Resumo
O aumento significativo da população idosa e a alta incidência de doenças crônicas e degenerativas demandam preocupação com aspectos inerentes à promoção da autonomia, preservação de direitos humanos e qualidade de vida desse grupo populacional. O exercício do direito à tomada de decisão impacta diversos aspectos da vida humana, como é o caso dos cuidados em saúde, administração patrimonial, relacionamentos, escolha de moradia, cuidados familiares, atividades religiosas e até mesmo atividades diárias. A Tomada de Decisão Apoiada (TDA) pode ser importante instrumento para promoção da autonomia de pessoas idosas que vivem com demência, pois consiste em uma abordagem pautada no respeito aos direitos humanos, que visa instituir mecanismos de fornecimento de suportes para que todas as pessoas possam exercer o direito de tomar decisões inerentes às suas vidas. Para implementação mais robusta no Brasil, é fundamental a mudança de cultura, no sentido de valorização da pessoa idosa e da noção de que a proteção perpassa por ofertar mecanismos de promoção da autonomia pessoal, que se dá, em parte, pelo incentivo ao engajamento social e fortalecimento de laços comunitários. Nesse aspecto, a noção de empoderamento, pautada em concepções advindas da Bioética de Intervenção, mostra-se relevante.
Palavras-chave:
Pessoa idosa; Demência; Autonomia pessoal; Direitos humanos; Bioética
Introdução
O envelhecimento populacional tem despertado discussões ao redor do mundo, com destaque para os temas inerentes à qualidade de vida, aos cuidados em saúde e à preservação da autonomia das pessoas idosas para tomada de decisões11 Herring J. Older People in Law and Society. Oxford: Oxford University Press; 2009.. Contudo, ao mesmo tempo em que há aumento da expectativa de vida, há também a presença marcante de atos discriminatórios com relação às pessoas idosas22 Machado ILO, Garrafa V. Bioética, o envelhecimento no Brasil e o dever do Estado em garantir o respeito aos direitos fundamentais das pessoas idosas. Rev Direitos Garantias Fundam 2020; 21(1):79-106..
O ageismo, termo utilizado para designar atos de discriminação, estigma e preconceito face a pessoas idosas, decorre da construção social negativa relacionada ao envelhecimento33 Neri AL. Atitudes e conhecimentos em relação à velhice. In: Neri AL. Idosos no Brasil: vivências, desafios e expectativas na terceira idade. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, Edições SESC; 2007. p. 33-46. e tem sido cada vez mais presente nas sociedades ocidentais44 World Health Organization (WHO). Global Report on Ageism. Geneva: WHO; 2021., caracterizando-se como o terceiro grande “ismo”, após o sexismo e o racismo55 Butler RN. Age-Ism: Another Form of Bigotry. Gerontologist 1969; 9(4):243-246.. Tal discriminação etária acarreta constantes limitações e violações aos direitos humanos das pessoas idosas, que, por vezes, são consideradas como “fracas”, “peso social” e “inábeis para tomar decisões”66 Neri AL. Atitudes e Crenças sobre Velhice: análise de conteúdo de textos do jornal O Estado de São Paulo publicados entre 1995 e 2002. In: Von Simson ORM, Neri AL, Cachioni M. Múltiplas Faces da Velhice no Brasil. 3ª ed. Campinas: Alínea; 2003. p. 13-54.. Além disso, sofrem constantes violações quanto ao exercício de sua autonomia pessoal, especialmente no que concerne a decisões no campo da saúde e patrimonial77 Machado ILO. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada (TDA) Com Relação a Pessoas Idosas No Brasil: Uma Análise Bioética. Brasília: Universidade de Brasília; 2022..
A velhice traz consigo maior propensão a doenças crônicas, demandando ações estatais e sociais voltadas a essa fase da vida. No Brasil, o número de pessoas idosas tem crescido ao longo dos anos. Estima-se que até o ano de 2025 a população idosa triplique em relação ao observado no ano de 2000 e que em 2045 o número de pessoas idosas seja maior que o número de crianças88 Wong LLR, Carvalho JA. O Rápido Processo de Envelhecimento Populacional do Brasil: Sérios Desafios para as Políticas Públicas. Rev Bras Est Pop 2006; 23(1):5-26.. Além disso, em 2016, o Brasil apresentou a segunda maior taxa de prevalência de demência padronizada por idade no mundo99 GBD 2016 Dementia Collaborators. Global, regional, and national burden of Alzheimer's disease and other dementias, 1990-2016: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Lancet Neurol 2019; 18(1):88-106., sendo que, de 2007 a 2017, houve aumento de 55,5% no número de mortes por demência no país1010 Feter N, Leite JS, Caputo EL, Cardoso RK, Rombaldi AJ. Who are the people with Alzheimer's disease in Brazil? Findings from the Brazilian Longitudinal Study of Aging. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210018.. Tal fato demonstra a urgência na adoção de mecanismos sociais, econômicos, sanitários e jurídicos para promoção e preservação de direitos, assim como da qualidade de vida durante a velhice.
A demência acomete a população idosa em maior grau e acarreta declínio nas funções cognitivas. Em seu estágio avançado, pode comprometer as habilidades mentais para tomada de decisões1111 World Health Organization (WHO). Demência [Internet]. 2021 [cited 2022 mar 3]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/dementia.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet... , o que impacta no exercício da autonomia pessoal. A temática se faz relevante na medida em que a autonomia é um constructo importante da dignidade humana1212 Andorno R. A noção paradoxal de dignidade humana. Rev Bioetica 2009; 17(3):435-449.. O poder de tomar decisões e de tê-las respeitadas faz parte do reconhecimento do indivíduo enquanto pessoa na sociedade. Da mesma forma, a imposição de limites a tal direito, especialmente quando suplantado por atos discriminatórios, tem o peso de anular a pessoa frente à sociedade. Nesse viés, embora a demência afete habilidades decisionais, não pode ser considerada como causa imediata para determinar uma pessoa como incapaz para tomar decisões1313 Sabbata K. Dementia, Treatment Decisions, and the UN Convention on the Rights of Persons With Disabilities. A New Framework for Old Problems. Front Psychiatry 2020; 11:571722., o que demanda estudos e ações que contribuam no desenvolvimento de mecanismos para prestar apoio às pessoas idosas que desejam, a fim de que possam tomar decisões e tê-las reconhecidas e respeitadas1414 Machado I, Garrafa V. Capacidades jurídica e decisional e os importantes aportes bioéticos para promoção da autonomia de pessoas idosas. Rev Redbioética Unesco 2021; 2(24):95-102..
