Resumo
Objetiva-se identificar concepções, experiências, métodos e técnicas em Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT). Trata-se de uma revisão integrativa com os descritores: participação da comunidade, vigilância em saúde, vigilância da saúde, saúde ambiental e saúde do trabalhador, envolvendo cinco bancos de dados: Biblioteca Virtual da Saúde, EBSCOhost, Embase, Scopus e Web Of Science. A revisão selecionou 15 estudos, a partir dos critérios de inclusão: experiências de vigilância com protagonismo comunitário; e exclusão: pesquisas sem dados primários e desenvolvidas apenas pelo serviço de saúde. Identificaram-se como bases teóricas e metodológicas dos estudos a ciência cidadã, educação popular e justiça ambiental; e experiências como mapeamentos e monitoramentos participativos; métodos como pesquisa-ação, “faça você mesmo” e investigação baseada na comunidade; e técnicas como “Photovoice” e Jornal Comunitário. Destacam-se as comunidades urbanas de baixa renda, indígenas, jovens e trabalhadores como protagonistas. O reconhecimento da VPSAT como importante fonte de dados e de intervenção pelos sistemas de saúde públicos e pela academia contribui para que a vigilância em saúde seja mais dialógica e efetiva.
Palavras-chave:
Participação da Comunidade; Pesquisa Participativa Baseada na Comunidade; Saúde Ambiental; Saúde do Trabalhador; Vigilância em Saúde
Introdução
Na virada do século XXI, com o acirramento dos conflitos ambientais, numerosos movimentos sociais e populações atingidas por grandes empreendimentos, como o agro e o hidronegócio, a mineração e a indústria poluidora, têm protagonizado experiências territoriais para análise e enfrentamento dos impactos à saúde decorrentes das transformações dos seus territórios, da degradação, da poluição ambiental e da precarização do trabalho. Isso mostra que a saúde é uma dimensão sensível de suas vidas e mobilizadora para a construção de resistências11 Rigotto RM, Aguiar ACP, Pontes AGV, Diógenes SS, Bernardo EM. Desvelando as tramas entre saúde, trabalho e ambiente nos conflitos ambientais: aportes epistemológicos, teóricos e metodológicos. In: Rigotto RM, Aguiar ACP, Ribeiro LAD, organizadoras. Tramas para a justiça ambiental: diálogo de saberes e práxis emancipatórias. 1ª ed. Fortaleza: Edições UFC; 2018. p. 163-214..
Em resposta aos conflitos, bem como a pandemia da COVID-19, tem se desenvolvido experiências em vigilância popular da saúde, que albergam iniciativas de saberes e de práticas que nascem dos territórios e da organização popular na defesa do direito à saúde e à vida, mas que, por muitas vezes, ainda são desconsideradas, silenciadas e apagadas pelas concepções e ações institucionais de vigilância do campo sanitário do Estado22 Corrêa HR, Segall-Corrêa AM. Lockdown ou vigilância participativa em saúde? Lições da Covid-19. Saude Debate 2020; 44(124):5-10.,33 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00298130.. Atualmente, no cenário pandêmico, a resposta do Estado seguiu o mesmo modelo de Vigilância em Saúde que vem sendo praticado desde o século XIX.
Esse modelo se relaciona principalmente com o controle de doenças protagonizadas por estruturas do Estado, ancorando-se na ordem simbólica das representações belicistas da guerra contra os micróbios e movida pela microbiologia fundada no último terço do século XIX44 Sevalho G. Apontamentos críticos para o desenvolvimento da vigilância civil da saúde. Physis 2016; 26(2):611-632.. Termos como “vigilância”, “controle”, “evento sentinela” e “campanha” pertencem a esse cenário de inspiração militar, que se centraliza na vigilância de doentes e de suspeitos, compondo uma política sanitária autoritária, persecutória e punitiva, como elementos que contribuem para inviabilizar a participação popular na Vigilância em Saúde44 Sevalho G. Apontamentos críticos para o desenvolvimento da vigilância civil da saúde. Physis 2016; 26(2):611-632..
O termo “Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho” (VPSAT) é utilizado por Carneiro e Pessoa33 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00298130. para nominar práticas de vigilância que privilegiam o protagonismo das comunidades e dos movimentos sociais no âmbito da saúde pública, do meio ambiente e da saúde do trabalhador e da trabalhadora. Pode envolver diferentes graus de atuação do Estado, da academia e dos trabalhadores da saúde, desde que esses reconheçam os atores e saberes populares e se impliquem nos processos participativos de natureza dialógica33 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00298130..
Todavia, segundo Rigotto e Aguiar55 Rigotto RM, Aguiar ACP. Invisibilidade ou invisibilização dos efeitos crônicos dos agrotóxicos à saúde? Desafios à ciência e às políticas públicas. In: Nogueira RP, Santana JP, Rodrigues VA, Ramos ZVO. Observatório internacional de capacidades humanas, desenvolvimento e políticas públicas: estudos e análises. Brasília: OPAS; 2015. p. 47-90. em “um cenário de controvérsia científica, perpassado por conflitos de interesse e por fortes e poderosos interesses econômicos, que incidem ativamente sobre o Estado e suas políticas públicas”(p.50), identifica-se, nas áreas de saúde, ambiente e trabalho, uma crônica dificuldade no processo de trabalho do SUS referente a vigilância.
Nesse cenário, reforça-se a necessidade de estruturar novas bases conceituais e metodológicas de vigilância da saúde, ambiente e trabalho, desenvolvendo estratégias territorializadas e métodos participativos, que facilite a autonomia da população e que evite a segregação e a exclusão nos processos, incorporando diferentes saberes e dimensões, tais como econômicas, sociais, culturais, espirituais e éticas. Nessa direção, o referencial da Ecologia de Saberes desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos66 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estud CEBRAP 2007; 79:71-94. contribui para a VPSAT, na medida em que esse conceito promove o diálogo entre vários saberes que podem ser considerados úteis para o avanço das lutas sociais pelos que nelas intervêm77 Carneiro FF, Krefta NM, Folgado CAR. A Praxis da Ecologia de Saberes: entrevista de Boaventura de Sousa Santos. Tempus Actas Saude Colet 2014; 8(2):331-338..
A VPSAT emerge como um processo participativo de alerta e de chamado para a ação relacionada à garantia tanto dos direitos humanos universais quanto dos constitucionais à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à defesa da vida. O “pensar e fazer com” as comunidades torna-se, nos processos de VPSAT, uma possibilidade criativa e inovadora para fortalecer o SUS na defesa da vida33 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00298130.,88 Valla VV, Assis M, Carvalho M. Participação Popular e os Serviços de Saúde: O Controle Social como Exercício da Cidadania. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz; 1993.. Dessa forma, este artigo objetiva identificar concepções, experiências, métodos e técnicas existentes em vigilância popular da saúde, ambiente e trabalho no âmbito nacional e internacional.
