Quando a deficiência e a homoparentalidade se encontram: a adoção de crianças com deficiência por casais homoafetivos

Francine de Souza Dias Martha Cristina Nunes Moreira Raul de Paiva Santos Sobre os autores

Resumo

O ensaio teórico parte de seis reportagens sobre casais homoafetivos e pessoas gays e lésbicas para interseccionar homoparentalidade e adoção de crianças com deficiência, pelas lentes das ciências humanas e sociais em saúde coletiva. As reportagens foram interpretadas à luz dos estudos sobre adoção homoparental e adoção de crianças com deficiência. Abordagens feministas sobre cuidado e deficiência também compuseram o olhar interpretativo, operando como teias expressivas das gramáticas do capacitismo. Verificou-se que as abordagens midiáticas endossam o direito à constituição familiar e à adoção de crianças com deficiência por famílias homoparentais, sem aprofundar criticamente a categoria deficiência e sem destacar apoio à adoção de todos os perfis de adotandos. E que as intersecções entre homofobia e capacitismo incrementam lógicas discriminatórias e de opressão, sendo a união de grupos considerados “indesejáveis” uma estratégia de governamentalidade que revela a complexidade das gramáticas do capacitismo aplicadas aos direitos sexuais e reprodutivos de adotantes LGBTQIA+ e aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes com deficiência disponíveis para adoção.

Palavras-chave:
Adoção; Família; Parentalidade; Gênero; Homossexualidade

Introdução

A deficiência e a homossexualidade ainda têm sido concebidas de maneira pejorativa, fenômeno aqui reconhecido e analisado à luz do capacitismo11 Mello AG. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Cien Saude Colet 2016; 21(10):3265-3276.,22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958.. Um exemplo de manifestação capacitista é a compreensão da deficiência como atributo iminentemente negativo, indesejável, que se deve evitar e corrigir, ideia potencialmente aplicável à homossexualidade.

Neste artigo assumimos definições afirmativas sobre deficiência e (homo)parentalidade, categorias constituintes da diversidade e existência humana. Características que ao serem submetidas a um olhar classificatório, de avaliação normativa, produzem discriminação e desvalor. Este processo encontra com narrativas cis-hetero-corponormativas e patriarcais que produzem práticas de exclusão social.

A cis-hetero-corpornormatividade é força de assujeitamento baseada na exploração de relações de poder atravessadas pela colonialidade, pelo capitalismo, por gênero, orientação sexual, funcionalidade/performance, raça/etnia e classe, intrinsecamente vinculada ao patriarcado, “um sistema político modelador da cultura e dominação masculina, especialmente contra as mulheres [...] reforçado pela religião e família nuclear que impõem papéis de gênero desde a infância baseados em identidades binárias”33 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019.(p.67).

Enfatizamos que o exercício da parentalidade não se resume ao binarismo de gêneros e contempla orientações sexuais variadas. Partilhamos uma ideia de parentalidade na perspectiva de produção de vínculos e como “expressão do encontro” que reúne combinações diversas de sujeitos em “formação de redes familiares, e que não se restringe ao modelo nuclear, consanguíneo, heteronormativo”44 Ribeiro CR, Gomes R. Moreira MCN. A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(11):3589-3598.(p.3595). Paralelamente, o corpo e sua configuração funcional não se restringem aos atributos denominados como normais e esperados no que toca ao pensar, ver, ouvir, tocar, caminhar, falar ou se comunicar.

Pode a deficiência constituir atributo desejável para um filho que vai chegar? Manchetes publicadas nos últimos anos respondem positivamente essa pergunta, frente às experiências de homens gays e mulheres lésbicas. A midiatização dessas histórias cumpre dois papeis importantes: a defesa pública do direito à adoção por pessoas/casais homoafetivos (ainda não regulamentada legalmente) e o incentivo à adoção de crianças com deficiência. Contudo, elas nos convocam a ir além, em busca de reflexões mais profundas sobre essa relação e suas repercussões menos explícitas. Nos dedicamos a discuti-las, entendendo que nesta intersecção existe um olhar afirmativo sobre a diferença, que pode ser lida como dissidência por romper com um olhar cis-hetero-corponormativo.

As iniciativas de incentivo à adoção de crianças com deficiência55 Brasil. Lei nº 12.955, de 5 de fevereiro de 2014. Acrescenta § 9º ao art. 47 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer prioridade de tramitação aos processos de adoção em que o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou com doença crônica. Diário Oficial da União 2014; 6 fev. encontram uma minoria dos adotantes disponíveis para seu acolhimento e a situação é agravada pelas intersecções étnicas/raciais, de geração e situação de saúde66 Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Apenas 2,5 dos 30 mil pretendentes à adoção na fila de espera, adotariam crianças com deficiências físicas ou intelectuais [Internet]. 2021 [acessado 2023 ago 8]. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=431145.
https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=431...