Considerando a complexidade do tema e seus impactos individuais e sociais, discussões podem ser realizadas através de diferentes áreas e temáticas de estudos. A bioética, compreendida como ética aplicada e campo do saber que desenvolve estudos de natureza multi-interdisciplinar1515 Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Rev Bioetica 2005; 13(1):125-134., consiste em importante espaço para discussão quanto à promoção de direitos humanos77 Machado ILO. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada (TDA) Com Relação a Pessoas Idosas No Brasil: Uma Análise Bioética. Brasília: Universidade de Brasília; 2022.,1616 Andorno R. Bioética y Dignidad de La Persona. 2ª ed. Espanha: Tecnos; 2012.,1717 Albuquerque A. Bioética e Direitos Humanos. 1ª ed. São Paulo: Edições Loyola; 2011. e cuidados voltados às pessoas idosas1818 Paranhos DGAM, Albuquerque A. Direitos humanos dos pacientes como instrumentos bioéticos de proteção das pessoas idosas. Cad Ibero-Am Direito Sanitario 2019; 8(1):53-64., especialmente aquelas que vivem com demência.
A Tomada de Decisão Apoiada (TDA) pode ser importante instrumento para promoção da autonomia de pessoas idosas que vivem com demência, pois consiste em uma abordagem pautada no respeito aos direitos humanos, que visa instituir mecanismos de fornecimento de suportes para que todas as pessoas possam exercer seu direito de tomar decisões inerentes às suas vidas. Essa abordagem surgiu em crítica ao modelo de Tomada de Decisão Substituta (TDS), no qual uma pessoa é nomeada judicialmente para tomar decisões em lugar da pessoa considerada incapaz para fazê-lo1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019., como ocorre com a curatela no Brasil.
Este artigo busca discutir a abordagem da Tomada de Decisão Apoiada e a possibilidade de sua aplicação voltada à promoção da autonomia de pessoas idosas que vivem com demência no Brasil. Para tanto, utiliza-se de perspectivas teóricas dos campos jurídico e bioético, pautadas nos direitos humanos. Trata-se de pesquisa teórica e documental, que toma por base estudos desenvolvidos por Albuquerque2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018., Donnelly2121 Donnelly M. Best Interests in the Mental Capacity Act: Time to say Goodbye? Med Law Rev 2016; 24(3):318-332.
22 Donnelly M. Healthcare Decision-Making and the Law. Cambridge: Cambridge University Press; 2010.-2323 Donnelly M. Deciding in dementia: The possibilities and limits of supported decision-making. Int J Law Psychiatry. 2019; 66:101466., Shogren et al.1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019.,2424 Shogren KA, Wehmeyer ML, Uyanik H, Heidrich M. Development of the Supported Decision Making Inventory System. Intellect Dev Disabil 2017; 55(6):432-439. e Sabbata1313 Sabbata K. Dementia, Treatment Decisions, and the UN Convention on the Rights of Persons With Disabilities. A New Framework for Old Problems. Front Psychiatry 2020; 11:571722., em diálogo com os aportes bioéticos trazidos por Garrafa1515 Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Rev Bioetica 2005; 13(1):125-134.,2525 Garrafa V. Inclusão social no contexto político da bioética. Rev Bras Bioet 2005; 1(2):22-32.. Pautou-se ainda na Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)2626 Nations U. Convention on the Rights of Persons with Disabilities [Internet]. 2006 [cited 2022 mar 3]. Available from: https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/convention-rights-persons-disabilities.
https://www.ohchr.org/en/instruments-mec... , no Comentário Geral n° 1 do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência2727 Committee on the Right of People with Disabilities. Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Article 12: Equal Recognition before the Law [Internet]. Committee on the Right of People with Disabilities; 2006 [cited 2022 mar 12]. Available from: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRPD/Pages/CRPDIndex.aspx., na Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos e no documento sobre Tomada de Decisão Apoiada e Planejamento de Vida, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (Quality Rights)2828 World Health Organization (WHO). Quality Rights Specialized training. Supported Decision-Making and Advance Planning. Course Guide [Internet]. 2019 [cited 2022 mar 12]. Available from: http://apps.who.int/bookorders.
http://apps.who.int/bookorders... , por se tratarem de documentos reconhecidos internacionalmente quanto à temática da TDA e da promoção da autonomia de pessoas idosas que vivem com demência. Além disso, no que concerne aos mecanismos práticos de aplicação da TDA, o estudo pautou-se no documento desenvolvido por Bach e Kerzner2929 Bach M, Kerzner L. A New Paradigm for Protecting Autonomy and the Right to Legal Capacity Prepared for the Law Commission of Ontario. Ontario: LCO; 2010. quanto à proteção da autonomia e direito à capacidade jurídica no Canadá; assim como na legislação brasileira sobre o tema3030 Brasil. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil Brasileiro. Diário Oficial da União 2002; 11 jan.,3131 Brasil. Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão. Diário Oficial da União 2015; 7 jul..
O paradigma da Tomada de Decisão Apoiada
Na década de 1960, movimentos mais robustos, em busca do reconhecimento da igualdade de direitos às pessoas com deficiências, passaram a ganhar mais notoriedade e força ao redor do mundo. Críticas foram tecidas quanto a condutas envolvendo pessoas com deficiências, tais como práticas de eugenia e esterilização, limitação de direitos, segregação e políticas discriminatórias. Pessoas com deficiência eram consideradas incapazes para tomar decisões, especialmente envolvendo saúde, vida financeira, decisões legais e relacionamentos1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019.. Em 1982, no Canadá, houve o fortalecimento da busca pelo reconhecimento do direito das pessoas com deficiência em tomar decisões, tendo destaque a decisão do Tribunal do Canadá, que reconheceu o direito de Justin Clark, nascido com paralisia cerebral, em tomar decisões acerca de sua vida3232 Blanck P, Martinis JG. "The Right to Make Choices": The National Resource Center for Supported Decision-Making. Inclusion 2015; 3(1):24-33., reconhecendo a importância em conferir valor à comunicação não convencional.
