Quem são as minorias sexuais e de gênero que convivem frequentemente com filhos(as) e sua associação a cuidados em saúde

Claudia Rafaella Santos Oliveira Carolina Campos Vieira de Sousa Juliana Lustosa Torres Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se analisar as características sociodemográficas das minorias sexuais e de gênero que convivem frequentemente com filhos(as) e verificar se existe associação entre convívio frequente com filhos(as) e os cuidados em saúde. Trata-se de um estudo transversal com dados do inquérito de saúde LGBT+, realizado no Brasil em 2020 (agosto-novembro) de forma on-line e anônima, totalizado 958 participantes. O convívio frequente com filhos(as) foi avaliado pela moradia com filhos(as) ou encontros presenciais quinzenais com filhos(as) que moram em outro domicílio. Os cuidados em saúde incluíram ter um profissional ou serviço de referência, sentir-se à vontade para contar seus problemas e receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade. A regressão de Poisson com variância robusta foi usada na análise estatística. A prevalência de convívio com filhos(as) foi de 5,3%. Após o ajuste por idade, verificou-se uma prevalência estatisticamente maior em mulheres cisgênero (13,4%) e entre pretos/pardos e outras raças/cores não brancas (7,9%). Observou-se que o convívio frequente com filhos(as) foi positivamente associado apenas a receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade (RP=6,00; IC95% 1,22-29,67). Esses achados destacam que ainda há estigma/preconceito nos serviços de saúde.

Palavras-chave:
Minorias Sexuais e de Gênero; Qualidade da Assistência à Saúde

Introdução

A homoparentalidade pode ser entendida como uma conformação familiar em que pelo menos um dos pais está em um relacionamento homoafetivo e este exerce a função de cuidador do infante11 Pinto AV. Pensar a homoparentalidade... A partir das atitudes de diferentes profissionais relativamente à parentalidade homossexual [tese]. Porto: Faculdade Ciências Humanas e Sociais, Universidade de Fernando Pessoa; 2014.. A homoparentalidade já existe há muito tempo, mas somente nas últimas décadas que ela vem ganhando maior visibilidade e mais legislação em relação a direitos sociais22 Blankenheim T, Menegotto LMO, Silva DRQ. Homoparentalidade: um diálogo com a produção acadêmica no Brasil. Rev Psicol 2018; 30(2):243-249.. Uma das grandes questões relacionadas ao contexto dessa configuração familiar é como o convívio e o cuidado das crianças se intermediam com a sexualidade dos cuidadores. Apesar de não haver diferença em relação às habilidades para se educar e criar um filho entre pais homossexuais e heterossexuais22 Blankenheim T, Menegotto LMO, Silva DRQ. Homoparentalidade: um diálogo com a produção acadêmica no Brasil. Rev Psicol 2018; 30(2):243-249., é inerente que a homoparentalidade apresenta muito mais interferência do meio sociocultural (preconceitos e estigmas), podendo levar a uma menor rede de apoio por familiares33 Lúcio FPS, Abreu PD, Vasconcelos EMR, Araújo EC. Social network: evaluation of the support or containment contexts of lesbian mothers. Rev Bras Enferm 2018; 71(Supl. 1):490-495., inclusive pelas próprias características dos pais44 Lawrenz P, Habigzang LF. Minority Stress, Parenting Styles, and Mental Health in Brazilian Homosexual Men. J Homosexuality 2020; 67(5):658-673..

Há diversos benefícios para a saúde a partir do convívio com filhos. Segundo achados de um estudo realizado por Goldman55 Goldman MJ. The Joy of Fatherhood, Expanded 2nd Edition: the first twelve months. 2a ed. Roseville: Harmony; 2000., quando os pais lidam com a responsabilidade de cuidar de uma criança, há uma via direta que explica a melhoria na concepção de saúde, a partir da melhora de comportamentos em saúde, além de um maior acompanhamento destes por profissionais de saúde para realizar o exercício do cuidado. Outra via de explicação é a partir da manutenção de laços sociais fortes, que está associada a uma melhor saúde mental em pessoas idosas, de minorias sexuais e de gênero66 Kim HJ, Fredriksen-Goldsen KI, Bryan AE, Muraco A. Social Network Types and Mental Health Among LGBT Older Adults. Gerontologist 2017; 57(Supl. 1):84-94.. Além disso, há também benefícios para o indivíduo de ser criado por pais de minorias sexuais, já que evidências apontam melhores resultados de ajustamento psicológico e das relações entre pais e filhos, assim como estes indivíduos se tornam mais tolerantes com a diversidade77 Zhang Y, Huang H, Wang M, Zhu J, Tan S, Tian W, Mo J, Jiang L, Mo J, Pan W, Ning C. Family outcome disparities between sexual minority and heterosexual families: a systematic review and meta-analysis. BMJ Global Health 2023; 8(3):e010556..

