Solidariedade como política: Saúde Global e democracia

Juarez Pereira Furtado Ernesto Monteiro de Almeida Gabriel Pinto dos Santos Simone Aparecida Ramalho Wagner Yoshizaki Oda Sobre os autores

Resumo

Garantir a democracia na constituição do campo da Saúde Global (SG) requer a inclusão de perspectivas e ações sanitárias do que se convencionou chamar de “local”. Aproximando os referenciais do Encontro de Saberes ao de Colonialidade, abordamos a implementação de Quitandas Solidárias por iniciativa de pescadores artesanais, no sul da Bahia, no enfrentamento de questões socioeconômicas e de saúde ligadas à pandemia de COVID-19. A triangulação de métodos caracterizou os trabalhos de campo, baseados na etnografia, pesquisa-ação e parceria com agentes locais na análise do material. A busca de efeitos simultaneamente sanitários, socioeconômicos, ambientais e educativos possibilitou relativa superação dos riscos presentes nas ações de SG como os de humanitarismo, controlismo, neoliberalismo e colonialismo. A iniciativa foi gerida pela organização política dos moradores da reserva, que captaram e manejaram recursos do Estado e da sociedade civil com autonomia e solidariedade, aliando os saberes tradicionais aos conhecimentos institucionais e tecnológicos do território. As experiências ditas locais contêm uma visão completa de mundo que não devem ser submetidas a uma categoria totalizante. A Saúde Global pode se beneficiar da consideração dos diversos mundos que constituem o seu objeto.

Palavras-chave:
Saúde Global; Colonialismo; Conhecimento; COVID-19; Cooperativismo

Introdução

A globalização e a internacionalização do mundo capitalista permitiram a emergência de um mercado sem fronteiras, influenciando boa parte dos atuais processos políticos11 Santos M. Por uma outra globalização: do pensamento crítico à consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record; 2001.. Ela impõe a universalidade de uma ideologia (liberalismo), de uma moeda (dólar), de uma ferramenta de troca (capitalismo), de um sistema político (democracia), de uma língua (inglês)22 Brunel S. Qu'est-ce que la mondialisation? Sci Hum 2007; 1085:129. e de um modo de pensar (a episteme eurocêntrica). A contradição estruturante do discurso da mundialização se configura na impossibilidade de igualdade entre as partes e o todo, não raro mascarada pela suposição de concordância racional entre indivíduos e grupos sociais que garantiria o necessário e o almejado para todos e cada um. No entanto, esse hipotético consenso se constitui no apagamento da distância entre inevitáveis litígios e a sociedade mais geral, levando ao desaparecimento da política como espaço de diferenciação, contestação e criatividade33 Rancière J. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34; 1996.. No caso da Saúde Global (SG), urge enfrentar o artifício do intangível consenso globalizado por meio da evidenciação das experiências locais e das disputas em torno da própria constituição da área, na atualidade.

Embora já tenha sido considerada um campo, no sentido bourdieusiano do termo44 Dias NX, Canelas T, Vasconcellos MP, Ribeiro H. Constructing the field of knowledge of Global Health and Sustainability at the Universidade de São Paulo in the Latin American context. Rev Bras Pos Grad 2017; 14(33):1-16., a SG seria, mais apropriadamente, um espaço social em formação e, portanto, palco de disputas, como atestam os recorrentes esforços para o estabelecimento de seu conceito, objeto e objetivos55 Salm M, Ali M, Minihane M, Conrad P. Defining global health: findings from a systematic review and thematic analysis of the literature. BMJ Glob Health 2021; 6(6):e005292.,66 Garay J, Harris L, Walsh J. Global health: evolution of the definition, use and misuse of the term. Face A Face 2013; 12:1-18.. Precedida pela “Medicina Colonial” e seus desdobramentos em “Medicina Tropical” e “Saúde Internacional”, nos séculos XIX e XX77 Holst J. Global Health - emergence, hegemonic trends and biomedical reductionism. Glob Health 2020; 16(1):42., a SG é objeto de confrontação, em seu interior, entre perspectivas ideológicas reformistas versus transformadoras88 Shawar YR, Neill R, Kunnuji M, Manoj M, Shiffman J. Understanding resilience, self-reliance and increasing country voice: a clash of ideologies in global health. BMG Glob Health 2023; 8(1):e010895.; de indagações sobre a adequação de seus(suas) estudiosos(as) aos trabalhos de campo99 Borst RAJ, Wehrens R, Bal R. "And when will you install the new water pump?": disconcerted reflections on how to be a 'good' Global Health scholar. Glob Health 2023; 19(1):19.; de análises dos novos desafios impostos pela crise climática1010 Traore T, Shanks S, Haider N, Ahmed K, Jain V, Rüegg SR, Razavi A, Kock R, Erondu N, Rahman-Shepherd A, Yavlinsky A, Mboera L, Asogun D, McHugh TD, Elton L, Oyebanji O, Okunromade O, Ansumana R, Djingarey MH, Ali Ahmed Y, Diallo AB, Balde T, Talisuna A, Ntoumi F, Zumla A, Heymann D, Socé Fall I, Dar O. How prepared is the world? Identifying weaknesses in existing assessment frameworks for global health security through a One Health approach. Lancet 2023; 401(10377):673-687.; e dos riscos de atualização de relações colonialistas. Este último aspecto nos interessa especialmente e tem sido abordado por meio da análise da contradição de discursos supostamente globais, porém baseados em categorias particulares de algumas e poucas instituições e revistas1111 Shiffman J. Knowledge, moral claims and the exercise of power in global health. Int J Health Policy Manag 2014; 3(6):297-299.; na crítica à subestimação da capacidade cognitiva de populações-alvo e consequente injustiça epistêmica1212 Bhakuni H, Abimbola S. Epistemic injustice in academic global health. Lancet Glob Health 2021; 9(10):e1465-e1470.,1313 Koum Besson ES. How to identify epistemic injustice in global health research funding practices: a decolonial guide. BMJ Glob Health 2022; 7(4):e008950.; de reflexões sobre a iniquidade social e injustiça hermenêutica provenientes da colonialidade do poder e do saber1414 Richardson ET. On the coloniality of global public health. Med Anthropol Theory 2019; 6(4):101-118.; e denúncia de formas de controle técnico impermeáveis às condições locais1515 Biehl J. Descolonizando a saúde planetária. Horiz Antropol 2021; 27(59):337-359..

