Prezados(as) editores(as), ao ler o artigo intitulado “Sobre o viver em uma cidade capacitista: antes, durante e depois da pandemia da COVID-19”11 Amorim AC, Gertner SRCB, Costa LS, Feminella AP. Sobre o viver em uma cidade capacitista: antes, durante e depois da pandemia da COVID-19. Cien Saude Colet 2022; 27(1):49-56. fui provocado pelos autores a responder a questão presente no texto “Que alternativa se oferece que não a da militância?”.
Escrevo esta carta com intenção de corroborar com o ensaio e acrescentar reflexões potenciais que podem transformar os modos de desenvolvimento das políticas públicas. Para isso abordarei dois aspectos: a cortesia da deficiência e o poder do associativismo feminino.
A desestruturação do capacitismo estrutural se inicia pela análise dos conceitos dominantes das políticas públicas do Brasil, as quais adotam o conceito de deficiência biomédica, enquanto o associativismo das pessoas com deficiência defendem a noção de deficiência social pensada por Diniz22 Diniz D. O que é deficiência. São Paulo: Hedra Ltda; 2012.. O conceito de deficiência biomédica desconsidera a relação simbiótica da pessoa com deficiência e sua cuidadora principal, na maioria das vezes mulheres, mães ou companheiras, imputadas socialmente pela tarefa de cuidar integralmente.
O fato é que as políticas públicas no Brasil abordam com restrições a cortesia da deficiência (em referência ao estigma de cortesia de Goffman33 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1988.), exemplifico ao citar as mães de crianças com Síndrome Congênita do vírus Zika (SCZ) que convivem com comentários preconceituosos que seriam evocados para a criança, mas o fazem com justificativa nos comportamentos maternos “desviantes”44 Alano D, Pereira J. Maternidade como missão! A trajetória militante de uma mãe de bebê com microcefalia em PE. Cad Gen Div 2017; 3(2):113-133.. Em síntese, os rótulos da sociedade corponormativa incluem as cuidadoras principais como extensão do corpo com lesão22 Diniz D. O que é deficiência. São Paulo: Hedra Ltda; 2012., ou seja, à elas interagem as repercussões do capacitismo.
Advogo portanto, que políticas públicas não capacitistas devem incluir as cuidadoras principais em eixos de atenção à saúde e de assistência social, com vistas a prevenir adoecimentos e assegurar direitos fundamentais. Neste sentido, as ações das próprias mulheres-mães-cuidadoras principais podem ser as instituintes da desestruturação do capacitismo estrutural. O poder do associativismo feminino reúne potencialidades para transformar o capacitismo estrutural, justificado pelo longo tempo de enfrentamentos na sociedade heteronormativa, domínio da noção de direito à saúde e capacidade de liderança das associações em defesa do bem-estar da criança e família44 Alano D, Pereira J. Maternidade como missão! A trajetória militante de uma mãe de bebê com microcefalia em PE. Cad Gen Div 2017; 3(2):113-133..
O associativismo das mães de crianças com SCZ evitou a perda completa da sociabilidade da criança durante a pandemia da COVID-19, elas intensificaram a troca de experiências mediadas por redes sociais, alcançando mães de todas as regiões do Brasil. Por isso, a exploração de recursos virtuais como estratégia de superação das barreiras capacitistas pode ser um legado construído durante a pandemia e tende a permanecer.
Ao mesmo tempo, as mães deslegitimam planos terapêuticos emitidos por profissionais de saúde que agem com violência epistemológica sobre o seu conhecimento44 Alano D, Pereira J. Maternidade como missão! A trajetória militante de uma mãe de bebê com microcefalia em PE. Cad Gen Div 2017; 3(2):113-133.. De modo semelhante, percebo algumas rejeições do campo empírico para projetos de pesquisas que pretendem observar ou intervir em grupos associativistas, sem a participação efetiva dos seus membros desde a concepção da pesquisa, o que sustenta o lema atual amplamente utilizado “nada de nós sem nós”.
Reitero a relevância do artigo11 Amorim AC, Gertner SRCB, Costa LS, Feminella AP. Sobre o viver em uma cidade capacitista: antes, durante e depois da pandemia da COVID-19. Cien Saude Colet 2022; 27(1):49-56., corroboro que a desestruturação do capacitismo urge e a insurgência coletiva é a principal alternativa, por isso contribuo afirmando que as mulheres-mães-cuidadoras principais e o poder do associativismo feminino potencializarão esse processo.
Referências
- 1Amorim AC, Gertner SRCB, Costa LS, Feminella AP. Sobre o viver em uma cidade capacitista: antes, durante e depois da pandemia da COVID-19. Cien Saude Colet 2022; 27(1):49-56.
- 2Diniz D. O que é deficiência. São Paulo: Hedra Ltda; 2012.
- 3Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1988.
- 4Alano D, Pereira J. Maternidade como missão! A trajetória militante de uma mãe de bebê com microcefalia em PE. Cad Gen Div 2017; 3(2):113-133.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 - Data do Fascículo
Jan 2023