Resumo
O artigo analisou o processo de precarização das relações de trabalho no setor da saúde, demonstrando como essa situação gerou sofrimento dos trabalhadores. O texto buscou registrar como a adoção institucional das concepções econômicas neoliberais, de redução das políticas sociais de Estado, acopladas a um histórico de rejeição cultural aos direitos trabalhistas, proporcionou a atração dos mecanismos de precarização do trabalho, notadamente, a terceirização da mão de obra e da prestação de serviços. No segundo momento, o texto aponta as impropriedades jurídicas cometidas, apresentando as consequências da fragilização do vínculo jurídico nas condições de trabalho desses trabalhadores, principalmente no que se refere às jornadas de trabalho e a remuneração, destacando-se, também, o quanto a disseminação desses vínculos representou um fator de rebaixamento geral dos salários e direitos trabalhistas e previdenciários no setor. Foram apresentados, ainda, dados das pesquisas da Fiocruz sobre condições de trabalho durante a pandemia. Conclui mostrando a urgência de se resgatarem os institutos jurídicos trabalhistas que foram abandonados no percurso histórico estudado, para direcionar a novo rumo as políticas públicas na saúde.
Palavras-chave:
Precarização do trabalho na saúde; Trabalho e profissionais de saúde; Jornadas de trabalho; Previdência Social
Introdução
No período da pandemia, que ainda não terminou, não foram poucos os reconhecimentos em torno da essencialidade dos serviços prestados pelos profissionais da saúde (PS). A população demonstrou sua gratidão a estas pessoas com gestos e palavras. Inúmeras foram as situações em que os PS se viram alvos de aplausos, sendo até tratados como heróis, eis que se tornou mais evidenciado ao público em geral o que eles de fato fazem: salvar vidas. Contudo, muito pouco ou quase nada se disse sobre as condições em que trabalham.
O presente artigo é dedicado a explicitar como alguns institutos jurídicos trabalhistas e previdenciárias, que deveriam servir para melhorar as condições de vida e de trabalho deles, têm, ao contrário, contribuído para “legitimar” seu sofrimento.
Uma questão importante a se registrar é que no país, o término jurídico-formal da escravidão não representou uma superação das bases culturais, sociais e econômicas que estruturaram o escravismo durante quase 400 anos de nossa história. “O preconceito contra o negro ultrapassou o fim da escravidão e chegou modificado a nossos dias. Até pelo menos a introdução em massa de trabalhadores europeus no centro-sul do Brasil, o trabalho manual foi socialmente desprezado como ‘coisa de negro’”1 (p. 33).
Desta forma, é importante, pois, falar sobre qual a modalidade do vínculo jurídico trabalhista em que se inserem; quais as garantias de emprego que possuem; quanto ganham; qual a carga de trabalho a que estão submetidos; quais os tipos de insegurança jurídica que experimentam; quem são e quantas horas trabalham.
Método
O artigo é de caráter descritivo com base em referenciais jurídicos para fundamentar a análise dos dados das pesquisas “Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil”22 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021. (projeto matricial) e “Os Trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil”33 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022.. São estudos transversais, de abrangência nacional e contaram com a participação de 15.132 profissionais de saúde (PS) e de 21.480 trabalhadores invisíveis da saúde, (TIS) oriundos das profissões de saúde e das ocupações de nível técnico, auxiliar e de apoio, respectivamente, que atuaram na pandemia.
Foi adotado amostragem não probabilística, por meio do modelo de bola de neve, a partir das redes sociais dos sujeitos da pesquisa (PS e TIS), de modo que a escolha dos participantes não seguiu modelo aleatório. As bases de dados das pesquisas foram construídas a partir de um questionário on-line autopreenchimento e de livre acesso, por meio da plataforma Research Electronic Data Capture (RedCap). As respostas foram recebidas e armazenadas no servidor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz).
Os dados foram analisados por meio dos programas Microsoft Excel, com um recorte de gênero, tipo de vínculo de trabalho com o estabelecimento de saúde, jornada de trabalho, tanto dos PS como dos TIS.
As pesquisas tiveram a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública (CEP/ENSP) com parecer nº 4.081.914 CAAE nº 32351620.1.0000.5240 (projeto matricial).
Para mais informações da metodologia das pesquisas citadas, acesse o artigo: ‘Transformações no mundo do trabalho em saúde: os(as) trabalhadores(as) e desafios futuros”, contido neste número especial da RC&SC.
Mecanismos de precarização no serviço público
Na década de 1990, avançam sobre a realidade brasileira os ideários neoliberais, baseados na retração ainda mais intensa dos direitos sociais (Consenso de Washington - 1989), denominados de países em desenvolvimento, ou seja, na periferia do capital internacional.
