Resumo
Realizamos uma análise genealógica da Prevenção Quaternária, instrumento da Atenção Primária à Saúde de enfrentamento à medicalização e a iatrogenia, a partir de seus enunciados e de entrevistas com seus formuladores. Identificamos que a ferramenta tem sido tanto apresentada como uma reformulação do cuidado e da relação médico-paciente, como também reduzida ao cálculo do risco-benefício por meio da aplicação atualizada de evidências científicas. Analisamos os paradoxos da Medicina Baseada em Evidências e problematizamos sua relação com a Prevenção Quaternária e a Atenção Primária à Saúde. Por fim, sugerimos questionar a verdade das evidências para o desenvolvimento de outros paradigmas de saúde.
Palavras-chave:
Prevenção Quaternária; Medicina Baseada em Evidências; Risco; Atenção Primária à Saúde; Medicina de Família e Comunidade
Introdução
A Prevenção Quaternária (P4) é uma ferramenta da Atenção Primária à Saúde (APS) de enfrentamento à medicalização excessiva e intervenções iatrogênicas11 Jamoulle M. Quaternary prevention: first, do not harm. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015; 10(35):1-3.
2 Jamoulle M. Prevenção quaternária: a propósito de um desenho. Rev Port Med Geral Familiar 2012; 28(6):398-399.-33 Jamoulle M, Gusso G. Prevenção Quaternária: primeiro não causar dano. In: Gusso G, Lopes JMC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: 2 Volumes. 1ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 205-211.. Sua concepção tem sido debatida pela literatura internacional44 Martins C, Godycki-Cwirko M, Heleno B, Brodersen J. Quaternary prevention: reviewing the concept: Quaternary prevention aims to protect patients from medical harm. Eur J General Pract 2018; 24(1):106-111.
5 Brodersen J, Schwartz LM, Woloshin S. Overdiagnosis: How cancer screening can turn indolent pathology into illness. APMIS 2014; 122(8):683-689.-66 Starfield B, Hyde J, Gérvas J, Heath I. The concept of prevention: a good idea gone astray? J Epidemiol Comm Health 2008; 62(7):580-583., com relevante inserção de pesquisadores brasileiros neste debate77 Norman AH, Tesser CD. Quaternary prevention: a balanced approach to demedicalisation. Br J Gen Pract 2019; 69(678):28-29.
8 Tesser CD, Norman AH. Prevenção quaternária e medicalização: conceitos inseparáveis. Interface (Botucatu) 2021; 25:e210101.
9 Norman AH, Tesser CD. Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2009; 25(9):2012-2020.
10 Tesser CD, Norman AH. Geoffrey Rose e o princípio da precaução: para construir a prevenção quaternária na prevenção. Interface (Botucatu) 2019; 23:e180435.-1111 Norman AH, Tesser CD. Medicina de família e prevenção quaternária: uma longa história. Rev Bras Med Fam Comunidade 2021; 16(43):2502., tanto como uma “ação de identificar pacientes em risco de sobremedicalização, para proteger evitar uma nova invasão médica e sugerir-lhe intervenções que sejam eticamente aceitáveis”88 Tesser CD, Norman AH. Prevenção quaternária e medicalização: conceitos inseparáveis. Interface (Botucatu) 2021; 25:e210101., quanto como “ação tomada para proteger indivíduos de intervenções médicas que provavelmente causarão mais danos do que benefícios”44 Martins C, Godycki-Cwirko M, Heleno B, Brodersen J. Quaternary prevention: reviewing the concept: Quaternary prevention aims to protect patients from medical harm. Eur J General Pract 2018; 24(1):106-111.. No Brasil, é trazida à tona com especial ênfase pelo campo científico-institucional da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade1212 Silva AL, Mangin D, Pizzanelli M, Jamoulle M, Wagner HL, Silva DHS, Lima RLB, Batista SR, Soares JO, Rochadel AD, Cardoso RV, Castro Filho ED, Duro LN, Teixeira T, Sans GR, Reis Júnior W. Manifesto de Curitiba: pela Prevenção Quaternária e por uma Medicina sem conflitos de interesse. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9(33):371-374..
No presente artigo, apresentamos resultados de uma análise genealógica da P4, com o objetivo de contribuir para a qualificação do debate em torno da ferramenta e da qualificação do cuidado na APS. Descrevemos sua formulação e diferentes debates e perspectivas contemporâneas na literatura nacional e internacional, reconhecendo uma pluralidade de sentidos e usos do conceito. Discutimos aspectos e paradoxos da Medicina Baseada em Evidências (MBE) e, por fim, apontamos questões para uma reformulação do cuidado e da relação médico-paciente na APS.
Percurso metodológico
Realizamos uma análise genealógica de enunciados ligados ao debate da Prevenção Quaternária. Além da seleção de documentos técnicos, artigos científicos e livros acadêmicos que definem e contextualizam o conceito, utilizamos duas entrevistas realizadas em torno do conceito, com Marc Jamoulle, médico de família belga e apontado como formulador do conceito e Miguel Pizzanelli, médico de família no Uruguai e membro do comitê de Prevenção Quaternária da Organização Mundial de Médicos de Família (Wonca - World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNICAMP.
