Entrevista com Deivison Faustino realizada por Paula Gaudenzi e Wania Cidade

Paula Gaudenzi Wania Maria Coelho Ferreira Cidade Deivison Mendes Faustino Sobre os autores

Deivison, essa entrevista é para compor um Dossiê sobre “Negritude e Subjetividade”, pensando nos efeitos subjetivos do racismo, principalmente nas mulheres negras, e também na produção do cuidado. Essa Revista é da área de Saúde Coletiva, então a questão dos sofrimentos, adoecimentos e do cuidado nos são muito caras. Um fato que nos chamou a atenção e que seria bom iniciarmos falando, é que o seu percurso profissional está fortemente atravessado pela discussão do racismo, e igualmente pelo campo da saúde e sobretudo da saúde mental. Você é sociólogo, seu mestrado foi na faculdade de medicina do ABC onde você estava interessado em entender como o movimento negro do ABC Paulista estava sensível à temática da saúde da população negra e o pós-Doc foi em Psicologia Clínica na USP. Entendemos que seu percurso como sociólogo, que se adentra no campo da saúde e, sobretudo do psiquismo, está relacionado com sua preocupação em relação aos efeitos nefastos do racismo e ao entendimento de que o enfrentamento dele se faz necessariamente pelas vias da política e do psíquico. É essa a convicção do Instituto Amma Psique e Negritude, do qual você é o coordenador pedagógico. Então, você poderia começar falando um pouco sobre seus estudos do mestrado e do pós doutorado. Qual era seu interesse em ambas as pesquisas, quais foram os achados e qual o motivo de você ter feito, sendo sociólogo, a pesquisa de mestrado dentro da faculdade de medicina? E, ainda, qual foi o caminho percorrido por você até chegar aos estudos da subjetividade, a ponto de fazer um pós-doutorado na Psicologia Clínica?

Queridas Paula e Wania, eu agradeço pela oportunidade desse diálogo no âmbito do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, da Fiocruz, que tanto respeito. Para responder a essa pergunta, devo iniciar dizendo que eu fui um trabalhador da saúde por mais de dez anos. Eu me iniciei muito jovem, quando era cantor de rap e militante do movimento hip hop, nos início dos anos 2000, no debate da saúde sexual e reprodutiva por conta de um trabalho de prevenção às IST/Aids através do rap. Ali conheci e trabalhei com os princípios da redução de danos e, depois, com atividades complementares em um Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), em Santo André. Eu estava iniciando a graduação em Ciências Sociais, mas também, por conta da capoeira de angola, tive contato, em primeiro lugar, com as teorias reichianas e roberto-freirianas que circulavam entre jovens anarquistas da somaterapia. Em segundo lugar, com as teorias feministas que fundamentavam os debates sobre o direito sexual e reprodutivo e, em terceiro lugar, com o movimento negro, onde fui apresentado à Frantz Fanon. Então, esse foi o contexto da minha entrada no debate da saúde mental, mas é curioso dizer que neste período, eu trabalhava na área de dia e militava no movimento negro à noite, pois não havia no serviço de saúde a compreensão de que o racismo pudesse ser um tema de trabalho.

Posteriormente, eu comecei a participar da Rede Nacional de Saúde da População Negra na qual tive contato com os principais articuladores da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. A Política foi concebida em 2001, mas só foi aprovada em 2009, graças à intensa articulação do movimento negro que influenciou decisivamente a minha trajetória como estudante de Ciências Sociais. Foi por conta desta inserção que eu ingressei no mestrado em Saúde Coletiva, na Faculdade de Medicina do ABC, como vocês observaram, na participação do movimento negro, nas políticas de saúde na Região do ABC Paulista. Na pesquisa, a temática da saúde mental aparecia de uma maneira muito interessante, mas não foi algo que eu tenha focado.