Metodologia
Método
Utilizou-se o método da revisão integrativa da literatura que de acordo com Mendes et al.99 Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CMaria. Revisão Integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Enferm Florianopolis 2008; 17(4):758-764. “possibilita a síntese de múltiplos estudos publicados e conclusões gerais a respeito de uma área de estudo”(p.759), em seis etapas: 1) identificação das hipóteses ou problema de pesquisa; 2) estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão dos estudos; 3) extração das informações dos estudos selecionados; 4) avaliação dos estudos incluídos na revisão; 5) interpretação dos resultados; e 6) apresentação da revisão1010 Sousa LMM, Marques-Vieira CMA, Severino SSP, Antunes AV. A metodologia de Revisão Integrativa da Literatura em Enfermagem. Rev Invest Enferm 2017; 2:17-26.. Os itens presentes no checklist para revisões sistemáticas e meta-análises1111 Page MJ, McKenzie JE, Bossuyt PM, Boutron I, Hoffmann TC, Mulrow CD, Shamseer L, Tetzlaff JM, Akl EA, Brennan SE, Chou R, Glanville J, Grimshaw JM, Hróbjartsson A, Lalu MM, Li T, Loder EW, Mayo-Wilson E, McDonald S, McGuinness LA, Stewart LA, Thomas J, Tricco AC, Welch VA, Whiting P, Moher D. The PRISMA 2020 statement: an updated guideline for reporting systematic reviews. BMJ 2021; 372:n71. foram adaptados para relatar este estudo.
Para aplicação do método, constituiu-se um grupo de oito pesquisadores(as) com experiência acadêmica e práticas no tema da revisão para discutir e decidir sobre a elaboração da pergunta de pesquisa, a definição dos descritores de busca, a seleção e a avaliação dos estudos, e a análise e a interpretação dos resultados. O grupo se reuniu entre agosto de 2021 e junho de 2022, no qual uma dupla se dividiu em pares (revisores independentes), a fim de selecionar e avaliar os estudos. A revisão por pares é uma etapa importante para a tomada de decisão de quais publicações devem ou não ser incluídas em estudos de revisão.
Questão da pesquisa e coleta de dados
Para elaborar a questão da pesquisa foi utilizada a estratégia PICo - acrônimo para População (P), Interesse (I) e Contexto (Co)1212 Lockwood C, Porrit K, Munn Z, Rittenmeyer L, Salmond S, Bjerrum M, Loveday H, Carrier J, Stannard D. Chapter 2: Systematic reviews of qualitative evidence. In: Aromataris E, Munn Z, editors. JBI Manual for Evidence Synthesis. JBI; 2020.,1313 Santos CMR, Crispim MO, Silva TTM, Souza RCR, Frazão CMFQ, Frazão IS. Reiki como cuidado de enfermagem às pessoas em sofrimento psíquico: revisão integrativa. Rev Bras Enferm 2021; 74:e20200458. -, no qual: (P) - participação da comunidade; (I) - concepções, experiências, métodos e técnicas em vigilância popular; e (Co) - saúde, ambiente e trabalho. Assim, definiu-se a seguinte pergunta: O que há de produção científica, considerando a participação da comunidade, relacionada às concepções, experiências, métodos e técnicas associadas à vigilância popular da saúde, ambiente e trabalho?
Nesse contexto, em setembro de 2021, realizou-se uma busca da literatura em cinco bases de dados: Biblioteca Virtual da Saúde (BVS), EBSCOhost, Embase, Scopus e Web of Science (WOS) sem restrição quanto ao ano de publicação e utilizando os filtros de idioma: português, inglês ou espanhol - e no caso da BVS e EBSCOhost também foi efetuada uma filtragem por texto completo. Com exceção da BVS, as bases foram acessadas por meio do Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Para a busca da literatura foram utilizados descritores indexados, de acordo com a padronização DeCs/MeSh: “participação da comunidade”, “vigilância em saúde”, “vigilância da saúde”, “saúde ambiental” e “saúde do trabalhador”, e seus respectivos descritores em inglês e espanhol. No Quadro 1, visualizam-se as estratégias de busca adaptadas para cada base de dados. Os estudos encontrados, após filtragem por idiomas e texto completo, foram exportados, organizados e armazenados em planilhas no software Excel para identificação de duplicados e para seleção de inclusão ou exclusão dos estudos.
Elegibilidade e seleção dos estudos
Definiram-se como critérios de inclusão estudos que contivessem o protagonismo comunitário/popular em uma experiência de vigilância em saúde do trabalhador e/ou em saúde e ambiente. O grupo de pesquisa estabeleceu quatro atributos que foram considerados como protagonismo comunitário/popular: 1) as iniciativas surgirem das comunidades/territórios pelos saberes populares, não sendo exclusivamente dos serviços; 2) a comunidade gerar os próprios dados; 3) a vigilância ocorrer com protagonismo da população através de tecnologias sociais/monitoramento simplificado; 4) a articulação/relação da comunidade com o serviço de saúde e a academia ser em uma perspectiva participativa (emancipatória e dialógica).
Como critérios de exclusão, foram considerados: 1) a coleta de informações ter ocorrido apenas pelos serviços de saúde; 2) o estudo não apresentar dados primários; 3) a indisponibilidade do texto completo em português, espanhol ou inglês.
Considerando esses critérios, a seleção dos estudos ocorreu em duas fases. Na fase 1, dois revisores independentes selecionaram os estudos a partir da leitura dos títulos e resumos de todos os estudos, de acordo com os critérios de elegibilidade. Em caso de discordância, um terceiro revisor fez uma nova leitura para selecionar ou não os estudos.
Na fase 2, os revisores leram de forma independente os textos completos de acordo com os critérios de elegibilidade. Nos casos de discordância, novamente um terceiro revisor analisou os estudos para uma decisão final. A seleção dos estudos incluídos na revisão foi realizada de maneira independente e “às cegas’’.
Para auxiliar na análise, a extração dos dados e das informações dos estudos foi realizada com instrumentos adaptados e propostos por Ursi1414 Ursi ES. Prevenção de lesões de pele no perioperatório: Revisão Integrativa da Literatura [dissertação]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2005. e Sousa et al.1010 Sousa LMM, Marques-Vieira CMA, Severino SSP, Antunes AV. A metodologia de Revisão Integrativa da Literatura em Enfermagem. Rev Invest Enferm 2017; 2:17-26.. As extrações de dados ocorreram por dois revisores independentes, sendo comparadas posteriormente.
Avaliação da qualidade metodológica
Os estudos foram avaliados de acordo com os níveis de evidência desenvolvidos por Melnyk1515 Melnyk BM. Evidence-based practice in nursing & healthcare: a guide to best practice. 4ª ed. Philadelphia: Wolters Kluwer Health; 2019. e Schenkman e Bousquat1616 Schenkman S, Bousquat AEM. Alteridade ou austeridade: uma revisão acerca do valor da equidade em saúde em tempos de crise econômica internacional. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4459-4473., a saber: I) alto: metassíntese (estudos qualitativos) ou metanálise (estudos quantitativos); II) médio-alto: evidência de um único estudo qualitativo ou quantitativo; III) médio: síntese de estudos descritivos; IV) médio-baixo: evidência de um único estudo descritivo; e V) baixo: opiniões de especialistas, estudos teóricos ou ensaios.
Para avaliação crítica dos estudos incluídos, foram utilizadas as ferramentas do Joanna Briggs Institute (JBI)1717 Joanna Briggs Institute (JBI). Critical Appraisal Tools [Internet]. [cited 2021 nov 10]. Available from: https://jbi.global/critical-appraisal-tools.
https://jbi.global/critical-appraisal-to... . Dois revisores avaliaram a qualidade metodológica de forma independente, utilizando duas listas de verificações correspondentes aos desenhos dos estudos incluídos: para pesquisas qualitativas e para estudos analíticos transversais. As discordâncias foram resolvidas por consenso e, quando necessário, um terceiro autor da revisão foi consultado.