No Brasil, alguns movimentos de povos tradicionais organizados têm protagonizado discussões atinentes à SG1616 Guajajara SB, Alarcon D, Pontes ALM. Entrevista com Sonia Guajajara: O movimento indígena frente à pandemia da Covid-19. Cien Saude Colet 2022; 27(11):4125-4130., mas estão ainda longe de representar a diversidade de povos e condições existentes. Carecemos de mais estudos em territórios específicos que, por um lado, coloquem em relevo as distintas e criativas formas locais de lidar com problemas sanitários globais, como no caso da pandemia de COVID-19, e que, por outro, estabeleçam condições para que a autoria intelectual dessas práticas seja plenamente reconhecida, confrontando em ato injustiças epistêmicas e hermenêuticas e outros aspectos da colonialidade do saber1717 Quijano A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander E, organizador. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO; 2005. p. 107-130.. Assim, analisaremos a Quitanda Solidária (QS) - iniciativa conduzida por pescadores(as) artesanais, marisqueiras e pequenos(as) agricultores(as) e que constituiu importante reação local aos danos advindos da pandemia de COVID-19 - tendo sido conduzida por uma coalizão de quinze associações locais inseridas numa Unidade de Conservação e Reserva Extrativista no litoral sul baiano. A QS associou cuidados sanitários aos princípios de Economia Solidária1818 Andrada CF, Esteves EG. Sonho, história, loucura? Economia Solidária: um movimento de resistência no mundo do trabalho. In: Rasera EF, Pereira MS, Galindo D, organizadores. Democracia participativa, estado e laicidade: psicologia social e enfrentamentos em tempos de exceção. Porto Alegre: ABRAPSO; 2017. p. 169-187., desdobrando-se em ações de segurança alimentar, trabalho cooperado, comércio justo e finanças solidárias1919 Silva SP. Economia solidária e finanças de proximidade: realidade social e principais características dos empreendimentos de finanças solidárias no Brasil. Brasília: Ipea; 2017. para proteção à propagação do vírus e mitigação dos danos socioeconômicos. O levantamento dos dados e informações, bem como a análise e discussão, nesse estudo, contou com a participação direta de responsáveis locais pela implementação e condução da proposta, estando essa parceria refletida na composição de autorias deste texto. Assumimos o pressuposto de que o destaque das experiências locais de êxito, que produzem efeitos positivos nas condições sanitárias, aliado ao reconhecimento das respectivas autorias, é condição à constituição de uma SG que, enquanto área, supere os riscos de homogeneização e colonização presentes na abordagem de questões transnacionais2020 Furtado JP, Chioro dos Reis AA, Comparato BK, Souza LR, Nakano AK. Participação e diversidade - a construção pluriepistêmica da Saúde Global. Cien Saude Colet 2022; 27(11):4085-4090.. Para a sustentação teórica desse percurso, usamos referencial constituído pelo debate da colonialidade do saber e pela proposta do Encontro de Saberes.