Entendemos a genealogia1313 Dean M. Critical and effective histories: Foucault's methods and historical sociology. London; New York: Routledge; 1994.,1414 Saukko P. Doing Research in Cultural Studies [Internet]. London: SAGE Publications Ltd; 2003 [cited 2020 ago 17]. Available from: http://methods.sagepub.com/book/doing-research-in-cultural-studies.
http://methods.sagepub.com/book/doing-re... como um procedimento específico de análise de determinados enunciados que busca desnaturalizar os regimes de poder e de verdade que circulam nas práticas sociais e exibir suas grades de inteligibilidade. Ao invés de tomar como dados, objetos vistos como naturais e necessários na realidade, observa como determinados enunciados e dispositivos tornam-se racionalizáveis e operáveis através de suas próprias normas e como os discursos considerados verdadeiros não devem ser considerados universais e atemporais, mas produtos de contextos históricos específicos. Não tem como objetivo compreender o fenômeno como um simples desdobramento de suas origens nem a necessária realização de seus fins, mas desdobrá-lo para identificar suas trajetórias heterogêneas de discursos, práticas, eventos e conexões internas, sem recorrer a regimes de verdade como leis naturais ou necessidades globais.
Tal postura metodológica tenta problematizar conceitos tomados geralmente como dados e questionar ramos descontínuos que constituem fenômenos familiares e utilizados de forma corriqueira por nós - quando falamos, por exemplo, sobre “a prevenção”, “o risco”, “a evidência científica”. Investiga como determinadas autoridades foram autorizadas a falar deles; como foram classificados, treinados, legislados, teorizados e em torno de quais princípios, metas e objetivos são formatados seus programas de governo.
Nesse sentido, lidamos aqui com os conceitos não a partir de debates canônicos e normativos, mas tomando como ponto de partida sua própria operabilidade, suas possibilidades de uso para a resolução de situações contingentes. Uma análise genealógica não avalia a validade ou necessidade da P4, ou tenta modificar sua definição ou terminologia, mas procura outras formas de pensar e de agir no campo da saúde a partir de brechas e possibilidades da sua própria formulação e desenvolvimento.
Definições da Prevenção Quaternária
“Prevenção Quaternária” é um termo proposto originalmente pelo médico belga Marc Jamoulle em 19861515 Jamoulle M. Information et informatisation en médecine générale. Troisiemes Journees De Reflexion Sur L'informatique 1986; 193-209. e descrita pelo dicionário da Wonca em 1999 como uma “ação tomada para identificar um paciente sob risco de medicalização excessiva, para protegê-lo de novas invasões médicas, e para sugerir intervenções eticamente aceitáveis”, para responder de forma objetiva à excessiva intervenção e medicalização na prática clínica, tanto nas práticas diagnósticas quanto terapêuticas11 Jamoulle M. Quaternary prevention: first, do not harm. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015; 10(35):1-3.,22 Jamoulle M. Prevenção quaternária: a propósito de um desenho. Rev Port Med Geral Familiar 2012; 28(6):398-399..
Jamoulle afirma que a ideia do termo surgiu em uma aula de epidemiologia, na qual eram analisadas a ocorrência de duas situações estarem ou não presentes. Neste diagrama adaptado, a avaliação do médico em relação à presença ou não da doença precisa ser correlacionada com a do paciente e haveria quatro situações possíveis: 1) paciente sente-se mal e médico avalia que está realmente doente; 2) paciente sente-se bem, mas médico avalia que na verdade está doente; 3) paciente sente-se bem e o médico conclui que não está doente; e 4) paciente sente-se mal, mas médico avalia que não há doença.
A prevenção quaternária seria útil na quarta hipótese: prevenir “quaternariamente” seria justamente não intervir em uma situação em que não há doença ou necessidade de ação médica específica, a fim de evitar um risco desnecessário e potencialmente iatrogênico. Há uma alusão recorrente nos textos sobre o conceito ao princípio hipocrático de “Primeiro não prejudicar ou fazer mal” (primum non nocere), isto é, de evitar intervenções desnecessárias potencialmente iatrogênicas para os pacientes11 Jamoulle M. Quaternary prevention: first, do not harm. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015; 10(35):1-3.,33 Jamoulle M, Gusso G. Prevenção Quaternária: primeiro não causar dano. In: Gusso G, Lopes JMC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: 2 Volumes. 1ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 205-211.,1212 Silva AL, Mangin D, Pizzanelli M, Jamoulle M, Wagner HL, Silva DHS, Lima RLB, Batista SR, Soares JO, Rochadel AD, Cardoso RV, Castro Filho ED, Duro LN, Teixeira T, Sans GR, Reis Júnior W. Manifesto de Curitiba: pela Prevenção Quaternária e por uma Medicina sem conflitos de interesse. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9(33):371-374..