Os artigos selecionados foram avaliados quanto aos critérios de suas respectivas listas de verificação e as respostas foram classificadas usando os parâmetros “sim”, que correspondeu à alta qualidade; “não”, qualidade baixa; e “pouco claro” para qualidade desconhecida. A partir dessa avaliação, foi possível verificar a possibilidade de viés em seu desenho, condução e análise e houve classificação do nível de viés de acordo com a pontuação obtida nessas ferramentas da seguinte maneira: A (06 a 10 pontos) são os estudos com boa qualidade metodológica e viés reduzido e, B (até 05 pontos) são aqueles com qualidade metodológica satisfatória, mas com potencial de viés aumentado1818 Toledo MM, Takahashi RF, De-La-Torre-Ugarte-Guanilo MC. Elementos de vulnerabilidade individual de adolescentes ao HIV/AIDS. Rev Bras Enferm 2010; 64(2):370-375..
Interpretação e análise do material bibliográfico
Para fins de processamento e análise dos artigos incluídos nesta revisão, foi utilizada a técnica de análise temática no qual cada artigo foi submetido a uma leitura flutuante e exaustiva do conteúdo, que foram codificados e categorizados1919 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. Após essa etapa inicial de processamento do material bibliográfico, o conjunto de temáticas, já categorizadas, foram discutidas, problematizadas e interpretadas à luz de referenciais teóricos que se relacionam com o objeto, aqui demarcado, quais sejam eles: Participação popular88 Valla VV, Assis M, Carvalho M. Participação Popular e os Serviços de Saúde: O Controle Social como Exercício da Cidadania. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz; 1993.,2020 Valla VV. Sobre a participação popular: uma questão de perspectiva. Cad Saude Publica 1998; 14(Supl. 2):507-518., Educação Popular2121 Freire P. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011., Monitoramento Participativo2222 Breilh J. De la vigilancia convencional al monitoreo participativo. Cien Saude Colet 2003; 8(4):937-951.,2323 Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. e Ecologia de Saberes66 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estud CEBRAP 2007; 79:71-94.,2424 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal; 2009.. Após leitura crítica e sistematização dos dados foram identificadas duas categorias: Bases teóricas e concepções em vigilância popular; e Experiências, métodos e técnicas em VPSAT.
Resultados e discussão
Características e síntese dos estudos
Considerando inicialmente a busca por título, resumo e descritores, foram encontradas 908 publicações, incluindo artigos, teses, resumos, relatórios e um vídeo, nas bases de dados, das quais 786 foram eliminadas a partir da leitura do título e do resumo por serem estudos duplicados ou não relacionados ao tema de interesse. Seguiu-se a leitura na íntegra dos 122 estudos pré-selecionados, dos quais 107 foram excluídos e 15 artigos foram incluídos na revisão por cumprirem os critérios de inclusão e por responderem à pergunta de pesquisa. A Figura 1 exibe o fluxograma relativo às ações do processo de seleção das publicações.
A síntese das publicações contempladas, de acordo com autor, ano, nível de evidência, local/país de realização da experiência, método, base teórica, concepções/termos de vigilância, é apresentada no Quadro 2.
Observa-se que a primeira publicação foi em 20002525 Quigley D, Handry D, Goble R, Sanchez V, George P. Participatory research strategies in nuclear risk management for native communities. J Health Commun 2000; 5(4):305-331., o que demonstra que é um tema recente na literatura nacional e internacional, seguidos de dois (2006)2626 Toledo RF. Educação, saúde e meio ambiente: uma pesquisa-ação no Distrito de Iauaretê do Município de São Gabriel da Cachoeira/AM [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006.,2727 Lambert T, Guyn L, Lane S. Development of local knowledge of environmental contamination in Sydney, Nova Scotia: environmental health practice from an environmental justice perspective. Sci Total Environ 2006; 368(2-3):471-484., um (2010)2828 Flum M, Siqueira CE, DeCaro A, Redway S. Photovoice in the Workplace: A Participatory Method to Give Voice to Workers to Identify Health and Safety Hazards and Promote Workplace Change - a study of University Custodians. Am J Ind Med 2010; 53(11):1150-1158., um (2012)2929 Toledo RF, Giatti LL, Pelicioni MCF. Mobilização Social em Saúde e Saneamento em Processo de Pesquisa-ação em uma Comunidade Indígena no Noroeste Amazônico. Saude Soc 2012; 21(1):206-218., um (2015)3030 Wilson SM, Murray RT, Jiang C, Dalemarre L, Burwell-Naney K, Fraser-Rahim H. Environmental Justice Radar: A Tool for Community-Based Mapping to Increase Environmental Awareness and Participatory Decision Making. Prog Community Health Partnersh 2015; 9(3):439-446., dois (2017)3131 English P, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Murillo E, Seto E, Wong M, King G, Wilkie A, Meltzer D, Carvlin G, Jerrett M, Northcross A. The Imperial County Community Air Monitoring Network: A Model for Community-based Environmental Monitoring for Public Health Action. Environ Health Perspect 2017; 125(7):074501.,3232 Musesengwa R, Chimbari MJ. Experiences of community members and researchers on community engagement in an Ecohealth project in South Africa and Zimbabwe. BMC Med Ethics 2017; 18(1):76., dois (2018)3333 Rey-Mazón P, Keysar H, Dosemagen S, Dignazio C, Blair D. Public Lab: Community-Based Approaches to Urban and Environmental Health and Justice. Sci Eng Ethics 2018; 24(3):971-997.,3434 Barzyk TM, Huang H, Williams R, Kaufman A, Essoka J. Advice and Frequently Asked Questions (FAQs) for Citizen-Science Environmental Health Assessments. Int J Environ Res Public Health 2018; 15(5):960., um (2019)3535 Panikkar B, Lemmond B, Allen L, DiPirro C, Kasper S. Making the invisible visible: results of a community-led health survey following PFAS contamination of drinking water in Merrimack, New Hampshire. Environ Health 2019; 18(1):79., dois (2020)3636 Johnston J, Juarez Z, Navarro S, Hernandez A, Gutschow W. Youth Engaged Participatory Air Monitoring: A 'Day in the Life' in Urban Environmental Justice Communities. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(1):93.,3737 Wong M, Wilkie A, Garzón-Galvis C, King G, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Meltzer D, Madrigal D, Claustro M, English P. Community-Engaged Air Monitoring to Build Resilience Near the US-Mexico Border. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1092. e dois (2021)3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554.,3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349., intensificando-se após 2015 o que reflete que tem sido um tema em expansão na literatura mundial. Quanto à origem das pesquisas, destacam-se oito países, sendo a liderança dos Estados Unidos (EUA) com nove publicações, seguido do Brasil com dois, e os demais países somente com uma publicação: México, Canadá, Israel/Palestina, Espanha e EUA, e em Zimbabué e África do Sul.
Percebe-se que, a partir de 2017, há nesta revisão um número mais elevado de estudos relacionados a VPSAT, com uma média de dois por ano. Outro destaque é que dos quinze estudos selecionados, nove são dos EUA, enquanto os demais países contam com a média de um artigo nesta revisão. Isso pode sinalizar que o tema tem se tornado emergente nos últimos anos, mas ao mesmo tempo, pode ter uma visibilidade acadêmica limitada, principalmente do lado Sul global que enfrenta maiores dificuldades de financiamento de pesquisas e tensões com o modelo neoextrativista de desenvolvimento.