Nesta linha advieram as reformas constitucionais em 1998, fixando teto remuneratório para os servidores e a contribuição previdenciária dos inativos, além de alterações fundamentais no sistema previdenciário. A Emenda Constitucional (EC) 19/1998 encampou o princípio da eficiência no caput do art. 37 e admitiu a possibilidade de servidores estáveis perderem o cargo por insuficiência de desempenho e por excesso de gastos da Administração Pública44 Brasil. Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. Modifica o regime e dispõe sobre princípio e normas da Administração Pública, Servidores e Agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1998; 5 jun..
Foram incorporadas novas Normas ao arcabouço jurídico, também, a Lei nº 9.637/199855 Brasil. Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1998; 18 maio., com as alterações introduzidas pela Lei nº 9.648/199866 Brasil. Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998. Altera dispositivos das Leis 3.890-A, de 25 de abril de 1961, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, 9.074, de 7 de julho de 1995, 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Autoriza o Poder Executivo a promover a reestruturação das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. - Eletrobrás e de suas subsidiárias, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1998; 28 maio., que fixaram diretrizes na atuação do Estado em vários setores: saúde, educação, cultura, desporto e lazer, ciência e tecnologia e no meio ambiente, permitindo que a Administração pudesse realizar mediante uma gestão compartilhada com o setor privado, por intermédio da formalização, sem licitação, de “instrumentos de colaboração público/privada”, pelos quais se reserva a participação do Estado nas áreas mencionadas como mera entidade de “fomento”, não apenas com a transferência de recursos financeiros, mas também por meio da cessão de bens público jurídico e até de servidores públicos, sendo que esses instrumentos, que são, de fato e de direito, convênios, serão feitos com ONGs, alçadas ao “status” (título jurídico) de Organização Social (OS) por meio de deliberação do próprio ente público.
Em 2000, ocorreu a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, obrigando o Administrador a promover uma forte contenção dos gastos com pessoal77 Brasil. Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Diário Oficial da União 2000; 5 maio.. E em 15 de abril de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF), julgando a ADI 1923 declarou constitucional a Lei nº 9.637/1998, abrindo de vez as portas para os convênios dos Entes da Federação com as OS’s nas áreas mencionadas.
Terceirização do serviço
No julgamento da referida ADI 1923, ao apreciar a constitucionalidade da Lei nº 9.637/1998 e suas posteriores alterações, (na redação dada pela Lei nº 9.648/1998) - ambas editadas no governo FHC para implementação da ideia neoliberal de Estado mínimo - o STF resolveu adotar interpretação dessas leis conforme à CF/88, mantendo o Estado como entidade de “fomento”, não apenas com transferência de recursos financeiros, mas também por meio da cessão de bens públicos e até de servidores públicos. Os convênios, para tanto, são formalizados com ONGs, que se alçam ao “status” de OS, por meio de deliberação do próprio ente público.
A decisão do STF, reproduzindo o espírito da lei, prevê, também, a possibilidade de que as OS formalizem, elas próprias, contratos com terceiros para a execução dos serviços, sem licitação, e, pior, que possa contratar trabalhadores sem concurso público, negando-lhe, por consequência, as garantias jurídicas dos estatutários. Estabelece, ainda, que servidores estatutários prestem serviços às OS e recebam destas uma remuneração fora dos padrões da “legalidade”.
Com isto, esvaziou-se o próprio sentido de diversos dispositivos constitucionais, pois quando a CF/88 preconizou que os serviços na saúde (art. 199, caput), na educação (art. 209, caput), na cultura (art. 215), no desporto e lazer (art. 217), na ciência e tecnologia (art. 218) e no meio ambiente (art. 225) são serviços públicos e que “são deveres do Estado e da Sociedade”, estando “livres à iniciativa privada”88 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out, o que pretendeu foi deixar evidenciado que as entidades privadas que se ativarem nesses setores não poderão visar apenas o lucro, estando obrigadas a respeitarem as finalidades próprias da prestação de um serviço público, buscando, em primeiro plano, a satisfação dos interesses da sociedade.
Cumpre ao Estado, ademais, a obrigação de impedir a mera mercantilização desses serviços, ao mesmo tempo em que lhe compete programar e efetivar políticas públicas para a execução desses serviços e não simplesmente transferir sua responsabilidade para o setor privado, entregando a este dinheiro e bens públicos, ainda mais sem licitação. E o mais grave é que este desvio das finalidades fixadas na Constituição, afasta também a garantia constitucional do acesso democrático ao serviço público pela via do concurso, tudo em nome de uma suposta eficiência, que estaria garantida pelo controle do resultado.
O voto do relator extrapola e desconsidera a existência do aparado jurídico trabalhista, legal, constitucional, para sugerir que “os empregados das OS’s não são servidores públicos, mas sim empregados privados, por isso que sua remuneração não deve ter base em lei (CF, art. 37, X), mas nos contratos de trabalho firmados consensualmente”.
O que resulta, em concreto, desses preceitos é que os governos podem conferir um título jurídico de OS a quem atenda, por meio de requisitos fixados em regimentos internos, e firmar convênios com elas que lhe convierem, transferindo-lhes dinheiro e bens públicos, além de servidores públicos, para administrarem serviços públicos em diversas áreas.
