Vozes de mulheres negras na poesia brasileira

Flavia Rios Sobre o autor
2020

A história negra no Brasil também pode ser escrita através da literatura. São diversas as formas escolhidas pelas pessoas negras para expressarem esteticamente dimensões subjetivas e a concretude de suas experiências de vida coletiva, seja em termos de saúde, de comportamentos sociais ou ainda em termos de expectativas de novas formas de bem viver. Da crônica ao romance, passando pelo conto e outros tipos narrativos, artistas negros exploraram essas formas durante séculos no país e atravessam várias correntes literárias. De todas as formas em que a literatura brasileira se fez presente na história das artes negras, há um lugar especial para a poesia.

Dos grandes clássicos do período colonial aos poetas da contemporaneidade, a poesia negra ganha caminho próprio no Brasil. Não faltam nomes ilustres como Domingos Caldas Barbosa, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Cruz e Souza, Luiz Gama, entre outros. Há que se notar até os enquadramentos equivocados com que os poetas negros foram retratados pelo juízo da crítica. Muitos, por exemplo, atribuíram ao poeta Cruz e Souza uma obsessão pela cor branca em detrimento do mundo negro. Todavia, faz algumas décadas que a crítica já vem mostrando as facetas complexas do maior escritor simbolista brasileiro, especialmente no que toca à temática da negritude. Fragmentos do poema “Afra” dão mostras das rotas poéticas do artista:

Ressurges dos mistérios da LuxúriaAfra, tentada pelos verdes pomosEntre os silfos magnéticos e os gnomosMaravilhosos da paixão purpúrea.

Do século XX aos anos iniciais do século XXI, corre uma lista grande de autores e autoras negras que se dedicaram à poesia. Só para citar alguns: Mario de Andrade, Lino Guedes, Carlos Assumpção, Oswaldo de Camargo, Solano Trindade, Oliveira Silveira, Ricardo Aleixo, Edmilson de Almeida Pereira e Luiz Silva (Cuti).

Nessa lista negra da poesia que não cabe nessas páginas curtas de uma resenha, os leitores e as leitoras haverão de se perguntar: onde estão as mulheres negras na poesia brasileira? Ou melhor, onde estão as poetas negras da nossa literatura? Essas perguntas inquietantes encontram respostas no estudo acadêmico de Heleine Fernandes de Souza11 Souza HF. A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: Malê; 2020., em seu livro recém-lançado A poesia negra-feminina. A autora, além de poeta, é pesquisadora do Laboratório Estudos Negros do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ.

Em um campo vasto e ainda inexplorado de forma profunda e detalhada pela academia brasileira habita uma lista robusta de artistas negras que produzem poesia. Ainda que não consiga dar conta de listar todas por aqui, é preciso expressar, ainda que de forma parcial, alguns desses nomes: Miriam Alves, Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Maria Nilda de Carvalho Mota (a Dinha), Esmeralda Ribeiro, Tatiana Nascimento, Beatriz Nascimento, Mel Duarte, Livia Natália, Mel Adún e Cristiane Sobral.

Esse universo pouco explorado e até invisibilizado pela academia e pela crítica literária é terreno fértil para a investigação de Heleine Fernandes de Souza, que se coloca o desafio não apenas de investigar o campo da produção poética de mulheres negras, tem também tem como empreitada selecionar quais delas fariam parte do seu escrutínio analítico. Chama a atenção que a autora busque deslocar-se do centro-sul brasileiro em direção à outras partes do país, justamente para compor um corpus diversificado da literatura negra feminina, seja em termos regionais ou geracionais.

No abre-alas do livro, encontramos a imagem das três mulheres que serão interlocutoras centrais da análise de Heleine Fernandes de Souza, são elas: Conceição Evaristo, Livia Natália e Tatiana Nascimento. O fato de suas imagens virem já no início do livro indica a intencionalidade da autora em apresentar as fotografias como forma de (re)conhecimento das artistas negras enquanto poetas, e não como coisas. Trata-se, portanto, de retratos da gente negra como artista, marca que a pesquisadora irá imprimir às suas análises das obras selecionadas.

Dessas artistas, Heleine Fernandes de Souza explora os saberes, conhecimentos ancestrais de cuidados com o corpo e a saúde mental. A consciência crítica do corpo da mulher, a sua relação com a maternidade, os cuidados com as mais velhas, com as crianças e o cuidado de si. Esses temas são frequentes na poesia negra-feminina, assim como a preocupação com relação à cultura e à natureza, envolvendo o meio ambiente e suas riquezas para o bem viver, o que se mostra forte nos símbolos mobilizados a partir das cosmovisões afro-brasileiras e de matrizes africanas. Práticas de autocuidado, que vão da observação do corpo, como no caso da menstruação, à gravidez e ao puerpério, são temas recorrentes em suas obras. Os vínculos afetivos intergeracionais, os aprendizados e sabedorias ancestrais como formas de valorização de tradições e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, assim como práticas de solidariedade interpessoal, em razão das condições sociais, históricas, econômicas e de saúde, trazem à poesia negra feminina uma característica ímpar, posto que provoca a produção de saber em saúde coletiva ao colocar em cena as clivagens de gênero e raça e seus impactos também em termos de desigualdades sociais. Essa produção artística joga luz ainda sobre formas de sobrevivências e valores que, fortalecidos em vida social, são fundamentais para a superação de problemas sociais que desafiam a saúde coletiva no Brasil.