Dois anos depois, saí da área da saúde, comecei a dar aulas de história da África e fui estudar o Frantz Fanon no doutorado em sociologia, na Universidade Federal de São Carlos. Ali, me deparei com o fato de o Fanon ter sido um psiquiatra que fazia amplas referências à psicanálise e a outras abordagens psicológicas. Isso me obrigou a voltar a olhar para a saúde mental e para a contribuição do Fanon na reforma psiquiátrica. Mas a partir daqui três acontecimentos foram decisivos: 1. A publicação do artigo da Professora Rachel Gouveia (Holocausto ou Navio Negreiro?11 Passos RG. "Holocausto ou Navio Negreiro?": inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum 2018; 10(3):10-23.), apontando as influências fanonianas na reforma psiquiátrica de Franco e Baságlia e, ao mesmo tempo, criticando o silêncio da reforma brasileira sobre Fanon e o racismo. 2. O convite que recebi para ingressar no Amma Psique e Negritude e 3. As relações que passei a estabelecer com o Laboratório de Psicanálise e Política, coordenado pela professora Miriam Debieux. Acresce-se a isso, o meu contato com a Priscila Santos Souza, psicanalista do Laboratório que estuda Frantz Fanon e a psicanálise, e a chegada da França a mim, por suas mãos, do Frantz Fanon: écrits sur l’alienation et la liberte (texto que teve os trechos clínicos traduzidos pela Ubu como “escritos psiquiátricos”)22 Fanon F. Alienação e liberdade - Escritos psiquiátricos. São Paulo: Ubu Editora; 2020..

Eu que já tinha trabalhado em um NAPS, mas que também tinha sido treinado pelo movimento negro e depois, no mestrado, nos princípios sanitaristas presentes na saúde coletiva, mas, sobretudo, eu, que à essa altura já era professor no Departamento de Saúde, Educação e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo, fiquei encantado com esse material presenteado pela Priscila e decidi estudar a clínica de Frantz Fanon no pós-Doc sob a orientação da Miriam Debieux. O resultado do pós-Doc será um livro, ainda no prelo.

Considerando que a sua pesquisa de mestrado que se deu entre 2007 e 2009 foi sobre a relevância da saúde da população negra para os movimentos negros e que desde então você não deixou de se preocupar e de estudar os efeitos psicossociais do racismo, gostaríamos que você falasse um pouco como você entende que o racismo afeta a saúde física e mental das pessoas, como os movimentos negros lidam com essa questão e como você entende que o SUS está envolvido com o Racismo, tanto no sentido do racismo institucional − sendo produtor de violências dentro dos próprios serviços de saúde −, como no sentido da produção do cuidado às pessoas negras.

O racismo é um fenômeno histórico complexo e multifacetado com efeitos sociais, culturais, institucionais, econômicos diversos, com consequências objetivas (o lugar nas relações de poder e no laço social), sobretudo, subjetivas. Está presente em toda a sociedade e configura uma forma sistemática de humilhação e de invisibilidades com fortes efeitos sobre a subjetividade. Se aquilo que costumamos chamar de “eu” não existe sem o reconhecimento do outro − a figura materna e depois paterna, o núcleo familiar mais amplo, a escola e, depois, a sociedade como um todo - e o racismo impregna sistematicamente à todas essas instâncias, a pergunta que precisa ser feita é: que tipo de imagem a respeito de si e do outro pode emergir a partir daí?

Há tempos, vários autores vêm chamando a atenção para os efeitos subjetivos do racismo - Du Bois, Sartre, Balandier, Memmi, Mannoni, Bicudo, Guerreiro Ramos, Fanon, Neusa Santos, Isildinha Batista, Mussati, entre outros - mas seus estudos ainda seguem relativamente ignorados na formação dos profissionais da saúde mental. O resultado é a pessoa vítima do racismo sofre uma segunda violência quando consegue acessar um atendimento profissional para falar disso. Eu venho chamando essa negligência de surdez institucional. Isso para não falar em (não raros) casos de discriminação explícita reproduzidas no atendimento clínico. Então, podemos dizer que a simples ausência desse tema na formação já é uma expressão do racismo institucional.