Colonialidade e Encontro de Saberes como referenciais

Aníbal Quijano (1930-2018) enfatiza as relações intrínsecas entre a Era Moderna, o colonialismo e a consequente racialização da humanidade pelos europeus. Para o sociólogo peruano, a colonização do saber usurpou os conhecimentos considerados úteis ao desenvolvimento do capitalismo; reprimiu a produção intelectual e o universo simbólico dos povos colonizados; e forçou a assimilação da cultura dos dominadores pelos dominados, procurando relegar indígenas e africanos a uma subcultura camponesa e iletrada, subestimando sua herança intelectual1717 Quijano A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander E, organizador. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO; 2005. p. 107-130.. A persistência de estruturas de poder e dominação colonial foi chamada de colonialidade, caracterizada pela manutenção do ordenamento racial com consequências econômicas e epistemológicas, dentre outras, em benefício das elites locais e dos países centrais, mesmo após a independência formal das ex-colônias2121 Quijano A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Peru Indig 1992; 13(29):11-20..

No Brasil, a colonialidade do saber se expressou também no processo de criação das universidades, no início do século XX. Para José Jorge de Carvalho, as universidades brasileiras são herdeiras da reforma alemã do ensino superior do século XIX, de inspiração humboldtiana, tendo sido implementadas sem qualquer adaptação de seus princípios epistêmicos à nossa sociedade, privilegiando a elite branca e excluindo a maior parte da população e seus saberes, consolidando um padrão eurocêntrico e monoepistêmico de conhecimento2222 Carvalho JJ, Flórez J. Encuentro de saberes: huellas de memoria pluriversa y descolonización de la universidad contemporánea. Arx Sociol 2018; 39:143-150.,2323 Carvalho JJD, Flórez-Flórez J. The Meeting of Knowledges: a project for the decolonization of universities in Latin America. Postcolonial Stud 2014; 17(2):122-139.. A proposta do Encontro de Saberes (ES) tem suas raízes no movimento de ampliação do acesso às universidades públicas para pessoas negras e indígenas. O ingresso desses segmentos da sociedade evidenciou a carência de inclusão também epistêmica nessas instituições, levando ao movimento pela incorporação, como docentes de universidades em disciplinas regulares, de mestras e mestres oriundos(as) de povos tradicionais e culturas populares de modo a garantir o enriquecimento epistemológico das próprias universidades2424 Carvalho JJ. Encontro de saberes, descolonização e transdisciplinaridade. In: Tugny RP, Gonçalves G, organizadores. Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EdUFBA; 2020.. O ES representa várias rupturas, sendo aquelas de caráter étnico-racial, pedagógica e epistêmica de especial interesse neste estudo, na medida em que criam condições práticas para a superação da injustiça epistêmica2525 Carvalho JJD. Notório Saber para os Mestres e Mestras dos Povos e Comunidades Tradicionais: Uma Revolução no Mundo Acadêmico Brasileiro. Rev Universidade Fed Minas Gerais 2021; 28(1):54-77.. Desse modo, dialogar com o processo de constituição da SG, a partir da colonialidade do saber e do Encontro de Saberes, implica considerar distintas epistemes, relativizando o consenso em torno do discurso técnico-científico e biomédico hegemônicos como únicos parâmetros para se conhecer e intervir, abrindo-se para conhecimentos consolidados e operantes em diversas localidades mais ou menos distantes.

Metodologia

Bruno Bringel e Renata Versiani chamaram de pesquisa militante um campo de teorizações e práticas das lutas populares, juntando intelectuais, pesquisadores(as) e movimentos sociais, refletida em trabalhos como de Orlando Fals-Borda e Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão e Michel Thiollent, proporcionando várias combinações entre o binômio pesquisa e ação2626 Bringel B, Varella RVS. A pesquisa militante na América Latina hoje: reflexões sobre as desigualdades e as possibilidades de produção de conhecimentos. Rev Digit Direito Adm 2016; 3(3):474-489.. Juntamente com a etnografia2727 Angrosino M. Etnografia e observação participante. São Paulo: Artmed; 2009., a adaptação de ideias contidas na pesquisa militante, sobretudo a investigação-ação participante de Fals-Borda2828 Fals-Borda O. El problema de cómo investigar la realidad para transformarla por la praxis. In: Farfán NAH, Guzmán LL, organizadores. Ciencia, compromiso y cambio social: Textos de Orlando Fals-Borda. 2ª ed. Montevideo: Lanzas y Letras; 2014. p. 213-239., guiaram parte de nossos trabalhos em campo. O ES sustentou, no trabalho de campo, a inclusão de epistemologias de fronteiras, nas quais coexistem o conhecer, o sentir e o fazer, numa prática de resistência histórica e conflituosa2929 Mignolo WD. Colonialidade: o lado mais escuro da Modernidade. Rev Bras Ci Soc 2017; 32(94):1-18.. Com isso, o ES tornou possível o trabalho conjunto entre agentes responsáveis pela QS e aqueles oriundos da academia, resultando num modo imbricado e profundo de participação, se considerados os critérios de avaliação de qualidade dos processos participativos propostos por King et al.3030 King JA, Cousins JB, Whitmore E. Making sense of participatory evaluation: Framing participatory evaluation. New Dir Eval 2007; 114:83-105..