7 Ministério Público do Paraná. Idade, cor da pele e problemas de saúde diminuem as chances de adoção de crianças e adolescentes que estão em entidades de acolhimento [Internet]. 2019 [acessado 2023 ago 8] Disponível em: https://mppr.mp.br/Noticia/Idadecor-da-pele-e-problemas-de-saude-diminuem-chances-de-adocao-de-criancas-e.
https://mppr.mp.br/Noticia/Idadecor-da-p...
-88 Reis T. Só 7,5% não fazem restrição a criança com doença ou deficiência ao adotar [Internet]. G1 Globo; 2015 [acessado 2023 ago 8]. Disponível em: https:// g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/02/so-75-naofazem-restricao-crianca-com-doenca-ou-deficiencia-ao-adotar.html.
https:// g1.globo.com/bemestar/noticia/2...
. Tomamos como perguntas orientadoras deste ensaio: quais as intercessões possíveis entre as famílias homoparentais (formadas por adultos gays/lésbicas e por casais do mesmo sexo)99 Gomes R. Albernaz, L. Ribeiro, CR. Moreira, MC. Nascimento, M. Linhas de cuidados masculinos voltados para a saúde sexual, a reprodução e a paternidade. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1545-1552. e as crianças com deficiência? Como suas histórias são expressas em narrativas públicas pela mídia? De que maneira os dispositivos midiáticos abordam o tema?

Partimos de manchetes e reportagens sobre adoção de crianças com deficiência por famílias homoparentais, a fim de iluminar pistas deixadas sobre repercussões desse processo, em especial, nas relações sociais e de saúde das famílias. As pessoas com deficiência e as pessoas LGBTQIA+ se tornaram população de interesse no campo da saúde pública há décadas1010 Dias FS. 2023. Empoemar a reabilitação, deslimitar a deficiência, transver o cuidado: das normativas humanitárias à encantaria contracolonial [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2023.,1111 Abade EA, Chaves SC, Silva GC. Saúde da população LGBT: uma análise dos agentes, dos objetos de interesse e das disputas de um espaço de produção científica emergente. Physis 2020; 30(4):e300418. e têm sido abordadas como especialmente vulneráveis. Assumimos a importância de interseccionar homoparentalidade e adoção de crianças com deficiência, pelas lentes das ciências humanas e sociais em saúde coletiva, mirando contribuições para as práticas intersetoriais de cuidado.

Aspectos metodológicos

Assumimos o ensaio teórico como metodologia devido ao seu caráter exploratório, de exercício livre e crítico, mobilizador de outras incursões sobre o assunto, sem a intenção de produzir evidências44 Ribeiro CR, Gomes R. Moreira MCN. A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(11):3589-3598.,1010 Dias FS. 2023. Empoemar a reabilitação, deslimitar a deficiência, transver o cuidado: das normativas humanitárias à encantaria contracolonial [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2023.,1212 Castiel LD. Ensaios fora do tubo: a saúde e seus paradoxos. São Paulo: Hucitec; 2021.. Compartilhamos “reflexões iniciais e parciais”1212 Castiel LD. Ensaios fora do tubo: a saúde e seus paradoxos. São Paulo: Hucitec; 2021.(p.44), nas quais as perguntas lançadas importam mais do que a produção de respostas e de pensamentos de caráter conclusivo1212 Castiel LD. Ensaios fora do tubo: a saúde e seus paradoxos. São Paulo: Hucitec; 2021..

Tomamos o ensaio como caminho do pensamento por entender que a adoção homoparental de crianças com deficiência abre a “possibilidade de uma nova experiência do presente”1313 Larrosa J. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Real 2004; 29(1):27-43.(p.33), que nos encaminha a um exercício de escrita experimental e pensante, com críticas provisórias, abertas e continuadas. “O ensaio é a escrita de um tempo inseguro e problemático”1313 Larrosa J. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Real 2004; 29(1):27-43.(p.38), que nos convoca a “olhar a existência a partir dos possíveis, [ensaiando] novas possibilidades de vida”1313 Larrosa J. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Real 2004; 29(1):27-43.(p.37). O caráter de novidade - e que também torna esse estudo inédito - está colocado por essas experiências de parentalidade ainda atípicas, não regulamentadas e atravessadas por relações de poder. Daí também decorre a necessidade de experimentação do pensamento e da reflexividade crítica sobre o que se passa.

Consideramos que manchetes e reportagens são documentos que registram uma movimentação de temas e acontecimentos relacionados ao eixo “adoção/homoparentalidade”. Esses documentos foram acessados pela primeira autora ao longo dos últimos seis anos, por influência de algoritmos que revelam interesses e permitem interações sociais. Tal caminho nos indica a possibilidade do uso socioantropológico das plataformas1414 Deslandes S, Coutinho T. Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de COVID-19: notas teórico-metodológicas. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00223120.(p.4), o que explica o fato de que, após os primeiros acessos, tornou-se frequente a recepção de reportagens relacionadas ao eixo supracitado, levando a primeira autora a constituir um acervo com o material.