Um outro aspecto da pergunta tem a ver com o movimento negro. Ainda que este nem sempre tenha tido elementos para pautar a temática da saúde mental, é ele o principal responsável por oferecer espaços de proteção e cuidado psíquico. Os laços históricos de solidariedade entre os diversos povos africanos escravizados, mas também, as instituições de resistência que foram sendo criadas ou recriadas durante a escravidão como as irmandades e articulações religiosas, as confrarias, clubes e, sobretudo, os quilombos, tiveram importância social, ao impedir que esse grupo se desagregasse completamente, mas tiveram, sobretudo, importância psicológica ao oferecerem dispositivos ancestrais ou modernos acolhimento e cuidado aos seus membros. Mesmo depois da escravidão, posto que o racismo não acabou, mas foi se sofisticando após abolição, os espaços negros - do baile black ao maracatu, da capoeira ao candomblé, entre outros exemplos - continuaram e continuam a exercer essa função.

Kabengele Munanga, escreveu um livro para contextualizar o tema negritude - ou, segundo ele, identidade negra (Negritude - Usos e sentidos 33 Munanga K. Negritude: Usos e sentidos. São Paulo: Autêntica; 2019.). Em sua investida, deixa-nos evidente que se trata de um assunto complexo cuja compreensão ultrapassa os movimentos históricos e o enfrentamento, por parte da comunidade negra, a supremacia branca. O conceito negritude reúne os grupos humanos marcados por uma história comum de discriminação pelo olhar do homem “branco” ocidental que os denominou “negros”. Mas o conceito não se restringe à diferença pela tonalidade de pele, ele vai além e traz para o centro da discussão o fenômeno devastador do racismo que, sistematicamente, tenta destruir culturas, desumanizar sujeitos, afetando física e psicologicamente os indivíduos. Portanto, a negritude foi criada como reação à ideologia da branquitude. Você figura, hoje, entre os mais respeitados estudiosos sobre relações raciais e sobre o racismo, no Brasil, e defende, segundo os seus estudos da obra de Fanon, que matemos estas categorizações raciais: branco e negro, para a construção de novos modos de relação social, econômica e política. Pode nos falar um pouco a respeito do que considera fundamental para atingirmos este estágio de conscientização social?

Este tema é bastante delicado, mas necessário e a sua abordagem exige a consideração de alguns aspectos históricos e filosóficos. Vejamos: como nos ensina Fanon foi o branco que criou o negro no exato momento em que recusou reconhecê-lo como humano. Essa recusa ocorreu no período em que a Europa mercantilista via surgir dentro de si as noções burguesas de liberdade e igualdade como pressupostos naturais humanos. Essas noções representaram uma grande ruptura com as noções medievais de mundo e abriram o caminho para a consolidação da sociabilidade burguesa, uma visão de mundo adequada ao capitalismo então emergente. Ao mesmo tempo, os meios materiais (metais, especiarias, drogas, etc.), culturais (novas visões de mundo) e epistêmicos, que permitiram essa ruptura, advinham principalmente da violência extrativista perpetrada pela apropriação colonial.

Há aqui dois problemas que tenho chamado, respectivamente, de “paradoxo lockeano” e “identitarismo branco”. John Locke foi um dos maiores defensores da liberdade e da igualdade como atributos humanos inalienáveis e como condição para a democracia, mas ao mesmo tempo, ele foi acionista de uma das maiores empresas holandesas de tráfico de pessoas escravizadas. O aparente paradoxo, que na verdade é uma contradição, consiste na seguinte equação: como pode um defensor da liberdade universal entre os homens aceitar a escravidão nas colônias? Ou a liberdade não é universal - o que colocaria em xeque o projeto burguês de substituição do feudalismo - ou todo tipo de escravidão humana seria inaceitável - o que colocaria em xeque as fontes coloniais de consolidação da burguesia mercantil. A resposta da burguesia europeia foi taxativa: “os africanos e os indígenas não são homens”, e poderiam, portanto, serem escravizados. Assim, a ética, a política e a estética não se estendem a eles. Eis aqui o identitarismo branco: um projeto, como é o caso do iluminismo, mas não apenas, que fala do humano universal, mas só consegue ver o homem branco como expressão dessa universalidade. É o caso da França universalista enviando tropas para o Haiti, sua ex-colônia mais rentável, para reprimir uma revolução que se inspirou na própria Revolução Francesa.