Entretanto, no contexto da homoparentalidade, mesmo com os benefícios citados anteriormente, pode haver maiores efeitos negativos relacionados principalmente à discriminação de minorias, fazendo com que os cuidados em saúde não sejam equânimes e, consequentemente, a sexualidade não seja exposta. Apesar da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais ter sido implantada em 2011 explicitando objetivos que englobam a eliminação da discriminação e do preconceito institucional88 Brasil. Portaria nº 2.836, de 1° de dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União; 2011., a discriminação relacionada a minorias ainda pode ser sofrida nos serviços de saúde, culminado ou não em baixa qualidade dos cuidados em saúde prestados. A Atenção Primária à Saúde, que deveria ser um espaço de acolhimento, por vezes, torna-se local de violências e negligências no cuidado em saúde99 Ferreira BO, Bonan C. Cadê as populações LGBTT na Estratégia Saúde da Família? narrativas de profissionais de saúde em Teresina, Piauí, Brasil. Cien Saude Colet 2021; 26(5):1669-1678.. Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação de 2015-20171010 Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, Correia RSB, Polidoro M, Canavese D. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(Supl. 1):e200006. mostraram que 28,7% das notificações de violência em pessoas de minorias sexuais e de gênero foram do tipo psicológica e que, no total, quase 40% foram violências de repetição. Além disso, sofrer discriminação relacionada à identidade de gênero diminui em quase 70% o uso de serviços de saúde1111 Leite BO, Medeiros DS, Magno L, Bastos FI, Coutinho C, Brito AM, Cavalcante MS, Dourado I. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health 2021; 20(1):199..

No Brasil, ainda faltam dados sobre as características das pessoas de minorias sexuais e de gênero que tem filhos e como é a abordagem dessas pessoas pelos profissionais de saúde. Já é descrito na literatura os desafios que a população de minorias sexuais e de gênero enfrentam no acesso à saúde, desde a discriminação e falta de capacitação dos profissionais de saúde até o entendimento das necessidades desta população para além de infecções sexualmente transmissíveis1212 Miskolci R, Signorelli MC, Canavese D, Teixeira FB, Polidoro M, Moretti-Pires RO, Souza MHT, Pereira PPG. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3815-3824.. Consequentemente, os cuidados em saúde das minorias sexuais e de gênero não são equânimes, a sexualidade, muitas vezes, não é exposta ao profissional de saúde, assim a primeira busca por serviços acaba sendo em farmácias ou pela realização de automedicação1313 Albuquerque GA, Garcia CL, Quirino GS, Alves MJH, Belém JM, Figueiredo FWS, Paiva LS, Nascimento VB, Maciel ÉS, Valenti VE, Abreu LC, Adami F. Access to health services by lesbian, gay, bisexual, and transgender persons: systematic literature review. BMC Int Health Hum Rights 2016; 16(1):2. ao invés de consultar com o profissional de saúde. Entretanto, não se sabe se há diferença nos cuidados em saúde prestados a esta população quando a homoparentalidade está presente. Deste modo, os objetivos deste estudo foram 1) analisar as características sociodemográficas dos indivíduos de minorias sexuais e de gênero que tem filhos(as) e que convivem frequentemente com eles e 2) verificar se existe associação entre convívio frequente com filhos(as) e os cuidados em saúde.

Métodos

Delineamento e amostragem

Trata-se de um estudo transversal baseado em dados do inquérito de saúde LGBT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais e demais identidades relacionadas), realizado através de um link autopreenchível de forma on-line e anônima, divulgado em âmbito nacional em redes sociais, como Facebook, Instagram e WhatsApp. Este inquérito ficou disponível de agosto a novembro de 2020. A amostragem foi não probabilística, através da disseminação tipo bola de neve, até atingir a amostra mínima de 664 respondentes, de acordo com o cálculo amostral1414 Torres JL, Goncalves GP, Pinho AA, Souza MHN. The Brazilian LGBT+ Health Survey: methodology and descriptive results. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00069521.. Foram incluídos todos os indivíduos com 18 anos e mais que moravam no Brasil durante o período de coleta de dados e que se autodeclararam como pertencentes à população de minorias sexuais e de gênero, somando 976 respondentes.