Os itens foram catalogados em documento de texto contendo a manchete de cada reportagem e seu link de acesso. Esses links foram consultados individualmente ao longo do mês de agosto de 2023 para verificar sua disponibilidade. Em seguida, foi realizada a leitura das reportagens a fim de conhecer as histórias relatadas e conferir nosso critério de inclusão (reportagens na língua portuguesa, que abordassem histórias de casais homoafetivos e/ou de pessoas gays e lésbicas adotantes de crianças com deficiência, independentemente da nacionalidade das famílias). De forma complementar e no mesmo período, foram realizadas pesquisas adicionais no buscador Google, utilizando as palavras-chave combinadas: adoção homoparental e crianças com deficiência, adoção por casais homoafetivos e crianças com deficiência, casais homoafetivos e crianças com deficiência, gays/lésbicas e criança com deficiência, que indicaram as mesmas histórias e reportagens anteriormente recebidas e reunidas.

Ao final, foram incluídas seis reportagens publicadas no Brasil, em língua portuguesa, sendo três histórias de famílias brasileiras e três histórias de famílias estrangeiras. Apenas uma reportagem de família brasileira foi excluída por dispor de poucas informações sobre a história noticiada. Optamos por incluir histórias com famílias brasileiras e estrangeiras para garantir um maior número de narrativas e observar se as diferenças culturais e normativas parecem impactar distintivamente as experiências de adotantes e adotandos, item último que não foi possível abordar em profundidade, pelas próprias limitações de conteúdo. As histórias foram analisadas na íntegra, preservando os nomes reais dos sujeitos, pois, trata-se de reportagens de acesso aberto.

Interpretamos este acervo à luz dos estudos sobre adoção homoparental e adoção de crianças com deficiência. Para apreender elementos de apoio à compreensão dos aspectos que envolvem a relação entre esses sujeitos, abordagens feministas sobre cuidado e deficiência1515 Kittay EF. Equality, dignity and disability. In: Lyons MA, Waldron F, editors. Perspectives on Equality The Second Seamus Heaney Lectures. Dublin: The Liffey Press; 2005.,1616 Kittay EF. Dependency, difference and the global ethics of longterm care. J Pol Philos 2005; 13(4):443-469. também compuseram o olhar interpretativo, operando como teias expressivas das gramáticas do capacitismo22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958.. Consideramos o capacitismo como chave corponormativa que desqualifica sujeitos diversos22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958. e ressaltamos suas possíveis repercussões nas existências de famílias em destaque.

O capacitismo como gramática transversal convoca articulações interseccionais22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958.(p.3950) para compreender e enfrentar mecanismos de opressão que afetam distintivamente corpos situados em encruzilhadas identitárias de gênero, orientação sexual, raça e classe, sendo a deficiência incorporada mais recentemente33 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019.. Essas gramáticas são requintadas quando esse perfil de pretendentes à adoção tem valores, interesses e capacidades testados mediante a disponibilização espontânea e/ou condicional de crianças com deficiência para seu cuidado, um fenômeno que demanda reflexões mais profundas. Esse ensaio se apresenta como um esforço inicial nessa direção.

Um preâmbulo: Adoção e parentalidade homoafetiva

A adoção, ato de afeto e cuidado, amparada social e juridicamente, visa o melhor interesse da criança e do adolescente1717 Brasil. Lei nº 8.069, de 12 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul.. Aproximadamente 563 crianças com alguma deficiência estão disponíveis para adoção e 1.410 pretendentes estão dispostos a adotar crianças com deficiência, de acordo com Conselho Nacional de Justiça1818 Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento do Conselho Nacional de Justiça. Pretendentes disponíveis X crianças disponíveis para adoção [Internet]. [acessado 2023 ago 08]. Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=ccd72056-8999=4434--913b-74f5b5b31b2assheet4f1d9435-00b1-4c8c-beb7-8ed9dba4e45asopt=currselsselect=clearall.
https://paineisanalytics.cnj.jus.br/sing...
. Estima-se que pessoas/casais LGBTQIA+ componham grande parte do grupo interessado em perfis amplos quanto à deficiência, condição de saúde, idade, sexo e raça/etnia1919 Dias VM, Conceição G. A possibilidade jurídica por casais homoafetivos. Rev Elet Inic Cien 2013; 4(4):906927.

20 Gross J, Cadermatori DML. Entre a prateleira e a fila da adoção: algumas considerações sobre o perfil adotivo de casais homossexuais. In: Anais da Semana Científica Unilasalle (SEFIC). Canoas; 2016.

21 Souza PMA, Borges JC. Adoção por casais homoafetivos: uma nova família contemporânea. Rev Acad Inst Cien Jurid 2016; 3(2):114-136.

22 Rodriguez BC. Parentalidade e adoção em casais de homens. Uma análise psicanalítica vincular [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.

23 Cecílio MS. Adoção por casais do mesmo sexo na perspectiva de profissionais do Sistema de Justiça. Estud Psicol 2018; 23(4):392-403.

24 Peixoto PHL, Gregório MFA. Adoção de crianças por casais homossexuais: contestação e submissão da ordem familiar. ODEERE 2019; 4(7):149-164.
-2525 Santos CF, Freitas YKSL. O direito à adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos e seu fundamento no princípio da dignidade humana. Rev Socializ 2021; 8(1):47-58..