O campo

O presente trabalho integra a pesquisa Participação e diversidade - a construção inclusiva e pluriepistêmica da Saúde Global, realizada por meio de imersão em diferentes territórios da chamada Teia dos Povos3131 Pimentel SK. Teia dos Povos: afetos-encantos afro-indígenas-populares numa coalizão cosmopolítica. Tellus 2021; 21(46):253-282.. A Teia dos Povos é uma articulação baiana de movimentos sociais do campo, povos indígenas e comunidades tradicionais baseada na transição agroecológica, promoção do bem viver e estruturação de alternativas no plano econômico, para além do capital, em seus territórios3232 Oliveira JF. As lutas existem pela nossa terra. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG; 2021.. No presente trabalho, destacamos a “Unidade de Conservação Federal de Uso Sustentável Reserva Extrativista de Canavieiras” (Resex Canavieiras), situada no litoral sul da Bahia, que integra a Teia dos Povos. As Reservas Extrativistas constituem uma política dirigida aos meios de subsistência de dada população tradicional e sua cultura, superando o protecionismo e possibilitando o uso adequado do território e dos recursos naturais pelas comunidades ali presentes há muito tempo3333 Costa PCPD. Reservas extrativistas marinhas: reflexões sobre desafios e oportunidades para a cogestão em áreas marinhas protegidas. Desenvolv Meio Ambiente 2018; 48(ed. esp.):417-431.. A Resex Canavieiras foi criada em 2006, com 100.650 hectares de área distribuídos nos municípios de Canavieiras, Una e Belmonte, sendo 83,65 mil ha marinhos e 17 mil ha continentais, estes últimos compostos por extensa área de manguezais (8 mil ha), restinga (5 mil ha) e Mata Atlântica (4 mil ha). Os recursos naturais dessa Unidade de Uso Sustentável são objeto de disputa entre 2.400 famílias ali residentes, em 15 diferentes núcleos, que vivem do agroextrativismo e da pesca, e a especulação imobiliária, mais o agro e o hidronegócio, que não param de crescer no entorno3434 Pereira GP, Oliveira MLR, Costa BAL. Mobilização e atuação das populações tradicionais na criação da Reserva Extrativista Marinha de Canavieiras-BA (Brasil). Rev Espac 2017; 38(41):13.. Essas comunidades se organizam por meio de associações comunitárias locais que, por sua vez, formam a coalizão chamada Associação Mãe dos Extrativistas da Resex Canavieiras, a Amex, criada em 2009. Esta última participa da gestão da Resex por meio de inserção em seu Conselho Deliberativo.

Em campo

Entre abril de 2022 e março de 2023, um dos autores deste artigo assumiu a condição de morador provisório no assentamento Terra Vista, que abriga lideranças da Teia dos Povos. A partir do Terra Vista, onde permaneceu 185 dias não consecutivos, o referido autor conviveu com algumas comunidades integrantes da Teia, incluindo a referida Resex, distante 85 km. O convívio com líderes e membros de parte das comunidades da Resex ocorreu por meio de trabalhos conjuntos na Teia e, de modo mais focalizado, em quatro estadias na própria reserva. O trabalho in loco se caracterizou pela participação em atividades políticas nas reuniões ordinárias de duas associações, encontros entre líderes do assentamento Terra Vista e da Resex, reuniões de planejamento estratégico e colaboração em atividades cotidianas como festas e almoços, estes últimos propiciando interações informais. Simultaneamente, foram feitas dezenas de horas de videogravações, incluindo cinco entrevistas com moradores e líderes locais, registradas com o apoio de um cinegrafista profissional, resultando num documentário sobre o território, cuja edição incluiu os entrevistados. Um diário de campo foi constituído para anotações das vivências e atividades conjuntamente desenvolvidas. Outra importante etapa do campo se caracterizou pela retomada do material inicialmente coletado para o aprofundamento de aspectos conceituais, teóricos, políticos e organizacionais envolvidos na implementação e funcionamento da QS. Nessa etapa, um pesquisador acadêmico e outro da própria iniciativa se reuniram presencialmente duas vezes, seguido de outros três encontros por dispositivo on-line, com o conjunto completo dos cinco investigadores (sendo dois diretamente ligados à iniciativa abordada e três acadêmicos), para validação e complementação do material coletado e definições relativas ao processo de escrita. No Quadro 1 sintetizamos as ações de campo empreendidas. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sob o parecer 0687/2022 e CAAE: 60943622.4.0000.5505.

Quadro 1
Síntese das atividades de campo.