Além disso, conforme Quadro 2, as técnicas de monitoramento, mapeamento participativo e comunicação popular foram alguns destaques da revisão. A inovação, em pelo menos três estudos, foi o uso da técnica “Photovoice”. O avanço das tecnologias desenvolvidas para o celular permite que esse equipamento possa ser estratégico para o registro de situações de risco socioambiental e contribua de forma decisiva para as ações de VPSAT e para demandar ações dos órgãos públicos frente às situações identificadas.
Todos os estudos têm como semelhança a utilização de metodologias participativas de pesquisa frente a problemas ambientais complexos com destaque para os relacionados à qualidade do ar. Isso pode indicar que mesmo diante de problemas de grande escala é possível que a comunidade contribua com protagonismo na realização da vigilância. Salienta-se que as populações em vulnerabilidade, especialmente, as que estão em risco ambiental, tais como as comunidades urbanas, os indígenas, os jovens pobres e os trabalhadores, são os grupos sociais que se destacam na pesquisa.
Avaliação da qualidade metodológica dos estudos incluídos
Nota-se no Quadro 3, disponível no repositório da Plataforma Open Science Framework (https://osf.io/5ptwj), sob identificação DOI: 10.17605/OSF.IO/6JB7V, que todas as publicações apresentaram classificação do nível de viés: A (06 a 10 pontos), que são os estudos com boa qualidade metodológica e viés reduzido. Dessas, cinco pesquisas2525 Quigley D, Handry D, Goble R, Sanchez V, George P. Participatory research strategies in nuclear risk management for native communities. J Health Commun 2000; 5(4):305-331.,2626 Toledo RF. Educação, saúde e meio ambiente: uma pesquisa-ação no Distrito de Iauaretê do Município de São Gabriel da Cachoeira/AM [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006.,2929 Toledo RF, Giatti LL, Pelicioni MCF. Mobilização Social em Saúde e Saneamento em Processo de Pesquisa-ação em uma Comunidade Indígena no Noroeste Amazônico. Saude Soc 2012; 21(1):206-218.,3232 Musesengwa R, Chimbari MJ. Experiences of community members and researchers on community engagement in an Ecohealth project in South Africa and Zimbabwe. BMC Med Ethics 2017; 18(1):76.,3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554. (33,3%) alcançaram a pontuação máxima, preenchendo todos os critérios de avaliação crítica e metodológica.
No caso das publicações que foram avaliadas com o checklist qualitativo, verifica-se no Quadro 3 que o critério de aprovação ética (Q9) esteve ausente em cinco estudos3333 Rey-Mazón P, Keysar H, Dosemagen S, Dignazio C, Blair D. Public Lab: Community-Based Approaches to Urban and Environmental Health and Justice. Sci Eng Ethics 2018; 24(3):971-997.,3434 Barzyk TM, Huang H, Williams R, Kaufman A, Essoka J. Advice and Frequently Asked Questions (FAQs) for Citizen-Science Environmental Health Assessments. Int J Environ Res Public Health 2018; 15(5):960.,3636 Johnston J, Juarez Z, Navarro S, Hernandez A, Gutschow W. Youth Engaged Participatory Air Monitoring: A 'Day in the Life' in Urban Environmental Justice Communities. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(1):93.,3737 Wong M, Wilkie A, Garzón-Galvis C, King G, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Meltzer D, Madrigal D, Claustro M, English P. Community-Engaged Air Monitoring to Build Resilience Near the US-Mexico Border. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1092.,3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349. e não ficou claro em duas publicações3030 Wilson SM, Murray RT, Jiang C, Dalemarre L, Burwell-Naney K, Fraser-Rahim H. Environmental Justice Radar: A Tool for Community-Based Mapping to Increase Environmental Awareness and Participatory Decision Making. Prog Community Health Partnersh 2015; 9(3):439-446.,3131 English P, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Murillo E, Seto E, Wong M, King G, Wilkie A, Meltzer D, Carvlin G, Jerrett M, Northcross A. The Imperial County Community Air Monitoring Network: A Model for Community-based Environmental Monitoring for Public Health Action. Environ Health Perspect 2017; 125(7):074501., ou seja, de 13 publicações que foram avaliadas com esse instrumento, sete (54%) não declararam sobre seu processo de aprovação ética. Ademais, no Quadro 3, percebe-se que em dois estudos3737 Wong M, Wilkie A, Garzón-Galvis C, King G, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Meltzer D, Madrigal D, Claustro M, English P. Community-Engaged Air Monitoring to Build Resilience Near the US-Mexico Border. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1092.,3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349. a relação entre o pesquisador e os participantes não foi abordada e em outros dois3131 English P, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Murillo E, Seto E, Wong M, King G, Wilkie A, Meltzer D, Carvlin G, Jerrett M, Northcross A. The Imperial County Community Air Monitoring Network: A Model for Community-based Environmental Monitoring for Public Health Action. Environ Health Perspect 2017; 125(7):074501.,3636 Johnston J, Juarez Z, Navarro S, Hernandez A, Gutschow W. Youth Engaged Participatory Air Monitoring: A 'Day in the Life' in Urban Environmental Justice Communities. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(1):93. não foi clara (Q7).
Em relação à avaliação do instrumento de qualidade metodológica para estudos analíticos transversais, foram avaliadas duas pesquisas. Em ambas2727 Lambert T, Guyn L, Lane S. Development of local knowledge of environmental contamination in Sydney, Nova Scotia: environmental health practice from an environmental justice perspective. Sci Total Environ 2006; 368(2-3):471-484.,3636 Johnston J, Juarez Z, Navarro S, Hernandez A, Gutschow W. Youth Engaged Participatory Air Monitoring: A 'Day in the Life' in Urban Environmental Justice Communities. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(1):93., das oito questões respondidas, não foi possível identificar os fatores de confusão (Q5) ou se foram estabelecidas estratégias para lidar com esses fatores (Q6). Um fator de confusão é a diferença entre os grupos de comparação e pode influenciar a direção dos resultados do estudo1717 Joanna Briggs Institute (JBI). Critical Appraisal Tools [Internet]. [cited 2021 nov 10]. Available from: https://jbi.global/critical-appraisal-tools.
https://jbi.global/critical-appraisal-to... .
Bases teóricas e concepções em vigilância popular
Essa categoria busca dialogar com os conceitos, os fundamentos e os princípios que embasam os estudos incluídos nesta revisão e que estão intimamente relacionados à VPSAT. Prado et al.3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349. destacam a importância dos mapeamentos participativos para a tomada de decisões sobre os usos do solo e os processos de desenvolvimento. Uma comunidade engajada no mapeamento da justiça ambiental produz conhecimento local que geram indicadores ambientais de avaliação dos territórios e identificam casos de injustiça ambiental, elementos fundamentais para o processo de vigilância3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349..
Nesse sentido, a pesquisa em saúde ganha potência com o envolvimento/engajamento da comunidade, incluindo uma série de atividades como consulta, disseminação de informações, colaboração na tomada de decisões, formação de parcerias com as partes interessadas e busca da orientação de líderes comunitários. Esse engajamento deve garantir às comunidades e aos pesquisadores respeito ao contexto sociocultural, político e econômico do território no qual ela é conduzida3232 Musesengwa R, Chimbari MJ. Experiences of community members and researchers on community engagement in an Ecohealth project in South Africa and Zimbabwe. BMC Med Ethics 2017; 18(1):76..