Os sentidos de família nos textos normativos enfatizam composições heterossexuais e cisgênero2424 Peixoto PHL, Gregório MFA. Adoção de crianças por casais homossexuais: contestação e submissão da ordem familiar. ODEERE 2019; 4(7):149-164.,2626 Souza DC, Coelho IM, Honorato EJS. Adoção por casais homossexuais - uma revisão integrativa. Nova Perspec Sistem 2022; 31(73):74-92. e a adoção por casais homoafetivos demandou reconhecimento prévio do direito à constituição familiar pelo Poder Judiciário2727 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. Diário Oficial da União 2013, 15 maio.,2828 Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso extraordinário 846.102 - PR - Paraná. Relator: Min. Cármen Lúcia, Julgado em 05/03/2015, publicado em DJe-052 18/03/2015. Brasília; 2015.. Sabe-se que: a adoção unilateral é estimulada para casais homoafetivos; casais próximos da heteronorma, via monogamia compulsória, possuem maiores chances de sucesso no processo de adoção; o estágio de convivência tem sido super aumentado para casais homoafetivos e que esses tem enfrentado exigências extraoficiais não aplicadas aos casais heterossexuais2424 Peixoto PHL, Gregório MFA. Adoção de crianças por casais homossexuais: contestação e submissão da ordem familiar. ODEERE 2019; 4(7):149-164.,2626 Souza DC, Coelho IM, Honorato EJS. Adoção por casais homossexuais - uma revisão integrativa. Nova Perspec Sistem 2022; 31(73):74-92.,2929 Tomobolato MA, Maia ACB, Santos MA. A trajetória de adoção de uma criança por um casal de lésbiscas. Psic Teoria Pesq 2019; 35:e3546.. Chama atenção ainda a percepção de que casais gays enfrentam mais dificuldades do que lésbicas no processo de adoção2626 Souza DC, Coelho IM, Honorato EJS. Adoção por casais homossexuais - uma revisão integrativa. Nova Perspec Sistem 2022; 31(73):74-92.. Estudos apontam que tal diferença pode ser atribuída a diferentes fatores, com destaque para as desigualdades de gênero que situam mulheres como cuidadoras natas e homens como incapazes de cuidar adequadamente e ainda, uma maior aceitabilidade social de uniões homoafetivas entre mulheres2626 Souza DC, Coelho IM, Honorato EJS. Adoção por casais homossexuais - uma revisão integrativa. Nova Perspec Sistem 2022; 31(73):74-92.,3030 Freires LA. Atitudes frente à homoparentalidade: uma explicação a partir das variáveis explícitas e implícitas [tese]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2015.. Outra explicação para esses fenômenos é o fato de que os avanços conquistados pelas famílias homoparentais tiveram como “parâmetro de análise e consecução de direitos” a parentalidade heterossexual3131 Oliveira AC, Rocumback IA. Exercício de parentalidades por pessoas LGBTQIA+: disputas de sentidos no discurso judicial brasileiro. Rev Bras Est Homocult 2023; 6(20):162-182.(p.171).

Por não haver disposição legal nacional sobre o tema e os avanços conquistados se restringirem ao âmbito jurídico, ressaltamos os desafios políticos do presente e questionamos se há relação entre esse reconhecimento parcial e a estratégia de ampliação do perfil de adotandos por parte dessas famílias.

Um Primeiro Retrato: Experiências homoparentais e adoção de crianças com deficiência

O acervo reunido e organizado no quadro analítico (Quadro 1) informa as manchetes, respectivas plataformas e ano de divulgação.

Quadro 1
Síntese do acervo de reportagens.

O primeiro destaque após imersão no acervo diz respeito à orientação sexual e estado civil dos adotantes, à deficiência dos adotandos e ao histórico de “rejeição” das crianças adotadas - combinação que reforça como extraordinários os perfis dos adotantes e das crianças escolhidas. Existe uma variedade de veículos de disseminação, dentre os quais: plataformas aliadas das lutas LGBTQIA+; de divulgação de informações sobre pessoas com deficiência; de grande porte nacional; de temas sobre a atualidade e histórias reais. As experiências compartilhadas nas reportagens estão organizadas nos Quadros 2 e 3.

Quadro 2
Histórias de famílias brasileiras.
Quadro 3
Histórias de famílias estrangeiras.

Um olhar para a Adoção, Deficiência e Homoparentalidade nas gramáticas do capacitismo

As crianças protagonistas das histórias compartilhadas são afetadas pelo capacitismo em dimensões macro e micropolíticas, sendo percebidas culturalmente pelos olhares externos aos adotantes como crias indesejáveis22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958. e hierarquizadas pelo “dispositivo da capacidade corporal compulsória”22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958.(p.3951). A revitimização pela rejeição múltipla, que precede a adoção, mostrase como um dos efeitos enunciados nas reportagens. Já os adotantes gays e lésbicas têm seus corpos e relações expostos às cartilhas cis-hétero e corponormativa, que frequentemente os enunciam como incapazes de exercer parentalidades, amar, cuidar e educar crianças, sendo a adoção de crianças com deficiência demandantes de cuidados diferenciados uma radicalidade atípica que contrapõe essa premissa.