De forma geral, a ideia de prevenção liga-se a evitar antecipadamente um dano futuro para possibilitar a modificação temporal de determinados eventos. Sob o referencial da história natural da doença, prevenir significa utilizar o conhecimento epidemiológico para controlar e diminuir a incidência de enfermidades e agravos específicos1616 Czeresnia D. The concept of health and the difference between prevention and promotion. Cad Saude Publica 1999; 15(4):701-709.. O debate da hierarquização sobre níveis de prevenção foi feito originalmente na década de 1950 pelos epidemiologistas norte-americanos Hugh Leavell e Edwin Clark1717 Leavell H, Clark EG. Medicina Preventiva. São Paulo: McGraw-Hill; 1976.. A prevenção primária atuaria em orientações específicas para evitar o desenvolvimento de doenças; a secundária em identificar e intervir sobre estágios iniciais e assintomáticos de uma doença; e a terciária em promover ações de reabilitação sobre doenças que já se manifestaram.
No Tratado Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, Jamoulle e Gusso33 Jamoulle M, Gusso G. Prevenção Quaternária: primeiro não causar dano. In: Gusso G, Lopes JMC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: 2 Volumes. 1ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 205-211. fazem menção à obra de Leavell e Clark e apontam um uso prévio do “nível quaternário de prevenção”, distinto da P4, para designar “cuidados paliativos”, mas destacam que essa definição restringiria a prática preventiva à cronologia do processo saúde-doença. Esta formulação inédita de uma P4 reorganiza visualmente os níveis clássicos de prevenção de Leavell e Clarke - originalmente restritos à evolução da doença ao longo do tempo - e propõe “uma nova perspectiva relacional para a prevenção”88 Tesser CD, Norman AH. Prevenção quaternária e medicalização: conceitos inseparáveis. Interface (Botucatu) 2021; 25:e210101..
A P4 também pode ser vista à luz de reflexões do epidemiologista Geoffrey Rose1010 Tesser CD, Norman AH. Geoffrey Rose e o princípio da precaução: para construir a prevenção quaternária na prevenção. Interface (Botucatu) 2019; 23:e180435.,1818 Rose G. Strategies of prevention: the individual and the population. In: Marmot M, Elliott P, organizadores. Coronary Heart Disease Epidemiology. Oxford: Oxford University Press; 2005. em torno das medidas de prevenção. Separa estratégia de medidas entre redutivas, para toda a população, como a diminuição de uso de tabaco, gorduras saturadas e sal, agrotóxicos, e aditivas, como uso de medicamentos, vacinas e medidas de rastreamento e intervenção especializada. Ao contrário de medidas redutivas que incidem de forma global sobre determinantes sociais do processo saúde-doença, medidas aditivas podem representar ações iatrogênicas - questão central para a P4 - sem benefício populacional significativo.
Recente estudo bibliométrico1919 Depallens MA, Guimarães JMM, Almeida Filho N. Quaternary prevention: a concept relevant to public health? A bibliometric and descriptive content analysis. Cad Saude Publica 2020; 36:e00231819. sobre o termo “prevenção quaternária” com o objetivo de avaliar sua relevância internacional no campo da Saúde Pública encontrou apenas 124 registros sobre prevenção quaternária nos principais bancos de dados da área da saúde. Os autores avaliam como uma quantidade relativamente pequena quando comparada ao termo “sobremedicalização” (medical overuse), que retornou 100 vezes mais resultados do que “prevenção quaternária” na base de dados PubMed.
Jamoulle aborda essa diferenciação na entrevista apontando que enquanto os epidemiologistas clínicos “desenvolveram o conceito de sobremedicalização” e os médicos de famílias “desenvolveram o conceito de prevenção quaternária seguindo [...] a medicina centrada no paciente”. Conclui afirmando que “a gente fala do ser humano e o epidemiologista clínico fala do processo. Parece igual, mas não é a mesma coisa”.
Quando perguntado sobre esta distinção, Miguel Pizzanelli também valoriza o deslocamento da P4 de um instrumento que mensura riscos a partir de evidências científicas em direção a uma nova racionalidade de encontro entre médico-paciente. Afirma que o grupo que coordena na Wonca tem buscado reformular o conceito a partir de 3 pilares: um “paradigmático”, referente à crise do modelo biomédico hegemônico e a necessidade de produção de novos paradigmas; um “ético”, que sumiu da definição original na sua aplicação contemporânea; e um “cultural”, uma vez que o conceito não deveria ser exclusivamente médico ou relacionado a profissionais de saúde, mas ao debate da medicalização e às formas de sociabilidade como um todo. Por fim, destaca o desejo de renomear o próprio nome do grupo de trabalho, tentando aproximá-lo de uma noção mais ampla ligada a “novos paradigmas para a medicina de família”.