Essas organizações, ainda que controladas pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas, fazem suas gestões sob a esfera da ordem jurídica de direito privado, inclusive e principalmente, no que se refere à contratação de trabalhadores, atingindo a execução de serviços que se integram ao conceito de atividade-fim do serviço público, com relação aos quais a mera terceirização (direta) não pode atingir. Pelo artifício jurídico em questão, permitiu-se a terceirização da atividade-fim no setor público, mediante a “terceirização” da própria administração, indo bem além (e sem limites) das hipóteses já previstas no art. 175 da CF/88 (concessão e permissão de serviços públicos).
Assim, um ente público poderá, por exemplo, transferir para uma OS, uma atividade de saúde. A OS, responsável, recebendo dinheiro público e bens públicos, poderá prestar esses serviços por intermédio de profissionais contratados sem concurso público, sendo que a estes não se garantirá, por consequência, a estabilidade no emprego, que é atinente aos servidores, dentre outros direitos específicos. E, mais, as OS estão autorizadas a contratar empresas de prestação de serviços, para realização das atividades necessárias para a prestação do serviço público. Ou seja, institucionalizou-se uma terceirização dentro de outra, o que promove uma potencialização da precarização das condições de trabalho no setor.
Terceirização da mão de obra
Não bastasse a prática inconstitucional da terceirização das atividades de limpeza, asseio, conservação e vigilância, admitidas em todas as esferas da administração pública, a privatização do serviço público na área de saúde, fez disseminar, também, as subcontratações, ou, mais ainda, a terceirização da mão de obra.
A terceirização é a legitimação da intermediação de mão de obra, pois por meio dela uma empresa contrata outra para que esta contrate - sendo que hoje, em razão da jurisprudência desta intermediação pode atingir inclusive a atividade-fim da empresa contratante, figurando a empresa contratada como o ente empregador. O padrão jurídico criado desvinculou-se da função histórica do direito do trabalho, que é o da proteção do trabalhador. O atendimento a interesses empresariais imediatos, levados a uma análise mais profunda, na própria perspectiva capitalista, representa um enorme desajuste do sistema de livre mercado baseado na necessária lealdade concorrencial.
A terceirização é, portanto, uma técnica de precarização das condições de trabalho, até porque, como explica Márcio Túlio Viana:
[…] as empresas prestadoras de serviço, para garantirem sua condição, porque não têm condições de automatizar sua produção, acabam sendo forçadas a precarizar as relações de trabalho, para que, com a diminuição do custo da mão-de-obra, ofereçam seus serviços a um preço mais acessível, ganhando, assim, a concorrência perante outras empresas prestadoras de serviço9 (p. 27).
A realidade concreta
As atuais e inéditas pesquisas da Fiocruz apontam para esse quadro de terceirizações e precarização, confirmando a percepção desse fenômeno que se agravaram em estado pandêmico. Os casos de adoecimento aumentaram significativamente, inclusive sobre a saúde mental desses trabalhadores, levando-os a óbitos e sequelas permanentes, conforme alerta Machado:
As pesquisas recentes realizadas pela Fiocruz, sobre as condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores(as) da saúde mostram um cenário complexo e preocupante. E a Enfermagem não ficou ilesa nesse contexto, ao contrário, foi atingida de forma brutal com milhares de contaminados e centenas que foram a óbitos por Covid-19 (Cofen, 2022), mais precisamente, 256 enfermeiros e 617 auxiliares/técnicos de enfermagem, segundo Machado et al (2022).
Os dados de nossas recentes pesquisas na Fiocruz (2021-2022), sobre condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores(as) da saúde mostram um quadro em que:
* ¼ dos trabalhadores de saúde apresenta comorbidades, sendo cinco as mais prevalentes: hipertensão, obesidade, doenças pulmonares, depressão e diabetes;
* Mais de 70% apresentam com fortes sinais de esgotamento e cansaço por excesso e sobrecarga de trabalho;
* A maioria denuncia más condições de trabalho traduzidas em infraestruturas precárias e inadequadas, produzindo desconforto e problemas ergonômicos;
* Biossegurança insuficiente;
* Salários baixos e insuficientes para seu sustento e de um domicílio- trabalho precário apontado pela OIT - Organização Internacional do Trabalho;
* Multiplicidade de vínculos, quase sempre precários e temporários e muitos, na modalidade de bicos;
* Sequelas físicas e psíquicas heranças da pandemia com enormes repercussões na vida diária desse contingente de mais de milhões de trabalhadoras e trabalhadores da saúde, no qual a enfermagem é hegemônica e essencial1010 Machado MH. Profissão da Enfermagem: essencialidade x piso salarial [Internet]. Informe ENSP; 2022 [acessado 2023 fev 2]. Disponível em: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/53382.
https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias... .