Deste modo, é necessário enfatizar, em primeiro lugar, que o negro e a negra, são criações fantasiosas e fantasmagóricas do colonialismo. Fantasmagórica, porque se deposita simbolicamente sobre este signo todas as transgressões e monstruosidades que o branco não quer ver nele. Aliás, o branco, ao criar o negro cria a si próprio, como entidade racial simbólica, castrada de tudo aquilo projeta no suposto “negro”. Fanon dizia que Brancos e Negros são “aberrações afetivas” que precisariam ser superadas para que cada indivíduo pudesse ser visto e ao mesmo tempo se ver em toda a humanidade e não apenas naquilo que o colonialismo atribui ao seu suposto grupo racial. A grande pergunta que fica é: ok, fera, como fazer isso? O racismo é antes de mais nada uma relação de poder, com fortes enraizamentos subjetivos, mas com força para influenciar decisivamente a ordenação social. Não acaba por decreto e nem por simples desejo individual. Assim, deve ser confrontado e desmantelado não apenas em suas premissas epistêmicas ou simbólicas, mas sobretudo, em suas bases materiais. Quem poderia protagonizar esse enfrentamento senão os mais prejudicados por ele?

O que estou querendo dizer é que, ainda que o signo “negro” tenha sido uma criação fantasmagórica do branco, não é possível aos seres humanos enquadrados como tal ignorarem essa classificação, pois ela tem efeitos objetivos e subjetivos sobre suas vidas. Ao contrário disso, o que se assistiu nos últimos séculos é que as diversas formas de agência negra africana ou afrodiaspóricas foram fundamentais. Foram e são elas que provocaram rupturas na ordem social racista própria desta sociedade que, como disse Fanon, fala do homem, mas o mata onde quer que o encontre. Sem os quilombos, o movimento negro, as ideologias pan-africanas ou de negritude, nós sequer estaríamos falando desse tema e, talvez, esse grupo social já teria se diluído completamente.

Então, paradoxalmente, a chamada negritude − entendida como momento em que o negro se recusa a ser objeto do outro e procura se definir pelos próprios termos − tem o mérito de denunciar o racismo e, do mesmo modo, oferecer espaços de acolhimento e cuidado para as pessoas portadoras desses traços amaldiçoados pela ordem social branca. Para Fanon, a negritude é condição fundamental para a superação do racismo, configurando-se como a antítese afetiva do ódio branco e, por essa razão, revela uma importância subjetiva incomparável. Por esse ponto de vista, é uma tarefa urgente enegrecermos a saúde mental, a produção de conhecimento, as lutas progressistas e revolucionárias e a sociedade como um todo, confrontando, com isso, o identitarismo branco. O branco, assim como o negro, precisa morrer enquanto tais, para que possa emergir aquele sonho cosmopolita que Kant chamava de particular-universal. Porém, não há morte possível da racialização sem, antes, reconhecer sua existência e confrontar radicalmente a ponto de desmantelar as suas bases objetivas e subjetivas. Não se combate o racismo antinegro sem a negritude, pois ela oferece uma certa identificação que inverte os termos e símbolos coloniais, possibilitando novos laços e processos sociais que suscitem a emergência de um tipo de sujeito.

A grande questão levantada por Fanon é que esse combate não pode perder de vista que o radical “negro”, que sustenta a palavra negritude, é, ele mesmo uma invenção colonial do branco, que em algum momento da própria luta que o afirma, também precisa ser questionado e superado, sob o risco de se consolidar como uma nova forma de barreira, agora auto atribuída, que impede que os indivíduos se identifiquem e possam ser identificados com a generidade humana. Neste momento de suprassunção (aufheben), “o quilombo” deixa de ser apenas um espaço isolado de resistência no interior da sociedade escravista para ser aquilo que Beatriz Nascimento defendia: a possibilidade de estarmos em casa onde quer que estejamos.