Essa distinção é repetida em diferentes artigos e textos acerca da P433 Jamoulle M, Gusso G. Prevenção Quaternária: primeiro não causar dano. In: Gusso G, Lopes JMC, organizadores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: 2 Volumes. 1ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 205-211.,88 Tesser CD, Norman AH. Prevenção quaternária e medicalização: conceitos inseparáveis. Interface (Botucatu) 2021; 25:e210101.,2020 Jamoulle M. Quaternary prevention, an answer of family doctors to overmedicalization. Int J Health Policy Manag 2015; 4(2):61-64.,2121 Tesser CD. Cuidado clínico e sobremedicalização na Atenção Primária à Saúde. Trab Educ Saude 2019; 17(2):e0020537., ressaltando que sua originalidade passa por ocupar um lugar de intersecção entre a saúde pública e a individual; em uma mudança do paradigma hegemônico centrado na doença para uma organização baseada no relacionamento entre médico-paciente que abriria uma nova visão no trabalho do médico; e que a formulação e execução do conceito envolveria um “desenvolvimento extraordinário da ‘arte de curar’, calcada na relação médico-paciente, em sabedoria prática e em contextualização existencial, que o aperfeiçoamento da prática do cuidado permite desenvolver”99 Norman AH, Tesser CD. Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2009; 25(9):2012-2020..
Em outra perspectiva, Martins et al.44 Martins C, Godycki-Cwirko M, Heleno B, Brodersen J. Quaternary prevention: reviewing the concept: Quaternary prevention aims to protect patients from medical harm. Eur J General Pract 2018; 24(1):106-111. sugerem a exclusão da categoria “medicalização” do conceito, buscando definir a prática da P4 como “ações tomadas para proteger os indivíduos (pessoas/pacientes) de intervenções médicas que são susceptíveis de causar mais danos do que benefícios”. A suspensão dos termos “medicalização” e “sobremedicalização” em nome da linguagem do dano-benefício, potencialmente calculável a partir da Medicina Baseada em Evidências, visa aproximar a Prevenção Quaternária a decisões clínicas cientificamente fundamentadas do ponto de vista estatístico em torno de exames de rastreamento, procedimentos de rotina, realização de check-ups e introdução de medicações consideradas ineficazes.
Reforçando esta concepção, um artigo da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade publicado em formato de manifesto1212 Silva AL, Mangin D, Pizzanelli M, Jamoulle M, Wagner HL, Silva DHS, Lima RLB, Batista SR, Soares JO, Rochadel AD, Cardoso RV, Castro Filho ED, Duro LN, Teixeira T, Sans GR, Reis Júnior W. Manifesto de Curitiba: pela Prevenção Quaternária e por uma Medicina sem conflitos de interesse. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9(33):371-374. em defesa da P4 e de uma medicina “sem conflito de interesses” defende “o melhor para o paciente” a partir da busca sempre pelas “melhores e mais adequadas evidências científicas livres de conflitos de interesses para promover a saúde das doenças, com o mínimo de intervenções possíveis”. Para o manifesto, médicos devem “empoderar a população com as informações mais confiáveis possíveis para a tomada de decisão conjunta diagnóstica ou terapêutica, sem manipulação nem coerção”. O documento reforça esta aproximação da P4 com a MBE, operando em torno do cálculo do risco-benefício das intervenções clínicas na APS.
De modo eloquente, Tesser e Norman77 Norman AH, Tesser CD. Quaternary prevention: a balanced approach to demedicalisation. Br J Gen Pract 2019; 69(678):28-29. têm buscado problematizar esta conexão da APS à linguagem da MBE. Afirmam que a P4 é um conceito bem elaborado que incorpora três pontos principais: risco de sobremedicalização, proteção do paciente e alternativas éticas, cuja definição é mais abrangente do que a recente iniciativa de a redefinir em termos da relação dano/benefício77 Norman AH, Tesser CD. Quaternary prevention: a balanced approach to demedicalisation. Br J Gen Pract 2019; 69(678):28-29.. Defendem, portanto, a manutenção do conceito de medicalização na definição da P4 e argumentam que a mudança proposta “embaça a ênfase original de Jamoulle na relação médico-paciente, passando a destacar a relação benefícios/danos por meio da medicina baseada em evidências (MBE)”88 Tesser CD, Norman AH. Prevenção quaternária e medicalização: conceitos inseparáveis. Interface (Botucatu) 2021; 25:e210101.. Além disso, apontam1111 Norman AH, Tesser CD. Medicina de família e prevenção quaternária: uma longa história. Rev Bras Med Fam Comunidade 2021; 16(43):2502. que a prática médica na APS “exige a simultaneidade entre o espírito crítico para com a MBE, bem como (seu) domínio e uso cada vez maior” e que a “iniciativa de reduzir a definição da P4 à linguagem da MBE deveria ser refutada”1111 Norman AH, Tesser CD. Medicina de família e prevenção quaternária: uma longa história. Rev Bras Med Fam Comunidade 2021; 16(43):2502..