Os vínculos jurídicos
A precariedade do vínculo jurídico é prenúncio de precariedade das condições de trabalho e mesmo de vida dos trabalhadores em geral. Diante de um longo processo histórico de precarização, que se estabelece em diversos níveis, havendo, pois, na realidade brasileira, um escalonamento das formas de precarização, até se atingir aquelas e aqueles que, compondo o segmento social ainda sofre as consequências das raízes escravistas que ainda estruturam cultural e economicamente a nossa sociedade, estão no estágio da completa invisibilidade.
As pesquisas evidenciam a precariedade desses vínculos no trabalho dos PS: 14,6% dos PS estão submetidos ao contrato temporário de excepcional interesse com a administração pública (Tabela 1), somados com 1,8% dos ocupantes de cargos comissionados no setor público, sem vínculo efetivo, 2,8% dos contratos temporários com empresas privadas perfazem um patamar de 19,2%. Ademais, considerados os vínculos com os entes autônomos; pessoa jurídica (4,6%); pessoa física (3,2%) e cooperados (1,9%). Só esse campo concentra 9,7% de todos os vínculos e constituem no geral índice elevado de precarizados no patamar de 28,9%.
No mesmo sentido, quando cotejados com os TIS (Tabela 2) (10,4%) são vinculados por contrato temporário com o setor público, e (0,8%) ocupantes de cargo comissionado, sem vínculo efetivo, 2,9% contrato temporário com empresas privadas perfazendo (14,1%). Quanto aos vínculos com entes autônomos, apresentaram índices no total de (2,6%), porém, no agregado 16.7%. Embora esteja num patamar abaixo do verificado entre os PS, ambos são percentuais elevados de precarização, tanto entre os PS quanto os TIS.
O que se constata é a adoção de uma estratégia de gestão de natureza privada na contratação de TS pelos entes públicos, promovendo-se no setor a disseminação de vínculos instáveis, mal remunerados e precarizados.
Ampliação da jornada de trabalho na saúde
A jornada de trabalho (JT) é umas das questões centrais nas relações e condições de trabalho, e expressa maior relevo quando o estudo é o do trabalho em saúde. A CF estabelece o regime geral de JT com duração normal não superior a 8h diárias e 44h semanais, facultada a compensação de horários e a redução de jornada mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Quando ele é realizado em turnos ininterruptos de revezamento, a jornada terá duração de 6h diárias, salvo negociação coletiva.
Há um vezo da prática jurídica, reforçada na reforma trabalhista, no sentido de “legalizar” práticas de compensação de JT. Essa tendência tenta fazer tábula rasa da conquista histórica de trabalhadores(as) quanto à limitação da JT em 8h diárias, ou 44h semanais (art. 7o, XIII, da CF88 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out e 59, da CLT1111 Brasil. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova as Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União 1943; 9 ago.), naturalizando a prática da sobrejornada como se fosse juridicamente admissível.
Repare-se que sequer há na Lei Maior qualquer previsão sobre a possibilidade de se efetuar uma “compensação da JT” e sim uma “compensação de horários”, sabendo-se que, horário de trabalho é a indicação do início e término da JT.
Assim, a CF/88 permitiu negociações coletivas visando alterações de horários sem aumento e reduções de JT, em conformidade, inclusive, com a lógica, estabelecida no caput do mesmo artigo 7º, de melhoria da condição social dos trabalhadores, e da efetivação de uma política da “busca do pleno emprego” (inciso VIII, do art. 170, da CF/88)88 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.
Importante observar, também, que o trabalho além da duração normal não aparece no texto constitucional “hora extra” e sim como “serviço extraordinário” (inciso XVI, do art. 7º)88 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out, pressupondo, pois, uma situação de excepcionalidade. As horas extras não constituem um instituto jurídico e nem no direito do empregador, até porque o direito garantido aos trabalhadores, como fundamental, é a limitação da JT. No entanto, a prática de horas extras, que extrapolam, inclusive, o limite diário legalmente previsto (duas horas), sendo que, na prática, tais horas por vezes são pagas, pela simples supressão da anotação das horas trabalhadas e ausência de fiscalização por parte do Ministério do Trabalho.
No contexto de fragilização da atuação sindical e da ausência de efetivas políticas salariais, a prática de horas extras, inclusive, acaba sendo vista pelos(as) trabalhadores(as) como uma saída para compensar os baixos salários. Não bastasse, tem-se admitido, também, a adoção de sistemas de compensação de jornadas que extrapolam o limite semanal, tal qual prevista na CF/88 e até mesmo o limite máximo legal de horas de trabalho, já acrescido das eventuais horas extras, que é de 10h. Assim, legitimaram-se tanto o denominado banco de horas, que permite que horas extras sejam compensadas com horas normais, e as jornadas de 12h de trabalho, praticadas no sistema 12x36 (reconhecido como válido pelo STF, na ADI 4.8421212 Supremo Tribunal Federal. ADIN nº 4.842 [Internet]. 2016 [acessado 2023 fev 2]. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13308011.
