritorialidade das políticas e sistemas de saúde e da proteção social44 Matta GC, Moreno AB. Saúde global: uma análise sobre as relações entre os processos de globalização e o uso dos indicadores de saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(48):9-22.. Essa perspectiva estabelece uma linha abissal constituída pela produção de discursos e práticas fundados no forte poder econômico e político dominantes na arena global, invisibilizando populações, saberes, práticas e contextos do chamado Sul Global55 Boaventura SS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almeidina; 2009..

O livro apresenta inequivocamente uma constatação: Saúde Pública é política. O enunciado nos remete à máxima do movimento da reforma sanitária brasileira na qual Saúde é Democracia. Devemos, pois, identificar os segmentos silenciados e excluídos da arena colonial da Saúde Global. Entre eles o próprio campo da saúde global que ainda insiste, em sua versão hegemônica, em despolitizar a ciência, sua relação com as sociedades e outros saberes, culturas, ambientes e, principalmente, os vírus. Sim, os vírus que agenciam suas relações com animais, humanos e com a ambiente de forma coordenada, solidária e competente. Temos muito que aprender com a política dos vírus.

Referências

  • 1
    Anthony A. Preventable by Devi Sridhar review - inside the fog of war on Covid [Internet]. The Guardian; 2022 [cited 2022 jun 8]. Available from: https://www.theguardian.com/books/2022/may/08/preventable-by-devi-sridhar-review-inside-the-fog-of-war-on-covid
    » https://www.theguardian.com/books/2022/may/08/preventable-by-devi-sridhar-review-inside-the-fog-of-war-on-covid
  • 2
    Carrara S. As ciências humanas e sociais entre múltiplas epidemias. Physis 2020; 30(2):e300201.
  • 3
    Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021.
  • 4
    Matta GC, Moreno AB. Saúde global: uma análise sobre as relações entre os processos de globalização e o uso dos indicadores de saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(48):9-22.
  • 5
    Boaventura SS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almeidina; 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan 2023
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