O engajamento comunitário e o uso da abordagem da Ciência Cidadã têm sido fundamentais para realização de práticas de saúde pública como o estabelecimento de redes de monitoramento da qualidade do ar independentes. O grande desafio continua sendo o financiamento de longo prazo dessas iniciativas3131 English P, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Murillo E, Seto E, Wong M, King G, Wilkie A, Meltzer D, Carvlin G, Jerrett M, Northcross A. The Imperial County Community Air Monitoring Network: A Model for Community-based Environmental Monitoring for Public Health Action. Environ Health Perspect 2017; 125(7):074501..
A ciência positivista baseada no “modelo biomédico” e na “ciência dura” considera os saberes comunitários como “contaminação dos dados” durante o processo de investigação. As limitações dos métodos para avaliação da exposição aos riscos na saúde ambiental da ciência positivista falham em fornecer subsídios satisfatórios para os estudos de base comunitária. Além disso, as pesquisas quantitativas não são suficientes para dar conta da complexidade da avaliação de impacto dos contaminantes da saúde. Nessa perspectiva, alguns estudos discorrem que é necessário dialogar no sentido de uma comunicação de risco efetiva, que vá ao encontro da comunidade de cada território que é afetada pelo risco e que não fique restrito apenas ao âmbito acadêmico como um repasse de informação aos pares, porém inacessíveis ao campo comunitário2525 Quigley D, Handry D, Goble R, Sanchez V, George P. Participatory research strategies in nuclear risk management for native communities. J Health Commun 2000; 5(4):305-331..
Segundo Nolan et al.3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554. a abordagem da violência estrutural e a pesquisa participante iluminam os estudos sobre as iniquidades das exposições e refinam as estratégias de mitigação. Promover uma relação mais equitativa entre comunidades e pesquisadores nesses tipos de estudos não é simples e exige: a garantia da participação comunitária em todas as etapas do processo de pesquisa; o reconhecimento dos saberes populares para que não sejam tratados como anedóticos ou subjetivos; e a preparação dos membros da comunidade para a realização de pesquisas de base comunitária3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554.. Nesse sentido, a educação popular e a ecologia de saberes são conceitos de referência importantes que fortalecem esse caminho na direção de uma pesquisa mais dialógica21, 24.
O trabalho de Lambert et al.2727 Lambert T, Guyn L, Lane S. Development of local knowledge of environmental contamination in Sydney, Nova Scotia: environmental health practice from an environmental justice perspective. Sci Total Environ 2006; 368(2-3):471-484. sobre a contaminação industrial faz emergir o conceito de Justiça Ambiental. Contrapondo a uma ciência tradicional que torna a comunidade um “objeto” da pesquisa, a Justiça Ambiental busca engajar a população nas ações, aliando o rigor metodológico da pesquisa com a ação para reivindicação da comunidade. O protagonismo popular se mostra necessário para a construção de uma ciência participativa com foco no enfrentamento das injustiças ambientais e seu impacto na saúde humana.
As experiências de Educação Popular inspiradas em Paulo Freire2121 Freire P. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011. são influências no processo de interação entre saberes tradicionais e científicos na construção de processos de VPSAT. Para Gil Sevalho44 Sevalho G. Apontamentos críticos para o desenvolvimento da vigilância civil da saúde. Physis 2016; 26(2):611-632. a realização da Vigilância Civil da Saúde tem alicerce na cultura local e na educação popular, tornando-se uma vertente da Vigilância em Saúde que corporifica a participação popular e contribui para a transformação social, complementando a tradicional vigilância epidemiológica. Paulo Freire buscou construir uma educação libertadora, em uma proposta dialógica entre lideranças e população, em que os sujeitos se encontram para a transformação do mundo em colaboração2121 Freire P. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011..
Entre os trabalhos analisados nesta revisão, percebe-se a aproximação com o pensamento de Paulo Freire e Boaventura Santos junto aos caminhos metodológicos implicados com o diálogo a partir dos saberes diversos e permeados com a realidade experienciada. A Educação Popular é utilizada como uma inspiração metodológica2828 Flum M, Siqueira CE, DeCaro A, Redway S. Photovoice in the Workplace: A Participatory Method to Give Voice to Workers to Identify Health and Safety Hazards and Promote Workplace Change - a study of University Custodians. Am J Ind Med 2010; 53(11):1150-1158.,2929 Toledo RF, Giatti LL, Pelicioni MCF. Mobilização Social em Saúde e Saneamento em Processo de Pesquisa-ação em uma Comunidade Indígena no Noroeste Amazônico. Saude Soc 2012; 21(1):206-218.,3636 Johnston J, Juarez Z, Navarro S, Hernandez A, Gutschow W. Youth Engaged Participatory Air Monitoring: A 'Day in the Life' in Urban Environmental Justice Communities. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(1):93.,3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349., sendo instrumento útil para analisar o contexto local através dos conhecimentos e das experiências prévias para melhor compreensão dos determinantes das situações-problema e a elaboração de propostas de soluções e ações2929 Toledo RF, Giatti LL, Pelicioni MCF. Mobilização Social em Saúde e Saneamento em Processo de Pesquisa-ação em uma Comunidade Indígena no Noroeste Amazônico. Saude Soc 2012; 21(1):206-218.,3636 Johnston J, Juarez Z, Navarro S, Hernandez A, Gutschow W. Youth Engaged Participatory Air Monitoring: A 'Day in the Life' in Urban Environmental Justice Communities. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(1):93.. É um processo de materialização do protagonismo popular das comunidades, em que se fornecem meios participativos de compartilhamento de conhecimentos para a construção de políticas públicas mais efetivas e que promovem e protegem a saúde dessas comunidades2828 Flum M, Siqueira CE, DeCaro A, Redway S. Photovoice in the Workplace: A Participatory Method to Give Voice to Workers to Identify Health and Safety Hazards and Promote Workplace Change - a study of University Custodians. Am J Ind Med 2010; 53(11):1150-1158.. Outros trabalhos abordaram a realização de uma educação comunitária ou uma educação em saúde sem citar a influência do método freiriano2525 Quigley D, Handry D, Goble R, Sanchez V, George P. Participatory research strategies in nuclear risk management for native communities. J Health Commun 2000; 5(4):305-331.,3333 Rey-Mazón P, Keysar H, Dosemagen S, Dignazio C, Blair D. Public Lab: Community-Based Approaches to Urban and Environmental Health and Justice. Sci Eng Ethics 2018; 24(3):971-997.,3737 Wong M, Wilkie A, Garzón-Galvis C, King G, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Meltzer D, Madrigal D, Claustro M, English P. Community-Engaged Air Monitoring to Build Resilience Near the US-Mexico Border. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1092..
Dessa forma, as vertentes de abordagens teóricas identificadas nesta revisão podem servir de base teórica de sustentação para a estruturação do conceito de VPSAT que está sendo desenvolvido no Brasil. Tem-se observado, em processos de pesquisas participativas, um interesse dos movimentos populares brasileiros em utilizar esse termo para estabelecer ações de promoção da vida frente ao atual modelo de desenvolvimento brasileiro. O conceito de Ecologia de Saberes é mais contemporâneo comparado ao de educação popular, e tem contribuído em termos epistemológicos na justificativa dessa escolha nos processos de pesquisa e na VPSAT.