As reportagens retratam uma predominância de casais adotantes formados por homens gays, havendo somente um casal de lésbicas e dois homens gays solteiros. As histórias remetem a um desejo prévio de adotar criança com deficiência; oportunidade sem planejamento; imposição formal pela entidade reguladora de adoção. As crianças tinham idade entre 0-6 anos, a maior parte possuía deficiência intelectual e/ou múltipla, as informações a seu respeito foram restritas ao diagnóstico e a deficiência foi o principal motivo de entrega para adoção.

Quando os genitores foram citados, as mulheres que acessaram o direito de entregar a criança para adoção sem constrangimento1717 Brasil. Lei nº 8.069, de 12 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul. foram moralmente julgadas, revelando traços misóginos na produção de sentidos pela mídia. Se as condições de saúde dos pais/mães adotantes não foram enfocadas nas reportagens, predomina para as crianças um destaque para a deficiência no recorte da funcionalidade e diagnóstico, considerando terapias e atendimentos especializados.

Experiências de adoção de crianças com deficiência por famílias homoparentais ainda são pouco relatadas em estudos do campo2929 Tomobolato MA, Maia ACB, Santos MA. A trajetória de adoção de uma criança por um casal de lésbiscas. Psic Teoria Pesq 2019; 35:e3546.,3131 Oliveira AC, Rocumback IA. Exercício de parentalidades por pessoas LGBTQIA+: disputas de sentidos no discurso judicial brasileiro. Rev Bras Est Homocult 2023; 6(20):162-182.,3232 Ribeiro LJ. A experiência parental de casais homoafetivos: uma abordagem psicanalítica [dissertação]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2018., havendo uma restrição de temas abordados nessa relação. De maneira geral, os aspectos de saúde mais abordados se referem à saúde mental de adotantes e adotandos3232 Ribeiro LJ. A experiência parental de casais homoafetivos: uma abordagem psicanalítica [dissertação]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2018. e dificuldades de acesso aos serviços de saúde pública3131 Oliveira AC, Rocumback IA. Exercício de parentalidades por pessoas LGBTQIA+: disputas de sentidos no discurso judicial brasileiro. Rev Bras Est Homocult 2023; 6(20):162-182.. Diante disso, optamos por ampliar reflexões sobre a área da saúde em sua relação com a homoparentalidade.

Diversas políticas e iniciativas nacionais em saúde contemplam a população adotante abordada neste ensaio4545 Brasil. Ministério da Saúde (MS). A Política nacional de atenção integral à saúde da mulher. Brasília: MS; 2004.

46 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de atenção integral à saúde do homem. Brasília: MS; 2008.

47 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: MS; 2011.
-4848 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia do pré-natal do parceiro para profissionais de saúde. Brasília: MS; 2023., prevendo o enfrentamento das desigualdades de gênero no setor, a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e o reconhecimento das diferentes maneiras de exercer cuidados e parentalidades. Contudo, pensar o cuidado na perspectiva da diversidade ainda é um desafio a ser enfrentado coletivamente.

Há uma tendência a tornar exótico e extraordinário os perfis de adotantes e de adotandos, motivo pelo qual acionamos o capacitismo e o cuidado como chaves analíticas da atipicidade evocada nesses recortes midiáticos. Isto porque as características e/ou os diagnósticos das crianças, o estado civil e a orientação sexual dos adotantes foram as categorias escolhidas pelos editores para produzir o interesse público. Igualmente, o apelo de gênero na relação com as atribuições parentais, nos textos das reportagens, lembra que o cuidado na deficiência tem sido compulsoriamente realizado por mulheres ou por pessoas associadas ao “feminino”.

Sublinhamos o cuidado como atributo compartilhado entre todos os seres humanos, independente de suas características corporais e funcionais1515 Kittay EF. Equality, dignity and disability. In: Lyons MA, Waldron F, editors. Perspectives on Equality The Second Seamus Heaney Lectures. Dublin: The Liffey Press; 2005.,1616 Kittay EF. Dependency, difference and the global ethics of longterm care. J Pol Philos 2005; 13(4):443-469.. Como perspectiva ética, ele mobiliza o reconhecimento de nossas dependências e vulnerabilidades, sem invisibilizar o papel do cuidador, pois todo cuidado envolve relações intensamente pessoais, sociais, simbólicas e significativas. Revisar instituições e valores para reconhecer nossa dependência abre possibilidades para o reconhecimento das semelhanças e respeito às diferenças1515 Kittay EF. Equality, dignity and disability. In: Lyons MA, Waldron F, editors. Perspectives on Equality The Second Seamus Heaney Lectures. Dublin: The Liffey Press; 2005.,1616 Kittay EF. Dependency, difference and the global ethics of longterm care. J Pol Philos 2005; 13(4):443-469..

A experiência de adotantes e famílias homoparentais sob perspectivas cis-hetero-corponormativas ofusca as diferentes experiências de adoção e paternidade/maternidade entre casais hétero e homoafetivos. O discurso do casal de Portugal sobre ambos serem “seres humanos” e de que o processo de adoção não os diferencia de casais heterossexuais é uma demonstração desse efeito, que opera como homogeneizador de processos fundamentalmente heterogêneos pelas dimensões de raça, classe e gênero.