No mesmo sentido, Santos2222 Santos JA. A "cadeia alimentar" no mercado da saúde: do disease mongering ao doctor shopping. Rev Bras Med Fam Comunidade 2013; 9(31):210-212. critica a expansão do lucro por meio da medicalização excessiva no mercado da saúde e destaca no exercício da P4, mais do que uma “estratégia”, uma “atitude clínica obrigatória” para a construção da identidade dos médicos de família e para a produção de um cuidado holístico que seja capaz de atender todas as dimensões da pessoa.
Entendemos que uma análise genealógica da P4 requer situá-la nessa zona em disputa entre a aplicação atualizada da Medicina Baseada em Evidências e novas propostas e problematizações da reformulação do cuidado na Atenção Primária à Saúde.
Paradoxos da Medicina Baseada em Evidências
Genericamente descrita como o “processo de sistematicamente descobrir, avaliar e usar achados de investigações como base para decisões clínicas”2323 Evidence-Based Medicine Working Group. Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine. JAMA 1992; 268(17):2420-245., a MBE emerge nos anos 1990 a partir de estudos de epidemiologia clínica que buscavam a garantia do melhor tratamento possível de acordo com as evidências científicas disponíveis.
O primeiro relato documentado de um ensaio clínico randomizado é publicado em 1948 pelo BMJ2424 Marshall G, Blacklock J, Cameron C, Capon N, Cruickshank R. Streptomycin Treatment of Pulmonary Tuberculosis: A Medical Research Council Investigation. BMJ 1948; 2(4582):769-782.. Em 1972, Archibald Cochrane publica o livro Eficácia e eficiência, que sistematiza os procedimentos experimentais para averiguar quais eram as formas clínicas mais eficazes e eficientes e encontrar as ineficientes. O resultado da soma hierarquizada das metanálises e revisões sistemáticas desses pedaços de “evidência”, estudos clínicos locais e específicos, criaria uma espécie de biblioteca atualizada das melhores evidências disponíveis.
A MBE vem sendo protagonizada por um conjunto pequeno de pesquisadores da medicina especializada e de áreas relacionadas, que possui acesso aos recursos técnicos e metodológicos para desenvolver pesquisas que definirão protocolos em larga escala2525 Armstrong D. Professionalism, Indeterminacy and the EBM Project. BioSocieties 2007; 2(1):73-84.
26 Lambert H. Accounting for EBM: notions of evidence in medicine. Soc Sci Med 2006; 62(11):2633-2645.-2727 Jureidini J, McHenry LB. The illusion of evidence based medicine. BMJ 2022; 376:o702.. Com a promessa de intervenções racionalmente eficazes, custo-efetivas e seguras, ela modifica a conduta e autonomia da profissão médica, modificando a relação dos clínicos com seu próprio ferramental e saber técnico2828 Rose D, Thornicroft G, Slade M. Who decides what evidence is? Developing a multiple perspectives paradigm in mental health. Acta Psychiatr Scand 2006; 113(s429):109-114..
Na abordagem hegemônica da MBE, a evidência científica se sustenta essencialmente pelo cálculo de riscos, isto é, uma probabilidade calculável cientificamente da eficácia de uma intervenção ou de um evento clínico. Deste cálculo, deriva a noção de “fator de risco” na saúde, um atributo medível e comparável entre diferentes grupos e populações2929 Carvalho SR, Andrade HS, Oliveira CF. O governo das condutas e os riscos do risco na saúde. Interface (Botucatu) 2019; 23:e190208.,3030 Lupton D. Risk. 1ª ed. Nova York: Routledge; 1999..
Há uma especial importância no fato de uma verdade, como o risco, poder ser traduzida em um número e uma probabilidade. A redutibilidade de fenômenos complexos a números produz uma imagem de uma objetividade “meramente técnica” e independente dos julgamentos daqueles que a calcularam. Os números transmitem resultados e informações de uma forma familiar e automaticamente traduzível em qualquer local do mundo. Padronizam sujeito e objeto dos enunciados e garantem uma intercambialidade em torno de diferentes situações, sem revelar diferentes influências e contextos que as modificam, afirmando uma certeza determinante, aparentemente desapegada de moralidades ou interesses ocultos3131 Porter TM. Trust in Numbers: The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life. Princeton: Princeton University Press; 1996..
Esta linguagem quantitativa que naturaliza o risco, conforme discutimos em outro artigo2929 Carvalho SR, Andrade HS, Oliveira CF. O governo das condutas e os riscos do risco na saúde. Interface (Botucatu) 2019; 23:e190208., foi objeto de importantes críticas. O risco, da mesma forma que qualquer outro fenômeno social, deve ser pensado não como algo estático e objetivo, mas permeado por um conjunto de valores e racionalidades em disputa e produzido como parte de uma rede de interações sociais e produção de sentidos e verdades.