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa... ) no caso, de forma específica, foi declarado constitucional o art. 5º da Lei nº 11.901/20091313 Brasil. Lei nº 11.901, de 12 de janeiro de 2009. Dispõe sobre a profissão de Bombeiro Civil e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 13 jan., que fixa em 12 horas a JT dos bombeiros civis, seguida por 36 horas de descanso e com limitação a 36h semanais.
Todas essas técnicas jurídicas que alimentam a precarização das condições de trabalho foram incorporadas e disseminadas nas relações de trabalho no setor da saúde, fazendo com que os vínculos jurídicos precários, as JT excessivas, os baixos salários, o assédio moral e o baixo poder de resistência constituam a triste realidade dos TS no Brasil, conforme revelam as pesquisas22 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021.,33 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022..
O excesso de jornada é mais impactante sobre a Força de Trabalho (FT) feminina, haja vista que entre os PS, 77,6% são mulheres e 22,1% homens. Situação também verificada entre os TIS, onde 72,5% são mulheres e 25,6% homens. Esses dados caracterizam o trabalho em saúde como feminino e nos levam a afirmar em geral que as mulheres exercem sobre carga horária de trabalho muito mais intensa que os homens na saúde, principalmente quando associadas à jornada doméstica que a mulher tem além do campo de trabalho (Tabela 3).
A natureza do trabalho em seus diferentes níveis de cuidados de saúde, a forma como são organizados, duplo emprego ou cargos públicos (frequentes), tornam a análise da JT nessa área uma questão complexa. Os padrões de duração das JT dependem muito das circunstâncias em que o serviço de saúde é executado em diferentes estabelecimentos públicos e privados de saúde e das jornadas diferenciadas entre profissões regulamentadas em leis específicas. A exemplo do Técnico em Radiologia (24h semanais); Fisioterapeuta, Terapeuta Ocupacional e Assistente Social (30h), garantidas por lei que regulamenta a JT destas categorias.
Os dados das pesquisas mostram que entre os PS, apenas 49% praticam uma jornada de 21-40 horas semanais, portanto, em conformidade com o limite de 44h do regime geral do país consagrada na CF/88. Contudo, verifica-se que há um grande contingente praticando jornadas acima desse padrão, expressando uma intensidade preocupante na ocupação do tempo no trabalho: 32,4% dos PS praticam a jornada de 41-60h, enquanto 11% perfazem uma jornada de 61-80h, e 4,3% laboram acima de 80h semanais; noutro limite, apenas 2,6% praticam jornada inferior a 20h semanais (Tabela 4).
Quando analisados os dados referentes aos TIS (Tabela 5), verifica-se que 56,8% estão entre 21-40h semanais. Acima desse patamar entre 41-60h 25,4% e 7,1% afirmaram que trabalham entre 61-80h semanais. Extrapolando a faixa acima de 80h se situam 4,6% dos TIS e apenas 3,3% trabalham menos de 20h semanais.
Enfim, os dados evidenciam um quadro de jornadas efetivamente praticadas exaustivas no trabalho em saúde que indicam que a política de tempo de trabalho precisa ser repensada no país.
A questão previdenciária
O enquadramento da COVID-19 como doença relacionada ao trabalho
A legislação previdenciária define o que sejam as doenças profissionais e as doenças do trabalho, delas não constando a COVID-19, até porque conhecida apenas recentemente. Neste sentido, importante lembrar que em março de 2020, foi editada a Medida Provisória nº 9271414 Brasil. Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020. Dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2020., cujo art. 29 pretendia exatamente impedir que a COVID-19 fosse considerada doença do trabalho, iniciativa que pretendia atribuir aos TS da saúde a obrigação de comprovar o nexo causal entre a doença adquirida e a atividade desenvolvida, com vistas à percepção de benefícios classificados como acidentes do trabalho.
Felizmente essa absurda iniciativa legislativa teve sua eficácia suspensa pelo STF, ao reiterar seu anterior entendimento de que o nexo causal será presumido (desobrigando o TS da prova de que a doença decorreu dessa atividade) sempre que a natureza da atividade normalmente exercida importe na exposição habitual a risco especial, sujeitando-o a um ônus maior do que o enfrentado pelos demais membros da coletividade.
Ainda assim, entendemos ser imperioso dar um passo à frente nessa questão, para inserir a COVID-19 na Lista B, do Anexo II, do Decreto nº 3.048/19991515 Brasil. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1999; 7 maio., que designa as “Doenças Infecciosas e Parasitárias Relacionadas com o Trabalho” (Grupo I da CID-10), bem assim instar o Poder Público a aprofundar os estudos científicos relacionados a algumas das potenciais sequelas derivadas da doença, de sorte a concluir se não é o caso, também, da sua inserção entre as doenças constantes da Lista B, do Anexo II, do Decreto acima, que trata dos “Transtornos Mentais e do Comportamento Relacionados com o Trabalho” (Grupo V da CID-10), ou, ainda, entre as “Doenças do Sistema Nervoso Relacionadas com o Trabalho” (Grupo VI da CID-10).