Você foi uma das pessoas que inaugurou a leitura de Fanon a partir de uma perspectiva da sociogênese como eixo estruturante de todo o pensamento fanoniano. Sabendo que Fanon foi um psiquiatra e, portanto, estava preocupado com o sofrimento humano e, sobretudo, com as dimensões sociais do sofrimento psíquico, queríamos que você falasse um pouco como você entende que a perspectiva da sociogenia se articula com tais preocupações de Fanon.

Eu agradeço pelo reconhecimento à minha contribuição em relação à divulgação do pensamento de Fanon no Brasil, mas lembro que ele já era lido no Brasil deste 1960, influenciando a obra de pensadores como Paulo Freire, Gauber Rocha, Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Milton Barbosa, Amilton Caroso, Lélia Gonzalez, Neuza Santos Souza, entre outros. Aliás, o livro Tornar-se negro44 Souza NS. Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar; 2021., de Souza, é um clássico da psicanálise antirracista brasileira que encontra no Fanon uma das principais bases teóricas. Do mesmo modo, percebe-se que Fanon foi fundamental no diálogo que Gonzalez estabelece com Lacan. A minha contribuição é infinitamente mais humilde e recente em um debate que lhe é anterior. De todo modo, é verdade que tenho participação no reconhecimento da categoria sociogenia, no pensamento de Frantz Fanon.

Em Pele negra, máscaras brancas55 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora; 2020., após reconhecer a importância da ontogenia freudiana para os saberes psis, até então dominados por perspectivas filogênicas, Fanon afirma que ao lado da filogenia e da ontogenia deve estar a sociogenia. Esse trecho, embora enigmático, nos oferece pistas importantes sobre a sua proposta psicológica: a filogenia é o estudo daquilo que nos é universal, seja enquanto estrutura neuroquímica seja enquanto aparelho psíquico, e a ontogenia é a compreensão da trajetória individual e singular de constituição do sujeito. Na sociogenia, Fanon reclama a atenção psicológica para os contextos sociais, culturais e as relações de poder sob os quais a subjetividade se estrutura.

Isso significa que a compreensão e consideração do capitalismo, do colonialismo e do racismo, se apresentam como tarefa também psicológica, com implicações práticas à oferta clínica de cuidado, mas não apenas... o cuidado, em Fanon, não se limita à clínica, ainda que ela possa se apresentar como espaço fundamental para os casos que assim demandarem. Notemos, no entanto, que a sociogenia vem “ao lado”, e não antes, da filogenia e da ontogenia. O que significa que no atendimento psicológico a consideração do “social” não pode obliterar a singularidade do sujeito sob a pena de reforçar, mesmo que bem intencionados, a racialização.

Na experiência de vida de Fanon ele conheceu os efeitos da violência em si mesmo e na vida dos sujeitos colonizados, o adoecimento psíquico, a despersonalização dos indivíduos. Em Os Condenados da Terra 66 Fanon F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar; 2022.compreende-se que esta violência deveria ser “organizada como luta de libertação, que permite a superação”. Entretanto, logo no início do capítulo 1 ele diz: “... a descolonização é sempre um fenômeno violento”. Gostaríamos que você comentasse um pouco estas duas frases do pensamento de Fanon, sobretudo, como ele pensa a dimensão da violência constitutiva do próprio colonialismo, e ainda, o fato de alguns leitores de sua época terem interpretado este livro como uma ode à violência.