A garantia dos direitos sexuais e reprodutivos condicionam o reconhecimento das famílias homoparentais, motivo pelo qual os reivindicamos na dimensão de justiça. A parentalidade intercepta-se com cuidado, categoria igualmente atravessada pelas desigualdades de gênero que hierarquizam sujeitos em função de certos atributos que facilitam ou prejudicam determinados grupos na construção das suas relações. Por isso, entendemos o cuidado parental implicado com a garantia das “inúmeras combinações de redes familiares as expressões da parentalidade fundadas em trocas de bens de cuidado, promotoras da vida e da expressão das diferenças”44 Ribeiro CR, Gomes R. Moreira MCN. A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(11):3589-3598.(p.3593).

Apesar dos avanços recentes, o conceito de família não está explicitado nos documentos de saúde da atenção primária. Tal ausência interfere no cuidado às famílias homoparentais e nos programas de planejamento familiar/reprodutivo, que não contemplam a adoção de maneira suficiente4949 Albuquerque GA, Belém JM, Nunes JFC, Leite MF, Quirino GS. Planejamento reprodutivo em casais homossexuais na Estratégia de Saúde da Família. Rev APS 2018; 21(1):104-111.. Nenhuma reportagem mencionou assistência nesse nível de atenção. Mas diversas delas demonstraram que a avaliação da capacidade de cuidado foi colocada em questão em diversas situações, especialmente no caso de homens gays. Isto revela o caráter homofóbico dessas experiências, que envolvem componentes como a imposição de papéis de gênero ao reconhecimento do cuidado.

Por um lado, observa-se a capacidade de cuidar vinculada à heterossexualidade compulsória, na qual apenas homens cisgêneros e heterossexuais são previamente habilitados à paternidade, não necessariamente ao cuidado, tomado como atributo natural e quase exclusivo das mulheres. O cuidado, entretanto, é convertido em indicador de avaliação de casais homossexuais com a finalidade de verificar se algum parceiro o assume na relação familiar. A visualização dessa persona cuidadora é insuficiente frente às exigências de uma figura materna. Tal racionalidade parece não influenciar a parentalidade lésbica, potencializada pela dupla maternidade. Quanto às mulheres, a desqualificação incide especialmente sobre o controle dos seus corpos e sexualidade e menos sobre a capacidade de cuidar, inquestionável pelo patriarcado (vide a necessidade de afirmar que a relação “não é bagunça”)3737 Redação Nós. Casal de mulheres adota bebê com síndrome de Down: "a gente não planejava" [Internet]. Nós, Terra; 2022 [acesso 2023 ago 13]. Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/videos/casal-de-mulheres-adota-bebe-com-sindrome-de-down-a-gentenao-planejava,58490a2ff9b675368f72f5484e0dc1e4ydgvz3ja.html..

Os sentidos da maternidade são expostos quando a pessoa que responde como mãe não se enquadra na cartilha cis-hétero. A homoparentalidade não contempla pessoas travestis e trans, mas sua relevância se destaca porque uma das reportagens trouxe a experiência de um homem gay que se identifica como ex-travesti e mãe. Sua história informa que identidades políticas influenciam padrões de reconhecimento no contexto das parentalidades hegemônicas, sustentadas pela heterossexualidade44 Ribeiro CR, Gomes R. Moreira MCN. A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(11):3589-3598. e pela cisgeneridade5050 Hining AP, Toneli MJF. Cisgeneridade: um operador analítico no transfeminismo brasileiro. Rev Estud Fem 2023; 31(1):e83266.. Isso também nos revela que as experiências midiatizadas são marcadas por manifestações da lógica capacitista nas metamorfoses interseccionais22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958. com orientação sexual e gênero.

Quanto à saúde das crianças, as experiências estrangeiras se restringiram ao diagnóstico e duas experiências nacionais contemplaram cuidados em reabilitação, em serviços do terceiro setor e de convênio privado. A criança que acessava serviços conveniados o fazia de maneira insuficiente e desarticulada, sendo aquela cuja família demonstrou maior vulnerabilização: sua guarda era provisória; os pais não haviam formalizado a união; a deficiência foi adquirida por motivo de violência; houve relato de manifestação capacitista pelo profissional de saúde. O acesso a serviços não governamentais e fragmentados impõem fragilidades à integralidade do cuidado. O acesso precário aos insumos essenciais como fraldas e alimentos acusam o descaso integral com sua saúde.

Assim, as histórias das crianças foram resumidas aos diagnósticos e históricos de rejeição e suas demandas de saúde foram reduzidas à funcionalidade corporal, o que sintetiza a maneira reducionista como a saúde das pessoas com deficiência tem sido abordada politicamente e os desafios à realização do cuidado integral. Isto corrobora para que o cuidado à saúde dessa população seja frequentemente restrito ou priorizado no âmbito da atenção especializada, por meio de serviços reabilitacionais, historicamente marcados pelas práticas de correção, hoje criticadas à luz do capacitismo, no âmbito das ciências humanas e sociais em saúde1010 Dias FS. 2023. Empoemar a reabilitação, deslimitar a deficiência, transver o cuidado: das normativas humanitárias à encantaria contracolonial [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2023..