Enquanto essas modificações legislativas não vêm, é imprescindível que os TS acometidos da COVID-19 informem da infecção ao respectivo empregador, tornando mais fácil a futura comprovação do nexo causal entre a doença adquirida e eventual sequela dela decorrente, mesmo tempos depois, pois estudos recentes vêm indicando que a COVID-19 pode gerar outros problemas de saúde, no médio ou longo prazos, capazes de levar até mesmo à futura incapacidade laboral provisória ou permanente.
A suspensão temporária das atividades laborais em decorrência da COVID-19, a eventual incapacidade permanente para o trabalho e o evento morte
É da Previdência Social a obrigação de pagar um benefício previdenciário aos trabalhadores(as) afastados(as) de suas atividades por períodos superiores a 15 dias, em decorrência de incapacidade temporária, que corresponderá a 91% da média aritmética simples de 100% dos salários de contribuição desde julho de 1994 até o afastamento, cálculo que já evidencia uma redução na renda desse trabalhador, se comparada à última remuneração em atividade.
O que consideramos necessário, nesse caso, é que a lei defira uma proteção mais especial para os casos de afastamentos decorrentes de contaminação durante pandemias ou endemias, de modo a assegurar-lhes um benefício provisório equivalente a 100% do salário de benefício, a exemplo do que normalmente ocorre com servidores públicos estatutários.
Por outro lado, nos casos de incapacidade permanente para o trabalho, a legislação previdenciária prevê duas diferentes formas de cálculo do valor da aposentadoria: a) se derivar de um acidente do trabalho (incluso as doenças profissionais ou do trabalho), o benefício será de 100% da média de todos os salários de contribuição, a partir de 07/1994; b) se decorrer de uma doença ou acidente comuns, corresponderá a 60% dessa média, acrescido de 2% a cada ano de contribuição que exceder 20 (homens) e 15 (mulheres), deixando mais uma vez evidente a importância de classificar a COVID-19 como doença do trabalho.
Por fim, nos casos de morte do segurado, a pensão corresponderá a 60% da média de todos os salários de contribuição a partir de 07/1994, acrescida de 2% para cada ano de contribuição acima de 20 (homem), ou 15 (mulher), ao passo que se a morte decorrer de doença ou acidente do trabalho a pensão corresponderá a 100% da mesma média, a demonstrar que também aqui a inserção da COVID-19 dentre as doenças do trabalho é fundamental para assegurar uma proteção previdenciária mais justa e digna.
A aposentadoria especial decorrente da exposição a agentes nocivos à saúde ou à integridade física
As atividades laborais exercidas sob comprovada exposição a agentes nocivos à saúde ou à integridade física dão aos trabalhadores(as) o direito à aposentadoria especial após 25 anos interruptos nessas condições, ou à contagem especial desse período, geralmente com acréscimo de 40% para os homens, e 20% para as mulheres com vistas à uma aposentadoria voluntária comum, acréscimos esses que se destinam à proteção de situações cotidianas, vivenciadas também pelos TS, o que certamente não é o caso dos períodos de pandemias ou endemias, sobretudo quando causadas por vírus desconhecidos e sem vacina capaz de reduzir o nível de contágio ou de casos graves da doença.
Por isso entendemos que nessas hipóteses extremas a legislação previdenciária deveria prever uma contagem ainda mais especial do tempo de serviço, por exemplo mediante um acréscimo de 75%, para os homens, e de 50%, para mulheres, a exemplo do que já ocorre com mineiros de subsolo.
A indenização pela incapacidade laboral permanente ou morte causada pelo trabalho exposto à COVID-19
Em 2021 o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.1281616 Brasil. Lei nº 14.128, de 26 de março de 2021. Dispõe sobre a compensação financeira a ser paga aos profissionais e trabalhadores da saúde no âmbito da Covid-19, ou aos herdeiros e dependentes, em caso de óbito. Diário Oficial da União; 2021., dispondo sobre uma compensação financeira, a cargo da União, a ser paga diretamente aos TS incapacitados para o trabalho ou falecidos em decorrência de contágio no atendimento de pacientes com COVID-19. Esse benefício alcança: a) as profissões, de nível superior (reconhecidas pelo Conselho Nacional de Saúde - CNS) e profissionais que trabalham com testagem nos laboratórios de análises clínicas; b) as atividades de nível técnico ou auxiliar vinculadas à saúde (os que trabalham também com testagem; c) os agentes comunitários de saúde e de combate a endemias; d) aqueles que mesmo não exercendo atividades na área de saúde, auxiliam ou prestam serviço de apoio presencialmente nos estabelecimentos de saúde, incluídos os serviços administrativos, de copa, de lavanderia, de limpeza, de segurança e de condução de ambulâncias, entre outros, além dos trabalhadores dos necrotérios e dos coveiros; e, e) aqueles cujas profissões ou atividades, de nível superior, médio e fundamental, são reconhecidas pelo Conselho Nacional de Assistência Social e atuem no Sistema Único de Assistência Social.