Como apontam Gérvas e Pérez Fernandes3232 Gérvas J, Pérez Fernández M. Uso y abuso del poder médico para definir enfermedad y factor de riesgo, en relación con la prevención cuaternaria. Gaceta Sanitaria 2006; 20:66-71., ao problematizar os fatores de risco no contexto da P4, quando os médicos definem os fatores de risco e os convertem em enfermidades que demandam diagnóstico e tratamento, muitas intervenções médicas desnecessárias são justificadas: “O poder médico de definir os limites da saúde e da doença faz da definição do fator de risco uma fronteira que quase sempre se inclina para o lado da doença”3232 Gérvas J, Pérez Fernández M. Uso y abuso del poder médico para definir enfermedad y factor de riesgo, en relación con la prevención cuaternaria. Gaceta Sanitaria 2006; 20:66-71..
Castiel subsidia este entendimento quando indica3333 Castiel LD. A medida do possível: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. que o risco carrega consigo um paradoxo temporal: sempre mede uma diferença entre duas ideias e julgamentos cronologicamente distintos. À medida que o tempo passa, sempre se atualiza um julgamento plausível. Mas chama atenção que o cálculo do risco o torna uma entidade “autônoma e objetivável”, independente dos contextos, criando uma espécie de “estatuto ontológico” do risco e das evidências científicas.
Estas evidências acabam ligadas a um tipo de aspiração pela certeza e por uma promessa médica fidedigna, mesmo que comumente terminem frustrando tanto profissionais quanto pacientes. A definição clínica prometida por tecnologias sofisticadas e estudos randomizados, duplo-cegos, sem conflitos de interesse acabam pressupondo uma “verdade” biológica do adoecimento, dotada de uma forma específica de visualizá-la. Mas o que motivam os testes da MBE são justamente dúvidas difíceis de serem respondidas a partir do saber individualizado e singular. Em outras palavras, um ensaio clínico só é justificável quando há uma real dúvida se um tratamento é realmente eficaz (ou mais eficaz), de modo que ninguém possa ter certeza qual das tentativas terá melhores resultados.
Portanto, a realização de um ensaio clínico não separa de antemão tratamentos eficazes dos ineficazes, mas busca estimativas de eficácia do tratamento, já que todos os tratamentos são em algum nível abstratamente eficazes e o cálculo da eficácia não implica uma tomada óbvia e direta de decisão clínica2525 Armstrong D. Professionalism, Indeterminacy and the EBM Project. BioSocieties 2007; 2(1):73-84..
Tal debate é particularmente visível no rastreamento do câncer de mama para mulheres, no Brasil visibilizado pela campanha do “outubro rosa”, difundida anualmente na APS brasileira. A própria Cochrane, instituição pioneira de difusão de evidências científicas, reconhece que:
Se assumirmos que a mamografia de rotina reduz a mortalidade por câncer de mama em 15% e que o sobrediagnóstico e tratamento excessivo são de 30%, isso significa que, para cada 2.000 mulheres que fazem mamografia de rotina ao longo de 10 anos, 1 morte por câncer de mama será evitada, e 10 mulheres saudáveis, que poderiam não ter sido diagnosticadas, se não fossem rastreadas, serão tratadas desnecessariamente. Além disso, devido aos resultados falso-positivos, mais de 200 mulheres experimentarão sofrimento psíquico importante, incluindo ansiedade e incerteza por anos. Para ajudar a garantir que as mulheres sejam plenamente informadas antes de decidir se querem ou não fazer mamografia de rotina, nós elaboramos um folheto baseado em evidências para leigos que está disponível em várias línguas3434 Gøtzsche PC, Jørgensen KJ. Rastreamento do câncer de mama com mamografia [Internet]. Cochrane; 2013 [acessado 2021 abr 2]. Disponível em: https://www.cochrane.org/pt/CD001877/BREASTCA_rastreamento-do-cancer-de-mama-com-mamografia
https://www.cochrane.org/pt/CD001877/BRE... .
No limite, as evidências acabam apontando que o rastreamento tem mais potencial de gerar iatrogenia sobre mulheres saudáveis do que evitar mortes. É esse paradoxo que produz a demanda do “folheto” e da decisão compartilhada entre médico e paciente a partir das melhores “evidências”, isto é, a partir da disseminação do saber especializado às mulheres.
A MBE acaba, assim, produzindo uma nova área de indeterminação. No espaço entre o ensaio clínico baseado em evidências e a clínica, ponto nevrálgico para o desenvolvimento da P4, há uma disputa que permanece em aberto em relação ao poder do médico e do paciente. Em torno desses critérios, os danos e benefícios de uma intervenção se contrapesam permanentemente e a incerteza da clínica vai se renovando e se ampliando.