Resultados

A iniciativa da Quitanda Solidária (QS) insere-se em contexto mais amplo de enfrentamento de problemas ambientais e sanitários pela Amex, como no derramamento de petróleo ocorrido na costa brasileira em outubro de 2019, quando retiraram 40 toneladas do óleo mineral nas praias e no alto mar, no território da Resex; e na atuação nas grandes enchentes do sul da Bahia, no final de 2021. Nos dois episódios, a Amex protagonizou esforços coletivos na captação e distribuição de recursos em dinheiro, objetos e alimentos, além de socorro direto às pessoas atingidas, coordenando trabalhos durante 24 horas por dia nos momentos agudos, produzindo efeitos nos aspectos sociais e sanitários envolvidos. As ações da Amex, incluindo a QS, se desenvolvem num quadro político de disputas e embates com governos municipais que vão se sucedendo, desde o início da implantação da Resex e da Amex. Para esta última, o poder público local não atende os interesses da grande parte da população composta por pescadores e marisqueiras, justificando ações políticas e práticas, sobretudo em momentos de urgência, face ao risco de iminentes e irreparáveis perdas materiais e humanas.

Com relação à pandemia, o município de Canavieiras, com 32 mil habitantes, apresentou 1.570 casos confirmados de COVID-19 e 75 óbitos, no período de março de 2020 a dezembro de 20213535 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Covid 19 no Brasil. Município de Canavieiras-BA [Internet]. 2023 [acessado 2023 abr 21]. Disponível em: https://infoms.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html.
https://infoms.saude.gov.br/extensions/c...
. A QS foi uma das estratégias para garantir saúde e segurança alimentar aos moradores de parte das comunidades da Resex, durante a pandemia, num contexto no qual a drástica redução da atividade pesqueira artesanal afetou a renda das 2.400 famílias que vivem direta ou indiretamente da pesca e da mariscagem. A Amex enfrentou as questões sanitárias stricto sensu resguardando pessoas vulneráveis e de comunidades afastadas do contato social mais geral e, além disso, cooperou na confecção de milhares de máscaras de tecido antivírus, sob a liderança da Rede de Mulheres Pescadoras. E a Amex trabalhou na perspectiva do que pode ser considerado promoção da saúde, por meio de ações de segurança alimentar e economia solidária, vendendo alimentos a preços subsidiados, usando moeda social e trocando pescados por produtos agrícolas. As QS também comercializaram peixes e catados no mercado convencional, incrementando o seu próprio caixa e assim estendendo a duração da iniciativa, como detalharemos mais à frente. Conforme constava em cartazes afixados em cada uma das QS, tratou-se de uma

[...] ação de resgate e incentivo à troca e empréstimo solidário de alimentos nas Comunidades Extrativistas afetadas pela dificuldade de comercialização dos pescados e mariscos ocasionado pela pandemia do novo Coronavírus. Tem por objetivo complementar a soberania alimentar das famílias extrativistas enquanto durar a pandemia. Para isso, com o apoio de doadores, serão adquiridos gêneros alimentícios não perecíveis (arroz, feijão, café, açúcar...) para iniciar um processo de troca nas comunidades tendo como principais produtos de troca os pescados dos extrativistas. A base dos valores dos produtos para troca será de forma justa, não tendo objetivo de lucro (Arquivo particular, grifos nossos).

A QS foi implementada em cinco dentre as quinze associações existentes, logo no início da pandemia, funcionando nas respectivas sedes, entre julho de 2020 e novembro de 2021, diariamente das 8h às 11h, beneficiando 1.600 pessoas ao longo de todo esse período. Ali se dava a compra, venda e/ou troca de produtos alimentícios, com o uso de moeda social (Moex) emitida anteriormente, em período prévio de funcionamento do Banco Comunitário da Amex, entre 2012 e 2016. Na condução cotidiana de cada QS, uma dupla de adolescentes e/ou jovens bolsistas encarregava-se dos trabalhos de recepção, estocagem e repasse dos produtos e demais tarefas, o que serviu à estratégia de formação técnica e política deles e de ocupação em momento de retração das escolas. Considerando o rodízio, 40 estudantes passaram pela experiência, tendo seu trabalho acompanhado por uma tesouraria central. O recurso de cinquenta mil reais a fundo perdido, empregado na sustentação da iniciativa, adveio do remanejamento de verba destinada ao fortalecimento de comunidades pesqueiras do projeto Áreas Marinhas e Costeiras Protegidas do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF-Mar), coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, financiado pelo Banco Mundial, tendo o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) como gestor financeiro. A obtenção de autorização para o referido remanejamento foi fundamental para garantir agilidade e celeridade na implementação das QS em momento delicado da pandemia ante a inexistência de recurso vacinal.

A definição pelas cinco comunidades, em face às limitações de recursos, foi baseada em três critérios conjugados: maior distância do comércio local, presença de jovens e/ou adolescentes que pudessem conduzir a QS e o cuidado em evitar que o projeto gerasse concorrência e risco de falência aos microcomércios dos associados em algumas comunidades. O estabelecimento de prioridades gerou insatisfações, dada a expectativa, de parte dos moradores, em acessar a QS, mesmo cientes dos critérios. Se, por um lado, as inconformidades com os critérios apontaram a necessidade de superar o individualismo ainda presente nas ações comunitárias, por outro, a demanda por acesso evidenciou o reconhecimento da importância das QS mesmo por aqueles que não podiam acessá-las. Outras limitações enfrentadas pela proposta foram: a impossibilidade de atender moradores na área urbana do município de Canavieiras, onde concentra-se o maior número de pescadores e coletores, face às exigências de origem fiscal e tributária impostas pelo município e que inviabilizaram a implementação da QS na cidade; e deficiências na logística da distribuição de produtos perecíveis, ocasionando limitações na distribuição e comprometendo a manutenção da proposta para além do período pandêmico.