Fanon estuda a violência amparada pela leitura marxista-anticolonial de Hegel, na qual a violência é expressão incontornável da história. Há uma violência na paz e na ordem social e a suprassunção dessa violência é em si violenta, simplesmente, porque desarranja e desmantela a ordem. Por essa razão Karl Marx escreveu, em O Capital77 Marx K. O Capital. São Paulo: Veneta; 2014., que a violência é uma espécie de parteira da história porque ela viabiliza o estabelecimento do capitalismo através da expropriação colonial que supera o velho feudalismo e pari a nova sociedade burguesa. Ao mesmo tempo, porque essa mesma violência pode, segundo argumenta Marx, superar a sociabilidade burguesa em direção à outras formas de existência social. É nessa tradição que Fanon se insere e ele retoma a constatação marxiana segundo a qual o colonialismo é, em si, uma formação social que retira a sua verdade objetiva da violência.

Sem ela o colonialismo não chegaria a ser e nele, o colono ensina o colonizado, com coronhadas e balas supostamente perdidas que a única linguagem possível é a violência. Não é que não tenha violência nas sociedades capitalistas centrais, mas lá ela pode ser disfarçada por uma sensação de pertença ao laço, pela democracia e o Estado de Bem-Estar Social. Na colônia a violência não pode ser disfarçada e se apresenta em estado bruto, materializada em cada ausência de direitos e presença da dominação, de tal forma a se instalar na mente do colonizado. A questão para Fanon é que se a “violência é a parteira de toda a sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova”, o fim da violenta ordem social colonial só é possível mediante um desmantelamento completo que o suprassuma em uma nova sociabilidade... esse parto só é viável mediante à ruptura social organizada e radical que será vivida, pelos beneficiários da ordem, como violência, mas ela é incontornável e, em última instância - como nos lembra Sartre no prefácio ao Os condenados da terra66 Fanon F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar; 2022. - liberta não apenas o negro de sua negrura, mas também o branco de sua brancura, emancipando-o a partir da morte de sua persona racializada. É disso, e não de uma apologia barata à violência que se trata a abordagem fanoniana do tema.

Você poderia abordar o conceito de encruzilhada, que menciona quando nos apresenta as ideias de Fanon? A riqueza desta representação é justamente a possibilidade de olharmos o objeto de nosso interesse sob diferentes pontos de vista, pôr os diferentes em diálogo, convergindo para um ponto em comum. Você nos traz este viés que não somente é um diferencial na maneira de abordar os estudos sobre racismo como amplia a nossa observação e visão de mundo. Pode nos falar sobre isso?

A categoria encruzilhada foi apresentada por Leda Maria Martins em um artigo seminal em que falava da oralidade corporal e da memória. Ela retoma as epistemes bakongo do cruzo, fartamente presentes em todo o imaginário exúlico afro-brasileiro, como horizonte teórico para articular elementos dialéticos que costumam aparecer separados no maniqueísmo cristão e no dualismo cartesiano. É no interior desta tradição crítica que eu tenho proposto pensar encruzilhada, como encontro dialético, às vezes sintético, às vezes dissonante, de múltiplos elementos que compõem um certo universo. Marx dizia, a respeito da sociedade, que o concreto (a realidade social) é concreto porque é composto por uma síntese de múltiplas determinações, muitas vezes contraditórias, ou seja, unidade no diverso. Esta perspectiva me parece fundamental para o campo da saúde mental e para a psicologia, em particular, porque permite articular dialeticamente a filogenia, a ontogenia e a sociogenia, sem que uma dimensão seja subsumida em função da explicitação da outra e, ao mesmo tempo, elas sejam pensadas, cada uma, em sua mútua influência sobre as demais: aquilo que Marx, lendo Hegel, chamará de determinações reflexivas.

Neste ponto, me afasto daqueles autores que estão pensado a encruzilhada, em termos pós-estruturalistas, apenas como indefinição e entre-lugar para propor uma abordagem materialista que reconheça a subversão indefinida do que está no “entre”, mas não ignore que o “entre” só é possível mediante alternativas concretamente dadas: a sociogenia. Ao mesmo tempo, entendo o próprio Fanon como um autor de encruzilhadas diversas, entre a filogenia, a sociogenia e a ontogenia; entre a subjetividade e a política; entre o marxismo, a negritude o existencialismo e a psicanálise; entre a exigência radical e revolucionária de um futuro que não ignora o passado e nem deixa de se posicionar diante dos dilemas do presente, aliás, busca extrair dele o novo.