Experiências, métodos e técnicas em VPSAT
A participação popular compreende as múltiplas ações de diferentes forças sociais para incidir na formulação, na execução, na fiscalização e na avaliação de políticas públicas e/ou de serviços destinados à comunidade2020 Valla VV. Sobre a participação popular: uma questão de perspectiva. Cad Saude Publica 1998; 14(Supl. 2):507-518.. Assim, esse conceito abriga a concepção de “envolvimento de membros da comunidade nos afazeres desta comunidade”, ou seja, fazer por e para si mesmos, o que leva a ideia do protagonismo comunitário.
Segundo Santos2424 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal; 2009., a combinação entre saberes populares e práticas comunitárias atrelada às técnicas de vigilância servem de orientação para os modelos assistenciais em saúde e aproximam as ações das necessidades reais e da reorganização da relação entre os sujeitos, os profissionais, os usuários e o ambiente. Nesse contexto, nasce a VPSAT que, para Carneiro e Pessoa33 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00298130. “não visa substituir o papel do Estado, mas ser a expressão da necessidade de uma maior participação da comunidade na vigilância, como está destacado na Política Nacional de Vigilância da Saúde”(p.5).
Dentre as experiências em vigilância popular sinalizadas nesta revisão, observa-se que o mapeamento comunitário tem sido uma prática adotada pelas comunidades3030 Wilson SM, Murray RT, Jiang C, Dalemarre L, Burwell-Naney K, Fraser-Rahim H. Environmental Justice Radar: A Tool for Community-Based Mapping to Increase Environmental Awareness and Participatory Decision Making. Prog Community Health Partnersh 2015; 9(3):439-446.,3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349.. Realizados a partir de um Sistemas de Informação Geográfica de Participação Pública (PPGIS), esses mapeamentos são formas que os membros da comunidade encontraram de identificar de maneira independente problemas e soluções para participar e incidir nas decisões acerca de seus territórios. Trata-se de técnicas que possibilitam o mapeamento de prioridades relacionadas a indicadores, como resíduos radioativos2828 Flum M, Siqueira CE, DeCaro A, Redway S. Photovoice in the Workplace: A Participatory Method to Give Voice to Workers to Identify Health and Safety Hazards and Promote Workplace Change - a study of University Custodians. Am J Ind Med 2010; 53(11):1150-1158.; lançamento de esgoto2626 Toledo RF. Educação, saúde e meio ambiente: uma pesquisa-ação no Distrito de Iauaretê do Município de São Gabriel da Cachoeira/AM [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006.,2929 Toledo RF, Giatti LL, Pelicioni MCF. Mobilização Social em Saúde e Saneamento em Processo de Pesquisa-ação em uma Comunidade Indígena no Noroeste Amazônico. Saude Soc 2012; 21(1):206-218.; doenças, como esquistossomose e malária3232 Musesengwa R, Chimbari MJ. Experiences of community members and researchers on community engagement in an Ecohealth project in South Africa and Zimbabwe. BMC Med Ethics 2017; 18(1):76.; materiais particulados, em especial, os inaláveis como MP103131 English P, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Murillo E, Seto E, Wong M, King G, Wilkie A, Meltzer D, Carvlin G, Jerrett M, Northcross A. The Imperial County Community Air Monitoring Network: A Model for Community-based Environmental Monitoring for Public Health Action. Environ Health Perspect 2017; 125(7):074501.,3737 Wong M, Wilkie A, Garzón-Galvis C, King G, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Meltzer D, Madrigal D, Claustro M, English P. Community-Engaged Air Monitoring to Build Resilience Near the US-Mexico Border. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1092. e MP2,53636 Johnston J, Juarez Z, Navarro S, Hernandez A, Gutschow W. Youth Engaged Participatory Air Monitoring: A 'Day in the Life' in Urban Environmental Justice Communities. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(1):93.; gases do aquecimento global, como dióxido de nitrogênio (NO2), ozônio (O3), dióxido de enxofre (SO2)3030 Wilson SM, Murray RT, Jiang C, Dalemarre L, Burwell-Naney K, Fraser-Rahim H. Environmental Justice Radar: A Tool for Community-Based Mapping to Increase Environmental Awareness and Participatory Decision Making. Prog Community Health Partnersh 2015; 9(3):439-446.,3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554.; ruído3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554.; áreas de risco, por exemplo, locais abandonados e lixões clandestinos3030 Wilson SM, Murray RT, Jiang C, Dalemarre L, Burwell-Naney K, Fraser-Rahim H. Environmental Justice Radar: A Tool for Community-Based Mapping to Increase Environmental Awareness and Participatory Decision Making. Prog Community Health Partnersh 2015; 9(3):439-446.,3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349..
Rey-Mazón et al.3333 Rey-Mazón P, Keysar H, Dosemagen S, Dignazio C, Blair D. Public Lab: Community-Based Approaches to Urban and Environmental Health and Justice. Sci Eng Ethics 2018; 24(3):971-997. realizaram uma pesquisa envolvendo três estudos de casos sobre “vigilância dos cidadãos” a partir do método “Do-It-Yourself” (DIY - “faça você mesmo” em português), tecnologias de código aberto, desenvolvidas pelo Laboratório Público de Tecnologia Aberta e Ciência (PublicLab). Eles apresentaram formas de efetuar o monitoramento comunitário através de técnicas e materiais simples, de fácil acesso e de baixo custo, como o mapeamento aéreo de áreas de risco utilizando pipas ou balões no ar para registro fotográficos exercendo vigilância aérea com segurança e as formas de identificar facilmente indícios de qualidade ruim da água através de um dispositivo monitor projetado por estudantes, sinalizado, por exemplo, pela cor do fluido.
Os autores lembram que fazer uso de materiais belos e chamativos, como um grande balão vermelho no ar ou uma bela pipa acoplados a câmeras simples, além de prender a atenção dos envolvidos, no geral jovens, ainda desmistifica o uso da tecnologia e estimula os participantes a fazerem sugestões e, até mesmo, montar os seus próprios dispositivos de monitoramento, o que seria improvável de acontecer se houvesse o uso de drones ou outra tecnologia especializada, por exemplo3333 Rey-Mazón P, Keysar H, Dosemagen S, Dignazio C, Blair D. Public Lab: Community-Based Approaches to Urban and Environmental Health and Justice. Sci Eng Ethics 2018; 24(3):971-997.. No caso específico do estudo realizado em Israel/Palestina, houve uma atenção especial para o tipo de aparelho que seria utilizado, dado a vigilância militar constante no espaço aéreo que colocava em risco a integridade física dos participantes locais. A escolha de pipas permitiu o engajamento maior dos jovens e a troca de saberes com os pesquisadores que não tinham experiência com a atividade de empinar pipas na região3333 Rey-Mazón P, Keysar H, Dosemagen S, Dignazio C, Blair D. Public Lab: Community-Based Approaches to Urban and Environmental Health and Justice. Sci Eng Ethics 2018; 24(3):971-997..