O inquérito de saúde LGBT+ foi aprovado previamente pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE 34123920.9.0000.5149), parecer no 4.198.297.

Convívio frequente com filhos(as)

Para a classificação do convívio frequente com filhos(as), foram considerados aqueles participantes que ou moravam com seus/suas filhos(as) ou aqueles participantes que tinham filhos(as) que moravam em outro domicílio, mas apresentavam encontros presenciais pelo menos quinzenais com seus/suas filhos(as). Os demais participantes foram considerados como não tendo convívio frequente com filhos(as).

Variáveis sociodemográficas

As variáveis sociodemográficas incluíram: orientação afetiva (homossexual, bissexual, ou outra); identidade de gênero (mulher cisgênero, homem cisgênero, ou transgênero, travesti, não binário ou outras minorias de gênero); faixa etária (18-29 anos, 30-49 anos, ou ≥50 anos); escolaridade (ensino médio ou inferior, graduação incompleta ou completa, pós-graduação incompleta ou completa); raça/cor (branca ou preta/parda/outras); presença de companheiro(a) (não ou sim), considerando-se “não” como solteiro(a), divorciado(a) ou viúvo(a); e ter plano de saúde (não ou sim).

Cuidados em saúde

Os cuidados em saúde foram avaliados através de autorrelato e incluíram: ter um profissional ou serviço de saúde referência quando fica doente ou precisa de atendimento de saúde (sim ou não); sentir-se à vontade contando seus problemas a profissionais de saúde (sim ou não); e receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade (não ou sim). Este foi avaliado pela frequência percebida pelo participante de receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade em comparação a outras pessoas, com quatro opções de resposta. Classificou-se como “não” quando o participante respondeu frequência de algumas vezes ou nunca e “sim” quando o participante respondeu receber pior tratamento pelo menos uma vez na semana ou quase todos os dias.

Análise estatística

Inicialmente, realizou-se a análise descritiva dos dados, através de frequências das variáveis e intervalos de confiança de 95% (IC95%). Em seguida, estimou-se a prevalência de convívio frequente com filhos(as) e Razões de Prevalência (RP) brutas e ajustadas por idade, utilizando-se a regressão de Poisson com variância robusta. As RP foram utilizadas para verificar as características sociodemográficas entre as quais o convívio frequente com filhos(as) variou significativamente entre as categorias das variáveis, adotando-se o nível de significância de 5%. Após esta etapa, as prevalências de convívio frequente com filhos(as) foram estratificadas entre as características sociodemográficas estatisticamente significativas após o ajuste por idade. Por último, adotando-se como variável dependente cada uma das variáveis de cuidados em saúde isoladamente, utilizou-se a regressão de Poisson com variância robusta para verificar se existe associação entre aqueles que convivem frequentemente com filhos(as) e os cuidados em saúde. Todas as análises estatísticas foram realizadas através do software Stata 17.0 SE (Stata-Corp., College Station, Texas, USA), considerando a pós-estratificação com pesos por região geográfica para aumentar a representatividade amostral por região geográfica1515 Macedo AON, Silva SAG, Gonçalves GP, Torres JL. COVID-19 vulnerability among Brazilian sexual and gender minorities: a cross-sectional study. Cad Saude Publica 2022; 38(8):e00234421..

Resultados

Dos 976 incluídos, 958 respondentes tinham informações completas acerca das variáveis incluídas no presente estudo e compuseram a amostra final, perfazendo uma idade média de 31,7 anos (±11,5 anos). Destes, 58 (5,3%; IC95% 3,1-8,8) apresentaram convívio frequente com filhos(as). A maioria era homossexuais (75,0%; IC95% 69,7-79,6), homens cisgênero (57,2%; IC95% 51,4-62,7). Demais características podem ser consultadas na Tabela 1.

Tabela 1
Características dos participantes - Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020.