Nesse dossiê estamos preocupadas fundamentalmente com os efeitos do racismo nas mulheres negras, assim como com o cuidado ofertado a elas no Brasil. Gostaríamos que você falasse um pouco sobre como você vê a especificidade dessas pessoas, considerando que vivemos em uma sociedade extremamente desigual socialmente, patriarcal e racista. E ainda, considerando a pandemia da COVID-19, como essas mulheres negras são atravessadas por esse novo contexto?

Há uma dívida da saúde mental, em geral, e da psicologia, em particular, com esse público. Em Racismo e sexismo na cultura brasileira88 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rev Cien Soc Hoje 1984; 223-244., Lélia Gonzalez nos lembra da importância das mulheres negras para a constituição cultural brasileira e, sobretudo, para a conformação das diversas formas de resistência política que dispomos. Ainda assim, é o grupo mais negligenciado e violentado pelas políticas públicas de saúde em geral, no entanto, a sua contribuição para a psicologia e a psicanálise ainda é invisibilizada. Nomes como Virgínia Bicudo, Neuza Santos Souza, Maria Lúcia da Silva, Isildinha Batista Nogueira, Clélia Prestes, entre outros como a própria Lélia Gonzalez, não apenas se valeram da psicologia ou da psicanálise para formular suas práticas, como as suas teorias e práticas clínicas oferecem subsídios fundamentais ao campo.

Por outro lado, a proposta fanoniana de cuidado aos indivíduos pertencentes aos grupos discriminados é muito interessante e merece ser mencionada: Como já assinalamos, a exigência do reconhecimento da sociogenia não é, em espécie alguma, a desconsideração da filogenia e da ontogenia. Isso, penso, tem implicações clínicas fundamentais: o indivíduo que chega à clínica − ainda que partilhe elementos sociais com um determinado grupo social e essa particularidade não anule os processos psíquicos mais universais - deve ser considerado em sua singularidade. A sociogenia fanoniana não pode ser a desconsideração daquilo que é singularmente irrepetível e incomensurável no sujeito, mas, apenas, a sensibilidade ao fato de que a singularidade se materializa, sempre em algum contexto e esse contexto também tem espaço na escuta clínica, mas o ponto de partida da clínica deve ser sempre a escuta do singular. Esse detalhe permite oferecer ao sujeito a clínica que ele necessita, naquele momento, e não uma forma sociologicamente formatada que desconsidera os seus processos internos, muitos dos quais não se resumem - ainda que possam ser atravessados e agravados - pela discriminação.

Em Fanon, a emancipação implica uma descida aos verdadeiros infernos que permita ao sujeito reconhecer-se como tal, o que implica, inclusive, reconhecer-se como corresponsável pelas próprias contradições, ou pelo menos, responsável principal pela decisão do que fazer com essas contradições. E esse salto não é possível, em primeiro lugar, se a clínica não for enegrecida ou aquilombada ao ponto de se converter em um espaço de acolhimento, inclusive das dores provocadas pelo racismo, o sexismo, a transfobia etc... mas o acolhimento, sem o convite à descida aos verdadeiros infernos que permita a reconciliação crítica diante das próprias limitações, contradições e, sobretudo, com o estranho/infamiliar que habita em todos nós, não há emancipação possível. Óbvio, que em Fanon, essa tarefa não se esgota na clínica, mas tem nela um lugar fundamental.