Além disso, as evidências “padrão-ouro”, como os ensaios clínicos randomizados, vinculam-se a uma teoria específica da inferência estatística e, a rigor, não avaliam ou descrevem mecanismos explicativos e causais para situações na saúde. Como discutem críticos da MBE2626 Lambert H. Accounting for EBM: notions of evidence in medicine. Soc Sci Med 2006; 62(11):2633-2645.,3535 Ashcroft RE. Current epistemological problems in evidence based medicine. J Med Ethics 2004; 30(2):131-135., sua própria estrutura teórica pode ser “bastante opaca”, sem qualquer tipo de agrupação teórica ou debate paradigmático. Nenhum dos testes baseados em evidências simplesmente medem “uma realidade objetiva de risco para a saúde ou doença”, mas intervêm para representar a doença de determinadas maneiras, por exemplo, delimitando as fronteiras entre o que é considerado normal e o que é considerado patológico3636 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press; 2002.. Nesse sentido, a evidência científica não é um corpo de conhecimento pré-existente e estável que pode simplesmente ser traduzido na prática; ao contrário, é um produto de processos científicos específicos situados histórica e culturalmente e com fidelidade quase constante a um procedimento e uma comunidade específicos de produção de verdade.
Trazendo à tona tais limites conceituais da MBE, Ashcroft3535 Ashcroft RE. Current epistemological problems in evidence based medicine. J Med Ethics 2004; 30(2):131-135. provoca que, como paciente, ele gostaria de ser tratado à luz das melhores evidências clínicas. Mas, como filósofo, prefere um “certo ceticismo” em torno dos enunciados da MBE e aponta a falta de modéstia metodológica e permeabilidade a debates filosóficos inerentes a qualquer tipo de produção e validação de enunciados científicos considerados verdadeiros.
Porém, a reivindicação cada vez maior de médicos “baseados em evidências” acaba produzindo um julgamento profissional orientado por associações profissionais e instituições detentoras de meios econômicos e científicos de produzi-las e validá-las na literatura científica. Cabe indagar: quem será responsável pela produção e interpretação desses dados? Como definir os valores aceitáveis para consolidar uma decisão de ordem populacional e individual?
Lambert2626 Lambert H. Accounting for EBM: notions of evidence in medicine. Soc Sci Med 2006; 62(11):2633-2645. chama a atenção para “cavalos de troia” embutidos na inserção generalizada da MBE nas práticas em saúde: perda potencial de autonomia profissional; surgimento de questões éticas e clínicas se pacientes estão recebendo o melhor atendimento para suas necessidades específicas; limitação e padronização de intervenções em saúde, desconsiderando realidades locais; e priorização econômica e política para problemas de saúde onde há as “melhores evidências”, em detrimento de doenças historicamente negligenciadas.
Estas considerações reforçam a ideia de que a clínica depende não apenas do uso de proposições científicas baseadas em evidências - cuja produção é a finalidade principal da MBE - e inclui um conjunto de saberes operacionais, ligados à capacidade de julgamento e reconhecimento em situações singulares. Apesar disso, a MBE costuma ser imaginada como uma síntese catalogável de todo conhecimento em saúde vigente, e não como uma forma contingente de sistematizar e catalogar afirmações potencialmente verificáveis por determinados métodos estatísticos.
Em perspectiva semelhante, Greenhalgh et al.3737 Greenhalgh T, Howick J, Maskrey N. Evidence based medicine: a movement in crisis? BMJ 2014; 348:g3725. analisam a crise desta MBE hegemônica a partir de cinco aspectos: a) a “marca de qualidade” baseada em evidências foi desviada por interesses próprios; b) o volume de evidências, especialmente diretrizes clínicas, tornou-se incontrolável; c) benefícios considerados estatisticamente significativos podem ser marginais e reduzidos na prática clínica; d) regras inflexíveis e instruções orientadas por tecnologia podem produzir cuidados orientados pela gestão em vez de centrados no paciente; e e) as diretrizes baseadas em evidências comumente mapeiam mal quadros clínicos com multimorbidade complexa.
Propõem como alternativa uma medicina “baseada em evidências reais”, que faça do cuidado ético do paciente sua principal prioridade; que exija evidências individualizadas em um formato que tanto médicos como pacientes possam entender; que valorize mais o julgamento especializado dos profissionais de saúde do que regras mecânicas; que compartilhe decisões com os pacientes por meio de conversas significativas e fortalecendo a relação médico-paciente; e que aplique esses princípios no âmbito comunitário e da Saúde Pública.
Tais fragilidades da MBE também ensejaram reflexões como a de Diana Rose et al.2828 Rose D, Thornicroft G, Slade M. Who decides what evidence is? Developing a multiple perspectives paradigm in mental health. Acta Psychiatr Scand 2006; 113(s429):109-114., que propõem um paradigma de “perspectivas múltiplas” para integrar fontes variadas de evidência no cuidado em saúde mental. Sugere-se incluir de forma consistente a experiência dos próprios usuários dos serviços e suspender o discurso monolítico e hierárquico da MBE em torno de conhecimento “universalmente verdadeiro”, que não reconhece a historicidade e assimetrias de poder na produção desses saberes.
Uma crítica que, cabe notar, remete-nos a perspectivas feministas que vêm discutindo como a “objetividade” científica tem sido marcada por uma racionalidade hegemônica capitalista e patriarcal, desvalorizando saberes localizados e contestadores do status quo. A epistemologia feminista tem nos provocado que as verdades ditas universais e objetivas carregam uma espécie de “truque de Deus”, geradas por cientistas desencarnados capazes de deter as visões de todos os lugares e ao mesmo tempo sendo visões não partindo de nenhum lugar específico3838 Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu 1995; 5:7-41..