A Tabela 2 mostra as prevalências brutas e ajustadas por idade de convívio frequente com filhos(as) e RP para cada uma das características sociodemográficas. Analisando-se as prevalências brutas, observa-se que a prevalência de convívio frequente com filhos(as) foi maior na faixa etária de 30-49 anos (10,1%) em relação à faixa etária de 18-29 anos (prevalência 1,9%; RP=5,48; IC95% 1,32-22,66). Do mesmo modo, ela também foi maior entre pretos/pardos e outras raças/cores não brancas (prevalência 8,6%: RP=3,90; IC95% 1,21-12,53) e entre indivíduos com companheiro(a) (prevalência 10,8%: RP=4,48; IC95% 1,52-13,14). Ao se ajustar por idade, verificou-se uma prevalência estatisticamente maior em mulheres cisgênero (13,4%) em relação a homens cisgênero (3,2%) e em relação a transgêneros, travestis, não binários ou outras minorias de gênero (2,7%) (RP=0,22; IC95% 0,06-0,77 para homens cisgênero e RP=0,18; IC95% 0,04-0,82 para transgêneros, travestis, não binários ou outras minorias de gênero). A prevalência de convívio frequente com filhos(as) manteve-se estatisticamente maior entre pretos/pardos e outras raças/cores não brancas após o ajuste por idade (Prevalência 7,9%: RP=3,46; IC95% 1,07-11,20).

Tabela 2
Prevalências brutas e ajustadas por idade de convívio com filhos em minorias sexuais e razões de prevalência entre características sociodemográficas - Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020.

A Figura 1 mostra as prevalências de convívio frequente com filhos(as) ajustadas por idade para identidade de gênero, estratificada por raça/cor, que foram as variáveis que mantiveram estatisticamente diferentes após o ajuste por idade. Apesar de para todas as identidades de gênero (mulher cisgênero, homem cisgênero e transgêneros, travestis, não binários ou outras minorias de gênero) as pessoas pretas/pardas ou com outras raças/cores não brancas aparentarem maior convívio frequente com filhos(as), as prevalências encontradas para estas pessoas foram semelhantes às prevalências das pessoas brancas. Por exemplo, para as mulheres cisgênero, a prevalência de convívio frequente com filhos(as) foi de 6,7% (IC95% 2,9-10,5) entre as pessoas brancas e de 17,8% (IC95% 8,7-26,8) entre as pessoas pretas/pardas ou com outras raças/cores não brancas.

Figura 1
Prevalências de convívio frequente com filhos(as) ajustadas por idade para identidade de gênero, estratificadas por raça/cor - Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020.

A Tabela 3 mostra as associações ajustadas entre convívio frequente com filhos(as) e cada um dos tipos de cuidados em saúde. Observou-se que o convívio frequente com filhos(as) foi positivamente associado apenas a receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade (RP=6,00; IC95% 1,22-29,67).

Tabela 3
Modelos ajustados por características sociodemográficas da associação entre e convívio frequente com filhos(as) cuidados em saúde em minorias sexuais e de gênero - Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020.

Discussão

Este estudo mostrou que a prevalência total de convívio com filhos(as) no Brasil (5,3%) é relativamente baixa em relação à estimativa de casais de minorias sexuais com filhos nos Estados Unidos (33%)1616 Berrahou IK, Leonard SA, Zhang A, Main EK, Maliver JO. Sexual and/or gender minority parental structures among California births from 2016 to 2020. Am J Obstet Gynecol MFM 2022; 4(4):100653.. Dentre as características sociodemográficas, as mulheres cisgênero e as pessoas pretas/pardas ou com outras cores/raças apresentaram maior frequência de convívio com filhos(as), após o ajuste por idade. Quando foi avaliado se o convívio frequente com filhos(as) se associa ao cuidado em saúde, verificou-se que as pessoas com convívio frequente com filhos(as) apresentaram maior propensão a receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade.