Por fim, entendemos que apesar de tantas violências, laços foram estabelecidos nos subterrâneos da escravatura, modos de sobrevivência foram inaugurados à revelia dos senhores coloniais, que se renovaram até os dias de hoje. São redes fundadas sob o signo da dor, mas que não sucumbiram a ela: transformaram-na. Assim, mantiveram-se a história, a religiosidade, os hábitos e os costumes; a culinária, o idioma, as danças e a musicalidade, também atravessaram o tempo, isso é negritude. Ainda na contemporaneidade são as redes dos terreiros de candomblé, das escolas de samba, do jongo, da capoeira, das favelas, que resistem. Foi esta cultura e luta que ofereceu os seus ombros para que negros ultrapassassem os muros e chegassem à universidade e tantos outros lugares. Fale-nos um pouco desta diversa e plural afro-brasilidade e sobre quais são as vias possíveis, no seu ponto de vista, para a ruptura da lógica colonial, para a superação do colonialismo? Ou, em outros termos, para o bem viver da população negra. Que questões se impõem, hoje, nos vínculos entre subjetividade e laço social, entre política e desejo? Em que ponto estamos?

Há uma farta produção intelectual negra que vem mostrando que os espaços políticos, intelectuais e culturais negros têm uma importância incomparável para promoção da saúde mental da população negra. Desde o período escravista até os nossos dias, observa-se que a luta por melhores condições de vida, por representatividade, por visibilidade, pelo direito à vida, contribui não apenas para a transformação da sociedade como um todo, mas, sobretudo, oferecem espaços seguros onde o laço social é possível. Essa foi uma das principais funções dos quilombos durante o período escravista, e hoje, se pensarmos com Beatriz do Nascimento, encontramos essa função nas religiões de matriz africana, nas capoeiras, nos afoxés, no samba ou nos bailes funk.

Independente do que se possa dizer sobre esses espaços, é importante reconhecê-los como práticas de promoção à saúde e, em alguns casos, dispositivos de escuta e cuidado. Uma pessoa que se dirige a um Taata Nkisi ou à Yalorixá para consultar os oráculos sagrados, lhe confessará suas dores e angústias e encontrará ali, uma técnica de escuta; a pessoa que se dispõe a conviver com os preceitos da capoeira angola terá a oportunidade não só de confrontar aquilo que W. Reich chamava de couraças musculares do caráter, a partir de movimentos psico-corpóreos que aliviam a restrição à sua pélvis, ombros e membros, mas também de ver traços de seu inconsciente se apresentando com ele na roda, de(a)nunciando medos, desejos e fragilidades que, se conduzidos por um mestre atento, podem representar um convite valioso à escuta corporal de si e de sua postura no mundo. Não se trata de mistificar essas práticas e nem propor a substituição da clínica por elas, mas de refletir sobre o quanto a saúde mental perde, enquanto campo, quando o seu racismo impede que esses saberes ancestrais sejam reconhecidos, valorizados e convidados a dialogar com os saberes ocidentais. Foi isso que Fanon propôs em sua clínica na Argélia e na Tunísia. Uma espécie de calibalização da medicina que não despreza ou descarta os saberes ocidentais − nem mesmo aqueles mobilizados pelo poder colonial - mas os relativiza e contrasta ou os articula com outras matrizes produtoras de saúde que já estão presentes na sociedade, mas vêm sendo ignoradas pelas heranças contemporâneas (e pelo) racismo epistêmico. Uma mudança de postura, neste sentido, não beneficiaria apenas a população negra, que teria mais chance de se reconhecer nos dispositivos oferecidos pela saúde mental, mas o campo como um todo enriqueceria seu repertório humano para além do raquítico e castrado identitarismo branco.

Referências

  • 1
    Passos RG. "Holocausto ou Navio Negreiro?": inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum 2018; 10(3):10-23.
  • 2
    Fanon F. Alienação e liberdade - Escritos psiquiátricos. São Paulo: Ubu Editora; 2020.
  • 3
    Munanga K. Negritude: Usos e sentidos. São Paulo: Autêntica; 2019.
  • 4
    Souza NS. Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar; 2021.
  • 5
    Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora; 2020.
  • 6
    Fanon F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar; 2022.
  • 7
    Marx K. O Capital. São Paulo: Veneta; 2014.
  • 8
    Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rev Cien Soc Hoje 1984; 223-244.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    18 Jul 2022
  • Publicado
    20 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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