Se do contágio sobrevier a morte do(a) trabalhador(a), o pagamento será feito ao cônjuge ou companheiro, ou, ainda, aos dependentes e herdeiros necessários.
Para esse fim a lei define a presunção de que a COVID-19 foi a causadora da incapacidade permanente ou do óbito, ainda que não tenha sido a causa única, principal ou imediata, exigindo apenas o nexo temporal entre a data de início da doença e a ocorrência da incapacidade permanente ou óbito, se houver, e o diagnóstico da covid por exames laboratoriais ou laudo médico que ateste quadro clínico compatível com a doença, ficando a concessão da compensação financeira sujeita à avaliação de perícia médica realizada por Perito Médico Federal.
Conclusão: para correção do rumo
Ética e bioética no trabalho em saúde
Em tempos de COVID-19 três deveres éticos são apontados na provisão de cuidados de saúde: o dever de planejar, gerenciando incertezas; o dever de proteger, oferecendo suporte a trabalhadores e a populações vulneráveis; e o dever de orientar níveis de cuidados e padrões de cuidados em situações de crise1717 Hick JL, Hanfling, D, Wynia MK, Pavia AT. Duty to plan: health care, crisis standards of care, and novel coronavirus SARS-CoV-2. NAM Perspect 2020; 2020:10.31478/202003b..
Nesse processo global, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lembram que mesmo antes da pandemia, profissionais do setor já corriam maior risco com infecções, doenças musculares, assédio e síndrome do esgotamento. Ao mesmo tempo, confirmam: menos de um entre seis países tem políticas nacionais sobre segurança de trabalho na saúde1818 World Health Organization (WHO). International Labour Organization (ILO). Caring for those who care: Guide for the development and implementation of occupational health and safety programmes for health workers [Internet] 2022 [cited 2023 jan 18]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240040779.
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A precarização do trabalho vem se desenhando há muito tempo, caracterizando uma dinâmica de dificuldades para o enfrentamento da pandemia, ao passo que tem contribuído para o aumento da precarização estrutural, pois incluiu maior flexibilização das condições de trabalho e intensificou a superexploração de trabalhadores de diversos setores como a saúde, alimentos, petróleo, transporte, entre outros. Essas considerações evidenciam as implicações do modelo neoliberal sobre as condições de trabalho dos TS antes mesmo da pandemia de COVID-19 e refletem como o capitalismo contemporâneo atua1919 Heloani R, Barreto M. Das violências no trabalho à "necropolítica" do Estado. In: Alves G, Vizzacaro-Amaral AL, organizadores. Trabalho, saúde e barbárie social: pandemia, colapso ecológico e desenvolvimento humano. Marilia: Projeto Editorial Práxis; 2021..
A emergência de conflitos éticos no Brasil na gestão da pandemia da COVID-19 foi observada em diferentes níveis de abrangência: uma parte deles centrados na alocação de recursos para o enfrentamento da pandemia e seus efeitos, tendo em vista a necessidade de aquisição e disponibilização de um volume expressivo de materiais e equipamentos, necessidade de financiamento para a aquisição ou produção de vacinas, na definição das diretrizes principais para contenção do vírus, na comunicação institucional ou midiática de medidas com maior ou menor eficácia no controle da infecção, na realocação de profissionais de saúde, conforme a urgência ou interesses regionais, e na priorização no atendimento a populações e pacientes específicos2020 Cruz RM, Borges-Andrade JE, Andrade AL, Moscon DCB, Viseu J, Micheletto MRD, Moreno MEA, Núñez MIL, Abacar M, Kienen N Knapik J, Cassiano S, Carvalho-Freitas MN. Ciência e conflitos éticos na gestão da pandemia da COVID-19. Rev Psicol Organ Trab 2021; 21(3):I-III.(p.2).
Com base na observação crítica da Ética da Responsabilidade Pública (de Hans Jonas), Garrafa e Amorim2121 Garrafa V, Amorim K. Uma análise ética dura das mortes decorrentes da covid-19 no Brasil. Rev Redbioetica 2020; 2(22):25-32. afirmam que o governo brasileiro praticou a mistanásia, pois,
[…] não utilizou medidas de proteção e fortalecimento do SUS para o enfrentamento da pandemia e o cuidado com a saúde e a vida dos profissionais que estão na linha de frente, expostos a maiores riscos de adoecimento mental, de serem infectados e/ou de morrerem. Além disto, teria se omitido na proteção a grupos sociais vulnerabilizados e populações em situação de risco2121 Garrafa V, Amorim K. Uma análise ética dura das mortes decorrentes da covid-19 no Brasil. Rev Redbioetica 2020; 2(22):25-32..