Estas posturas críticas compartilham as dúvidas em torno de categorias estáveis como gênero, corpo, sujeito, sexo etc. Podemos incluir, no caso da P4, a “prevenção”, a “evidência”, o “risco” e a própria “medicalização”. Como apontam Adams et al.3939 Adams V, Behague D, Caduff C, Löwy I, Ortega F. Re-imagining global health through social medicine. Global Public Health 2019; 14(10):1383-1400., tais categorias não são entidades autoevidentes que existem no mundo como “árvores ou pedras”, mas conceitos mutáveis e sinérgicos que têm um papel complexo em nos ajudar a entender a experiência humana.
Desafios da reformulação do cuidado na APS
Ao analisar genealogicamente a P4, identificamos que ela vem sendo proposta enquanto importante reformulação do cuidado e da relação médico-paciente, mas também reduzida ao cálculo do risco-benefício por meio da aplicação atualizada de evidências científicas. No interior da sua formulação, tem se corretamente destacado a necessidade de irmos além da prevenção e do cálculo estatístico do risco baseado em evidências e provocarmos os profissionais de saúde a refletir sobre que tipo de “lente” estão usando para problematizar a iatrogenia e a medicalização4040 Norman AH, Tesser CD. Amending WONCA's P4 definition: the cure has been worse than the disease. Br J Gen Pract 2020; 70(692):109..
Nesse sentido, julgamos imprescindível correlacionar a P4 com debates críticos em torno da “medicalização”, do “risco” e do uso das evidências científicas, já que sua incorporação acrítica pode diminuir ou até se contrapor aos seus objetivos originais. Argumentamos previamente2929 Carvalho SR, Andrade HS, Oliveira CF. O governo das condutas e os riscos do risco na saúde. Interface (Botucatu) 2019; 23:e190208.,4141 Carvalho SR, Rodrigues CO, Costa FD, Andrade HS. Medicalização: uma crítica (im)pertinente? Introdução. Physis 2015; 25(4):1251-1269. que tais conceitos devam ser tomados sem um conteúdo e valor definido a priori, mas como um campo aberto de disputa no corpo social, envolvendo uma minuciosa e heterogênea investigação das maneiras pelas quais cada vez mais os “experts” vem inventando e executando procedimentos diagnósticos e terapêuticos para visualizar e intervir sobre a doença.
Índices de colesterol, pressão, diabetes, exercício, trabalho, lazer, estresse, ansiedade: o comportamento humano vem sendo calculado e diagnosticado a partir de índices, padronizações de comportamentos e fatores de risco. Tal constatação demanda uma profunda problematização em torno do conceito de normalidade, para além de uma média estatística considerada ideal e desejável para a prevenção de agravos.
Essa mudança de paradigma também vai demandar ver o adoecimento necessariamente como um acontecimento singular, que sempre se manifesta na totalidade da vida e não enquanto uma disfunção específica, passível de restauração ao estado pré-doente e independente do próprio sistema de inteligibilidade que a reconhece. Mais do que prevenção de riscos, a APS precisa incorporar a ideia de saúde como domínio e abertura ao perigo e aos riscos, como enfrentamento corajoso ao inexorável perigo de viver4242 Caponi S. A saúde como abertura ao risco. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da Saúde: conceito, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 55-77..
Similar ao que apontou Hacking4343 Hacking I. Inventando Pessoas. In: Hacking I. Ontologia Histórica. 1a ed. São Leopoldo: Unisinos; 2009. p. 115-130. no contexto da saúde mental, a categorização de doenças e fatores de risco (a hipertensão, diabetes, hipercolesterolemia, fibromialgia, gastrite, depressão, ansiedade etc.) também exerce um efeito retroativo sobre a própria experiência de adoecimento, criando padrões e formas de sofrimento prenomeados pela ciência biomédica. Para abordar criticamente o paradigma médico hegemônico, será necessário abordar o adoecimento incluindo ativamente o ambiente, as relações sociais e a cultura, não apenas como apêndices “psicossociais” de uma realidade biológica cristalizada.
A APS precisa, enfim, ser radical na busca de formas coletivas de vida, cuidado e de resistência em meio à adversidade, buscando explorar e dar peso às experiências vividas dos sujeitos envolvidos e, ao mesmo tempo, explorar e investigar as relações e contextos de produção de saúde e adoecimento, sem reduzir “pessoas/pacientes” a construções totalmente determinadas e incapazes de resistência. Além disso, será fundamental desenvolver paradigmas de perspectivas múltiplas na produção da verdade, que reconheçam nossas categorias de saúde como dispositivos em constante atualização e sejam capazes de inventar vidas que valham a pena ser vividas.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Jul 2023 - Data do Fascículo
Jul 2023
Histórico
- Recebido
09 Dez 2021 - Aceito
12 Dez 2022 - Publicado
14 Dez 2022