Discussão

A preponderância do enfoque nas experiências dos grandes centros urbanos e nos países centrais, durante os anos de pandemia do coronavírus, pode invisibilisar o vivido em pequenas comunidades espalhadas pelo país e demais regiões do planeta, negligenciando alternativas inspiradoras em eventuais futuras pandemias. A QS também representou a capacidade de formular resposta complexa a problemas, evidenciando a polimatia inerente a mestres e mestras3636 Carvalho JJ. Transculturality and the Meeting of Knowledges. In: Hemetek U, Hindler D, Huber H, Kaufmann T, Malmberg I, Saglam H, organizers. Transkulturelle Erkundungen: Wissenschaftlich-künstlerische Perspektiven. Wien: Böhlau Verlag; 2019. p. 79-94. - entendida como a singular capacidade de articulação de conhecimentos que tem na transdisciplinaridade o seu equivalente mais próximo na academia -, gerando efeitos simultaneamente sanitários, socioeconômicos, ambientais e educativos. Tudo isso foi possível por meio de onipresente negociação, imbuída de referenciais éticos e políticos bem estabelecidos entre pessoas, instituições, tecnologias, saberes e ecossistemas, representando avanços em relação aos “ismos” potencialmente presentes nas ações de SG como o humanitarismo, o controlismo, o neoliberalismo e o colonialismo apontados por João Biehl3737 Biehl J. Theorizing global health. Med Anthropol Theory 2016; 3(2):127-142.. Afinal, tratou-se de iniciativa concebida e gerida por meio da organização política dos próprios moradores, que souberam captar e manejar recursos do Estado e da sociedade civil com autonomia e solidariedade, utilizando e atualizando conhecimentos tradicionais aliados àqueles institucionais e tecnológicos presentes no território.

Tal iniciativa revela outros sentidos e modos de caracterização do que seria global e local, ultrapassando noções segundo as quais o primeiro seria o todo e o segundo um de seus componentes, sendo distintos entre si apenas em escala e amplitude: o global necessariamente grande e o local inevitavelmente pequeno. Na verdade, a diferença é de ordem qualitativa, sendo que uma categoria não contém ou está dentro da outra, mas ao lado, permitindo assim diferentes e completas visões e concepções do mundo e respectivos desdobramentos práticos1717 Quijano A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander E, organizador. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO; 2005. p. 107-130.. O local é uma visão completa de mundo e contém um mundo em si mesmo3838 Guy JS. O que é global e o que é local? Uma discussão teórica sobre globalização. Cad Adenauer 2015; 4:41-69..

A polissemia atribuída ao comércio solidário das QS pelos próprios moradores e a habilidade de extrair diferentes e sincrônicos efeitos dela demonstra a consciência do imbricamento dos problemas trazidos pela pandemia e a capacidade de agir combinadamente sobre eles. Com isso, ampliou-se o leque de questões contempladas e otimizaram-se os recursos alocados. A assunção de um tal nível de ciência tanto das particularidades quanto da justaposição de necessidades vindas das comunidades, seguido de ágil elaboração de respostas atreladas entre si, foi possível, em boa medida, pela circulação de saberes tradicionais e estratégias recém-desenvolvidas (como o banco comunitário), inseridos numa luta política que parte do reconhecimento e da confiança nas próprias maneiras de conhecer (epistemologia) e constituindo, com isso, um mundo completo, ainda que não isolado, no qual as formas de colonialidade, incluindo aquelas do poder e do saber, são efetivamente relativizadas2222 Carvalho JJ, Flórez J. Encuentro de saberes: huellas de memoria pluriversa y descolonización de la universidad contemporánea. Arx Sociol 2018; 39:143-150. em favor da formulação de projetos para lidar com emergências presentes no território.