Nos mapeamentos, o conhecimento situado da comunidade deu significado às fotos, além de permitir o empoderamento e a problematização acerca dos usos do espaço urbano em Castellón, na Espanha, e a “vigilância do vigiado” no caso de Israel/Palestina. As empresas que fazem esses serviços cobram por esses dados, sendo inovadora a possibilidade de essas comunidades gerarem seus próprios dados de mapeamento aéreo em resolução adequada autonomamente. Ter a visão de além dos muros e limites impostos pelo Estado e o setor privado permitiu estimular o que os autores chamaram de “imaginação cívica”, favorecendo a construção coletiva de soluções mais viáveis e que atendam melhor às demandas da comunidade. Outra questão relevante diz respeito à segurança de se publicitar dados que podem expor as comunidades, haja vista que as áreas de estudo são, muitas vezes, áreas de intensos conflitos, devendo ser algo discutido, acordado e respeitado pelos envolvidos3333 Rey-Mazón P, Keysar H, Dosemagen S, Dignazio C, Blair D. Public Lab: Community-Based Approaches to Urban and Environmental Health and Justice. Sci Eng Ethics 2018; 24(3):971-997..
Em Tijuana, no México, os resultados do monitoramento comunitário apontaram para desafios ambientais específicos nesta cidade fronteiriça, incluindo lixões clandestinos. Os resultados alcançados a partir da vigilância dessas áreas contribuíram na elaboração do plano urbano de toda a cidade por meio da identificação de problemas e verificação de terreno por parte dos residentes3939 Prado C; Colectivo Salud y Justicia Ambiental; Red de Ciudadanos para el Mejoramiento de las Comunidades. Border Environmental Justice PPGIS: Community-Based Mapping and Public Participation in Eastern Tijuana, México. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(3):1349..
Em Charleston, Carolina do Sul, EUA, a partir de uma ferramenta de mapeamento desenvolvida por líderes comunitários em uma parceria comunidade-universidade-governo, foi possível abordar os riscos ambientais em locais nos quais as comunidades estavam em perigo por meio de pesquisas, capacitações da comunidade e planos de ação. A partir dessa parceria, foi criado um “radar de justiça ambiental” (EJ) projetado para ajudar os membros da comunidade a aprender mais sobre os perigos ambientais locais e compartilhar informações, usando um site que atua como um portal online em que as partes interessadas podem visualizar as áreas de preocupação ou os riscos ambientais para as comunidades3030 Wilson SM, Murray RT, Jiang C, Dalemarre L, Burwell-Naney K, Fraser-Rahim H. Environmental Justice Radar: A Tool for Community-Based Mapping to Increase Environmental Awareness and Participatory Decision Making. Prog Community Health Partnersh 2015; 9(3):439-446..
Outrossim, notou-se o uso da técnica Photovoice em dois estudos envolvendo mapeamento comunitário e um sobre ergonomia participativa. Para Flum et al.2828 Flum M, Siqueira CE, DeCaro A, Redway S. Photovoice in the Workplace: A Participatory Method to Give Voice to Workers to Identify Health and Safety Hazards and Promote Workplace Change - a study of University Custodians. Am J Ind Med 2010; 53(11):1150-1158. essa técnica é uma importante ferramenta, pois é uma forma eficaz de os trabalhadores identificarem os riscos ocupacionais e demais situações perigosas ou inadequadas não reconhecidas ou valorizadas pela chefia, capacitando-os a serem mais ativos em relação à saúde e segurança. Ademais, de acordo com Wilson et al.3030 Wilson SM, Murray RT, Jiang C, Dalemarre L, Burwell-Naney K, Fraser-Rahim H. Environmental Justice Radar: A Tool for Community-Based Mapping to Increase Environmental Awareness and Participatory Decision Making. Prog Community Health Partnersh 2015; 9(3):439-446., além dos trabalhadores, os residentes e as organizações comunitárias também se utilizaram dessa técnica para identificar e agir sobre os riscos ambientais não registrados em seus territórios ou que repercutem em outras questões de saúde ambiental.
Semelhante ao Photovoice, no Brasil, Renata de Toledo2626 Toledo RF. Educação, saúde e meio ambiente: uma pesquisa-ação no Distrito de Iauaretê do Município de São Gabriel da Cachoeira/AM [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2006. produziu um jornal comunitário que teve o objetivo de socializar e discutir questões de saúde e ambiente com a participação de todos (os que o confeccionaram e os demais leitores) na construção de conhecimentos e de habilidades voltadas para o empoderamento. Ou seja, aqui há um exemplo de articulação/relação da comunidade com o serviço de saúde e a academia numa perspectiva emancipatória e dialógica. O Jornal foi uma técnica para divulgar os anseios da comunidade por mudanças, bem como os trabalhos que vinham sendo desenvolvidos pelos alunos de um curso, além de ser uma oportunidade para que “traduzissem” informações anteriormente disponibilizadas em relatório técnico da referida pesquisa, iniciada em 2005, em formato e conteúdo mais acessíveis a toda a população local2929 Toledo RF, Giatti LL, Pelicioni MCF. Mobilização Social em Saúde e Saneamento em Processo de Pesquisa-ação em uma Comunidade Indígena no Noroeste Amazônico. Saude Soc 2012; 21(1):206-218..
Nesse sentido, os autores dialogam com a proposta de “tradução intercultural” de Santos66 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estud CEBRAP 2007; 79:71-94. que permite ir de encontro ao pensamento abissal, que provoca o epistemicídio, e abraça a ecologia de saberes, valorizando e reconhecendo a existência de uma pluralidade de formas de conhecimento para além do científico, pois “deve dar-se preferência às formas de conhecimento que garantam a maior participação dos grupos sociais envolvidos na concepção, na execução, no controle e na fruição da intervenção”66 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estud CEBRAP 2007; 79:71-94.(p.51).
Sob a perspectiva da construção de conhecimentos e de habilidades voltadas para o empoderamento popular, o projeto de Gerenciamento de Risco Nuclear para Comunidades Nativas (NRMNC) em Nevada, Utah, e Sul da Califórnia, desenvolveu ao longo de quatro anos, numerosos materiais educativos sobre questões de risco nuclear: livros básicos de radiação, fichas de dados de radionuclídeos, fichas de dados sobre metodologias de risco para a saúde e guias visuais sobre a contaminação específica do local; além de vários perfis toxicológicos extensivos em contaminantes2525 Quigley D, Handry D, Goble R, Sanchez V, George P. Participatory research strategies in nuclear risk management for native communities. J Health Commun 2000; 5(4):305-331..
A construção desses materiais ocorreu com engajamento da comunidade, no qual residentes comunitários afetados por contaminação nuclear participaram e aplicaram entrevistas a fim de desenvolver um perfil de exposição comunitária, construíram mapas comunitários, bem como compareceram em workshops ao longo de quatro anos para construção de materiais educativos. Um método de gestão de riscos apontado é a investigação baseada na comunidade, que se trata de uma forma de criar conhecimento que envolve aprender com a investigação e aplicar o que se aprende aos problemas coletivos através da ação social2525 Quigley D, Handry D, Goble R, Sanchez V, George P. Participatory research strategies in nuclear risk management for native communities. J Health Commun 2000; 5(4):305-331..