Profissionais da saúde que atuam na assistência devem identificar todas as possíveis conformações familiares e compreender quais os aspectos sociodemográficos mais prevalentes e seus determinantes associados, principalmente relacionados às questões das minorias sexuais e a homoparentalidade. Esta análise da conformação familiar tem por objetivo prestar um cuidado em saúde mais qualificado e de forma ética e respeitosa. Quando se compara os resultados dessa pesquisa com os dados da população geral, é possível perceber um quadro semelhante. Primeiro, encontrou-se que as mulheres cisgênero convivem mais frequentemente com seus filhos(as) do que os homens cisgênero. De acordo com dados dos Estados Unidos, a constituição de famílias homoparentais mais prevalentes é de mães lésbicas seguida de pais gays1616 Berrahou IK, Leonard SA, Zhang A, Main EK, Maliver JO. Sexual and/or gender minority parental structures among California births from 2016 to 2020. Am J Obstet Gynecol MFM 2022; 4(4):100653., o que corrobora com este achado. Possivelmente, essa diferença entre homens e mulheres é atrelada ao papel social das mulheres de serem naturalmente cuidadoras dos filhos(as) e dos homens de serem provedores materiais da família, mesmo após uma separação1717 Botton A, Cunico SD, Barcinski M, Strey MN. Os papéis parentais nas famílias: analisando aspectos transgeracionais e de gênero. Pensando Familias 2015; 19(2):43-56.. Segundo, encontrou-se que mulheres pretas/pardas convivem mais com filhos(as) do que mulheres brancas. As mulheres pretas/pardas são as pessoas que mais têm filhos na população geral: as mulheres negras apresentam a maior taxa de fecundidade, com 1,88 filho, quando comparados com mulheres brancas que apresentam 1,69 filho1818 População e Desenvolvimento do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Fecundidade e dinâmica da população brasileira. Brasília: UNFPA Brasil; 2018..

Apesar da literatura apontar benefícios acerca de convívio com filhos(as)55 Goldman MJ. The Joy of Fatherhood, Expanded 2nd Edition: the first twelve months. 2a ed. Roseville: Harmony; 2000.

6 Kim HJ, Fredriksen-Goldsen KI, Bryan AE, Muraco A. Social Network Types and Mental Health Among LGBT Older Adults. Gerontologist 2017; 57(Supl. 1):84-94.
-77 Zhang Y, Huang H, Wang M, Zhu J, Tan S, Tian W, Mo J, Jiang L, Mo J, Pan W, Ning C. Family outcome disparities between sexual minority and heterosexual families: a systematic review and meta-analysis. BMJ Global Health 2023; 8(3):e010556., incluindo maior acompanhamento por profissionais de saúde, este estudo demonstrou que as pessoas com convívio frequente com filhos(as) apresentaram maior probabilidade de receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade. Algumas hipóteses emergiram para a interpretação deste achado. Primeiro, os(as) filhos(as) podem prover apoio durante o uso dos serviços de saúde. Apesar da literatura apontar que ter um acompanhante durante consultas não se associa diretamente ao maior uso dos serviços de saúde1111 Leite BO, Medeiros DS, Magno L, Bastos FI, Coutinho C, Brito AM, Cavalcante MS, Dourado I. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health 2021; 20(1):199. em minorias sexuais e de gênero, a presença de filhos(as) como acompanhantes durante a consulta pode sugerir um comportamento heteronormativo no cuidado em saúde, já que a homoparentalidade ainda não é tão frequentemente exposta, gerando uma falta de especificidade no cuidado em saúde prestado pelo profissional. Uma revisão sistemática mostrou que uma das principais dificuldades de acesso aos serviços de saúde por pessoas homossexuais é devido a atitudes heteronormativas dos profissionais de saúde1313 Albuquerque GA, Garcia CL, Quirino GS, Alves MJH, Belém JM, Figueiredo FWS, Paiva LS, Nascimento VB, Maciel ÉS, Valenti VE, Abreu LC, Adami F. Access to health services by lesbian, gay, bisexual, and transgender persons: systematic literature review. BMC Int Health Hum Rights 2016; 16(1):2..