O advento das QS deve ser compreendido também no contexto das relações estabelecidas pela Amex com o Estado e seus respectivos governos. No que concerne aos governos estadual e federal, procura-se o estabelecimento de alianças táticas para o acesso às políticas redistributivistas e à garantia de usufruto do território conquistado, sendo marcadamente crítica e independente. Com o governo municipal, se caracteriza por intenso e permanente confronto desde os primórdios, no processo de implantação da Resex e da Amex, como ilustram as passeatas promovidas pela prefeitura3939 Fundação Oswaldo Cruz. Mapa de Conflitos, Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. BA - Ameaças de morte e de perda de emprego de familiares são utilizados para oprimir a população e desmontar a Reserva Extrativista de Canavieiras [Internet]. 2013 [acessado 2023 maio 1] Disponível em: https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/ba-ameacas-de-morte-e-de-perda-de-emprego-de-familiares-sao-utilizados-para-oprimir-a-populacao-e-desmontar-a-reserva-extrativista-de-canavieiras/.
https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/...
, em campanha pelo recuo na caracterização de Reserva Extrativista para área de proteção ambiental (APA), sendo esta última menos restritiva aos interesses do agro e hidronegócio e à especulação imobiliária. O embate entre os interesses comerciais de curto prazo com a preservação do território da reserva e suas comunidades envolve cifras que podem atingir centenas de milhões de reais em terras e “oportunidades” de negócio, estabelecendo interesses antagônicos entre empresários e comunidade pesqueira que, em momentos de especial acirramento, atinge o nível pessoal dos envolvidos, havendo registros de ameaças de morte a pescadores integrantes da Amex.

Há queixas e relatos frequentes de boicotes e postergações às demandas da Amex e suas comunidades, como a morosidade no encaminhamento de pacientes oriundos da Resex para outros municípios, por parte do poder público local, o que parece explicar a invisibilidade dos equipamentos ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS) do município nos discursos e ações tanto de líderes quanto dos demais moradores da Resex. Ações que demandam urgência, como a garantia de segurança alimentar e isolamento social, contidas na proposta das QS, convocam o protagonismo dos associados justamente pela desconfiança de que a resposta municipal não chegaria a tempo para garantir a subsistência e a proteção de parte das comunidades. Com isso, a relação da Amex com a ideia de Estado se alinha, em boa medida, às proposições de busca de autonomias ou, mais especificamente, soberanias hídrica, alimentar, de trabalho e renda, pedagógica e energética que orientam a Teia dos Povos, que tem como um dos princípios fundamentais, além da luta por terra e território, “trabalhar para construir comunidades autônomas que tenham condições de gerir seu próprio destino e começar o trabalho árduo de organização para além do capital”3232 Oliveira JF. As lutas existem pela nossa terra. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG; 2021. (p.124).

Como já afirmado, a assimilação de agendas da Economia Solidária representa uma atualização da agenda dos próprios movimentos sociais4040 Leal LP, França Filho GC. Solidariedade Democrática em Movimento: respostas à grande crise da pandemia de Covid-19. NAU Soc 2020; 11(21):281-291.. A estruturação da distribuição dos gêneros alimentícios e a aquisição dos produtos da pesca em torno dos princípios da Economia Solidária, que já fazia parte das estratégias de luta e de resistência da Amex, foi deliberada como forma de realçar o caráter comunitário e solidário de toda a proposta, daí o resgate e posterior privilégio dado à moeda social nas QS. Além disso, o processo incluiu a troca de parte dos produtos da pesca por aqueles oriundos de comunidades vizinhas de pequenos agricultores, tendo ocorrido trocas justas, dentre outros, com o assentamento Terra Vista, que recebia pescados e enviava significativa quantidade de banana-da-terra, abóbora, aipim e demais produtos agrícolas que eram repassados, sem custos, para os(as) beneficiários(as) das QS. A opção pelo comércio justo, pelas redes de cooperação, pelas finanças solidárias e os desdobramentos advindos dessa forma alternativa de circulação de bens e riqueza, ao invés do conhecido caminho de doação de gêneros alimentícios, deu sobrevida ao recurso inicialmente aplicado por meio da entrada de dinheiro proveniente da venda dos gêneros alimentícios (adquiridos em redes atacadistas) e de parte dos produtos do pescado, ampliando substancialmente a duração das QS dos três meses inicialmente previstos para dezesseis meses. Conforme afirmado por um fundador e dirigente da Amex,

A gente pensava que ia dar para fazer 2 ou 3 meses: trocar catado ou peixe, trocar com o Terra Vista, pegar os produtos de lá e entregar para as pessoas de novo, acabando o dinheiro. Só que houve compras em dinheiro. Então, esse dinheiro sustentou chegar mais longe, junto com o uso da moeda social. Teve gente que preferiu vender o peixe direto no mercado e depois fazer o câmbio com Moex para comprar os produtos na quitanda. Fez uma parte via câmbio e outra em peixe mesmo. Foi ação sem fins lucrativos e com fins solidários.

Tal ampliação parece atestar não só a efetividade do modo de gestão dos recursos financeiros, mas também a legitimidade e o reconhecimento obtidos pela proposta como estratégia de sobrevivência face às restrições e cuidados determinados pela pandemia. Uma das consequências do êxito da experiência de QS foi o encorajamento e o reforço na decisão da Amex em implementar uma cooperativa, que vinha sendo cogitada, voltada à comercialização dos produtos de pesca oriundos do território e à venda de materiais de pesca e outros produtos de interesse para a comunidade, pautando-se pelos princípios da Economia Solidária.