Uma série de fatos ocorreram, em diferentes países, no sentido de reconhecer a igualdade de direitos das pessoas com deficiência frente às demais, destacando-se que barreiras ambientais e estereótipos limitam oportunidades e direitos das pessoas com deficiência. Ganhou força a compreensão da deficiência a partir do modelo social1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019.. Em 2007, passou a vigorar, no âmbito internacional, a CDPD, que introduziu expressamente o tema da capacidade jurídica e a abordagem da TDA no âmbito dos direitos humanos3333 Albuquerque A, Antunes CMTB. Tomada de decisão compartilhada na saúde: aproximações e distanciamentos entre a ajuda decisional e os apoios de tomada de decisão. Cad Ibero-Am Direito Sanit 2021; 10(1):203-223..
O artigo 12 da CDPD apregoa que às pessoas com deficiência deve ser reconhecido o direito a tomar decisões sobre sua vida, em igualdade com as demais pessoas. Da mesma forma, define como obrigação dos Estados signatários, a adoção de medidas apropriadas para prover mecanismos de apoio às pessoas com deficiência. Conforme interpretação adotada no Comentário Geral n° 1 do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tais mecanismos incluem apoios formais e informais2727 Committee on the Right of People with Disabilities. Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Article 12: Equal Recognition before the Law [Internet]. Committee on the Right of People with Disabilities; 2006 [cited 2022 mar 12]. Available from: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRPD/Pages/CRPDIndex.aspx.. Tal interpretação reforça o entendimento de que deve ser adotada uma nova compreensão quanto à capacidade jurídica, pautada na abordagem da TDA, em detrimento do regime de TDS.
Saliente-se que a capacidade jurídica é a guardiã da autonomia pessoal2222 Donnelly M. Healthcare Decision-Making and the Law. Cambridge: Cambridge University Press; 2010., pois refere-se ao reconhecimento legal quanto à titularidade de direitos de uma pessoa, abarcando também a agência legal, que diz respeito à faculdade em exercer pessoalmente tais direitos2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.. Em síntese, a capacidade jurídica é o que torna a pessoa um sujeito de direitos perante a Lei. Difere-se da capacidade decisional, que trata das habilidades mentais necessárias para tomar uma decisão, não possuindo vínculo direto com qualquer transtorno ou doença mental2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.. Trata-se do processo de recebimento da informação, habilidade de compreensão, entendimento, sopesamento, elaboração e comunicação de uma decisão, considerando as possíveis consequências da escolha feita3434 Donnelly M. Deciding in dementia: The possibilities and limits of supported decision-making. Int J Law Psychiatry 2019; 66:101466.. Em resumo, a capacidade decisional trata das habilidades necessárias para tomar uma decisão, podendo ser influenciada por fatores sociais, ambientais e de saúde2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.,2222 Donnelly M. Healthcare Decision-Making and the Law. Cambridge: Cambridge University Press; 2010.. Ambos os conceitos se relacionam, mas não se confundem. Por isso, uma pessoa com a capacidade decisional reduzida não pode ter retirada a capacidade jurídica.
No que concerne às pessoas idosas, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos, em seus artigos 3º e 7º preceituam que a dignidade, a independência, o protagonismo e a autonomia pessoal são direitos humanos da pessoa idosa. O artigo 30 prevê que a pessoa idosa possui igual direito à capacidade jurídica para tomar decisões em todos os aspectos de sua vida3535 Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana Sobre a Proteção Dos Direitos Humanos Dos Idosos. Washington, D.C.: Assembleia Geral: 2015.. O mesmo dispositivo prevê que os Estados devem adotar medidas que proporcionem à pessoa idosa o acesso aos apoios de que possa necessitar para o exercício de sua capacidade jurídica. Tal documento reafirma a importância da capacidade jurídica como direito humano que deve ser reconhecido especialmente às pessoas idosas.
A abordagem da TDA é um novo paradigma, consistente em um movimento inovador que permite mudança de olhar quanto às premissas legais e sociais que determinam o que uma pessoa “não pode fazer”, passando-se ao questionamento “do que seria necessário” para que tal pessoa pudesse tomar uma decisão3636 Glen KB. Changind Paradigms: Mental Capacity, Legal Capacity, Guardianship, and Beyond. Columbia Human Rights Law Review 2012; 44:93-169.. Essa mudança vai ao encontro do respeito à dignidade, bem como da promoção da autonomia da pessoa idosa.
Os principais apontamentos do Comentário Geral nº 1 dispõem que os apoios devem ser disponibilizados a todas as pessoas que necessitem e queiram fazer uso, sendo que deficiências ou doenças não devem ser barreiras para obtenção do apoio. As formas de apoio devem pautar-se na vontade e nas preferências da pessoa e não naquilo que é percebido ou interpretado como seus melhores interesses objetivos. A forma de comunicação de uma pessoa também não pode consistir em barreira para obtenção de apoio na tomada de decisão, ainda que a comunicação seja não convencional e que o indivíduo seja compreendido por poucas pessoas. Outro ponto é que os Estados devem facilitar a criação e disponibilização de distintos mecanismos de apoio, inclusive para pessoas que vivem isoladas. Assim, a falta de recursos financeiros não pode ser barreira para acesso aos apoios, razão pela qual devem ser providos meios gratuitos. Ademais, o fornecimento de apoio não pode afetar a autonomia pessoal, tampouco limitar direitos da pessoa que o utiliza, impedindo-a de tomar decisões. Além disso, o apoio não deve ser uma imposição, razão pela qual a pessoa tem o direito de recusá-lo. Nos processos que envolvam a capacidade jurídica, deve haver salvaguardas que garantam respeito à vontade e às preferências da pessoa. Por fim, a prestação de apoio não deve estar condicionada à avaliação da capacidade mental2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.,2727 Committee on the Right of People with Disabilities. Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Article 12: Equal Recognition before the Law [Internet]. Committee on the Right of People with Disabilities; 2006 [cited 2022 mar 12]. Available from: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRPD/Pages/CRPDIndex.aspx..