De modo oposto, a própria homoparentalidade pode gerar uma piora do cuidado em saúde devido à discriminação de minorias sexuais e de gênero, principalmente quando combinada a uma aparência masculinizada dessas mulheres e a ser atendida por um profissional do sexo masculino1919 Rufino AC, Carvalho Filho CEWB, Madeiro A. Experiences of Violence Against Lesbian and Bisexual Women in Brazil. Sex Med 2022; 10(2):100479.. Ainda, neste estudo foi identificado que mulheres pretas/pardas são as que mais possuem convívio com filhos(as) e, concomitantemente, devido a um racismo institucional, são as que apresentam pior qualidade no atendimento por profissionais de saúde2020 Oliveira BMC, Kubiak F. Racismo institucional e a saúde da mulher negra: uma análise da produção científica brasileira. Saude Debate 2019; 43(122):939-948.. Essas hipóteses apontam uma necessidade de treinamento específico dos profissionais da saúde, principalmente porque muitos profissionais relatam desconhecimento acerca das necessidades sobre as minorias sexuais e de gênero e dificuldade na abordagem dessa população99 Ferreira BO, Bonan C. Cadê as populações LGBTT na Estratégia Saúde da Família? narrativas de profissionais de saúde em Teresina, Piauí, Brasil. Cien Saude Colet 2021; 26(5):1669-1678.. Logo, devem ser realizadas intervenções para mudar as atitudes preconceituosas dos profissionais de saúde. Intervenções essas que combinem uma abordagem de base cognitiva, como educação sobre questões das minorias sexuais e de gênero, com uma abordagem de base afetiva, como contato intergrupal com indivíduos de minorias. Para além das intervenções no serviço, é necessário a inclusão de temas de diversidade na base formativa dos profissionais da saúde2121 Costa AB, Pase PF, Camargo ES, Guaranha C, Caetano AH, Kveller D, Rosa Filho HT, Catelan RF, Koller SH, Nardi HC. Effectiveness of a multidimensional web-based intervention program to change Brazilian health practitioners' attitudes toward the lesbian, gay, bisexual and transgender population. J Health Psychol 2016; 21(3):356-368..

Neste estudo, o convívio frequente com filhos(as) não se associou a ter um profissional ou serviço de saúde de referência e nem a sentir-se à vontade para falar de seus problemas. Entretanto, os resultados descritivos mostraram que somente 50% dos indivíduos têm um serviço de referência e que em torno de 60% sentem-se à vontade para se abrir com profissionais de saúde. Cabe ressaltar que o modelo de atenção primária à saúde no Brasil é pautado em atributos como longitudinalidade, integralidade e orientação familiar e comunitária. Deste modo, o cuidado longitudinal deveria pressupor uma relação interpessoal forte entre os usuários e os profissionais de saúde, promovendo a otimização da integralidade biopsicossocial do cuidado. E, neste sentido, a abordagem dos profissionais de saúde precisa de uma orientação familiar que considere o contexto familiar na avaliação da saúde do indivíduo2222 Mesquita FM, Luz BSR, Araújo CS. A Atenção Primária à Saúde e seus atributos: a situação das crianças menores de dois anos segundo suas cuidadoras. Cien Saude Colet 2014; 19(7):2033-2046.. Reforça-se, portanto, a necessidade de fortalecimento desses atributos para que os cuidados ofertados foquem nas reais necessidades das minorias sexuais e de gênero.

Este estudo apresenta alguns pontos fortes e fracos a serem destacados. Como pontos fortes, destaca-se a inclusão de indivíduos de minorias sexuais e de gênero das cinco regiões brasileiras, explorando o tema da homoparentalidade no Brasil e cuidados em saúde, tema pouco identificado na literatura nacional. Como pontos fracos, destaca-se a não avaliação direta de possuir filhos(as) ou não, considerando-se apenas a moradia conjunta com filhos(as) e encontros frequentes com filhos(as) que moravam em outra residência. Isso pode ter subestimado a quantidade de pessoas de minorias sexuais e de gênero que possuem filhos(as). Entretanto, a literatura mostra que o mais importante para o bem-estar social é a convivência com filhos(as) e não seu número absoluto. Segundo, não foi avaliado se os/as filhos(as) eram de relacionamentos anteriores ou se foram adotados de outra forma. Apesar disso, acredita-se que essa diferenciação não tenha influência nos resultados encontrados. Terceiro, não foi avaliado se os cuidados em saúde incluíram a abordagem da homoparentalidade como parte do cuidado integral. E quarto, receber tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade foi avaliado através da autopercepção do participante, o que perpassa a subjetividade do sujeito e pode, nem sempre, capturar a real qualidade dos serviços prestados.

Conclusões

As políticas públicas e cuidados em saúde voltados para a homoparentalidade no Brasil devem focar as mulheres cisgênero e as pessoas pretas/pardas ou com outras cores/raças diferentes de brancas, que já são as pessoas mais vulneráveis a sofrerem discriminação. As pessoas de minorias sexuais e de gênero que convivem frequentemente com filhos(as) foram as que mais receberam tratamento médico ou hospitalar de pior qualidade, demostrando que o estigma que a homossexualidade e a bissexualidade carregam ainda é presente no contexto dos serviços de saúde brasileiros e precisam de políticas públicas mais efetivas para um cuidado em saúde com melhor qualidade.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    14 Dez 2023
  • Publicado
    15 Dez 2023
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