A SG pode se tornar mais efetiva na medida em que se constituir espaço essencialmente de fomento à diversidade de formas de pensar e agir sobre os desafios em Saúde que perpassam todo o planeta. Mas, para isso, é necessário assumir que a própria noção de global, ao contrário do que é comumente subentendido, não significa um manto sob o qual povos e territórios deverão inexoravelmente se abrigar. Como tem sido desenvolvido por Basile4141 Basile G, Reyes AH, coordinadores. Refundación de sistemas de salud en Latinoamérica y el Caribe: descolonizar las teorías y las políticas. Buenos Aires: CLACSO; 2021., a geopolítica e a perspectiva hegemônica neoliberal da SG (e seus desdobramentos como no panamericanismo, em relação à América Latina) implica em dependências de ordem teórica e política nos sistemas nacionais de saúde, o que leva o autor citado a propor o que ele chama de uma epistemologia para a refundação dos sistemas de saúde latino-americanos no século XXI.

Nesse contexto, os modos peculiares e complexos de vida, luta e compromisso com a terra, o território e sua preservação, bem como as soluções para os problemas sanitários ali presentes, como demonstrado na iniciativa aqui analisada, devem ganhar relevo no debate mundial sobre SG e na própria conformação dos sistemas nacional, estaduais e municipais de saúde. Tal inclusão deverá assegurar que o pensar sofisticadamente seja uma qualidade reconhecida a todas as comunidades, compreendendo aquelas subalternizadas pelo processo colonial e pelo modo de produção capitalista, evitando a imposição de pretensas soluções desconectadas aos povos e seus territórios e, por isso mesmo, de alcance limitado, quando não pernicioso.

Conclusão

A conquista de equidade sanitária mundial passa pela consideração das interações entre natureza e sociedade e seus desdobramentos, configurando a chamada determinação social em Saúde, como demonstra os estudos das relações entre o biológico e os modos de organização das sociedades (sobretudo no que concerne ao acesso à riqueza produzida) e suas repercussões no processo saúde-doença de coletividades humanas4242 Breilh J. Las tres 'S' de la determinación de la vida 10 tesis hacia una visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: Nogueira RP, organizador. Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010. p. 87-125.. A pretensão de uma equidade global deve passar também pelo empenho na garantia do convívio das diferenças - fundamental na construção e manutenção da democracia - com os vários povos e respectivos territórios que integram o planeta e fomentar abertura às propostas e soluções sanitárias dali originárias. O paradigma responsável pela grave crise planetária atual é, na sua essência, o modo hegemônico de produção e a expectativa de crescimento permanente, juntamente com a exploração desenfreada do trabalho, o que estimulou, em boa medida, a internacionalização da exploração e a imposição universal de uma ideologia. A crise climática, as epidemias e a pandemia mais recentes, assim como o desemprego (ou subemprego) são frequentemente entendidos como o epifenômeno oriundo desse sistema que, conforme vem sendo atestado, não será a fonte para a solução dos problemas por ele mesmo gerados. É de certos “locais” e “mundos em si”, comprometidos com modos solidários de existência, que poderá desaguar alternativas criativas e eficazes, como abordado aqui e consonante ao que povos originários e a diáspora africana vêm demonstrando há mais de quinhentos anos, no caso latino-americano. Esses povos seguem cultivando suas formas de conhecer e mantendo sistemática resistência, nutrindo a ativa esperança de “alcançar um dia em que o Estado brasileiro reconheça mais valor a uma área que acolhe cem famílias produtivas do que àquela usada por um empresário e suas 10 mil cabeças de boi”, conforme afirmado por um dos líderes entrevistado.

Este trabalho privilegiou a área da SG como interlocutora. O SUS, com suas características e modo de estruturação em solo brasileiro, é passagem obrigatória e fonte de modulações e adaptações de ações de SG, podendo filtrar os riscos apontados em iniciativas que se pretendem globais. As redes e serviços do SUS, nas pessoas de seus trabalhadores(as), ao reconhecerem e fomentarem as capacidades presentes nos territórios - dentre as quais destacamos os modos de solidarizar, resistir, conhecer e propor soluções sanitárias - irão contribuir ao desenvolvimento de aptidões no enfrentamento coletivo de graves e complexas questões presentes nos mais diferentes territórios brasileiros.

Constitui limitações do presente estudo: o fato de não abordar mais aprofundadamente outras iniciativas que convergiram com as QS, como as oficinas de máscaras conduzidas pelas Redes de Mulheres Pescadoras; a falta de detalhamento das questões potencialmente presentes entre os beneficiários das QS, numa perspectiva avaliativa; a não inclusão do ponto de vista de comunidades parceiras da iniciativa. Salientamos, no entanto, as inestimáveis contribuições para a ampliação da extensão e profundidade deste estudo e de sua redação, provenientes da inserção de dois protagonistas do processo como coautores do texto.

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  • Financiamento

    Esta pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por meio da linha de pesquisa regular, processo 2022/03656-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    05 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br