A abordagem da TDA opõe-se em grande medida à abordagem da TDS. Esta última considera que algumas pessoas não possuem capacidade decisional e jurídica para formular suas decisões e exercer seus direitos, razão pela qual, outras pessoas devem decidir em seu lugar. Tal ideário toma por base a concepção paternalista de que a proteção e promoção dos direitos de determinadas pessoas, como é o caso de pessoas idosas que vivem com demência, deve se dar através de mecanismos em que um terceiro decidirá em seu nome, com base no critério de seus melhores interesses objetivos2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.. A abordagem da TDA, por sua vez, parte da concepção de que a proteção e promoção de direitos ocorre, dentre outros fatores, através da promoção da autonomia pessoal1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019.,2222 Donnelly M. Healthcare Decision-Making and the Law. Cambridge: Cambridge University Press; 2010., pautada no respeito à vontade e preferências do indivíduo2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018..
Em síntese, a abordagem da TDA difere da abordagem de TDS em sua base fundante, pois enquanto a primeira pauta-se na concepção social de promover acesso igualitário a direitos para todas as pessoas, reconhecendo e respeitando sua autonomia pessoal, alçada à qualidade de direito humano1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019.,2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018., a segunda pauta-se na concepção de desigualdade, em que algumas pessoas, a depender de suas doenças, idade ou outras características, são consideradas juridicamente incapazes e não podem exercer seus direitos. Tal entendimento afronta a autonomia pessoal e, por conseguinte, os direitos humanos.
No sistema jurídico, pautado na abordagem da TDS, como é o caso do Brasil, comumente utilizam-se processos de curatela para nomear pessoas para decidir em nome de outra3737 Santos CC. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada: Teoria e Prática. Vol. 1. 1ª ed. Curitiba: Juruá; 2021., enquanto no sistema pautado na abordagem da TDA parte-se da concepção de que, possuindo os apoios adequado, o indivíduo poderá exercer sua capacidade jurídica e tomar decisões de seu interesse. Com isso, mecanismos de decisão substituta servem apenas para casos em que a pessoa não consegue manifestar pessoalmente sua vontade, como é o caso de estar em coma. Ainda assim, esses instrumentos devem estar alinhados à abordagem da TDA, no sentido de que a escolha seja feita de acordo com o que a pessoa faria caso pudesse se manifestar pessoalmente2727 Committee on the Right of People with Disabilities. Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Article 12: Equal Recognition before the Law [Internet]. Committee on the Right of People with Disabilities; 2006 [cited 2022 mar 12]. Available from: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRPD/Pages/CRPDIndex.aspx..
Alguns países, como Alemanha, Austrália, Canadá, Estados Unidos, Irlanda, Israel, Reino Unido e Suécia têm avançado na implementação de mecanismos práticos de TDA1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019.. Estudo desenvolvido no Canadá, por exemplo, propõe seis tipos de mecanismos de apoios, quais sejam: a) apoio para planejamento de vida, pautado na identificação de valores e propósitos da pessoa; b) Advocacy independente, pautado em auxiliar a pessoa a expressar seus desejos e exercer seus direitos e deveres; c) apoios comunicacionais e interpretativos, que visam auxiliar a pessoa a se comunicar por vias alternativas, podendo incluir sistemas de sinalização, gestual, vocalização, etc.; d) acordos de representação, pautados no compartilhamento da biografia da pessoa com outros, através de uma relação de confiança e compreensão de suas formas de se expressar; e) apoios pra construção de relacionamento, pautado na construção de relacionamentos e redes de apoio para compartilhamento de experiências; f) apoios administrativos, que visam auxiliar a pessoa a realizar ou acordos celebrados, à exemplo de financiamentos, compra e venda, etc. Tais mecanismos podem ser utilizados separados ou em conjunto, a depender da personalidade, características e necessidades únicas de cada pessoa2929 Bach M, Kerzner L. A New Paradigm for Protecting Autonomy and the Right to Legal Capacity Prepared for the Law Commission of Ontario. Ontario: LCO; 2010..
No que concerne aos cuidados em saúde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou Guia prático para implementação de mecanismos de TDA, especialmente no que concerne aos cuidados em saúde. Cita que os mecanismos informais, em sua maioria, são fornecidos por familiares e amigos e são utilizados por todas as pessoas no cotidiano. Menciona como exemplos: os Círculos de Apoio, implementados na Austrália e Reino Unido; a assistência pessoal; o Peer Suport; apoios de familiares e amigos; e apoios comunitários. Os Apoios formais podem ser necessários para tomar decisões complexas ou importantes, sendo mais úteis quando os suportes informais não forem suficientes para apoiar as pessoas com necessidades específicas. Podem ser citados como exemplos: Personal Ombudsman implementado na Suécia, o Independent Advocacy, implementado no Reino Unido e na Escócia e o Open Dialogue, implementado na Finlândia2828 World Health Organization (WHO). Quality Rights Specialized training. Supported Decision-Making and Advance Planning. Course Guide [Internet]. 2019 [cited 2022 mar 12]. Available from: http://apps.who.int/bookorders.
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Além disso, o documento da OMS elenca alguns princípios-chave para a implementação dos mecanismos de TDA, como é o caso do reconhecimento de que todas as pessoas possuem direito a tomar decisões. Outro exemplo é o princípio de que as pessoas devem ter oportunidades de receber ou rejeitar os apoios oferecidos para que tomem decisões, assim como têm o direito de aprender com a experiência e de tomar más decisões. Para os casos em que, mesmo após adoção de esforços significativos em compreender a real vontade e preferências de uma pessoa, não haja meio de identificá-las, uma melhor interpretação de sua vontade e preferências deve ser aplicada, a fim de respeitar seu direito à capacidade jurídica e autonomia pessoal2828 World Health Organization (WHO). Quality Rights Specialized training. Supported Decision-Making and Advance Planning. Course Guide [Internet]. 2019 [cited 2022 mar 12]. Available from: http://apps.who.int/bookorders.
http://apps.who.int/bookorders... . Nesses casos, a pessoa pode nomear alguém, com quem tenha convívio e possua laço de confiança, para lhe representar e tomar decisões que tomaria, caso estivesse em condições de expressar-se2929 Bach M, Kerzner L. A New Paradigm for Protecting Autonomy and the Right to Legal Capacity Prepared for the Law Commission of Ontario. Ontario: LCO; 2010..