As reportagens revelam ainda que os adotantes foram acionados principalmente pelo próprio Estado, de acordo com o perfil desejado, sendolhes apresentadas crianças rejeitadas por outras famílias. Nas experiências internacionais há imposição do perfil de adotando, enquanto nos casos nacionais sua oferta foi voluntária. O tempo dos processos foi irregular. A única reportagem a retratar a experiência de mulheres lésbicas vai de encontro ao estudo de Souza et al.2626 Souza DC, Coelho IM, Honorato EJS. Adoção por casais homossexuais - uma revisão integrativa. Nova Perspec Sistem 2022; 31(73):74-92., que verificaram maiores dificuldades no processo para homens gays, o que pode ser justificado pelos estereótipos de gênero2323 Cecílio MS. Adoção por casais do mesmo sexo na perspectiva de profissionais do Sistema de Justiça. Estud Psicol 2018; 23(4):392-403. que enfatizam o cuidado com atributo feminino e a maior aceitabilidade de configurações familiares lésbicas, conforme já mencionado.

Não há orientação legal nacional que associe determinados perfis de pretendentes e grupos específicos de crianças. Contudo, alguns países já possuem histórico de decisão judicial sob essa perspectiva, conforme a história do adotante italiano3939 Redação BBC. A história do gay solteiro que adotou bebê com síndrome de Down rejeitada por 20 famílias [Internet]. BBC News; 2018 [acesso 2023 ago 13]. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/ noticia/2018/12/28/a-historia-do-gay-solteiro-que-adotou-bebe-com-sindrome-de-down-rejeitada-por20-familias.ghtml.
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. Em outra ocasião, uma profissional de serviço de adoção na França manifestou publicamente que gays só poderiam adotar “crianças com problemas”5151 RFI. Gays só podem adotar 'crianças com problemas', diz diretora de serviço de adoção na França [Internet]. 2018 [acessado 2023 ago 15]. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/gays-so-podem-adotar-criancas-com-problemas-diz-diretora-de-servico-de-adocao-na-franca.ghtml.
https://g1.globo.com/mundo/noticia/gays-...
, mobilizando esse debate em diversos países, incluindo o Brasil.

Pesquisas nacionais já questionaram tal prática e revelaram o direcionamento de crianças com deficiência para famílias homoparentais2424 Peixoto PHL, Gregório MFA. Adoção de crianças por casais homossexuais: contestação e submissão da ordem familiar. ODEERE 2019; 4(7):149-164.,2626 Souza DC, Coelho IM, Honorato EJS. Adoção por casais homossexuais - uma revisão integrativa. Nova Perspec Sistem 2022; 31(73):74-92.,2929 Tomobolato MA, Maia ACB, Santos MA. A trajetória de adoção de uma criança por um casal de lésbiscas. Psic Teoria Pesq 2019; 35:e3546.. Por outro lado, estudos revelam que as famílias homoparentais acreditam que a pretensão de adotar crianças com deficiência aumenta as chances de ter a adoção bem-sucedida e influencia a celeridade do processo2222 Rodriguez BC. Parentalidade e adoção em casais de homens. Uma análise psicanalítica vincular [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.,3232 Ribeiro LJ. A experiência parental de casais homoafetivos: uma abordagem psicanalítica [dissertação]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2018.. Daí a importância de aprofundar esse debate de maneira ampliada, junto à comunidade LGBTQIA+ e às pessoas com deficiência.

As famílias homoparentais se afinam com a designação de adotantes não tradicionais5252 Rosenthal JA. Outcomes of Adoption of Children with Special Needs. Future Children Adoption 1993; 3(1):77-88.. Para Rosenthal5252 Rosenthal JA. Outcomes of Adoption of Children with Special Needs. Future Children Adoption 1993; 3(1):77-88., essas famílias possuem as melhores experiências no que se refere a adoção de crianças com deficiência, de acordo com as estatísticas, relatos e pesquisas, o que vai de encontro à maior disposição dos casais homoafetivos em adotar crianças com deficiência.

Apesar das experiências analisadas comporem um mosaico diverso de famílias e experiências, suas histórias encontram apontamentos de Mozzi e Nuernberg5353 Mozzi G, Nuernberg AH. Adoption of Children with Disabilities: A Study with Adoptive Parents. Paideia 2016; 26(63):101-109. sobre condições que impactaram positivamente a adoção: o reconhecimento social da maternidade ou paternidade; o contato prévio com pessoas com deficiência; o papel central da criança no processo de vínculo com adotantes e nas práticas de cuidado. Para os autores, estes aspectos atuaram como motivadores para efetivação do processo de adoção e permitiram o reconhecimento da deficiência como apenas um atributo ou componente da identidade da criança, de modo transversal com gênero, idade, raça/etnia e outros. Nesse sentido, as barreiras experenciadas pelas crianças podem fazer a deficiência operar como dispositivo intensificador dos laços.

Em relação aos meios de comunicação responsáveis pela disseminação das histórias abordadas neste ensaio, cabe destacar a construção unânime de uma visibilidade favorável adoção de crianças com deficiência por famílias homoparentais. Entretanto, não foram observadas defesas explícitas à adoção de crianças com diferentes perfis, inclusive sem deficiência. A imagem positiva da adoção de crianças com deficiência por casais e pessoas gays e lésbicas foi enfatizada pelas narrativas de rejeição e abandono das crianças em função da deficiência, pelas famílias biológicas.