O livro é dividido em três partes em que Heleine Fernandes de Souza realiza sua discussão teórica, enuncia seu problema de pesquisa, a metodologia empregada e os conceitos que lhe servirão na análise. Nas duas primeiras partes, encontramos importantes discussões que dizem respeito ao problema do epistemicídio. Em contraste, a autora apresenta a poesia como forma de existência e o debate rico sobre estética afrodiaspórica ganha fôlego. E na segunda parte, vemos emergir com mais luminosidade o problema da literatura negra brasileira, o enfrentamento à crítica canônica e também a apresentação de um histórico de agências negras em defesa dessa literatura. Em particular, destaque-se o movimento literário Quilomboje, presente na cena nacional há mais de quatro décadas. Nessa parte que compreende quase o meio do livro, já há a enunciação do centro do debate da tese: a poesia negra-feminina. Por fim, é na terceira parte que se encontra a cereja do bolo: a análise da matéria poética.

Das trajetórias das artistas, é interessante destacar a origem popular das três, bem como seus múltiplos pertencimentos artísticos. Tatiana Nascimento, além de poeta é cantora, produz vídeos e performances. Livia Natália é soteropolitana e professora da UFBA. Assim como as duas autoras citadas, Conceição Evaristo é apresentada como autora mineira radicada no Rio de Janeiro cuja vasta bibliografia já lhe coloca em papel distinto. Em comum, também são doutoras, formadas e pós-graduadas em letras em importantes universidades brasileiras, há também em suas trajetórias o profundo vínculo e investimento na produção sobre a literatura negra dentro e fora da academia.

Na análise dos poemas selecionados, saltam aos olhos os temas que atravessam o corpus estudado, a exemplo da poética afrocentrada e da dimensão diaspórica presentes nas três. Temas como ancestralidade, memória, a relação entre mente e corpo, amor, saúde coletiva, violências, racismo e religiões de matriz africana são movidos por meio de uma miríade de símbolos que dão concretude às imagens criadas por elas, a exemplo das vaginas abertas presentes no poema “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, de Conceição Evaristo (2017), ou o cabelo de carapinha (alisado), como no poema “Onde espelho?”, de Livia Natália (2015), ou como as sutilezas da escrita sobre (lagri/lasti)mar no poema “Baobá”, de Tatiana Nascimento (2018). Mães, filhas, (bisa)avós, orixás femininas, amigas e tantas outras são interlocutoras, agentes de narrativas, retratos da memória, enfim, matéria para essa poesia negra no feminino, ou seja, seu sentido de ser/estar no mundo.

O livro de Heleine Fernandes de Souza é uma rica contribuição para o campo das literaturas brasileiras, não apenas por mostrar as ausências identificadas na crítica literária nacional, mas porque realiza uma fina leitura dessa poesia negra do gênero feminino. No entanto, a obra em tela vai muito além de contribuir para o campo da literatura, fazendo uso da literatura para enriquecer o conhecimento do campo da saúde coletiva. O livro aqui resenhado, na esteira dos dois volumes de Literatura e saúde pública22 Machado FV, Carvalho ICM, Liberali J. Literatura e saúde pública: a narrativa entre a intimidade, o cuidado e a política. Volume 1. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2021.,33 Machado FV, Carvalho ICM, Liberali J. Literatura e saúde pública - territórios e cuidado: gênero, família, vida e morte. Volume 2. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2021., que contêm escritos literários sobre temas de saúde, evidencia que raça, gênero, sexualidade, classe, geração, território, entre outros marcadores dinâmicos da diferença, adoecem e matam cotidianamente mulheres negras, mas que estas mulheres persistem e insistem em viver. Através da poesia, as autoras, poetas insubmissas, promovem escrevivências, como refere Evaristo44 Evaristo CA. Escrevivência e seus subtextos. In: Duarte CL, Nunes IR, organizadoras. Escrevivência: a escrita de nós - reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte; 2020.. Por fim, o livro de Heleine Fernandes de Souza contribui para o campo da saúde coletiva por trazer as vozes de mulheres negras que nem sempre são ouvidas. Não à toa o livro figurou na lista dos finalistas do prêmio Jabuti no ano de 2021. Sem dúvidas A poesia negra-feminina faz ecoar a poética insurgente que colocou para fora, em alto e bom tom, “as vozes mudas caladas/engasgadas nas gargantas”, das “Vozes-Mulheres” da literatura deste país.

Referências

  • 1
    Souza HF. A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: Malê; 2020.
  • 2
    Machado FV, Carvalho ICM, Liberali J. Literatura e saúde pública: a narrativa entre a intimidade, o cuidado e a política. Volume 1. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2021.
  • 3
    Machado FV, Carvalho ICM, Liberali J. Literatura e saúde pública - territórios e cuidado: gênero, família, vida e morte. Volume 2. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2021.
  • 4
    Evaristo CA. Escrevivência e seus subtextos. In: Duarte CL, Nunes IR, organizadoras. Escrevivência: a escrita de nós - reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte; 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023
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