A Diretiva Antecipada, o Testamento Vital e o Plano Avançado de Cuidados podem ser citados como mecanismos de TDA, importantes para o campo dos cuidados em saúde. Possuem o objetivo de explicitar a vontade e preferências de uma pessoa para momentos futuros, em que esta não consiga se expressar pessoalmente. A Austrália pode ser citada como exemplo de país em que há legislação, políticas públicas e amplo incentivo nacional no que tange a instrumentos de apoio para tomada de decisão nos cuidados em saúde, inclusive para pessoas idosas que vivem com demência3838 Sinclair C, Field S, Blake M. Supported Decision-Making in Aged Care: A Policy Development Guideline for Aged Care Providers in Australia. Sydney: Cognitive Decline Partnership Centre; 2018.. Por meio de outros instrumentos, tais desejos podem ser descritos para diversos campos da vida, como finanças, administração de patrimônio, cuidados com filhos.
Como se pode observar, a abordagem da TDA introduz a proteção da capacidade jurídica no escopo dos direitos humanos, ensejando o entendimento de que todas as pessoas possuem o direito de ter direitos e de exercê-los pessoalmente, podendo contar com o auxílio de mecanismos de apoio, em caso de necessidade1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019.,2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.. Essa abordagem inaugura um paradigma diferenciado e importante quanto à compreensão de que todas as pessoas podem exercer sua autonomia pessoal e tomar decisões envolvendo sua vida, incluindo as pessoas idosas que vivem com demência77 Machado ILO. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada (TDA) Com Relação a Pessoas Idosas No Brasil: Uma Análise Bioética. Brasília: Universidade de Brasília; 2022.,1313 Sabbata K. Dementia, Treatment Decisions, and the UN Convention on the Rights of Persons With Disabilities. A New Framework for Old Problems. Front Psychiatry 2020; 11:571722.,2323 Donnelly M. Deciding in dementia: The possibilities and limits of supported decision-making. Int J Law Psychiatry. 2019; 66:101466..
Modelo jurídico brasileiro
Com o advento da Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência, parte da legislação brasileira foi alterada. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa (LBI) de 2015, instituiu uma série de direitos destinados às pessoas com deficiência, dentre eles, a plena capacidade civil. Nesse sentido, a Lei prevê, como mecanismo de TDA, o processo judicial de Tomada de Decisão Apoiada, disciplinado no Código Civil, facultando à pessoa com deficiência o direito em nomear pessoas de sua confiança para fornecer os elementos e informações necessárias para exercer sua capacidade3030 Brasil. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil Brasileiro. Diário Oficial da União 2002; 11 jan., auxiliando a tomar decisões acerca de sua vida, determinando que o processo de curatela - mecanismo de TDS - deve ser utilizado como medida protetiva extraordinária, afetando apenas os direitos de natureza patrimonial e negocial3131 Brasil. Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão. Diário Oficial da União 2015; 7 jul..
O Código Civil também foi alterado para retirar o instituto da interdição, em que se declarava a incapacidade jurídica total de uma pessoa, nomeando-se um decisor substituto para tomar decisões em todos os aspectos de sua vida. A figura da curatela, mecanismo de declaração de incapacidade jurídica parcial, restou mantida para aqueles que não puderem exprimir sua vontade, para os ébrios habituais, para os viciados em tóxico e para os pródigos3030 Brasil. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil Brasileiro. Diário Oficial da União 2002; 11 jan..
De maneira expressa, o Código Civil define apenas um mecanismo formal de TDA para ser utilizado no Brasil, limitando seu uso às pessoas com deficiência, denominado como “tomada de decisão apoiada”. No entanto, há entendimento de que os mecanismos de TDA devem ser disponibilizados a todas as pessoas que dele necessitem e queiram fazer uso, independente de vinculação à deficiência, abordando, portanto, as pessoas idosas que vivem com demência1313 Sabbata K. Dementia, Treatment Decisions, and the UN Convention on the Rights of Persons With Disabilities. A New Framework for Old Problems. Front Psychiatry 2020; 11:571722.,2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.,2323 Donnelly M. Deciding in dementia: The possibilities and limits of supported decision-making. Int J Law Psychiatry. 2019; 66:101466.,2727 Committee on the Right of People with Disabilities. Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Article 12: Equal Recognition before the Law [Internet]. Committee on the Right of People with Disabilities; 2006 [cited 2022 mar 12]. Available from: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRPD/Pages/CRPDIndex.aspx.. Apesar da exclusão do instituto da interdição do Código Civil, tal alteração não foi implementada do Código de Processo Civil3939 Brasil. Lei no 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União 2015; 17 mar., a exemplo do artigo 755 que faz menção ao processo que decreta a interdição. Tal artigo ainda é utilizado para fundamentar decisões que determinam a curatela total de determinadas pessoas4040 TJDFT. Processo: 07083554520218070003 Apelação Cível. Curatela. Incapaz. Prova Pericial. Exercício de Direitos. Incapacidade Absoluta. Tomada de Decisão Apoiada. Inviabilidade. Ampliação Dos Limites Da Curatela. Necessidade. Proteção Integral. Dignidade Da Pessoa [Internet]. TJDFT; 2022 [acessado 2022 mar 12]. Disponível em: https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj.
https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/Index... , mesmo em contradição com a LBI. O Estatuto da Pessoa Idosa também não faz referência à possibilidade de uso de mecanismos de TDA, havendo previsão de que a curatela pode ser utilizada para suprir o consentimento da pessoa idosa em tratamentos de saúde.