Os aspectos éticos da pandemia e pós-pandemia, principalmente em relação às obrigações sociais e morais dos governos, sua relação com a sociedade e com os TS devem ser aprofundados em outros estudos tendo como pressuposto a dignidade humana.
Atuação política
A restauração da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, criada no CNS (extinta pelo governo Bolsonaro, em 2019), é uma necessidade e a segurança de que questões complexas e por vezes urgentes do mundo do trabalho na saúde, como a precarização e as condições de trabalho, a biossegurança de seus trabalhadores, sejam debatidas, negociadas e pactuadas entre gestores (público e privado) e os(as) trabalhadores(as), objetivando o bem-estar e assistência a toda a população brasileira.
Intervenção jurídica
Do ponto de vista jurídico, no aspecto pertinente aos direitos trabalhistas, é urgente expungir as modalidades que atentam contra a ordem constitucional e que promovem precarização, pauperização, sofrimento e adoecimento entre os(as) trabalhadores(as) da saúde que prestam um serviço essencial. Como destacado neste texto, são exemplos de medidas que produzem esses resultados, a terceirização, tanto do serviço público propriamente dito, quanto da mão de obra, seja na atividade-fim, seja na denominada atividade-meio; o banco de horas; a prática ordinária de horas extras; e o regime 12x36.
É preciso, pois, conferir eficácia concreta aos preceitos constitucionais que garantem a todos trabalhadores(as) a proteção do emprego contra dispensa arbitrária e aos servidores públicos, que ascendem aos cargos mediante concurso público de provas e títulos, a estabilidade no emprego; o direito de sindicalização, sem intervenção do Estado; e o efetivo direito de greve. Enfim, é necessário dar muitos passos na direção contrária do aprofundamento da superexploração do trabalho que se institucionalizou e se naturalizou nas relações de trabalho no Brasil.
Referências
- 1Fausto B. História concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP; 2002.
- 2Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021.
- 3Machado MH, coordenadora. Pesquisa: Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022.
- 4Brasil. Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. Modifica o regime e dispõe sobre princípio e normas da Administração Pública, Servidores e Agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1998; 5 jun.
- 5Brasil. Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1998; 18 maio.
- 6Brasil. Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998. Altera dispositivos das Leis 3.890-A, de 25 de abril de 1961, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, 9.074, de 7 de julho de 1995, 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Autoriza o Poder Executivo a promover a reestruturação das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. - Eletrobrás e de suas subsidiárias, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1998; 28 maio.
- 7Brasil. Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Diário Oficial da União 2000; 5 maio.
- 8Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out
- 9Renault LOL, Dias FM, Viana MT. O novo contrato de trabalho: teoria, prática e crítica da Lei n. 9.601/98. São Paulo: Ltr; 1998.
- 10Machado MH. Profissão da Enfermagem: essencialidade x piso salarial [Internet]. Informe ENSP; 2022 [acessado 2023 fev 2]. Disponível em: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/53382
» https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/53382 - 11Brasil. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova as Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União 1943; 9 ago.
- 12Supremo Tribunal Federal. ADIN nº 4.842 [Internet]. 2016 [acessado 2023 fev 2]. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13308011
» https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13308011 - 13Brasil. Lei nº 11.901, de 12 de janeiro de 2009. Dispõe sobre a profissão de Bombeiro Civil e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 13 jan.
- 14Brasil. Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020. Dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2020.
- 15Brasil. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1999; 7 maio.
- 16Brasil. Lei nº 14.128, de 26 de março de 2021. Dispõe sobre a compensação financeira a ser paga aos profissionais e trabalhadores da saúde no âmbito da Covid-19, ou aos herdeiros e dependentes, em caso de óbito. Diário Oficial da União; 2021.
- 17Hick JL, Hanfling, D, Wynia MK, Pavia AT. Duty to plan: health care, crisis standards of care, and novel coronavirus SARS-CoV-2. NAM Perspect 2020; 2020:10.31478/202003b.
- 18World Health Organization (WHO). International Labour Organization (ILO). Caring for those who care: Guide for the development and implementation of occupational health and safety programmes for health workers [Internet] 2022 [cited 2023 jan 18]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240040779
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- 20Cruz RM, Borges-Andrade JE, Andrade AL, Moscon DCB, Viseu J, Micheletto MRD, Moreno MEA, Núñez MIL, Abacar M, Kienen N Knapik J, Cassiano S, Carvalho-Freitas MN. Ciência e conflitos éticos na gestão da pandemia da COVID-19. Rev Psicol Organ Trab 2021; 21(3):I-III.
- 21Garrafa V, Amorim K. Uma análise ética dura das mortes decorrentes da covid-19 no Brasil. Rev Redbioetica 2020; 2(22):25-32.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
23 Out 2023 - Data do Fascículo
Out 2023
Histórico
- Recebido
20 Out 2022 - Aceito
01 Jun 2023 - Publicado
30 Jun 2023