Estudos de alta qualidade sobre consequências de exposições ambientais para a saúde são caros e demorados, criando uma situação de “undone science”, ou seja, ciência desfeita, que perpetua a falta de informações sobre esses impactos3535 Panikkar B, Lemmond B, Allen L, DiPirro C, Kasper S. Making the invisible visible: results of a community-led health survey following PFAS contamination of drinking water in Merrimack, New Hampshire. Environ Health 2019; 18(1):79.. Diante de tal contexto, a própria comunidade, por vezes, assume a tarefa de buscar provar as suas suspeitas de que as exposições prejudiciais possam levar a doenças, produzindo estudos em tempo hábil. Em Merrimack, EUA, um projeto examinou a resposta local à contaminação do sistema público de água e da água de poços locais por per e polifluoroalquil, através de uma pesquisa de saúde protagonizada e administrada por um grupo de defesa local. A pesquisa de saúde baseada na comunidade buscou definir os riscos e os perigos enfrentados pelos residentes, documentando os potenciais impactos da exposição aos contaminantes reduzir os riscos a que estão expostas3535 Panikkar B, Lemmond B, Allen L, DiPirro C, Kasper S. Making the invisible visible: results of a community-led health survey following PFAS contamination of drinking water in Merrimack, New Hampshire. Environ Health 2019; 18(1):79..
O monitoramento do ar comunitário no qual os membros da comunidade desempenham papéis importantes na determinação do desenho do estudo, localização e implantação de monitores e coleta de dados foi outra técnica adotada nas pesquisas com caráter de vigilância. Em uma pesquisa realizada no Imperial County, Califórnia, EUA, os jovens foram atores decisivos na caracterização da variabilidade espacial das concentrações de poluentes do ar e no aproveitamento de tecnologias para coleta de dados3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554.. Eles selecionaram os locais prioritários para o monitoramento e produziram informações em tempo real sobre a qualidade do ar no nível da comunidade por meio do estabelecimento de uma rede de monitoramento do ar comunitário (CAMN), que passou a ter a suas informações armazenadas, processadas, exibidas e disseminadas pela própria comunidade no espaço virtual chamado “Identificando Violações que Afetam Vizinhanças” (IVAN), servindo de meio de denúncias na internet3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554..
Os jovens atuaram no monitoramento da qualidade do ar a partir do método de Pesquisa-Ação Participativa Juvenil (YPAR) que enfatiza o engajamento baseado em pontos fortes, inclusão equitativa da comunidade em todas as facetas da pesquisa, coaprendizagem entre acadêmicos e membros da comunidade, distribuição equitativa de recursos, capacitação local, pesquisa e ação, abordando as prioridades locais e engajamento sustentado3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554.. Por meio da YPAR, os jovens trazem perspectivas e novas esperanças, muitas vezes marginalizadas, ajudando pesquisadores e comunidades a transformar sua realidade a partir de entendimentos mais profundos de como a violência estrutural e o eco-apartheid interagem para determinar probabilisticamente os ambientes sociais e construídos que afetam profundamente a saúde dos membros da comunidade3838 Nolan J, Coker E, Ward B, Williamson Y, Harley K. Freedom to Breathe: Youth Participatory Action Research (YPAR) to Investigate Air Pollution Inequities in Richmond, CA. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(2):554..
Segundo Wong et al.3737 Wong M, Wilkie A, Garzón-Galvis C, King G, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Meltzer D, Madrigal D, Claustro M, English P. Community-Engaged Air Monitoring to Build Resilience Near the US-Mexico Border. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1092., embora os projetos de monitoramento do ar com envolvimento da comunidade possam exigir financiamento substancial, tempo e experiência diversificada da equipe, eles podem resultar em melhores resultados do projeto e fortalecimento da capacidade, sustentabilidade e resiliência da comunidade para lidar com as condições ambientais e de saúde.
English et al.3131 English P, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Murillo E, Seto E, Wong M, King G, Wilkie A, Meltzer D, Carvlin G, Jerrett M, Northcross A. The Imperial County Community Air Monitoring Network: A Model for Community-based Environmental Monitoring for Public Health Action. Environ Health Perspect 2017; 125(7):074501. demonstraram que, a partir do monitoramento comunitário, há aumento do conhecimento e da capacidade da comunidade sobre o processo necessário para configurar e manter monitores, e os parceiros da comunidade agora estão autorizados a iniciar e coletar dados aéreos por si próprios. Para Wong et al.3737 Wong M, Wilkie A, Garzón-Galvis C, King G, Olmedo L, Bejarano E, Lugo H, Meltzer D, Madrigal D, Claustro M, English P. Community-Engaged Air Monitoring to Build Resilience Near the US-Mexico Border. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1092. essas práticas demonstram que as comunidades têm experiência e recursos para contribuir substancialmente com os projetos de pesquisa de monitoramento do ar quando têm papéis de liderança equitativos e diversos mecanismos para um envolvimento significativo.
Apresenta-se no Quadro 4 uma breve descrição sobre as principais experiências, métodos e técnicas de VPSAT, identificadas nesta revisão integrativa.
Limitações
A revisão foi realizada considerando os descritores indexados pela padronização do DeCs/MeSh. Contudo, por não conter o descritor “vigilância popular”, alguns estudos que empregaram essa palavra-chave, mas que não utilizaram os descritores que foram selecionados para essa revisão, podem não ter sido selecionados. Assim, recomenda-se a criação de alguns descritores no âmbito da vigilância, tais como: “vigilância popular”, “vigilância civil”, “vigilância dos cidadãos” e “vigilância comunitária”, pois contribuirá para a visibilização de estudos da área.
Além disso, o estudo utilizou somente o descritor “participação da comunidade” para a busca na literatura, não se apropriando de outras terminologias comuns como “participação social” e “pesquisa-ação”, “empoderamento” e “controle social”, o que pode limitar a quantidade de artigos encontrados e incluídos nesta revisão.
Por fim, não foram aplicadas buscas de publicações de estudos por outros métodos, por exemplo, em sites, em organizações, por busca de citações e na literatura cinzenta; utilizando-se apenas das bases de dados que estão na metodologia desta pesquisa. Salienta-se que 11 estudos selecionados para leitura completa não foram recuperados, pois estavam em bases de dados pagas e que não podem ser acessados pelo Portal de Periódicos da CAPES.
Considerações finais
Identificaram-se, a partir desta revisão, bases teóricas e metodológicas (ciência cidadã, justiça ambiental, educação popular e vigilância comunitária), experiências (mapeamentos e monitoramentos comunitários), métodos (pesquisa-ação, “faça você mesmo” - DIY e investigação baseada na comunidade) e técnicas (“Photovoice” e Jornal Comunitário) que podem ser utilizados como referências para as práticas de VPSAT.
Os resultados das pesquisas sugerem que esse forte envolvimento das comunidades nos projetos de vigilância popular gerou maior consciência, conhecimento, capacidade de enfrentamento dos desafios, infraestrutura e influência a partir de uma parceria entre a comunidade, os serviços de saúde e as instituições de pesquisa.
Ademais, os principais achados deste estudo apontam para a importância das experiências e das metodologias adotadas em que a comunidade é protagonista na geração de dados a partir da coleta e da produção sistemática de informações baseada em estratégias de monitoramento participativo e simplificado. Considera-se essa uma das principais características da VPSAT aqui proposta.
Assim, o reconhecimento da VPSAT como importante fonte de dados e de intervenção pelos sistemas de saúde e pela academia pode contribuir para que a vigilância da saúde institucional se torne mais dialógica e efetiva. De modo geral, esses estudos reforçam a importância da participação popular como forma de potencializar o campo da Vigilância da Saúde na defesa da vida.
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Financiamento
Programa Inova Fiocruz: Edital Emergências em Saúde Pública; e Fiocruz Ceará.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Set 2023 - Data do Fascículo
Set 2023
Histórico
- Recebido
15 Ago 2022 - Aceito
10 Jan 2023 - Publicado
12 Jan 2023