Apesar da alteração legislativa ter sido implementada em 2015, prevendo que o instituto da curatela deve ser utilizado em casos excepcionais, nos últimos anos verificou-se a ocorrência de muitas ações de curatela ajuizadas no Brasil. O mecanismo de TDA é pouco conhecido pela sociedade e possui aplicação ainda tímida no judiciário brasileiro, que, na prática, continua fazendo o uso da curatela como mecanismo paternalista de proteção77 Machado ILO. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada (TDA) Com Relação a Pessoas Idosas No Brasil: Uma Análise Bioética. Brasília: Universidade de Brasília; 2022.,3737 Santos CC. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada: Teoria e Prática. Vol. 1. 1ª ed. Curitiba: Juruá; 2021., declarando a incapacidade para tomada de decisões e nomeando um decisor substituto, muitas vezes alheio à história e vida do idoso. O fato demonstra que a abordagem da TDA ainda não foi devidamente implementada no país4141 Menezes JB, Pimentel ABL, Lins APC. A capacidade jurídica da pessoa com deficiência após a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: análise das soluções propostas no Brasil, em Portugal e no Peru. Rev Direito Praxis 2021; 12(1):296-322.. Por isso, há necessidade de realizar adequações na legislação, de modo a harmonizar os dispositivos legais que tratam da matéria, assim como incluir a possibilidade expressa de utilização de instrumentos de apoio por pessoas idosas77 Machado ILO. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada (TDA) Com Relação a Pessoas Idosas No Brasil: Uma Análise Bioética. Brasília: Universidade de Brasília; 2022.,4242 Oliveira PJS. A Curatela e a Tomada de Decisão Apoiada: A Proteção e a Promoção Da Autonomia Da Pessoa Com Deficiência. 1ª ed. São Paulo: Dialética; 2021..
A experiência prática de aplicação da TDA realizada em conjunto com a Defensoria Pública do Distrito Federal, demonstrou pouco conhecimento de profissionais do direito quanto ao tema, pouca literatura brasileira que conecte essa abordagem ao escopo dos direitos humanos, além da necessidade de implementação de apoios não jurídicos, voltados à criação de programas que amparem as pessoas envolvidas na relação de cuidado e apoio, ofertando treinamentos, orientações e outras ações de estímulo ao uso da abordagem da TDA4343 Albuquerque A, Borba G, Dias T, Silva A, Cobucci B. Relato de experiência da aplicação da Tomada de Decisão Apoiada na Defensoria Pública do Distrito federal. In: Vasconcelos EM, editor. Novos Horizontes Em Saúde Mental. Análise de Conjuntura, Direitos Humanos e Protagonismo de Usuários(as) e Familiares. Vol. 1. 1ª ed. São Paulo: Hucitec Editora; 2021. p. 430-454..
Apesar das inovações legislativas introduzidas no modelo brasileiro, tem-se que a abordagem da TDA, conforme estatuída no Comentário Geral nº 1, encontrando-se ainda em fase embrionária4141 Menezes JB, Pimentel ABL, Lins APC. A capacidade jurídica da pessoa com deficiência após a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: análise das soluções propostas no Brasil, em Portugal e no Peru. Rev Direito Praxis 2021; 12(1):296-322.,4444 Menezes J. Tomada de decisão apoiada: o instrumento jurídico de apoio à pessoa com deficiência inaugurado pela Lei nº 13.146/2015. Novos Estud Jurídicos 2018; 23(3):1191-1215. de implementação no país, carecendo de ações e políticas públicas mais robustas advindas de estudos que auxiliem no avanço e implementação prática de tal instituto, que interpreta a pessoa como sujeito do seu próprio processo de vida, além do desenvolvimento de outros mecanismos de apoio, pautados na abordagem da TDA.
Tomada de Decisão Apoiada para pessoas idosas que vivem com demência: contribuições da bioética à promoção da autonomia
O aumento significativo da população idosa, assim como de doenças crônicas e degenerativas mais presentes na fase final da vida, como é o caso das demências, ressalta a preocupação com aspectos inerentes à promoção da autonomia e da capacidade decisional e jurídica desse grupo populacional. O exercício do direito à tomada de decisão reflete em diversos aspectos da vida humana, como é o caso dos cuidados em saúde, administração patrimonial, relacionamentos, escolha de moradia, cuidados familiares, atividades religiosas e até mesmo atividades diárias cotidianas, como escolher roupas e alimentação. Apesar da atualidade e relevância sobre o tema, o número de estudos desenvolvidos, especialmente no Brasil, ainda é pequeno4343 Albuquerque A, Borba G, Dias T, Silva A, Cobucci B. Relato de experiência da aplicação da Tomada de Decisão Apoiada na Defensoria Pública do Distrito federal. In: Vasconcelos EM, editor. Novos Horizontes Em Saúde Mental. Análise de Conjuntura, Direitos Humanos e Protagonismo de Usuários(as) e Familiares. Vol. 1. 1ª ed. São Paulo: Hucitec Editora; 2021. p. 430-454..
A demência pode ser classificada como um estado clínico em que ocorre um declínio das funções cognitivas, acarretando perda de memória e de julgamento, limitação de movimentos motores mais complexos e de certas funções intelectuais4545 Ash EL. What is Dementia? In: Foster C, Herring J, Doron I, editors. The Law and Ethics of Dementia. Oxford, Portland: Hart Publishing; 2014. p. 3-14.. Apesar do impacto nas funções cognitivas, as competências mentais para decidir acerca de determinadas áreas da vida continuam mantidas. Por esse motivo, pessoas que vivem com demência não podem ser automaticamente consideradas incapazes para decidir sobre determinados aspectos de sua vida1313 Sabbata K. Dementia, Treatment Decisions, and the UN Convention on the Rights of Persons With Disabilities. A New Framework for Old Problems. Front Psychiatry 2020; 11:571722.,1414 Machado I, Garrafa V. Capacidades jurídica e decisional e os importantes aportes bioéticos para promoção da autonomia de pessoas idosas. Rev Redbioética Unesco 2021; 2(24):95-102..
Segundo a OMS1111 World Health Organization (WHO). Demência [Internet]. 2021 [cited 2022 mar 3]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/dementia.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet... , mais de 55 milhões de pessoas vivem com demência no mundo, sendo a Doença de Alzheimer a mais comum. A cada ano o número de novos casos aumenta em cerca de 10 milhões de pessoas. Esta é a sétima causa de mortes entre todas as doenças e uma das principais causas de dependência entre pessoas idosas no mundo1111 World Health Organization (WHO). Demência [Internet]. 2021 [cited 2022 mar 3]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/dementia.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet... . No entanto, apesar de não ser uma consequência inevitável advinda do envelhecimento, pessoas idosas são constantemente estigmatizadas através desta lente da incapacidade1414 Machado I, Garrafa V. Capacidades jurídica e decisional e os importantes aportes bioéticos para promoção da autonomia de pessoas idosas. Rev Redbioética Unesco 2021; 2(24):95-102., sofrendo marginalização e infringências em seus direitos, sob a égide de medidas paternalistas de “proteção”22 Machado ILO, Garrafa V. Bioética, o envelhecimento no Brasil e o dever do Estado em garantir o respeito aos direitos fundamentais das pessoas idosas. Rev Direitos Garantias Fundam 2020; 21(1):79-106..