Essas observações foram interpretadas sob as lentes das gramáticas do capacitismo22 Moreira MC, Dias FS, Mello AG. York SW. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3949-3958., cruzadas com gênero e orientação sexual. Não se intencionou, com isso, explorar os conteúdos de maneira individualizada, mas captar o modo como a cis -hetero-corponormatividade opera na produção de valores. Nesses casos, a adoção de crianças com deficiência rejeitadas parece ter sido considerada positiva não somente pela defesa do direito à adoção por pretendentes homoafetivos, mas, sobretudo, pelo melhor interesse de crianças que não encontraram outras alternativas de parentalidade entre casais heterossexuais.

A situação de pessoas com deficiência em institucionalização prolongada e permanente foi apresentada em relatório da Human Rights5454 Human Rights Watch (HRW). "Eles ficam até morrer". Uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. EUA: HRW; 2018. após visita ao Brasil. O documento comprova que crianças com deficiência permanecem acolhidas por mais tempo do que as crianças sem deficiência, seguindo nessas condições ao longo da vida adulta, a maioria delas deixando esses espaços apenas no momento da morte.

O documento em questão divulgou pesquisas realizadas em 2016 e 2018, cujos resultados informavam que mais de 60% das crianças com deficiência viviam em acolhimento institucional por mais de seis anos de idade5454 Human Rights Watch (HRW). "Eles ficam até morrer". Uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. EUA: HRW; 2018. (superando os anos de vida das crianças protagonistas das reportagens analisadas) e que a maior parte delas passava mais da metade de suas vidas nesses espaços, respectivamente. Dessa maneira, diante do não cumprimento dos objetivos pensados para instituições acolhedoras (acolhida provisória e como último recurso), o direcionamento das crianças com deficiência para famílias homoparentais pode encontrar uma oportunidade moralmente situada.

Finalmente, chamamos a atenção para um movimento internacional de condicionamento do direito à adoção por pessoas LGBTQIA+ à aceitação de crianças com deficiência e doenças graves3939 Redação BBC. A história do gay solteiro que adotou bebê com síndrome de Down rejeitada por 20 famílias [Internet]. BBC News; 2018 [acesso 2023 ago 13]. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/ noticia/2018/12/28/a-historia-do-gay-solteiro-que-adotou-bebe-com-sindrome-de-down-rejeitada-por20-familias.ghtml.
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,5454 Human Rights Watch (HRW). "Eles ficam até morrer". Uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. EUA: HRW; 2018., vinculação que demanda análises profundas e estudos mais robustos, elementos imprescindíveis à compreensão desses acontecimentos e à garantia dos direitos humanos de famílias homoparentais e de crianças com deficiência e condições de saúde complexas, disponíveis para adoção.

Conclusão

O ensaio foi mobilizado por perguntas orientadoras cujas respostas não se impõem de modo generalizante ou finalístico. Famílias homoparentais e crianças com deficiência se intersectam pelo contexto de adoção a partir fatores diversos, sendo a experiência discriminatória um elemento em comum, analisado sob as gramáticas do capacitismo e do cuidado. Verificou-se que as abordagens midiáticas endossam o direito à constituição familiar e a adoção de crianças com deficiência por famílias homoparentais sem aprofundar criticamente a categoria deficiência e sem explicitar o apoio a adoção de crianças com perfis típicos.

Considerando que nosso acervo se restringiu às reportagens reunidas, e que neste ensaio o caráter exploratório nos permite indicar agendas, reconhecemos a necessidade de pesquisas futuras que explorem a ótica das famílias adotantes, seus arranjos, desafios e enfrentamentos. Reforçamos a necessidade de novas investigações sobre as intersecções entre estruturas capacitistas e LGBTQIA+fóbicas, incorporando o cruzamento de outras formas de opressão como o racismo, nas experiências de parentalidade e seus desafios para a saúde coletiva, mirando estratégias de garantia do cuidado integral, da saúde da família e da justiça reprodutiva. Nessa mesma direção, ressaltamos a importância de formações antiLGBTQI+fóbicas e anticapacitistas no âmbito da educação permanente e da formação continuada, em diferentes setores.

O ensaio indica que as intersecções entre homofobia e capacitismo incrementam lógicas discriminatórias e de opressão e que esta união de grupos considerados “indesejáveis” se expressa como estratégia de governamentalidade. Isto permite ao poder público, simultaneamente, resolver o problema das crianças e adolescentes com deficiência que ficariam nos abrigos “até morrer”5454 Human Rights Watch (HRW). "Eles ficam até morrer". Uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. EUA: HRW; 2018. e garantir às famílias homoparentais algum estatuto de existência, ainda que condicionada às suas regras, o que revela a complexidade das gramáticas do capacitismo aplicadas aos direitos sexuais e reprodutivos de adotantes LGBTQIA+ e aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes com deficiência disponíveis para adoção.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    21 Dez 2023
  • Publicado
    21 Dez 2023
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