A OMS tem publicado com alguma frequência documentos que abordam a necessidade de respeito aos direitos humanos de pessoas idosas, especialmente as que vivem com demência, alertando que o diagnóstico da doença não deve ser causa para restrição ou perda de direitos. Considerando que a previsão legal não é suficiente para garantir direitos a tais pessoas, há necessidade de atuação social e estatal4646 Dixon J, Laing J, Valentine C. A human rights approach to advocacy for people with dementia: A review of current provision in England and Wales. Dementia 2020; 19(2):221-236. no sentido de desenvolver mecanismos de apoio às pessoas idosas e aos seus cuidadores e familiares4747 World Health Organization (WHO). Ensuring a Human Rights-Based Approach for People Living with Dementia [Internet]. [cited 2022 mar 13]. Available from: http://www.who.int/mental_health/neurology/dementia/en/WHO/MSD/MER/15.401.
http://www.who.int/mental_health/neurolo... .
Ser taxado como incapaz para tomar decisões acarreta uma série de aspectos negativos na vida das pessoas idosas, reduzindo autoestima, confiança, desejo de viver e o engajamento em seus cuidados em saúde4848 Paranhos DGAM. Análise da capacidade jurídica dos pacientes idosos no Brasil a partir do referencial dos Direitos Humanos. Cad Ibero-Am Direito Sanit 2020; 9(4):156-170.. Para pessoas idosas com demência, o mais importante é que sejam consideradas com valor4949 Herring J. Losing It? Losing What? The Law and Dementia Articles Losing It? Losing What? The Law and Dementia. Child Family Law Quarterly 2009; 21(1):3-29.. Relatam que a maior perda não se refere à cognição, mas ao valor e ao relacionamento com outras pessoas5050 Steeman E, Godderis J, Grypdonck M, Bal N, Casterlé BD. Living with dementia from the perspective of older people: Is it a positive story? Aging Ment Health 2007; 11(2):119-130.. A TDA traz importantes contribuições para o respeito às pessoas idosas que vivem com demência, protegendo-as e promovendo sua autonomia1313 Sabbata K. Dementia, Treatment Decisions, and the UN Convention on the Rights of Persons With Disabilities. A New Framework for Old Problems. Front Psychiatry 2020; 11:571722.,2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018.,2828 World Health Organization (WHO). Quality Rights Specialized training. Supported Decision-Making and Advance Planning. Course Guide [Internet]. 2019 [cited 2022 mar 12]. Available from: http://apps.who.int/bookorders.
http://apps.who.int/bookorders... ,4949 Herring J. Losing It? Losing What? The Law and Dementia Articles Losing It? Losing What? The Law and Dementia. Child Family Law Quarterly 2009; 21(1):3-29. através de seu exercício relacional contemporâneo5151 Wright M. Dementia, Cognitive Transformation, and Supported Decision Making. Am J Bioet 2020; 20(8):88-90..
Neste sentido, na busca de maior efetividade no cumprimento da atual legislação brasileira com relação ao trato de pessoas idosas, é oportuno que sejam introduzidas neste debate certas proposições bioéticas, morais e estruturais, tais como: liame entre respeito à autonomia pessoal e seu contraponto com medidas paternalistas de proteção; desenvolvimento de mecanismos específicos para prestar apoio a pessoas idosas que vivem com demência; estabelecimento de redes familiares e sociais de apoio; mecanismos de apoio para casos difíceis, como os estágios mais avançados de demência; mudança cultural quanto à discriminação com relação a pessoas idosas77 Machado ILO. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada (TDA) Com Relação a Pessoas Idosas No Brasil: Uma Análise Bioética. Brasília: Universidade de Brasília; 2022..
Tais questões devem ser abordadas não apenas no campo do direito, mas com a interlocução de diferentes saberes1414 Machado I, Garrafa V. Capacidades jurídica e decisional e os importantes aportes bioéticos para promoção da autonomia de pessoas idosas. Rev Redbioética Unesco 2021; 2(24):95-102.. Nesse ponto, a Bioética de Intervenção (BI), linha conceitual antissistêmica de re-territorialização epistemológica da bioética desenvolvida na América Latina, voltada à compreensão de contextos sociais e seus impactos para a vida humana2525 Garrafa V. Inclusão social no contexto político da bioética. Rev Bras Bioet 2005; 1(2):22-32.,5252 Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power end injustice. Bioethics 2003; 17(5-6):399-416.
53 Garrafa V, Cunha TR, Manchola-Castillo C. The teaching of global ethics: A theoretical proposal based on intervention bioethics. Interface (Botucatu) 2020; 24:e190029.-5454 Garrafa V, Cruz E. Bioética de Intervención - Una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Pfeiffer ML, Manchola-Castillo C, editors. Fundamentar La Bioética: Conocimientos, Valores y Visiones Desde América Latina y El Caribe. Vol. 1. Universidad Nacional Autónoma de México/Unesco; 2022. p. 37-65., propõe a ética aplicada como solução prática de dilemas humanos, apresentando ferramentas pertinentes à presente discussão, como é o caso das perspectivas da libertação, emancipação e empoderamento dos sujeitos sociais1515 Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Rev Bioetica 2005; 13(1):125-134.,5454 Garrafa V, Cruz E. Bioética de Intervención - Una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Pfeiffer ML, Manchola-Castillo C, editors. Fundamentar La Bioética: Conocimientos, Valores y Visiones Desde América Latina y El Caribe. Vol. 1. Universidad Nacional Autónoma de México/Unesco; 2022. p. 37-65.. Nesse contexto, a BI preceitua que a vida humana é permeada pela vivência social e que a construção individual perpassa pelo respeito, alteridade, valorização e desenvolvimento das possibilidades e habilidades de cada um, confluindo para o entendimento de que as conexões sociais fazem parte do exercício da autonomia1515 Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Rev Bioetica 2005; 13(1):125-134.. Nesse ponto, torna-se fundamental o reconhecimento de que a capacidade jurídica é um direito humano e que a possibilidade de exercício desse direito implica em respeito à autonomia pessoal, através da tomada de decisão participativa e apoiada1414 Machado I, Garrafa V. Capacidades jurídica e decisional e os importantes aportes bioéticos para promoção da autonomia de pessoas idosas. Rev Redbioética Unesco 2021; 2(24):95-102.,1919 Shogren KA, Wehmeyer ML, Martinis J, Blanck P. Supported Decision-Making: Theory, Research, and Practice to Enhance Self-Determination and Quality of Life. Oxford: Oxford University Press; 2019..
Ademais, o empoderamento, a partir das concepções travadas pela BI, reconhece as relações de poder que permeiam os relacionamentos humanos e destaca a necessidade de desvelá-los, a fim de que o respeito à autonomia pessoal seja promovido, considerando a responsabilidade existencial entre os seres humanos. Esse processo auxilia na valorização de si e do outro, de maneira que a pessoa figure como agente central de sua própria história2525 Garrafa V. Inclusão social no contexto político da bioética. Rev Bras Bioet 2005; 1(2):22-32..
Para a implementação da abordagem da TDA no Brasil, voltada às pessoas idosas que vivem com demência, há necessidade da adoção de uma série de condutas a nível estatal, social e individual1414 Machado I, Garrafa V. Capacidades jurídica e decisional e os importantes aportes bioéticos para promoção da autonomia de pessoas idosas. Rev Redbioética Unesco 2021; 2(24):95-102.. É fundamental a mudança de cultura, no sentido de valorização da pessoa idosa e da noção de que a proteção perpassa por ofertar mecanismos de promoção da autonomia pessoal2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018., que se dá, em parte, pela disponibilização de informações e incentivo ao engajamento social, ponto em que as discussões travadas pela Bioética de Intervenção mostram-se adequadas.
A inclusão social, no sentido aqui desenvolvido, pressupõe a consciência coletiva quanto à necessidade de respeito à dignidade das pessoas idosas. Parte de relacionamentos empáticos e solidários frente ao outro, especialmente os mais vulneráveis, com o compromisso de não infringir direitos inerentes a tais pessoas5454 Garrafa V, Cruz E. Bioética de Intervención - Una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Pfeiffer ML, Manchola-Castillo C, editors. Fundamentar La Bioética: Conocimientos, Valores y Visiones Desde América Latina y El Caribe. Vol. 1. Universidad Nacional Autónoma de México/Unesco; 2022. p. 37-65.
55 Garrafa V, Soares SP. O princípio da solidariedade e cooperação na perspectiva bioética. Bioethikos 2013; 7(3):247-258.
56 Garrafa V, Soares SP. O princípio da solidariedade e cooperação na perspectiva bioética. Rev Centro Uni São Camilo Bioethikos 2013; 7(3):247-258.-5757 Cunha T, Garrafa V. Vulnerability: A Key Principle for Global Bioethics? Cambridge Quarterly Healthcare Ethics 2016; 25(2):197-208.. Saliente-se que a autonomia pessoal é elemento de fundamental importância para o respeito à dignidade humana2020 Albuquerque A. Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. 1ª ed. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS; 2018. e de outros direitos fundamentais.
A abordagem da Tomada de Decisão Apoiada indica que diferentes mecanismos de apoio podem ser voltados a variados campos da vida, como a administração patrimonial, cuidados pessoais, cuidados em saúde, dentre outros. No caso de pessoas que vivem com demência, a possibilidade de tomar decisões a partir da disponibilização de apoios, oferece a oportunidade de continuar fazendo escolhas e de manter, em algum grau, o controle de aspectos relevantes em sua vida, pautadas em sua vontade própria e preferências. No que tange aos cuidados em saúde, por exemplo, o fato de poder fazer escolhas quanto ao curso terapêutico, gera engajamento dos cuidados e contribui para a melhora do quadro de saúde do paciente2222 Donnelly M. Healthcare Decision-Making and the Law. Cambridge: Cambridge University Press; 2010.. Nesse sentido, a presença da demência não significa o fim da personalidade moral2323 Donnelly M. Deciding in dementia: The possibilities and limits of supported decision-making. Int J Law Psychiatry. 2019; 66:101466..
Apesar da legislação brasileira limitar o escopo de utilização do instrumento de TDA a pessoas com deficiência, tem-se que, na prática, seu uso pode alcançar também as pessoas idosas que vivem com demência. O uso de tal instrumento, especialmente quando pautado na noção de empoderamento, promoção da autonomia e inclusão social das pessoas idosas, traz importantes contribuições para a efetivação de seus direitos humanos.
Considerações finais
O uso do processo de TDA no Brasil ainda está em fase embrionária, sendo necessário identificar estratégias para aperfeiçoamento e melhoria do processo, identificação de benefícios e riscos, além de adequação de seu uso para as especificidades das pessoas idosas que vivem com demências.
Nesse sentido, a abordagem estritamente voltada à experiência jurídica demonstra-se insuficiente para alcançar tal objetivo. Aportes advindos da bioética podem contribuir para o avanço em discussões voltadas à maior participação social de pessoas que vivem com demência, assim como incentivo para formulação de políticas públicas voltadas à adoção de uma cultura de apoio às pessoas idosas, aos seus cuidadores, familiares e à sociedade.
O paradigma implementado pela abordagem da TDA aponta para a necessidade de profunda mudança quanto à forma de compreender e lidar com doenças e deficiências que afetam as habilidades mentais para tomada de decisão, especialmente no trato de pessoas idosas. As noções de empoderamento e de promoção da autonomia trazem a importante reflexão de que reforço aos laços sociais e à rede de apoio são fundamentais para o desenvolvimento de mecanismos que visam alterar o cenário de discriminação das pessoas com demência, a partir da noção de que a tomada de decisão é um direito humano e de que sua efetivação consiste em dever individual, estatal, jurídico, social e, sobretudo, moral.
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Financiamento
O financiamento da pesquisa foi obtido junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/MEC) por meio de bolsa de doutorado concedida ao Programa de Pós-Graduação em Bioética/Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília-DF, Brasil.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
10 Nov 2023 - Data do Fascículo
Nov 2023
Histórico
- Recebido
25 Jan 2023 - Aceito
28 Fev 2023 - Publicado
02 Mar 2023